Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
981/05-1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: ACUSAÇÃO
INSTRUÇÃO CRIMINAL
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
EXERCÍCIO ILEGAL DE PROFISSÃO TITULADA
Data do Acordão: 06/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. O juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar.

2. A estrutura acusatória do processo exige que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.

3. O requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe.

4. O requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público.

5. Não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

6. É elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, na modalidade de exercício ilegal de profissão, que o agente se arrogue possuir o título ou condições exigidas por lei para o exercício da profissão, bastando, porém, que o faça implicitamente, ou seja, praticando os actos próprios da profissão, convencendo as pessoas para quem pratica os actos que tem condições legais para os praticar.

7. O crime de usurpação de funções, na modalidade de exercício ilegal de profissão, é um crime doloso, bastando-se porém com o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades.

8. Pelo menos a partir da entrada em vigor das alterações introduzidas no art. 358 do Código Penal pela Lei n.º 65/98, não é elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, p. e p. pela al. b) do art. 358, a existência de uma contrapartida remuneratória, sendo irrelevante que os actos praticados o tenham sido ou não a troco de remuneração.

9. O ilícito consiste em forjar uma identidade profissional que não se possui, praticando, com base nela, actos próprios desse ofício.

10. Sem engano não há crime de usurpação de funções, e o engano relevante para esse efeito traduz-se num engano funcional, que tem por objecto uma capacidade de acção que não se possui.

11. Antes da publicação da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que veio definir com rigor o sentido e alcance dos actos próprios de advogados e dos solicitadores e tipificar o crime de procuradoria ilícita (cf. art. 1.º n.º 5, 6, 7, 9 e 7.º), entendia-se que constituíam actos próprios da profissão de advogado e de solicitador todos os que, sendo de natureza jurídica, eram praticados por conta ou no interesse de terceiros ou consistiam na assistência ou auxílio à sua prática e bem assim a consulta jurídica, ou seja actos de representação e assistência na prática de actos jurídicos e actos de consulta jurídica. São todos estes actos que são reservados pelos Estatutos profissionais dos Advogados e dos Solicitadores ao exercício profissional por parte destes profissionais.
FRC.
Decisão Texto Integral:
Acordam, precedendo conferência, na Relação de Évora:
I
1. A Ordem dos Advogados apresentou queixa-crime contra M.D. e J.B. imputando-lhes a prática de factos que na sua perspectiva integravam um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358, alin. b) do Código Penal.

2. Posteriormente veio a constituir-se assistente.

3. Findo o inquérito, a Digna Magistrada do M.º P.º, por entender não estarem verificados os elementos objectivos do crime denunciado, determinou o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art. 277 n.º1 do CPP.

4. A assistente veio, então, requerer a abertura da instrução visando a pronúncia das arguidas pela prática de um crime de usurpação de funções, na forma continuada (v. fls.176 a 194).

5. Realizada a instrução e efectuado o debate instrutório, a Senhora Juiz de Instrução lavrou despacho de não pronúncia, nos termos constantes de fls.502 a 514.

6. Inconformado com tal despacho, a assistente interpôs recurso para esta Relação, pugnando pela pronúncia das arguidas pela prática do referido crime de usurpação de funções.

7. Nesta Relação, por acórdão de 9 de Março de 2004, foi decidido anular o despacho recorrido e a sua substituição por outro onde fossem inseridos os factos indiciários que permitissem concluir pela pronúncia ou não pronúncia das arguidas (v.fls.610-624).

8. Na sequência do determinado a Senhora Juiz de Instrução veio a proferir, com data de 16 de Julho de 2004, novo despacho de não pronúncia nos termos seguintes:

“Iniciaram-se os presentes autos de instrução a requerimento da assistente, Ordem dos Advogados inconformada com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

Alega em síntese que as arguidas, por intermédio da sociedade A. - Agência de Documentação, Lda., praticaram actos que vão além do objecto social e nada têm a ver com mediação imobiliária mas sim com procuradoria.

Aditou ainda que do próprio despacho de arquivamento resulta claramente que as arguidas se dedicavam à prática de actos próprios e reservados aos advogados e solicitadores, sendo que se assumiam como titulares das condições necessárias para o desempenho daquelas actividades profissionais.

Aberta a instrução foi ouvida uma testemunha indicada pela assistente e inquiridas as arguidas.

Procedeu-se ao debate instrutório, com observância de todas as formalidades legais.

O tribunal é competente. Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito e, consequentemente, a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286°, n°1 do Cód. de Processo Penal).

Importa ter sempre presente que, nesta fase, o juiz de instrução criminal está limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução (cfr. arts. 287°, n.°s 1 e 2 e 288°, n.°4 do CPP), sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.

Sendo a instrução requerida pelo arguido, como é o caso dos presentes autos (?), o escopo desta fase processual consiste na apreciação da legalidade do despacho de acusação face aos indícios recolhidos quanto à existência dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança.

Preceitua o art. 308°, n.°1, do Cód. de Processo Penal que "Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz por despacho pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

Por outro lado, dispõe o art. 283°, n.°2 do Cód. de Processo Penal, aplicável à fase de instrução "ex vi" n.°2 do art. 308°, ambos do CPP, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança.

Como salienta o Professor Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Verbo, Volume III, pág.183" "Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido."

Assim, o juiz deverá pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tivesse cometido.

Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem indícios suficientes para efeitos de prolação do despacho de pronúncia (tal qual para a acusação) quando:

- os elementos de prova relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior; e

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.

Exige-se, por isso, um juízo objectivo de prognose, de que os factos indiciados virão a ser provados, resultando para o arguido, como consequência da sua conduta, uma reacção criminal.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos presentes autos, que se iniciaram com a participação do Conselho Distrital de Évora, foi imputando às arguidas M.D. e J.B. a prática, desde data não concretamente determinada, mas situada, entre 09 de Julho de 1998 e o ano de 2000, de factos susceptíveis de, em abstracto integrarem de um crime de usurpação de funções p. e p. pelo art. 358°, al. b), do Código Penal.

A assistente alegou que a arguida M.D. vem exercendo, em …e concelhos limítrofes, procuradoria ilegal, quer a título individual, quer como sócia gerente da sociedade "A.- Agência de Documentação, Lda" recebendo, num escritório situado nesta cidade, clientela, elaborando requerimentos, pedidos de certidão, requisições de registo, marcação e outorgas de escrituras; recebendo honorários em contrapartida e emitindo os correspectivos recibos.

Mais disse que as arguidas são vistas diariamente nas repartições públicas, designadamente nos Cartórios Notariais de …, e nas Conservatórias do registo Comercial Predial e Repartições de Finanças correspondentes, exercendo procuradoria, isoladamente ou acompanhadas de clientes, pagando os custos respectivos através de cheques da referida sociedade, elaborando contas de honorários e emitindo recibos.

Aditou ainda que no referido escritório, estavam colocadas duas placas de dois advogados, Dr. J. H. e Dr.ª A. M., mas que quem dirige o escritório é a arguida M. e a sociedade A., que nada têm a ver com os senhores advogados referidos não sendo sua funcionária.

Em fase de inquérito foram ouvidas diversas testemunhas e inquiridas as arguidas.

Interrogada, a arguida M. declarou, no essencial, que:

- os actos por si praticados se inscrevem no âmbito da actividade desenvolvida pela sociedade A. - Agência de Documentação, Lda, da qual é sócia gerente, actos esses que podem ser praticados por qualquer pessoa;

- nunca se fez passar por advogada, e os recibos que passou foram-no para pagamento dos serviços por si prestados;

- apenas se limitava a marcar escrituras.

Interrogada a arguida J.B. a mesma declarou, no essencial, que:

- marca escrituras e faz requisição de registos em cartórios notariais e conservatórias, as quais são referentes aos imóveis que compra ou vende no âmbito das suas funções de empregada da sociedade A. - Agência de Documentação, Lda;

- se limita a cumprir ordens da sua "patroa", desconhecendo se algo de irregular se passa.

Inquirida a testemunha Dra. M. A., advogada, a mesma referiu que:

- em reunião da Assembleia Geral dos Advogados inscritos pela comarca de… foi deliberado participar ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados que havia indícios da arguida M. exercer actos próprios dos Advogados, designadamente elaborando requerimentos, pedidos de certidão, requisições de registo, marcação e outorga de escrituras e recebendo a esse título honorários e emitindo os correspondentes recibos;

- presenciou as arguidas, nos cartórios notariais de… e Repartição de Finanças de…, a praticar tais actos, sendo que dessas vezes as mesmas estavam a tratar de assuntos relativos a terceiros;

- viu a arguida J. a efectuar pagamentos de registos na Conservatória do Registo Predial de … com um cheque da …;

- presenciou por diversas vezes as arguidas a acompanharem outorgantes de escrituras nos cartórios notariais de …;

- durante cerca de três anos viu no escritório da A. - Agência de Documentação, Lda, placas identificativas com os nomes do Dr. J. H. e da Dra. P. M.

Inquirido o Dr. J.H., advogado, o mesmo esclareceu que:

- teve uma placa com o seu nome na montra do escritório da sociedade A. - Agência de Documentação, Lda, a qual dizia respeito a um espaço delimitado e fechado no interior das instalações onde recebia os seus clientes;

- não tinha conhecimento das actividades daquela sociedade, sendo que os actos da mesma de que tinha, esporadicamente, conhecimento, relacionavam-se com a mediação de compra e venda de imóveis, que consta do objecto social da empresa;

- prestou todos os esclarecimentos à Ordem dos Advogados, sendo que conforme se pode ler no parecer do Conselhos Distrital da Ordem dos Advogados junto aos autos, "(...) veio o Sr. Advogado J.H. esclarecer que presta serviços à sociedade … e que esta lhe presta serviços no âmbito do seu objecto social."

Inquirido o Dr. S.L., advogado, o mesmo declarou que:

- como o escritório da sociedade da arguida M. tinha, na respectiva montra, uma placa dos Advogados J. H. e A.M., pensou que a arguida trabalhasse para estes, tal como havia trabalhado para o Dr. A. M. durante muitos anos e que dada a sua grande experiência em registos e escrituras não estranhou que continuasse a ser procurada para proceder a tais actos, tendo posteriormente conhecimento, no decurso da Acção Ordinária n.º … do Tribunal de Círculo de … que a arguida M. não trabalhava para os Drs. J. H. e A.M., antes havendo um contrato inominado entre esta e o Dr. J.H.;

- nada sabe quanto à arguida J.B., a qual é apenas trabalhadora por conta de outrem, fazendo aquilo que lhe mandam fazer.

Inquirida a Sra. Conservadora dos Registos Civil e Predial e Notária do Cartório Notarial de …, a mesma declarou nada saber quanto aos factos denunciados, tendo iniciado funções em … em Janeiro de 2000.

Inquirido o Sr. Conservador dos Registos Civil e Predial e Notário do Cartório Notarial de … o mesmo declarou que a arguida M.D. se dirigiu ao Cartório Notarial de … algumas vezes tendo marcado entre três a seis escrituras, tendo-se então declarado empregada forense do Dr. J. H., tendo-lhe exibido um cartão do referido advogado.

Inquirida a Sra. Conservadora dos Registos Civil e Predial e Notária do Cartório Notarial do … a mesma declarou que:

- exerce funções no … desde 17 de Dezembro de 1998, sabendo, pelos seus funcionários, que as arguidas se dirigiam com alguma frequência à referida Conservatória/Cartório, tendo sido na altura localizadas duas escrituras que se encontravam a instruir outras duas e um conhecimento de Sisa, e em que a arguida J.B. interveio na qualidade de Gestora de negócios de outrem;

- não tem conhecimento da presença das arguidas na Conservatória, já que o serviço de expediente é assegurado pelos funcionários e pelo ajudante do Cartório;

- quanto à funções que lhe estão cometidas por competência própria, nomeadamente realização de escrituras e conferência de assinatura de registos nunca viu as arguidas, quer a lavrar escrituras em seu nome, quer como procuradoras de outrem, nem mesmo a acompanhar nenhum outorgante das mesmas, do mesmo modo que nunca assinou nenhum registo requisitado em nome das arguidas.

Inquirido o Sr. Notário do Cartório Notarial de …, o mesmo referiu que exerce a função no referido cartório desde 1968 e apenas na década de 90 viu as arguidas a fazer a marcação de escrituras. Declarou desconhecer se o faziam como " serviço pessoal prestado a terceiros", ou se em nome da actividade de mediação imobiliária.

Foram ainda inquiridos outras testemunhas, que alegaram ter procurado os serviços das arguidas, em particular da arguida M.B., confirmando a elaboração de contratos-promessa de compra e venda de imóveis pela agência A., e a marcação de uma escritura de doação, serviços pêlos quais pagaram um preço.

Em sede de instrução foram juntas aos autos declarações de IRS e IRC relativas às arguidas e à sociedade A. - Agência de Documentação, Lda, resultando das mesmas que as arguidas declararam rendimentos provenientes de trabalho dependente e que a sociedade declarou proventos provenientes da actividade de prestação de serviços.

Foram ainda inquiridas as arguidas sendo que a arguida M.B. declarou que:

- a sociedade A. - Agência de Documentação, Lda, tem por objecto a prestação de serviços nas áreas de documentação, compra e venda de imóveis, elaboração de projectos de arquitectura e contabilidade;

- no âmbito da prestação de serviços de documentação procede ao preenchimento de documentos vários a pedido dos clientes.

- não requisitam certidões junto da Conservatória do Registo Civil, na repartição de finanças ou na Câmara Municipal, nem se dirige a conservatórias para requerer registos mas apenas preenche os respectivos impressos;

- é gerente de uma sociedade de mediação imobiliária e no âmbito das suas funções solicita certidões de teor, dirige-se à repartição de finanças para actualização de cadernetas prediais, preenche e entrega documentação bancária para efeitos de concessão de crédito;

- os contratos que são celebrados no âmbito da mediação imobiliária, são elaborados, para a …, por advogado ou solicitador;

- as pessoas que se lhe dirigem procuram essencialmente ajuda no preenchimento e tratamento de documentos, sabendo que estão a contratar serviços de uma empresa e que nem ela nem a sua funcionária são advogadas ou solicitadoras, nem funcionárias de tais profissionais;

- há alguns anos o Dr. J. H. exerceu a sua actividade nas instalações da Agisôr, mas não prestava colaboração ao causídico em causa.

Por seu turno a arguida J. B. disse que:

- é funcionária da A. - Agência de Documentação, Lda, há cerca de seis anos exercendo funções administrativas;

- preenche documentos e entrega e levanta certidões de registo;

- marca escrituras de compra e venda de imóveis por indicação da arguida M.;

- exerce funções nas instalações da A. - Agência de Documentação, Lda um advogado, a solicitação de quem entrega documentos assinados pelo próprio e marca escrituras a pedido dele;

- as pessoas que se lhe dirigem sabem que não possui conhecimentos jurídicos, nem título académico, não sabendo se a tomam por funcionária de advogado, sendo que nunca se identificou como tal.

Foi ainda inquirido A.D., o qual referiu conhecer a arguida M. há cerca de 10 anos, desde o tempo em que era funcionária do Dr. A.M..

Há cerca de 3 anos iniciou um projecto de construção, tendo-se dirigido ao marido daquela.

Relativamente a esse projecto foi a arguida M. quem marcou a escritura para constituição da propriedade horizontal e para elaboração de contrato de arrendamento das fracções, tendo-lhe fornecido os elementos e ela devolveu-lhe o texto do contrato escrito à máquina para ele assinar.

Esclareceu que se dirigiu à arguida M. por a conhecer há vários anos e a considerar competente, mas sem estar convencido de que a mesma fosse advogada ou solicitadora.

Foram ainda juntos aos autos cópias de contratos de arrendamento pré-elaborados da Porto Editora.




Importa ainda ter em conta que do teor da matrícula respeitante à sociedade "A., Agência de Documentação, Lda", da qual é sócia gerente a arguida M. e funcionária a arguida J. B., resulta como objecto da mesma a " prestação de serviços de contabilidade, agência de documentação, projectos de arquitectura, compra e venda de imóveis"

Com base na prova produzida considera-se indiciariamente assente que:

1.O objecto social da sociedade "A., Agência de Documentação, Lda" é "a prestação de serviços de contabilidade, agência de documentação, projectos de arquitectura, compra e venda de imóveis";

2. A arguida M. é sócia gerente e a arguida J. B. funcionária de tal sociedade;

3. A sociedade "A. - Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda", tem como objecto a "mediação mobiliária";

4. A arguida M. é sócia-gerente dessa sociedade;

5. A arguida M. procedeu ao preenchimento de documentos vários a pedido dos clientes;

6. A arguida M. solicitou certidões de teor, dirigiu-se à repartição de finanças para actualização de cadernetas prediais, preencheu e entregou documentação bancária para efeitos de concessão de crédito e marcou escrituras;

7. As pessoas que se dirigiram às arguidas procuraram essencialmente ajuda no preenchimento e tratamento de documentos, sabendo que estavam a contratar serviços de uma empresa e que as mesmas não eram advogadas ou solicitadoras, nem possuíam qualificações jurídicas;

8. A arguida J.B. é funcionária da A. - Agência de Documentação, Lda, há cerca de seis anos exercendo funções administrativas;

9. No âmbito das suas funções preencheu documentos e fez requisição de registos em cartórios notariais e conservatórias;

10. Durante cerca de três anos, na montra do viu? no escritório da A. - Agência de Documentação, Lda, estiveram placas identificativas com os nomes do Dr. J.H. e da Dra. P.M., as quais diziam respeito a um espaço delimitado e fechado no interior das instalações onde recebiam os seus clientes.

11. O Sr. Advogado J. H. prestou serviços à sociedade A. e esta prestou-lhe serviços no âmbito do seu objecto social;

12. A arguida J. B. entregou documentos assinados pelo Dr. J.H. e, a solicitação dele, marcou escrituras;

13. A sociedade A. realizou e cobrou um serviço de elaboração de contratos-promessa de compra e venda de imóveis;

14. Nos anos de 1997 a 1999 as arguidas e a sociedade A. - Agência de Documentação, Lda, declararam, respectivamente, rendimentos provenientes de trabalho dependente e da actividade de prestação de serviços.

Para além dos supra referidos, nenhuns outros factos se consideram indiciariamente assentes, por não serem precisos e seguros quanto a eles os depoimentos, quer das testemunhas quer das próprias arguidas.

Vistas as diligências realizadas e os factos indiciários, importa agora determo-nos na análise do tipo de ilícito em causa - crime de usurpação de funções - p. e p . pelo art. 358°, al. b), do Código Penal.




Dispõe tal normativo "Quem: (..) b) Exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possui-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou não preenche; (. ..) é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias."

O crime de usurpação de funções apresenta dois segmentos claramente diferenciados, sem prejuízo da unidade do bem jurídico protegido, que são, por um lado, a usurpação de funções propriamente dita - al. a) - e o exercício ilegal de profissão - al. b).

O bem jurídico protegido é a " integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em profissões de especial interesse público" - cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 441.

Em conformidade, o crime em análise qualifica-se como crime de dano e consequentemente, para a sua consumação é necessário que a conduta do agente tenha lesado o referido sistema, pois que dessa forma se garante a seriedade dos serviços "públicos" prestados.

O exercício ilegal de profissão consiste, pois, em forjar uma identidade profissional que não se possui, praticando com base nela actos próprios desse ofício. Não se trata apenas de uma falsificação de aparência, de ostentar sinais exteriores de uma actividade para a qual não se está legalmente habilitado: o engano chega até ao fim - até "fazer mesmo" o que não se podia fazer (cfr. autor e obra cit., pág. 446).

Para que tal aconteça, não basta a simples prática do acto funcional ou profissional sem a habilitação exigida, sendo ainda necessário que tal prática seja acompanhada do engano quanto à sua posse (cfr ob. cit. pág. 444 e Leal-Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, pág. 489).

Efectivamente, existem profissões para cujo exercício a lei exige ou um título ou o preenchimento de certas e determinadas condições, de que é exemplo a advocacia e a solicitadoria.

Exercer profissão ou praticar acto próprio dela são conceitos que importa esclarecer.

Assim, por um lado, o exercício de profissão implica uma actividade com alguma continuidade espácio-temporal. O preenchimento de tal conceito supõe emprego, ocupação, oficio, que permanece no tempo e no espaço, não se bastando, pois, com a prática esporádica de um ou outro acto isolado dessa profissão (assim o Acórdão da R.P. de 20/02/1992 in www.dgsi.pt).

Por outro lado, há que definir o que há-se entender-se por acto próprio de uma profissão.

O conceito de acto próprio é um conceito genérico, cuja delimitação não deixa de ser melindrosa.

Acto próprio de uma profissão, neste conceito abrangente, é o acto que é privativo, exclusivo dessa mesma profissão; o acto que mais ninguém a não ser quem tenha esse título profissional, está legalmente autorizado a praticar.

Ora na concretização do conceito não se pede, ou não se pode pedir, a quem aplica a lei um " critério material" do que seja, acto forense, acto médico, etc., que valha para todas as situações.

“Dele espera-se tão-só que apreenda o sentido da proibição e a aplique" sempre tendo em conta que, independentemente do acto ter sido bem praticado, " (...) o agente quis não só falsificar a sua aparência, como também actuar de modo a ela correspondente. Frustrando o sistema de provimento em determinadas profissões concebido pelo legislador.


Enganando efectivamente alguém que procurava os serviços de um autêntico profissional, de um profissional titulado." - cfr. autor e ob. cit. pág. 447/448.

Tendo em conta os actos praticados pelas arguidas, há que atentar no disposto no art. 56 do Estatuto da Ordem dos Advogados, o qual dispõe, no seu n° 1, que " É proibido o funcionamento de escritório de procuradoria, designadamente judicial, administrativo, fiscal e laboral, de escritórios que prestem de forma regular e remunerada, consulta jurídica a terceiros, ainda que, em qualquer dos casos, sob a direcção efectiva de pessoa habilitada a exercer o mandato judicial."

Dispõe por sua vez o art.53°, n°1, do mesmo Estatuto que "Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na ordem dos advogados podem (...) praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada."

Por seu lado o arts.77º do Estatuto dos Solicitadores dispõe que "1 - Para além dos advogados, apenas os solicitadores com inscrição em vigor na Câmara podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão, designadamente actos jurídicos, e exercer o mandato judicial, nos termos da lei de processo, em regime de profissão liberal remunerada."

Assim sendo e antes de mais importa apreciar se os actos praticados pelas arguidas eram privativos de advogados e solicitadores.

Das diligências efectuadas resultou indiciariamente comprovado que as arguidas requereram e levantaram certidões de registo e marcaram escrituras.

Deverão tais actos ser tidos como exclusivos de advogados ou solicitadores?

Face ao nosso regime legal, até à entrada em vigor do D.L. n° 533/99, de 11/12, o registo podia ser pedido por qualquer pessoa, dispondo o art.39° n° 2, al. c) do D.L. n° 224/84, de 6 de Julho, que podiam pedir o registo, sem carecer de procuração expressa, " qualquer pessoa que assine a requisição do registo".

Assim, até 11 de Janeiro de 2000, data em que entrou em vigor o citado D.L. n° 533/99, as arguidas podiam apresentar pedidos de registo, quer pelo disposto no art. 39°, n° 2, al. c) do Código Registo Predial, quer nos demais casos ressalvados no normativo.

Após 11 de Janeiro de 2000, com a alteração introduzida pelo citado D.L. n° 533/99; só os interessados, os procuradores com poderes especiais, bem como os que intervierem como procuradores nos títulos, os advogados e solicitadores podem apresentar pedidos de registo.

Ora, da anterior redacção do art. 39° Código Registo Predial (e bem assim da nova redacção, se atentarmos que o art.36° do mesmo diploma, sob a epígrafe "Regra geral da legitimidade", não sofreu alteração, continuando a dispor que "Têm legitimidade para pedir o registo (...) e, em geral, todas as pessoas que nele tenham interesse) não resulta que ao dispor sobre a representação e a legitimidade em geral para pedir registos, o legislador tivesse ou tenha em mente a "integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em profissões de especial interesse público", bem jurídico que ilumina o crime de usurpação de funções.

Terá, eventualmente, tido em conta o legislador, a salvaguarda da fé pública registral, do princípio da prioridade, que levará por sua vez a uma maior transparência da actividade das conservatórias e de uma maior responsabilização dos conservadores e oficiais do registo, a simplificação processual com vista à obtenção mais expedita das garantias do registo, etc.

Ora, para que salvaguarda de tais princípios, são inócuas as condutas como as das arguidas, tanto mais que não se logrou apurar em que qualidade (com procuração, como gestoras de negócio, em prestação de serviços ou através de um qualquer contrato inominado com o Dr. J. H., por conta e no interesse da sociedade A.) as mesmas surgiram como apresentantes dos pedidos de registo.


E o mesmo se diga, por argumento de maioria de razão, para a marcação de escrituras, acto que pode ser praticado por quem quer que seja.

Não resulta de igual modo dos autos que as mesmas tenham aconselhado juridicamente quem quer que seja.

Já no tocante à eventual elaboração de contratos promessa de compra e venda de imóveis, em nosso entender não resultou igualmente suficientemente indiciado que as arguidas tenham elaborado quaisquer contratos, resultando apenas claramente que as mesmas preencheram as minutas de contratos que qualquer cidadão pode livremente adquirir em qualquer papelaria, o que, em si, não constitui acto atentatório da profissão de advogado ou solicitador.

Por outro lado, tendo a sociedade A. - Agência de Documentação, Lda. por objecto a prestação de serviços de contabilidade, agência de documentação, projectos de arquitectura e compra e venda de imóveis, e não se apurando em que qualidade actuaram, não nos parece que os actos que efectivamente resultam indiciados possam, sem mais ser tidos como actos próprios da profissão de advogado e/ou solicitador, já que para a prossecução da actividade prevista no objecto societário as arguidas poderiam praticá-los.

Consideramos, pois, que não resulta desde logo indiciado que os actos praticados pelas arguidas, sejam privativos da profissão de advogado e solicitador.

A tal conclusão não obsta o facto das arguidas se fazerem pagar pelos seus serviços. Na verdade não é elemento do tipo legal de crime em apreço o recebimento de qualquer remuneração ou benefício (neste sentido o Acórdão da R.L. de 11/511999 in www.dgsi.pt).

Acresce ainda que, para a verificação do ilícito em causa exige a lei que o agente, se arrogue, expressa ou tacitamente, possuir o título ou preencher as condições que a lei exige para o exercício de determinada profissão ou para a prática de actos próprios de determinada profissão.

"Como acto comunicacional, o engano tem de ser "recebido" pelo destinatário. Quem se arroga algo que não é fá-lo perante outro necessariamente.

De modo que, se não lograr fazer-se passar por tal aos olhos de alguém, o resultado engano não se verifica e o crime não se consumará." - cfr. autor e ob. cit. pág. 446.

Por outro lado, sem este engano não há crime, como melhor se explicitou no Acórdão da R.P. de 9/10/2002, in www.dgsi.pt, no qual se decidiu que "... o engano relevante para esse efeito traduz-se num engano funcional, que tem por objecto uma capacidade de acção que não se possui."

Para tal é, logo, necessário, que o agente se faça passar por advogado ou solicitador fingindo ter tal qualidade.

Ora, também não resulta dos autos que as arguidas, expressa ou implicitamente, tenham querido convencer, e tenham convencido, as pessoas de que eram advogadas ou solicitadoras ou sequer que tinham conhecimentos jurídicos, assim reunindo as condições legais, que possuem os advogados e solicitadores para poderem praticar os actos para que eram procuradas.

Pelo contrário, resulta dos autos que as arguidas nunca exerceram a profissão de advogadas ou solicitadoras, e que quem as procurava sabia claramente que as mesmas não eram advogadas ou solicitadoras, nem possuíam qualificações jurídicas.

Por todo o exposto entendo que não resultam suficientemente indiciados factos susceptíveis de subsumir a conduta das arguidas ao tipo de ilícito que lhes é imputado.

Decisão:
Pelas razões supra expostas, ao abrigo do disposto no artigo 308° n.º 1 a contrario do Código de Processo Penal, decido não pronunciar as arguidas M.R. e J.B. pela prática do crime de usurpação de funções p. e p. no art.358° do Código Penal.

Condeno a assistente Ordem dos Advogados de Portugal em 4 UC's de taxa de justiça pelo incidente de instrução a que deu causa (art.515°, n°1, alínea c) e art.517° do CPP a contrario sensu e art.83°, n°2 do CCJ).

Notifique”.
**
*
9. Ainda não resignada, a assistente veio interpor novo recurso do despacho de não pronúncia, pedindo a sua revogação e se ordene a sua substituição por outro que impute às arguidas a prática do crime de usurpação de funções, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões:

a) São indícios suficientes para a verificação da existência dos pressupostos do crime de usurpação de funções p.p. pela alínea b) do art.° 358 do C.P. a prática de actos de consultadoria e assistência a interessados que procuravam os serviços das arguidas para tratar de questões de carácter jurídico como sejam: a realização de registos e escrituras, a obtenção de documentação necessária para aqueles actos e a intervenção junto de repartições públicas, inscrevendo e alterando o conteúdo das matrizes e a elaboração de requerimentos e reclamação do cadastro geométrico quanto a prédio rústicos.

b) Existindo nos autos:

1 - Nota de honorários da autoria de uma das arguidas, discriminativa dos actos praticados, entre os quais se alude à elaboração de contratos promessa; anexação de prédios; registos provisórios; elaboração de relação de bens; marcação e assistência a acto notarial; valor dos " honorários " pelos serviços prestados, e ainda, o depoimentos de testemunhas que declaram que pelas Arguidas, pelo menos de uma delas, contrariamente ao inicialmente desejado, pelos interessados, para resolver uma questão de transmissão de titularidade de prédios, optou pela doação em vez da compra e venda, preparando toda a documentação e assistindo ao acto;

2 - Que as arguidas dispunham de escritório e de logística própria, fazendo publicidade à actividade de " agência de documentação " em placa no exterior do escritório, ao lado de placas com a identificação de advogados;

3 - Que as arguidas se apresentavam, uma como empregada forense e outra como sua empregada, exibindo inclusive " cartão de visita " com a identificação de um Advogado sem que o com ele tivessem alguma relação laboral.

4 - Tudo leva a concluir que, para além de iludirem os interessados de que poderiam desenvolver aquela actividade, iludiam da mesma forma os serviços públicos com que se relacionavam, arrogando-se, pelo menos implicitamente, de possuírem as condições para o exercício daqueles actos;

c) Atentos os meios de publicitação usados e o conhecimento generalizado dos populares de que as Arguidas desenvolviam aquela actividade, toma não só a actividade notória como do conhecimento público;

d) O exercício da advocacia compreende o aconselhamento das pessoas e bem assim a redacção de contratos (mesmo que utilize formas pré-impressas), preparação e marcação de escrituras, resolução de questões jurídicas como seja a forma do acto notarial.

e) Ao praticarem os actos descritos carreados para os autos, não subsistem dúvidas de que se verifica o exercício de actos próprios da profissão, sem título ou condições, de forma pública e de forma a convencer as pessoas de que se reúne as condições profissionais para os praticar, mesmo que seja de forma tácita.

Pelo que, proferindo despacho de não pronúncia violou o Mt° Juiz "a quo" disposto no art. 308° n° l CPP e mal interpretou o disposto na alínea b) do art. 358° do C.P., assim como os arts. 53° n° l do estatuto da Ordem dos Advogados e 49° e 63° n° 1 do Estatuto dos Solicitadores.

10. Não houve qualquer resposta do Ministério Público e das arguidas ao novo recurso interposto pela assistente.

11. A Senhora Juiz de Instrução limitou-se a mandar subir os autos a esta Relação (fls.686):


12. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, pois os elementos coligidos não permitem concluir que as arguidas, expressa ou implicitamente, se tenham arrogado possuir um título ou preencher as condições que a lei exige para o exercício de determinada profissão – nomeadamente advogado ou solicitador ou qualquer outra.

13. Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

14. Demarcado o objecto do recurso pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva minuta, o que importa saber é:

a) Se resultam dos autos suficientes indícios da prática, pelas arguidas M.D. e J.B., de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art.358, alin. b) do Código Penal, como sustenta a assistente;

b) Se o tribunal recorrido ao não pronunciar as arguidas violou o disposto no art. 308 n.º1l CPP e interpretou mal o preceituado na alínea b) do art. 358 do C.P., assim como os art. 53 n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados e 49 e 63 n.º 1 do Estatuto dos Solicitadores.

Vejamos.

II
15. Importa começar por sublinhar que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286 n.º 1, do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

Como está consagrado no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, "o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório". Esta estrutura do processo penal significa que o seu objecto é fixado pela acusação que delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal, tendo em vista assegurar as garantias de defesa do arguido, protegendo-o contra a alteração ou alargamento do objecto do processo.

Também a orientação da Comissão Europeia dos Direitos do Homem é no sentido de que o artigo 6.º, n.º 3, da Convenção impõe que o acusado seja informado de todos os elementos necessários para que possa preparar a sua defesa, isto é, não só os factos materiais que lhe são imputados (causa da acusação), mas também a sua qualificação jurídica (natureza da acusação), o que implica que o acusado seja também informado de toda a alteração da qualificação jurídica (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo 2000, 4.ª ed., nota de rodapé, pág. 367-368).

Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3.ª edição, pg. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação.

Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar.

A estrutura acusatória do processo exige que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.


Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura da instrução: "tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução", como refere o n.º 4 do artigo 288 do Código de Processo Penal.

O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

Este requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287 n.º 2, do mencionado diploma: a indicação das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283 n.º3, alin. b) e c).

O requerimento, sendo livre de fórmulas, não o é de conteúdo material vinculante.

Deste modo, constituem elementos essenciais ao requerimento para abertura da instrução a enunciação das razões de facto e de direito da discordância em relação à decisão de acusação ou de arquivamento.

Porém, não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme o arguido pretenda fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar, ou o assistente pretenda fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento.

Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (cf., entre outros, o Ac. da Rel. Lisboa de 12.05.1998, BMJ n.º 477, pág. 555; da Rel. Porto de 15.04.1998, BMJ n.º 476, pág. 487; da Rel. Lisboa de 02.12.1998, BMJ n.º 482, pág. 294; da Rel. Lisboa de 21.10.1999, CJ, XXII pág. 158; Rel. Lisboa de 09.02.2000, CJ, XXIII, 1.º, 153).

Sendo assim, poderemos concluir que, por força da conjugação dos art. 287 n.º 2 com o art. 309 n.º 1, a instrução requerida pela assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.P. - aquele que aqui importa ter em conta -, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho.

Substancialmente, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente contém uma verdadeira acusação - Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 141.

Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, "Curso de Processo Penal", vol. III, pág, 141).

O requerimento do assistente, não sendo uma acusação em sentido processual -formal, deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução), e por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução - artigos 308º e 309º do Código de Processo Penal (cf., v. g., o ac. do STJ de 23 de Maio de 2001, proc. 151/01, e de 20 de Junho de 2002, in proc.4250/01, acessíveis in www.dgsi.pt).

A instrução não constitui, pois, uma base para o exercício da acção penal, nem um suplemento autónomo de investigação.

Como se referiu no Ac. do TC de 19/5/2004, publicado no Diário da República nº150, II Série, de 28 de Junho de 2004 a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa”.

Como já referimos no acórdão desta Relação de 27.04.2004, proferido no Recurso n.º383/04, acessível in www.dgsi.pt, “a instrução não tem por finalidade "discutir" posicionamentos nem "averiguar" posições e entendimentos sobre este e aquele ponto e esta e aquela decisão de que se discorda, já que em si mesma, e por sua própria natureza, e legalmente, apenas visa "a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" (art. 286, nº 1, CPP). O que de per se envolve e reclama que o requerimento para a abertura da instrução assuma e se projecte com um determinado perfil, não podendo, obviamente, a assistente limitar-se a expor o seu ponto de vista, pois lhe é imposto que, sinalizando-os, referencie os factos que considera indiciados e os que pretende ver comprovados, identificando o respectivo autor. Mas factos, o que se exara e se consigna, sinalizadores do preenchimento dos elementos constitutivos dos tipos legais de crime que se indicam, e indiciadores e delimitadores da culpa das arguidas na concretização dos mesmos.

Um requerimento que, diga-se, porque definidor e limitador do próprio processo, deve utilizar a veste de uma verdadeira acusação, enformando-a, perfilando-se e apresentando-se substancialmente como uma acusação alternativa, natural e consequentemente descrevendo e exarando aqueles dados e factos concretos, materiais e objectivos, que sustentam e justificam uma eventual aplicação das sanções prevenidas nas normas que se imputam como violadas, não esquecendo a identificação cabal dos seus autores”.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Na verdade "não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes" (cf. Ac. R.C. de 24-11-93, Col. Jur. XVIII-5.º-61).

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais.

Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.

Assim, o requerimento do assistente com que pretenda, de modo processualmente necessário, útil e eficaz, fazer abrir a fase de instrução, e definir o seu objecto, tem de conter, ainda que de forma sintética, repetimos, a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, e quaisquer outras circunstâncias relevantes - artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal, tendo em vista o que dispõem os art.303.º n.º3, 308.º e 309.º n.º 1 do mesmo diploma.

Tal requerimento não pode ser uma narração vaga, não cronológica, imprecisa e conclusiva.

Ora, se aquele requerimento do assistente se limita a indicar novos elementos de prova, ou a apreciar os já trazidos aos autos, sobre uma factualidade criminosa que não descreveu, não reúne, o mesmo, as características fundamentais de uma acusação em sentido material, implicando violação do princípio da acusação e da verdadeira natureza da instrução, bem como da decisão instrutória.

O requerimento formulado pela recorrente para abertura da fase da instrução, não participa a nosso ver, salvo o devido respeito, das características de uma acusação em sentido material, não respeitando, por isso, as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Com efeito, tal requerimento é omisso relativamente à descrição de factos que consubstanciem a prática de um crime de usurpação de funções por parte de cada uma das arguidas, já que não contém os factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivos daquele ilícito penal, não havendo referência ao tempo e espaço, nem a factos atinentes à culpa, pelo que, tal como apresentado, nunca tal requerimento podia servir de base a um despacho de pronúncia, que, a vir a existir, nos termos do requerimento instrutório, seria nulo (cf. art. 309 n.º1 do CPP).

O requerimento é um longo arrazoado sobre a apreciação da prova, com comentários relativos ao conteúdo de meios de prova recolhidos, e abordagem de alguns aspectos jurídicos relativos a elementos do crime. Não contém qualquer descrição factual com menção ordenada e sequencial da conduta das arguidas.

Esse requerimento, sem embargo das críticas ao despacho de arquivamento, não contém a descrição da necessária factualidade que deveria ser apreciada na pendência da instrução, e submetida a uma apreciação em sede de debate contraditório, nem elementos bastantes à configuração do dolo, em qualquer das suas modalidades (cf. art.14 do Código Penal).

No que respeita ao elemento subjectivo do crime, embora se possa controverter se o dolo é inerente à prática do facto, temos por certo que o mesmo devia ser expressamente invocado, para poder ser relevado.

A ideia de um «dolus in re ipsa», que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção, é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo – cf. Prof. Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, 105, pg. 142.

Dado que o despacho de pronúncia se deve quedar pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura da instrução, as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia das arguidas.

Na verdade, de relevante, apenas é ali referido, em termos genéricos, que:

- As arguidas solicitaram certidões nas Conservatórias e Repartições de Finanças, agendaram e preparam escrituras, prepararam e preencheram requisições de Registo Predial, elaboram contratos promessa…;

- Ao actuar da forma como fizeram, cedendo espaço e colocando placas de advogadas nas instalações, após ter trabalhado alguns anos com um Ilustre Advogado na Comarca e nesse âmbito ter estabelecido relacionamentos com diversos organismos e funcionários, entregue cartões de advogados para quem supostamente seria empregada forense, etc, etc, assumiam-se como titulares das condições necessárias para o desempenho daquelas actividades profissionais.

Deste modo, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não é processualmente prestável para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.

O requerimento de abertura da instrução tem de valer por si e não pelo que consta de outras peças processuais e o apresentado pela assistente não contém um suporte mínimo que se adeque à exigência da delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa das arguidas e existem deficiências incontornáveis ao nível da estrutura acusatória do pedido de instrução.

Na verdade, no contexto formal e de termos concretos em que foi formulado, dado que não se respeitou cabalmente o disposto no art. 287.º, nº 2, do CPP, com referência ao art. 283.º, nº 3, b), do mesmo diploma, apenas se dando corpo a toda uma abstracção num quadro de vacuidade, não se concretizando factos suficientes, nem se materializando objectiva e realmente as condutas ilícitas que se imputam, indexando-a aos seus elementos objectivos e subjectivos, sem dúvida alguma que tal requerimento é deficiente, pois de modo nenhum se projecta como uma acusação alternativa.

Aliás, e quanto à estrutura e valência em si do requerimento para a abertura de instrução não são poucos os arestos que se lhe têm referido, citando-se, a título de exemplo, o Ac. da Rel. de Lisboa de 20.5.97 (C.J. XXII - Tomo 3 - pág. 143), onde se exara: "O requerimento do assistente para abertura da instrução, no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o respectivo objecto, de processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições penais incriminatórias". O que, convenhamos, não acontece no caso em apreço, pelo que, e realmente, e na linha de toda uma alargada corrente jurisprudencial, se pode falar em falta de objecto (vide Ac. Rel. Évora de 14.4.95 - C.J. XX, II, pág. 280; Ac. Rel. Lx. de 9.2.2000 - C.J. XXV, Tomo I, pág. 153; Ac. Rel. Porto de 5.5.93 - C.J. XVIII - Tomo III, pág. 243 e Ac. STJ de 27.2.02 - proc. 3153/01-3ª).

Ora, na linha do que se acima se considerou, a falta de alegação de elementos do tipo legal de crime no requerimento da assistente para a abertura da instrução sempre vedaria a prolação de despacho de pronúncia.

Na verdade, supondo o despacho de pronúncia, necessariamente, a imputação de factos às arguidas (art. 308 n.º 1, do C. P. Penal), factos que, nos termos sobreditos, hão-de ser balizados pelos factos alegados pela assistente no requerimento para abertura da instrução, está obviamente vedado ao juiz de instrução, por isso que produziria decisão nula, proferir despacho de pronúncia, se nesse requerimento não forem alegados todos os factos pertinentes.

Sem embargo, dir-se-á:

É elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, na modalidade de exercício ilegal de profissão, que o agente se arrogue possuir o título ou condições exigidas por lei para o exercício da profissão, bastando, porém, que o faça implicitamente, ou seja, praticando os actos próprios da profissão, convencendo as pessoas para quem pratica os actos que tem condições legais para os praticar.

O crime de usurpação de funções, na modalidade de exercício ilegal de profissão, é um crime doloso, bastando-se porém com o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades.

Pelo menos a partir da entrada em vigor das alterações introduzidas no art. 358 do Código Penal pela Lei n.º 65/98, não é elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, p. e p. pela al. b) do art. 358, a existência de uma contrapartida remuneratória, sendo irrelevante que os actos praticados o tenham sido ou não a troco de remuneração.

O ilícito consiste em forjar uma identidade profissional que não se possui, praticando, com base nela, actos próprios desse ofício.

Sem engano não há crime de usurpação de funções, e o engano relevante para esse efeito traduz-se num engano funcional, que tem por objecto uma capacidade de acção que não se possui.

Antes da publicação da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que veio definir com rigor o sentido e alcance dos actos próprios de advogados e dos solicitadores e tipificar o crime de procuradoria ilícita (cf. art. 1.º n.º 5, 6, 7, 9 e 7.º), entendia-se que constituíam actos próprios da profissão de advogado e de solicitador todos os que, sendo de natureza jurídica, eram praticados por conta ou no interesse de terceiros ou consistiam na assistência ou auxílio à sua prática e bem assim a consulta jurídica, ou seja actos de representação e assistência na prática de actos jurídicos e actos de consulta jurídica. São todos estes actos que são reservados pelos Estatutos profissionais dos Advogados e dos Solicitadores ao exercício profissional por parte destes profissionais.

Diga-se que a Lei n.º 49/2004, teve o cuidado de consagrar, no n.º 7 do seu art. 1.º, uma ressalva expressa, segundo a qual os actos considerados próprios dos advogados e dos solicitadores, pelos seus n.ºs 5 e 6, não prejudicam os que se insiram na esfera das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.

Estamos, pois, perante um inegável regime de salvaguarda de direitos profissionais, no qual se integram, nomeadamente, os dos ROC (Revisores Oficiais de Contas), enquanto profissão cujo acesso e exercício são regidos por lei, sob a supervisão da respectiva Ordem, a qual reveste a natureza de associação pública profissional que integra a administração autónoma do Estado, de acordo com o que estabelece a Constituição.

Dando de barato, que as arguidas praticassem alguns actos próprios de advogados e solicitadores (procuradoria ilícita [1] ) o certo é que não está suficientemente indiciada que, mesmo de forma implícita, se fizessem passar por advogadas ou solicitadoras, ou que tivessem habilitações para tal.
Não consta que as arguidas tivessem agido convencendo as pessoas que tinham condições legais para praticar a profissão ou os actos e que tenham agido deliberada, livre e conscientemente, cientes da ilicitude de tal conduta.
Ora, um dos fundamentos do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação dos pressupostos fácticos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (art. 308 n.º 1, do CPP).
Assim, conclui-se conclui-se que o recurso não pode deixar de naufragar, pela dita impossibilidade de se alcançar a reclamada pronúncia das arguidas.

Improcedente o recurso, incumbe à assistente recorrente o pagamento das custas, nos termos prevenidos nos art. 515.º n.º 1 alin. b) e 518.º, do CPP, com a taxa de justiça fixada nos termos e com os critérios estabelecidos nos art. 82.º n.º 1 e 87.º nºs 1 alin. b) e 3, estes do Código das Custas Judiciais.

III

DECISÃO:

16. Termos em que acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela assistente Ordem dos Advogados, mantendo-se, em consequência, a decisão de não pronúncia.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 6 (seis) Ucs, a taxa de justiça da sua responsabilidade.

(Processado por computador e revisto pelo relator).

Évora, 2005.06.14

F. Ribeiro Cardoso (Relator) – Gilberto Cunha (1.º Adjunto) e Martinho Cardoso (2.º Adjunto)




______________________________

[1] É procurador ilícito aquele, não sendo advogado, nem solicitador, que presta serviços a particulares na área dos registos predial e comercial, requer a legalização de prédios, a constituição de sociedades e suas alterações, intervém em processos de partilhas de heranças, redige contratos de arrendamento, de trespasse, de trabalho, de promessa de compra e venda, entre outros.