Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MÁRIO COELHO | ||
| Descritores: | MEIOS DE PROVA PROVA PROÍBIDA | ||
| Data do Acordão: | 05/11/2017 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as ditas gravações. (Sumário do Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | Sumário: 1. Apesar do art. 32.º, n.º 8, da Constituição estar inserido entre as garantias de processo criminal, é também aplicável em sede de processo civil a proibição de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais. 2. Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as ditas gravações. 3. O direito de acesso aos tribunais não impõe a admissibilidade de qualquer meio de prova, em especial quando este for obtido com violação de direitos fundamentais. Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo Central Cível de Setúbal, (…) requereu procedimento cautelar de arresto contra (…), (…) e (…) – Construções, Lda., apresentando com o seu requerimento inicial diversos documentos e arrolando oito testemunhas. Após o arresto ter sido decretado, sem contraditório prévio, vieram os Requeridos apresentar a sua oposição, juntando igualmente diversos documentos e arrolando seis testemunhas. Foi designada data para inquirição das testemunhas e, no decorrer desta diligência (ocorrida no dia 13.01.2017), o Requerente do procedimento pediu a junção aos autos da transcrição de parte de uma gravação não consentida de reunião ocorrida no dia 26.04.2016 entre o Requerente, o Requerido (…) e as testemunhas (…) e (…), as quais haviam sido inquiridas nos autos. Ponderando que estava em causa prova obtida de forma ilícita porquanto a gravação foi efectuada sem autorização do Requerido, o requerimento probatório não foi admitido. É deste despacho que vem interposto recurso pelo Requerente do procedimento, concluindo: 1. Se é certo que, em regra, as chamadas provas ilícitas são insusceptíveis de serem valoradas pelo Tribunal, não é menos certo que é defensável que a ilicitude da obtenção da prova se tenha por justificada quando agente visa exclusivamente a aquisição de um meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma e utiliza o material obtido somente com essa finalidade probatória. 2. É admissível que o entendimento que se faz do artigo 36.º, n.º 8, da CRP, permite a valoração em processo civil de provas ilícitas, desde que a intromissão na vida privada não possa ser considerada abusiva. 3. Isto significa que o standard que afere a ilicitude do acto não é necessariamente o mesmo pelo qual se aprecia a possibilidade da valoração da prova em processo, pelo que também por essa via se pode defender que, ainda que a prova seja ilícita quanto ao método da sua obtenção, a sua valoração em processo não está forçosamente excluída. 4. De acordo com o princípio da cooperação, é dever de todos, no âmbito do processo civil, cooperar no sentido da descoberta da verdade dos factos, ideia reforçada pelo art. 417.º, n.º 1, CPC. 5. A prova está intrinsecamente ligada à descoberta da verdade, a qual é, conditio sine qua non de um processo civil justo. 6. A gravação é, no presente litígio, um meio imprescindível – quase único – de fazer prova. 7. Os direitos fundamentais do indivíduo – como a privacidade e a reserva da vida privada – não são considerados absolutos, devendo, isso sim, ser conformados em articulação com outros direitos, à luz do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP). 8. A admissibilidade da gravação já junta aos autos é adequada, pois cumpre o fim processual da produção de prova: a descoberta da verdade. 9. Tal como é necessária, dado que, a restrição do direito de privacidade do Apelado (…) é absolutamente crucial para que seja exercício do direito à prova e o direito de propriedade privada do Apelado. 10. A não ser assim, o Apelante veria o seu direito à prova ser-lhe negado com a quase necessária consequência de direito de propriedade privada ser colocado em causa de forma irremediável, mediante uma desvalorização incalculável. 11. Por fim, a decisão de admissibilidade da apreciação da gravação é proporcional, pois implica maiores benefícios do que desvantagens. Isto sucede porque, mesmo tendo em conta que o Apelado (…) verá o seu direito à privacidade e à reserva da vida privada restringido, tal é a única forma de carrear para os presentes autos meios de prova fundamentais para uma justa e esclarecida composição da causa. 12. Em suma, o despacho ora recorrido violou o disposto nos artigos 36.º, n.º 8, da CRP, na medida em que interpretou este preceito como uma inibição absoluta de apreciação da gravação, quando o mesmo deve ser lido à luz do princípio da proporcionalidade (cf. 18.º, nº 2, da CRP), e, bem assim, os artigos 18.º, n.º 2 e da CRP, 417.º do CPC. Os Requeridos contra-alegaram e requereram a ampliação do âmbito do recurso, a ser apreciado caso “se entenda que não procedem os restantes motivos pelos quais a junção não deve ser admitida”, concluindo: 1.ª O Apelante interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal a quo que indeferiu a junção aos autos da gravação não consentida de uma conversa entre o Apelante e o Apelado (…), ao qual os Apelados respondem através das presentes contra-alegações, nas quais requerem ainda a ampliação do âmbito do recurso. 2.ª São vários os fundamentos pelos quais a junção da gravação não deve ser admitida, pelo que não merece qualquer censura o despacho proferido pelo Tribunal a quo. 3.ª Desde logo, a gravação não apresenta qualquer utilidade para a decisão a proferir no âmbito do procedimento cautelar de arresto. 4.ª De facto, o que se discute nos autos é o momento em que o Apelante tomou conhecimento, pela primeira vez, da existência da desconformidade entre as áreas reais do imóvel e as áreas com base nas quais foi emitida a licença de utilização. 5.ª Não consta da gravação qualquer menção a tal momento, pelo que a mesma não apresenta qualquer relevância probatória para os autos do procedimento cautelar de arresto. 6.ª A isto acresce que a gravação é ilícita e, consequentemente, processualmente inadmissível. 7.ª Da interpretação conjugada do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, do artigo 199º do Código Penal e do artigo 32º, número 8 da Constituição da República Portuguesa, bem como do princípio da proporcionalidade em sentido amplo e, em especial, do subprincípio da necessidade, resulta que os direitos fundamentais à palavra e à reserva da vida privada do Apelado (…) não devem ser restringidos na hipótese sub judice. 8.ª Por fim, os Apelados requerem a ampliação do âmbito do recurso, para que seja também apreciada a extemporaneidade da junção aos autos da gravação. 9.ª A gravação foi efectuada no dia 26 de Abril de 2016, tendo apenas sido requerida a respectiva junção aos autos no dia 13 de Janeiro de 2017. 10.ª Logo, a junção da gravação não respeitou os requisitos do disposto no artigo 423º, nº 3, do Código de Processo Civil, pelo que, também por este motivo, não deve ser admitida. 11.ª Face ao exposto, deve o recurso do Apelante ser julgado improcedente. Notificado para o efeito, o Recorrente não respondeu à ampliação do âmbito do recurso. Dispensados os vistos, cumpre decidir. Os factos a ponderar na decisão são os constantes do relatório. APLICANDO O DIREITO Da licitude de meio de prova oferecido em processo civil, consistente em gravação fonográfica não consentida de reunião ocorrida entre as partes No âmbito da protecção da esfera da vida pessoal dos cidadãos, a Constituição reconhece, entre outros, o direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 1), a inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada (art. 34.º, n.º 1), proíbe toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em processo criminal (n.º 4 do mesmo art. 34.º) e fulmina, no âmbito do processo penal, com a nulidade todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (art. 32.º, n.º 8). Como vimos, a inviolabilidade das telecomunicações e demais meios de comunicação (onde se contam as conversas orais) não é absoluta, admitindo que tal possa ocorrer apenas em sede de processo criminal, normalmente na investigação de crimes cuja gravidade e relevante interesse da paz social permitem essa ingerência. Por outro lado, apesar do art. 32.º, n.º 8 estar inserido entre as garantias de processo criminal, é preciso notar que, “tal como num processo em que o resguardo da dignidade do arguido, com proscrição de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais, há-de sempre condicionar a averiguação da verdade material – e isto mesmo estando em causa a ofensa de bens essenciais à vida em sociedade – também num outro, em que se dirime um litígio de interesses privados, não se justifica sanção menos grave para a prova alcançada com idêntica violação. A infracção à proibição constitucional de ingerências nas telecomunicações há-de, pois, ter, nos processos cíveis e em matéria de prova, a mesma sanção radical: a nulidade.”[1] Atente-se ainda que o art. 199.º, n.º 1, do Código Penal tipifica como crime a gravação, sem consentimento, de palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que dirigidas ao agente, ou a utilização ou permissão de utilização de gravações mesmo que licitamente produzidas. Deste modo, “no caso das comunicações orais, por telefone ou de viva voz, é proibido, na ausência de consentimento do emitente, gravar as palavras proferidas por outrem e não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem ilicitamente faz a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as mesmas gravações.”[2] Pretende-se, pois, impedir que uma expressão fugaz e transitória da vida se converta num produto registado e susceptível de ser utilizado a todo o tempo.[3] Deste modo, a obtenção de uma gravação como a descrita nos autos, de uma reunião ocorrida entre o Requerente, o Requerido (…) e duas das testemunhas inquiridas nos autos, consiste em prova proibida e nula. E não se afirme que não está em causa um direito absoluto: como vimos, a Constituição permite a intromissão na reserva da intimidade da vida privada apenas no âmbito do processo criminal e na investigação de crimes de relevante gravidade. Assim, o direito de acesso aos tribunais e de produção de prova em processo civil, não significa a admissibilidade de qualquer meio de prova, em especial quando este for obtido com violação de relevantes direitos, como os supra descritos. Se é certo que tais limitações não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, devendo ponderar-se as circunstâncias concretas do caso, não se pode afirmar que a gravação obtida sem consentimento em 26.04.2016, constitua meio de prova insubstituível para demonstração dos factos a que se destina, tanto mais que está em causa uma reunião onde estiveram presentes duas das testemunhas inquiridas nos autos e que puderam ser inquiridas quanto ao que ali se passou. Assim, porque está em causa meio de prova obtido de forma ilícita, bem andou a primeira instância ao não admitir a junção da referida gravação. Como resulta das suas contra-alegações, os Recorridos suscitaram a ampliação do âmbito do recurso, apenas para o caso de não serem atendidos os motivos que aduziram para rejeição do requerimento probatório apresentado pelo Recorrente na audiência de inquirição de testemunhas de 13.01.2017. Significa isto que este meio processual foi suscitado a título meramente subsidiário, para ser apreciado somente em caso de procedência do recurso do Recorrente – e uma vez que tal não sucedeu, torna-se inútil a apreciação dessa ampliação, o que se declara. DECISÃO Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente. Évora, 11 de Maio de 2017 Mário Branco Coelho (relator) Isabel de Matos Peixoto Imaginário Maria da Conceição Ferreira __________________________________________________ [1] Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 241/2002, de 29.05.2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. [2] Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, pág. 331. [3] Cfr. Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 245. |