Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
Descritores: | INVENTÁRIO DOAÇÃO LEGÍTIMA REPÚDIO DA HERANÇA | ||
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Data do Acordão: | 01/27/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | -O processo de inventário é o meio processual idóneo a relacionar as doações feitas em vida pelo autor da sucessão e, a averiguar se as mesmas ofendem ou não as legítimas dos herdeiros legitimários, sendo que, no caso de ofenderem, serão inoficiosas e poderão ser objeto de redução. - A conclusão de que no inventário não há bens a partilhar por subsistir uma só herdeira e todos os bens terem sido doados em vida, estando-se perante uma inutilidade da lide, devendo a instância ser extinta, contende com o direito à legítima da apelante, pelo que deve o processo prosseguir. - Não podendo as escrituras de repúdio à herança apresentadas pelas herdeiras legitimárias e beneficiárias em vida das referidas doações, ter o alcance de as excluir como interessadas nos autos de inventário. - Mas também porque a herança não pode ser repudiada só em parte, nos termos do art. 2064º, 2 do CC, a suscitada aceitação de bens da herança a título de doação em vida do inventariado, compromete, para efeitos de prosseguimento dos autos, a eficácia do repúdio. - As herdeiras legitimárias são interessadas no inventário até que a finalidade deste se esclareça. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora: I 1. Em 23-01-2020 deram entrada os presentes autos de inventário em Cartório Notarial, respeitando os mesmos ao Inventariado A. J… (divorciado) – falecido em 26-02-2017. 2. Foi Requerente do inventário A.L… enquanto representante legal da sua filha menor F… (interessada menor), filha do inventariado. 3. Foi nomeada cabeça-de-casal, C…., também ela filha do inventariado e residente em Portugal, tendo a mesma sido citada em 22-01-2018 para prestar compromisso de cabeça de casal e subsequentes declarações (24º, nº 1, 2 e 3 do RJPI). 4. Na sequência do que, em janeiro de 2018, veio esta invocar “na qualidade de herdeira de A. J.…”, não ser ela “pelo menos por ora”, quem deve desempenhar tais funções, mas sim, a herdeira mais velha, sua irmã, S…, nascida em 11/09/1978 e residente em Jersey, Reino Unido. 5. Notificada deste incidente a requerente do inventário respondeu em 20-08-2018, solicitando fosse citada, em substituição daquela, a herdeira mais velha, S… para vir aos autos exercer as funções de cabeça de casal. 6. O que foi deferido por despacho da Senhora Notária em 20-08-2018 7. C… veio, ainda, em 14-01-2019 “na qualidade de herdeira de A. J., requerer a junção aos autos de escritura de repúdio de herança por óbito de seu pai, lavrada em 14-12-2018. 8. Por despacho da Senhora Notária de 06-01-2020 foi determinado que após conta, os autos fossem remetidos oficiosamente para tribunal, porquanto uma das interessadas diretas (a Requerente) é menor (art.12.º, Lei 117/2019, 13-09). 9. Foi então determinado, por despacho judicial, a citação de S…, residente no Reino Unido, na qualidade de cabeça de casal, dada a sua qualidade de filha mais velha do inventariado.
10. Em 16-07-2020 veio a Requerente, F…, expor e requerer que, tendo consultado os autos, na parte do processo remetido pelo cartório notarial ao tribunal, constatou a junção aos mesmos, de escritura de repúdio de herança por óbito de seu pai por parte da interessada C…., na qualidade de herdeira do inventariado. Admitida a junção de tal escritura, não foi a requerente notificada para se pronunciar. Sucede que a referida C…. já não consta como interessada no inventário, vindo a requerente pronunciar-se opondo-se a tal pretensão, pois considera que C…. praticou atos que revelavam a aceitação tácita da herança do inventariado, seu pai. 11. Dando ainda conta que, decorrera mais de um ano em tentativas de citação da cabeça-de-casal, sendo esta residente no estrangeiro, sempre sem sucesso. Acrescentando: “Uma vez que os bens que farão parte da relação de bens (doados em vida às herdeiras legitimárias S…. e C….) estão localizados em Portugal. Por tal motivo, e não residindo a mesma na área da situação dos bens, ainda que seja citada e aceite o cargo, antevê-se nova dificuldade na apresentação dos documentos que se mostrem necessários ao andamento do processo bem como a apresentação da relação dos bens que hão-de figurar no inventário. A 'economia e celeridade processuais' não se coadunam com a manutenção do cabecelato nas mãos da herdeira S….. A frustração da citação por carta registada com A/R e, até agora, da via consular tem perturbado o normal andamento do processo. É certo que legalmente cabe àquela herdeira exercer o cargo de cabeça-de-casal, mas os princípios da economia e celeridade processuais devem-se sobrepor à estrita observância do direito vigente, sob pena do processo eternizar-se. Requerendo, por isso, ao tribunal que: “Caso se fruste mais uma vez a citação pela via consular, de forma a ultrapassar os obstáculos da citação da cabeça-de-casal e imprimir celeridade ao ato de citação, requer-se a V. Exa. se proceda à substituição da cabeça-de-casal nomeada, nomeando-se em sua substituição a herdeira C…. por ser mais velha do que a requerente – artigo 2080º, nºs 2, 3 e 4 do C. Civil.” 13. Tendo a Mmª Juíza ordenado a notificação da cabeça de casal nomeada para se pronunciar. 14. Em 21-01-2021 veio S…. expor e requerer que, tendo sido citada na qualidade de Cabeça de Casal vinha impugnar tal nomeação, uma vez que repudiou a herança do de cujus, conforme escritura que juntou, lavrada em 08-01-2021. 19. Por despacho de 10-02-2021 a MMª Juíza ordenou a notificação das duas herdeiras repudiantes para informarem se tinham descendentes, devendo, na positiva, juntar o respetivo assento de nascimento. 21- Em resposta a interessada S…. veio juntar aos autos escrituras de repúdio da herança de cujus, agora por parte das suas duas filhas menores. 22- Notificada a Requerente para se pronunciar veio esta reafirmar que: “A cabeça-de-casal S…. veio apresentar escritura de repúdio da herança, bem como as suas descendentes, desconhecendo a requerente se esta sua irmã praticou atos de aceitação, ainda que tácita da herança, sendo que as doações feitas a S…. pelo pai de ambas e inventariado foram por conta da quota disponível e, por isso, não consubstanciam a prática de atos na qualidade de herdeira. A requerente mantém integralmente o requerido em 16/07/2020 quanto ao repúdio apresentado pela sua irmã C…., devendo ser esta nomeada cabeça de casal por ser mais velha do que a requerente – artigo 2080º, nºs 2, 3 e 4 do C. Civil. Caso esta venha manifestar a sua não disponibilidade para o exercício do cargo, deverá ser nomeada a ora requerente, representada pela sua mãe.” 23- Por sua vez a interessada C…. veio informar não ter descendentes e manter o propósito de beneficiar dos efeitos do repúdio da herança, direito exercido em tempo uma vez que não ocorrera ainda nomeação (efetiva) de cabeça-de-casal nem citação dos herdeiros indicados por este. 24- Em 03-07-2021 a Mmª Juíza proferiu a seguinte sentença (objeto do presente recurso): «Inventário (Competência Exclusiva) I. Do repúdio da herança: Os presentes autos foram instaurados por F…., menor, devidamente representada por sua mãe, na qualidade de herdeira legitimária de A. J., falecido em 26.02.2017, para partilha dos bens da respetiva herança. Realizadas, ainda em sede notarial, as citações, vieram, entretanto, a ser juntas ao processo pelas demais sucessíveis do de cujus, certidões de escrituras públicas que comprovam o seu repúdio da herança – cfr. certidões constantes de fls. 33 e seguintes, apresentadas nos requerimentos dirigidos ao processo em 21.01.2021 e 15.03.2021. Nesta sequência veio, então, a requerente invocar que os atos já praticados no processo pela repudiante C…. consubstanciavam a sua aceitação tácita da herança, pelo que o ato de repúdio entretanto comunicado, não deveria ser aceite pelo Tribunal. Atento o estado dos autos, e ponderando o Tribunal conhecer, oficiosamente, da inutilidade superveniente da lide, foi dado cumprimento ao contraditório. Cumpre apreciar e decidir. Tal como escreve Luís A. Carvalho Fernandes (In Lições de Direito das Sucessões, Quid iuris, 4.ª Edição, pág. 265), “o direito de suceder é um direito potestativo instrumental, através de cujo exercício, mediante a manifestação da sua vontade, o sucessível chamado à herança a pode fazer sua ou afastá-la do seu património”. Ou seja, os titulares da vocação sucessória não têm, necessariamente, de aceitar o chamamento: aceitando a herança, passam de meros sucessíveis para efetivos sucessores e adquirem o domínio e a posse dos bens da herança (cfr. artigo 2050.º, n.º 1 do Código Civil); não a aceitando através do ato de repúdio previsto nos artigos. 2062.º e seguintes do Código Civil, serão chamados os sucessíveis subsequentes – cfr. artigo 2133.º, nº 1, al. e) do Código Civil. Não suscitando os documentos relativos aos repúdios apresentados, designadamente aquele de C…., dúvidas, tendo sido formalizados nos termos do disposto no artigo 2063.º, do Código Civil, está demonstrada a sua validade formal. Quanto à validade substantiva, atentas as questões suscitadas pela requerente, importa notar que a aceitação tácita da herança é aquela que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem. Assim, os comportamentos do sucessível terão de criar uma situação da qual se possa extrair com toda a probabilidade que o mesmo aceitou a herança (artigo 217º do Código Civil); aferindo-se tais comportamentos e as correspondentes conclusões, a partir dos padrões que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236º do Código Civil). Tendo por referência o supra exposto, olhando em primeiro lugar ao lapso de tempo que mediou entre a abertura da sucessão (ocorrida em 26.02.2017) e o repúdio (celebrado por escritura pública em 14.12.2018), conclui-se que o mesmo não é significativo, não constituindo, por si só, sinal, do qual se possa deduzir com segurança a aceitação tácita da herança. Por outro lado, olhando à intervenção da repudiante C…. nos presentes autos vemos que a mesma se limitou a informar o processo não ser a sucessível do de cujus a quem competia exercer as funções de cabeça de casal e, tendo sido erradamente indigitada como tal, a suscitar o competente incidente de substituição. Não chegou a prestar declarações na qualidade de cabeça de casal, nem tão-pouco compromisso de honra, revelando o seu comportamento processual apenas e só a sua vontade de evitar ser nomeada cabeça de casal e não a pretensão de herdar. Tudo considerado, entende-se, pois, que os autos não evidenciam a aceitação tácita da herança pela sucessível C…., sendo, assim, o seu repúdio, a par dos demais, válido formal e substancialmente. Pelo exposto, importa considerar que as repudiantes – C…., S…., L…. e P….- carecem, com efeitos que retroagem à data da abertura da sucessão, da qualidade de sucessíveis de A. J….. Notifique. II. Da extinção da instância O processo de inventário tem como finalidade fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens do de cujus - artigo 1082.º, alínea a), do Código de Processo Civil. A partilha pressupõe, naturalmente, a existência de mais do que um herdeiro dos bens a partilhar. Atento o supra decidido vemos que, à exceção da requerente, as demais sucessíveis do inventariado, após a abertura da sucessão, repudiaram validamente a sua herança, existindo, atualmente, uma só herdeira. Nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, a instância extingue-se com a “impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”. A lide torna-se impossível quando sobrevêm circunstâncias que inviabilizam o pedido, e inútil quando se torna desnecessário que sobre a mesma recaia pronúncia judicial. Ora, existindo uma única herdeira do inventariado, a finalidade da partilha dos bens da sua herança deixou de se verificar, revelando-se, por isso, inútil, que os presentes autos prossigam. Termos em que declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide - artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil. Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.»
Inconformada com tal decisão veio F…., requerente nos autos de inventário, recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso: 1 – A apelante não se conformando com o decidido na douta sentença, dela apresenta o presente recurso colocando à apreciação: Saber se deve ser julgado eficaz o repúdio apresentado por C….; ou mesmo que assim se entenda, se deve ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. 2 – A primeira questão colocada pela apelante traduz-se em apurar se há que considerar se C… à data do repúdio (14/12/2018) já havia praticado atos de onde se retire que havia aceitado a herança. 3 – Entende a apelante que tal escritura de repúdio não produz efeitos no presente inventário por existirem elementos reconhecíveis da intenção da herdeira C…. em adquirir a herança do inventariado, pelo que tendo ocorrido uma aceitação da mesma não pode produzir efeitos o repúdio celebrado posteriormente. 4 – Em termos de factualidade deverá considerar-se o seguinte: - Os presentes autos de inventário foram instaurados, em 30/10/2017, pela requerente para partilha da herança aberta por óbito de seu pai A. J., tendo, por despacho de 05/12/2017, sido nomeada cabeça-de-casal C… e designado o dia 19/01/2018 para prestação do compromisso de honra; - C…. é filha do inventariado A. J….; - Em 15/01/2018, a cabeça-de-casal C… contactou o Cartório Notarial, onde corria termos inventário, tomou conhecimento do processo e forneceu morada para onde deveria ser citada; - Por despacho de 15/01/2018, foi dada sem efeito a data designada para tomada de compromisso de honra e declarações pela cabeça-de-casal e designado o dia 02/03/2018; - Logo após, em 07/02/2018, e antes mesmo da prestação de compromisso de honra, veio C… juntar procuração e requerer que fosse nomeada cabeça-de-casal a sua irmã S…, por ser esta a herdeira mais velha e juntou os respetivos assentos de nascimento; - No seu requerimento, C…. apresentou-se como herdeira de A. J…. e nessa qualidade deduziu incidente de substituição de cabeça de casal, por entender que, pelo menos naquele momento (ponto 2 do requerimento: “ pelo menos por ora”), não era quem deveria desempenhar tais funções, por não ser a herdeira mais velha (ponto 6 do requerimento: “não é a Requerente a herdeira mais velha“); - Por despacho de 28/02/2018, considerou-se ser de admitir o incidente de substituição de cabeça-de-casal desde que a requerente do mesmo procedesse ao pagamento da 1ª prestação de honorários devidos e C… foi notificada deste despacho; - Em 23/03/2018, C…., na qualidade de herdeira de A. J…., juntou aos autos comprovativo do pagamento dos honorários devidos pelo incidente de substituição de cabeça-de-casal; - Por despacho de 20/08/2018, foi admitido o incidente de substituição de cabeça de casal; - Em 20/08/2018, foi a requerente do inventário notificada para deduzir oposição ao incidente de substituição de cabeça de casal; - Por requerimento de 12/09/2018, veio a requerente do inventário declarar nada ter a opor ao suscitado incidente; - Por requerimento de 14/01/2019, veio C…, na qualidade de herdeira de A. J…., juntar aos autos escritura de repúdio de herança por óbito de seu pai, efetuado por escritura pública realizada em 14/12/2018; - Por despacho de 15/03/2019, foi deferida a pretensão de C… quanto ao pedido de substituição de cabeça-de-casal nomeando-se S…. e foi admitido o requerimento e a certidão de escritura de repúdio apresentada por C…. 5 – Considera a apelante que desta factualidade resulta que, em datas anteriores ao repúdio, (formalmente válido), a herdeira C… praticou atos que revelavam a aceitação tácita da herança do inventariado, seu falecido pai. 6 – C… veio requerer a substituição de cabeça-de-casal, alegando que por não ser a irmã mais velha “pelo menos por ora” não deve desempenhar tais funções, ou seja, admite a possibilidade de vir a desempenhar tal cargo, mas por ter uma irmã mais velha entende dever ser esta a nomeada em primeiro lugar, atento o disposto no artigo 2080,nºs 2, 3 e 4 do C. Civil.. 7 – Notificada para o efeito procedeu ao pagamento dos honorários devidos pela dedução do incidente, sem nada opor. 8 – Acresce que, C… fez requerimentos aos autos sempre invocando a qualidade de herdeira do inventariado A. J….. 9 – Evidencia-se, assim, desta factualidade que os vários atos processuais praticados evidenciam a definição de uma efetiva posição interventiva para além da de mera investidura processual na qualidade de herdeira. 10 – Tal intervenção foi uma intervenção ativa em atos processuais, agindo na qualidade de titular da herança, traduzindo para qualquer declaratário de boa-fé a firme convicção que aceitou a herança em causa. 11 – Com feito, C…, durante um ano, nada fez, quando sabia e intervinha no processo, assumindo-se herdeira, dando, assim, azo a que a apelante se convencesse de que assumia a posição de herdeira, pelo que tacitamente aceitou a herança. 12 – A apresentação da escritura de repúdio da herança junta aos autos não pode, assim, ter quaisquer efeitos no processo, pelo que deveria o Tribunal recorrido ter declarado ineficaz o repúdio da herança por parte de C… perante a prévia aceitação (tácita) da mesma, a qual, nos termos do artigo 2061º, do C. Civil, é irrevogável. 13 – Pelo que, deve ser declarado ineficaz o repúdio da herança por parte de C…, perante a prévia aceitação (tácita) da mesma, a qual, nos termos do artigo 2061º, do C. Civil, é irrevogável e devem os autos prosseguir os seus ulteriores trâmites. 14 – O Tribunal recorrido ao decidir que C… carece da qualidade de sucessível do inventariado por ter repudiado a herança, violou os artigos 2056º, 2061º e 227º, todos do C. Civil. 15 – Ainda que assim não se entenda, considera a recorrente que não deveria ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. 16 – Como a apelante refere no requerimento apresentado em 16/07/2020 – ref. Citius 6979270 – os bens que farão parte da relação de bens foram doados em vida às herdeiras legitimárias S… e C…, pelo que, ainda que se considerem eficazes todos os repúdios apresentados, sempre se terá de proceder a processo de inventário. 17 – Não havendo outros bens para além dos bens doados em vida pelo inventariado às suas outras duas filhas S… e C…, a apelante pretende a redução de liberalidades inoficiosas, sendo o processo de inventário é o meio processual adequado para alcançar esse desiderato. 18 – A apelante é herdeira legitimária do inventariado pelo que, em defesa da sua legítima, assiste-lhe o direito de pedir a redução das liberalidades que a ofendam e que, por isso, devem ter-se por inoficiosas. 19 – Para o cálculo da legítima importa atender ao valor dos bens que integram o património do autor da sucessão à data do óbito, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança. 20 – Pretendendo a apelante exercer o direito à redução, o reconhecimento da sua pretensão passa, pois, pela afirmação da qualidade de herdeira legitimária e pela enunciação dos factos pertinentes ao cálculo da legítima. 21 – Para conhecer da inoficiosidade, para o cálculo da quota disponível e da legítima dos herdeiros legitimários, com vista à redução por inoficiosidade de liberalidade feita pelo inventariado a favor de um deles é o processo de inventário. 22 – Existindo herdeiros legitimários, têm de relacionar-se os bens doados, quer as doações tenham sido feitas a estranhos quer a herdeiros a quem a lei outorga o direito a legitima. 23 – Pelo que, ainda que se considerem eficazes todos os repúdios apresentados, o inventário deveria ter prosseguido por ser o processo próprio para se efetuar a conferência de bens doados. 24 – Ao decidir-se julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, foram violados os artigos 1082º e seguintes do C.P.C.. A final pede seja o despacho saneador-sentença na parte recorrida ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta.
Não foram deduzidas contra-alegações. II Os factos relevantes resultam do relatório supra. III Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artºs. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), são as seguintes as questões a decidir: - Se não podia a instância ser declarada extinta por inutilidade superveniente da lide, pretendendo a Requerente relacionar bens objeto de doações inoficiosas. - Se a ação, no caso de prosseguir, assenta num repúdio de herança não válido, por parte da herdeira C…, por ter assumido comportamentos processuais suscetíveis de configurar uma aceitação tácita da herança.
Analisemos. A decisão do tribunal a quo, com todo o respeito, não resolveu o conflito que se mantém implícito no âmbito da sucessão legitimária, sendo suscetível de frustrar a proteção que a lei confere à herdeira legitimária, ora apelante. Vejamos porquê. Estamos no âmbito da sucessão legitimária regulada no título III do livro V do Código Civil, a qual comporta limites à liberdade de disposição, em vida, do património pelo autor da sucessão. E, ao contrário da sucessão legítima que trata do destino dos bens que existam no momento da morte do autor da sucessão, na sucessão legitimária, sobrepõe-se a necessidade de proteger a legítima dos herdeiros legitimários. Por isso, para além dos bens que existam no momento da morte do de cujus, há que atender ao valor das liberalidades feitas em vida pelo autor da sucessão. Podendo essas mesmas liberalidades ser postas em causa pelos herdeiros legitimários, quando as mesmas ofendam as suas legítimas. A porção do património hereditário de que o de cujus não pode dispor, quer por ato inter vivos quer por ato mortis causa, uma vez que a lei a destina aos seus herdeiros legitimários (cônjuge, ascendentes e descendentes nos termos do art.º 2157.º CC), tem a denominação de legítima, aqui num sentido de legítima objetiva, associada ao património no seu conjunto. Dispõe o artigo 2157º do Código Civil que são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima. O interesse destes herdeiros encontra-se acautelado pela sua legítima, aqui num sentido de legítima subjetiva, aquela que cabe por lei a cada herdeiro legitimário. Dispõe ainda o art. 2162º, 1 CC que: “Para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança.” Ou seja, na sucessão legitimária importa que se atenda ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, mas também ao valor dos bens doados em vida deste, nos termos do artigo 2162º CC. Ora, a Requerente do inventário, herdeira legitimária, deixou claro no seu requerimento de 16-07-2020, que os bens que farão parte da relação de bens foram doados em vida às igualmente herdeiras legitimárias S…. e C…., estando localizados em Portugal. Pode acontecer que as doações, a terem sido feitas, o tenham sido por conta da quota disponível ou, por conta da sua legítima. O que importa apreciar. Sempre que o autor da sucessão tenha disposto, em vida e a título gratuito, a favor de herdeiros legitimários, de parte ou da totalidade dos seus bens, tais bens terão de ser chamados ao acervo hereditário, para que os herdeiros legitimários em acordo, possam ver apreciado se as referidas doações afetam ou não as suas legítimas, o que a acontecer implicará a sua redução. O processo de inventário é, assim, o meio processual idóneo a relacionar as referidas doações e a averiguar se as mesmas ofendem ou não as legítimas dos herdeiros legitimários, sendo que, no caso de ofenderem, serão inoficiosas e poderão ser objeto de redução. A conclusão de que no presente inventário não há bens a partilhar por subsistir uma só herdeira e desse modo se está perante uma inutilidade da lide, devendo a instância ser extinta, contende com o direito à legítima da apelante. Tanto basta para considerar infundamentada a conclusão de se estar perante uma inutilidade da lide. Assim sendo, deve o processo de inventário prosseguir. Não podendo as escrituras de repúdio à herança apresentadas pelas herdeiras legitimárias C…. e S…., ter o alcance de as excluir como interessadas nos presentes autos de inventário. Uma vez que a herança não pode ser repudiada só em parte, nos termos do art. 2064, 2 do CC, a suscitada aceitação de bens da herança a título de doação em vida do inventariado, compromete, por ora e para efeitos de prosseguimento dos autos, a eficácia do repúdio. As herdeiras legitimárias C… e S…. não podem deixar de ser consideradas interessadas no inventário até que a finalidade deste se esclareça. Os repúdios de ambas poderão tão só traduzir um pedido de escusa para exercer as funções de cabeça de casal, o que deverá ser atendido face ao seu desinteresse em impulsionar os autos. Devendo a 1ª instância nomear cabeça-de casal a requerente e ora apelante, única interessada que manifestou disponibilidade para o efeito. Concluindo, inexiste causa de extinção da instância, nomeadamente a invocada inutilidade superveniente da lide e, ainda que, por razões diferentes das expressamente alegadas pela apelante, o repudio da herança pelas demais herdeiras legitimárias que não a apelante não produz o efeito de as desinteressar da relacionação de bens e do apuramento das legítimas, objeto do presente inventário. Não está na sua disponibilidade. Procedendo, desse modo o recurso. (…) IV Termos em que, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que se substitui por outra que determine o prosseguimento dos autos nos termos e para os efeitos supra definidos. Sem custas do recurso. Évora, 27 de janeiro de 2022
Anabela Luna de Carvalho (relatora) Maria Adelaide Domingos José António Penetra Lúcio |