Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | AVIÃO CONDUTOR POR CONTA DE OUTREM COMISSÁRIO COMITENTE GERENTE CAUSALIDADE ADEQUADA DANO MORTE ANULABILIDADE | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ALTERADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
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Sumário: | Sumário:
I - A nulidade da sentença prevista no artigo 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. II - O vício que serve de fundamento à anulabilidade do negócio jurídico cessa quando o interessado dele toma conhecimento. III - O prazo de caducidade, no caso, há de contar-se a partir da data em que ocorreu a cessação do vício, que neste caso ocorre quando o contraente que está em erro conhece essa realidade, toma conhecimento do vício ficando a saber que aconteceu o erro, deixando de existir a partir de então. IV - Se a ré seguradora não tomou conhecimento, antes da instauração da ação em que se pedia a sua condenação ao abrigo do contrato de seguro que celebrou com a proprietária da aeronave acidentada, só nessa altura tomou aquela ré conhecimento da inexatidão das declarações da segurada. V - Resultando da factualidade provada que a segurada declarou que determinada pessoa era um piloto devidamente qualificado para pilotar aeronaves bimotor, e expressamente referido que tinha mais de 50 horas de voo nesse mesmo tipo de aeronave, o que não encontrou correspondência na realidade, essa inexatidão tem-se como necessariamente dolosa e essencial para a apreciação do risco pelo segurador, com incidência na quantificação do prémio. VI - Os sócios gerentes, constituindo órgãos diretivos e sendo representantes de uma sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato. VII - O que o artigo 500º, nº 3, do Código Civil exige é a condução por conta de outrem e o sócio-gerente que conduz a aeronave empresarial, numa atividade de transporte de passageiros da empresa que gere, desempenha tal atividade por conta de tal empresa. VIII - Assim é forçoso concluir que o piloto/gerente e a ré proprietária da aeronave - o primeiro como comissário que agindo com culpa deu causa ao evento danoso e a segunda como comitente - devem ser solidariamente responsáveis pelos danos causados pelo acidente aeronáutico ocorrido. IX - Tal como decorre da redação do artigo 563º do Código Civil, o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, a qual, todavia, não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição. X - Ainda que tal conceito legal comporte qualquer das formulações da referida teoria - na formulação positiva ou negativa -, vem-se, porém, entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito (contratual ou extracontratual), seja de acolher e seguir a formulação negativa, segundo a qual o facto que atuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano. XI - Resultando provado que, após o piloto ter informado que tinha um motor parado e dado indicação para que todos os paraquedistas abandonassem a aeronave, não tendo a vítima (paraquedista instrutor) saltado, como fizeram os demais paraquedistas, poderia dizer-se que, não fora essa atuação da vítima, a sua morte não teria ocorrido. XII – Porém, porque a causalidade adequada se refere não apenas ao facto ou ao dano isoladamente considerados, mas a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano, repugna considerar que a infeliz vítima, com a sua atuação, tenha de alguma forma contribuído para o desfecho fatal, considerando que a queda da aeronave não resultou diretamente de uma falha do motor, mas sim de uma manobra aeronáutica indevidamente executada pelo piloto no momento em que tentava aterrar a aeronave, num momento em que o lesado já não tinha sequer a possibilidade de abandonar o avião. XIII - Tendo a vítima uma forte ligação à vida, sendo uma pessoa alegre e trabalhadora e praticante de paraquedismo, não há motivo para alterar o montante indemnizatório pelo dano morte, equitativamente fixado na sentença no montante de € 75.000,00, o qual respeita os critérios normativos aplicáveis e está em linha com a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 1418/14.7TBEVR.E3
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO AA e BB instauram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra CC, DD e EE - na qualidade de únicos herdeiros de FF -, Comefly, Lda., Avioarte - Serviços Aéreos, Lda., La Reunion Aerienne, Aélia Assurances, Federação Portuguesa de Paraquedismo, Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. e Instituto Nacional de Aviação Civil, IP, pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhes a quantia de € 170.000, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento das quantias peticionadas e mais aquelas quantias que se apurarem em liquidação de sentença, a título de danos futuros determinados. Alegam, em síntese, que: - Os autores são os pais e únicos herdeiros de GG, falecido no acidente da aeronave Beechcraft BE-99, modelo BE-99, nº de série U79, com a matrícula francesa F-BTME, ocorrido em Cidade 1, no dia ... de ... de 2009; - Naquela data, a referida aeronave propriedade da ré Avioarte – Serviços Aéreos, Lda. (3ª ré) realizava voo de largada com 12 paraquedistas, completamente equipados a bordo, na área do Aeródromo Municipal de Cidade 1 (LPEV), ao serviço da ré Comefly, Lda. (2ª ré), mais conhecida por “SKYDIVE”, sendo tripulada por FF, sem que este estivesse habilitado a pilotar essa classe de aeronave; - Nessas circunstâncias, por volta dos 9500ft (3200m) o motor esquerdo parou e o hélice entrou automaticamente em “bandeira”, tendo o piloto parado a subida a subida a cerca de 10500ft (3200m) e informou os passageiros que tinha um motor parado e recomendou que todos abandonassem o avião, propondo-se ele aterrar com um só motor, na pista de onde acabara de descolar; os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção de GG que tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto; - A referida aeronave, após diversas manobras aéreas, veio a colidir com um prédio de habitação, na Rua 1, no Bairro A, situado a 1160m de distância do topo da pista, no rumo 330º, e, após a colisão precipitou-se no solo, em voo invertido, incendiando-se de imediato; - Em consequência, ambos os ocupantes da aeronave sofreram lesões mortais; - Na referida data a responsabilidade civil pela circulação da aeronave encontrava-se transferida para a ré La Reunion Aerienne (4ª ré), mediante contrato celebrado com a 3ª ré, que se encontrava em vigor; por sua vez, a Ré Aélia Assurances (5ª ré) é a corretora de seguros com quem a 3º ré contratou o seguro da aeronave; - À data do acidente o falecido GG era titular de cartão de seguro desportivo válido até 31 de dezembro de 2009, com a apólice n.º ... e era associado da ré Federação Portuguesa de Paraquedismo (6ª ré), a quem incumbia defender os interesses dos seus associados e que havia assegurado a atividade dos paraquedistas, mediante contrato de seguro celebrado com a ré Companhia de Seguros Tranquilidade, SA (7ª ré); - O réu Instituto Nacional de Aviação Civil, IP (8º réu), é responsável por promover o desenvolvimento seguro, eficiente e sustentado das atividades de aviação civil através da supervisão, regulação, regulamentação, certificação, licenciamento, homologação e fiscalização dessas atividades; - O comportamento negligente do piloto, dos segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo e oitavo réus revelou inteira falta de cuidado e incumprimento de deveres a que estavam obrigadas, tendo concorrido para o acidente acima descrito e para o dano morte do mesmo resultante, quanto mais não seja pelo risco; - Em consequência da morte do seu filho GG, os autores, seus pais, sofreram danos morais que reclamam em valor que computam em €70.000,00, para além de reclamarem o dano morte no valor de € 80.000,00, bem como indemnização no valor de €20.000,00 pelo sofrimento de que a própria vítima padeceu antes de falecer. Todos os réus contestaram. A ré Federação Portuguesa de Paraquedismo sustentou que a morte do filho dos autores ficou a dever-se à sua própria atuação, ao desobedecer à ordem, dada pelo piloto, de abandonar a aeronave, e que, independentemente disso, a contestante cumpriu todos os seus deveres, não lhe podendo ser assacada culpa pela ocorrência do acidente. A ré Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. alegou já ter pago aos autores a quantia por que era responsável. Os réus CC, DD, EE, Comefly, Lda. e Avioarte - Serviços Aéreos, Lda. sustentaram que: (i) a ré Comefly, Lda. foi constituída em data posterior ao acidente, pelo que deverá ser absolvida da instância, por falta de personalidade judiciária; (ii) os réus CC, DD e EE carecem de legitimidade processual, porquanto a herança de FF permanece indivisa e, consequentemente, os herdeiros não respondem pessoalmente pelas dívidas do de cujus; podiam, sim, ser condenados a reconhecer um crédito sobre a herança e a ver o mesmo crédito ser satisfeito pelos bens desta última; porém, não foi esse o pedido dos autores; (iii) a ré Avioarte - Serviços Aéreos, Lda. carece de legitimidade processual, pois nunca teve qualquer atividade, apenas sendo proprietária da aeronave; (iv) a morte do filho dos autores ficou a dever-se à sua própria atuação, ao não acatar a recomendação, feita pelo piloto, de abandonar a aeronave. Concluíram todos estes réus no sentido da procedência das exceções dilatórias invocadas ou, caso assim não se entenda, da improcedência da ação. O réu Instituto Nacional de Aviação Civil, IP (atualmente Autoridade Nacional de Aviação Civil) invocou a exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria e sustentou não ser civilmente responsável pelo acidente dos autos. A ré La Reunion Aerienne invocou a exceção de prescrição e alegou que o contrato de seguro que celebrou com a ré Avioarte - Serviços Aéreos, Lda. é ineficaz, não cobrindo os danos resultantes do acidente dos autos e ainda que houve culpa da vítima na produção do evento lesivo. A ré Aélia Assurances negou ter celebrado com a ré Avioarte - Serviços Aéreos, Lda. o contrato de seguro invocado pelos autores, contrapondo que atuou como simples corretora de seguros e, nesse âmbito, cumpriu os deveres que sobre si recaíam. Por decisão proferida em 16.05.2016, constante a fls. 850-858, o tribunal a quo: 1 - Não admitiu a alteração do pedido formulado pelos autores contra os réus CC, DD e EE; 2 - Não admitiu a intervenção provocada dos já réus CC, DD e EE; 3 - Julgou manifestamente improcedente o pedido deduzido contra os réus CC, DD e EE, absolvendo-os do mesmo; 4 - Julgou-se materialmente incompetente para conhecer do pedido relativamente à ré Autoridade Nacional de Aviação Civil, absolvendo esta última da instância; 5 - Absolveu as rés Aélia Assurances e Federação Portuguesa de Paraquedismo da instância, por ilegitimidade; 6 - Convidou os autores a pronunciarem-se sobre a exceção de prescrição; 7 - Ordenou a notificação da ré La Reunion Aerienne para juntar aos autos a tradução de um documento. Os autores interpuseram recurso dos segmentos desta decisão enunciados sob os n.ºs 1, 2, 3 e 51. Este Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 22.03.2018, na parcial procedência da apelação, julgou as rés Aélia Assurances e Federação Portuguesa de Paraquedismo partes legítimas (i); confirmou a decisão recorrida na parte em que não admitiu uma suposta alteração do pedido deduzido contra os réus CC, DD e EE, bem como a intervenção provocada destes (II); e confirmou a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido deduzido contra estes últimos réus (iii). Os autores recorreram do assim decidido para o Supremo Tribunal de Justiça, que por acórdão de 21.11.2019, julgou parcialmente procedente a revista e revogou o acórdão desta Relação na parte em que absolveu do pedido os réus (herdeiros do falecido FF), e ordenou a baixa dos autos à 1ª instância para aí prosseguirem para apreciação do mérito da causa. Antes, porém, em 30.11.2016, foi proferida decisão designada como “despacho saneador”, na qual, além do mais, se absolveu a ré Avioarte, Lda. da instância, por ilegitimidade, e se julgou procedente a exceção de prescrição invocada pela ré La Reunion Aérienne, com a consequente absolvição desta última do pedido. Foi ainda proferido despacho indeferindo o requerimento dos autores de cisão do processo e de remessa dos ficheiros informáticos contendo os seus articulados e os da ré Autoridade Nacional de Aviação Civil, bem como do outro expediente havido por curial, nos termos do artigo 99.º. Os autores recorreram de ambas as decisões, tendo este Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 28.06.2018, julgado procedente a apelação do despacho saneador e improcedente a apelação do despacho que indeferiu a “cisão/separação” do processo relativamente à ré ANAC e, em consequência: i) julgou a ré “Avioarte, Lda.” parte legítima; ii) julgou improcedente a exceção da prescrição do direito dos autores relativamente à ré La Reunion Aérienne, assim revogando o que em contrário foi decidido pelo tribunal recorrido; iii) confirmou o despacho supra referido. Baixados os autos à 1ª instância, após vicissitudes processuais várias, dispensou-se a audiência prévia e, em 28.07.2021, foi proferido despacho saneador, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, tendo ainda sido admitidos os pedidos reconvencionais formulados pela ré La Reunion Aerienne. Instruído o processo, foi finalmente proferida sentença, em 31.05.2024, com o seguinte dispositivo: «Nesta conformidade, tudo visto e ponderado, decido julgar parcialmente procedente a ação, e, consequentemente: a) Absolver os Réus La Reunion Aerienne, Aélia Assurances e Federação Portuguesa de Paraquedismo do pedidos formulado pelos Autores; b) Condenar solidariamente os Réus CC, DD e EE, pelas forças da herança de FF, e a Ré Avioarte, Lda. no pagamento aos Autores da quantia de €108.000,00 (cento e oito mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a presente data até efetivo e integral pagamento; c) Absolver os Réus do remanescente do pedido. Condenar Autores e Réus a pagarem as custas da ação, na exata proporção do respetivo decaimento.» Inconformados, os réus CC, DD, EE e Avioarte - Serviços Aéreos Lda., e os autores apelaram da sentença, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem: Recurso dos réus A) Os autores/recorridos, propuseram a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra os ora Recorrentes (entre outros) CC, DD, EE a Avioarte - Serviços Aéreos Lda, peticionando, a condenação dos réus a pagarem aos autores a quantia de € 170.000,00€ (cento e setenta mil euros). B) Para o efeito alegam que são únicos herdeiros de GG, falecido num acidente de aeronave ocorrida em Cidade 1 no dia .../.../2009; que a referida aeronave, propriedade da empresa a Avioarte Lda. realizava o voo de largada com 12 paraquedistas completamente equipados a bordo na área do aeródromo municipal de Cidade 1, sendo tripulada por FF, sem que este estivesse habilitado a pilotar essa classe de aeronave. C) Os recorrentes contestaram a ação, por exceção e impugnação, peticionando a absolvição do pedido. D) Os recorrentes discordam da sentença ora proferida, em termos de matéria de facto e de direito, discordando, de igual forma, com a interpretação e aplicação da matéria de direito em termos de responsabilidade obrigacional. E) Existe, no entender dos recorrentes um erro na apreciação da prova constante do processo e produzida em sede de julgamento que omitiu determinados factos, sem traduzir com rigor a clareza dos depoimentos prestados, e que podem e devem ser corrigidos por este tribunal superior e tidos em conta na adoção de outra decisão. F) O facto dado como não provado no ponto b) de que “o piloto não contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem, contudo, informar da falha do motor ou pedir assistência” esta em nítida contradição com o depoimento da testemunha, pelo que o mesmo deverá passar a provado. G) O facto dado como provado no ponto 8, não refletiu com rigor e clareza tudo o que foi dito pelas testemunhas, embora na motivação da decisão os mesmos apareçam, pelo que o refiro facto deverá ser corrigido para : “Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequencia, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto e tenda afirmado que não saltava e que iriam salvar o avião.” H) Ao facto 37, dado como provado, e por força de todos os depoimentos invocados e da própria fundamentação da sentença, deve ao facto em apreço ser adicionada o seguinte: “GG era instrutor de paraquedismo, experiente” I) A culpa do lesado foi determinante para a ocorrência do resultado e a sua conduta foi causa direta da sua morte. J) O facto 32 da douta sentença deverá ser corrigido, passando se a ler, conforme provado ficou que: “O contrato de Seguro, que foi apresentado em inglês e já preenchido, foi assinado pela Sr.ª CC, que não sabe ler nem falar inglês ou francês, em representação da Sociedade Avioarte Lda.” K) O contrato de seguro outorgado entre a R. Avioarte e a R. La Reuniion Arienne deverá cobrir os prejuízos causados pelo acidente (caso esses venham a ser confirmados) pois que as falsas declarações não se podem enquadrar no regime do contrato de seguros, de forma literal, visto o contrato ter sido assinado por quem não sabia ler Inglês nem compreender a língua. L) Pelos factos e circunstâncias em que o acidente ocorreu, sempre se dirá que o dano morte foi calculado de forma desproporcional, pelo que o mesmo deverá ser reduzido, na eventualidade de a sentença vir a ser confirmada. M) Tal facto deverá ter, de igual forma, repercussão direta, no cálculo dos danos morais atribuído aos Autores, na eventualidade de a sentença vir a ser confirmada. Nestes termos, e com o Douto suprimento de V. Exas. deverá o presente recurso proceder, por provado e, em consequência, alterando se os factos provados e não provados, ser anulada a sentença que condenou os Recorrentes no pedido peticionado.» Recurso dos autores: «A. Vem o presente recurso interposto de sentença do Juízo Central Cível e Criminal de Cidade 1 - Juiz 1, na parte em que considerou que a conduta (por omissão) do filho dos autores contribuiu em parte para o evento danoso, imputando apenas ao piloto a responsabilidade por 80% dos danos reclamados na ação, tendo para isso dado como assente facto que devia constar da matéria não assente e não tendo dado como assente facto que devia constar da matéria assente; Absolveu a ré La Reunion Aerienne do pedido contra ela formulado; Apenas condenou os réus em indemnização no montante de € 108.000. Argui-se também a nulidade da sentença por ininteligibilidade da mesma. B. A decisão do Tribunal a quo viola manifestamente os artigos 421.º e 615.º 1, c) do CPC, os artigos 24.º, 25.º e 147.º do RJCS e o artigo 287.º do Código Civil. C. Nos termos do artigo 615.º 1, c) do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. D. Na fundamentação da condenação dos réus no pagamento de indemnização por conta dos danos morais, decidiu o Tribunal a quo: GG tinha uma forte ligação à vida, era praticante de paraquedismo, uma pessoa alegre e trabalhadora, nos moldes descritos nos factos n.ºs 18 a 20. Deste modo, em face da factualidade apurada nos autos, cremos que o valor de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), atualizado nesta data em função dos valores da inflação, é adequado à compensação do dano morte, tanto mais que se contém dentro dos valores referenciais que vêm sendo apontados pelo Supremo Tribunal de Justiça. E. Relativamente aos danos morais sofridos pelos próprios Autores em consequência da morte do seu filho, dada a forte ligação familiar que os unia à vítima e tendo presente a factualidade apurada relativamente aos Autores – cf. factos n.ºs 21 a 24 - , mas não se vislumbrando razões para os distinguir entre si, julgamos como justa e adequada a fixação da indemnização no valor global e atualizado de € 30.000,00 (trinta mil euros), a atribuir a cada um dos Autores a título de danos morais. F. Decidiu ainda não condenar os réus em qualquer outra quantia. G. Na decisão final, o Tribunal a quo condenou solidariamente os Réus CC, DD e EE, pelas forças da herança de FF, e a Ré Avioarte, Lda. no pagamento aos Autores da quantia de €108.000,00 (cento e oito mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a presente data até efetivo e integral pagamento. H. Consta da sentença que o valor de € 75.000,00 é actualizado na data da prolacção da sentença em função dos valores da inflação, mas não consta da sentença para quanto é actualizado. Considerando que a presente acção deu entrada no ano de 2014 e que a sentença foi proferida no ano de 2024, o valor de € 75.000,00 deve ser actualizado para o valor de € 88.713,58 (factor de actualização 1,18284772679918). I. Ora, somando € 88.713,58 a 60.000,00 (€ 30.000,00 a atribuir a cada um dos Autores a título de danos morais) alcança-se o valor de € 148.713,58 e não o valor de € 108.000. J. Termos em que a sentença é nula por contradição e ambiguidade, que a torna ininteligível. K. Nestes termos e procurando seguir o raciocínio do Tribunal a quo deverá a decisão ser corrigida por sentença que actualize o valor de € 75.000,00 para € 88.713,58 e que a esse valor some a quantia de € 60.000,00, sendo os réus condenados no montante de € € 148.713,58. L. Entendeu o Tribunal a quo que a conduta (por omissão) do filho dos autores contribuiu em parte para o evento danoso, imputando apenas ao piloto a responsabilidade por 80% dos danos reclamados na ação. M. Deu como provado que: Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto (Facto 8 dado como assente), e; N. Deu como não provado que: O piloto contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem contudo informar da falha do motor ou pedir qualquer assistência (Facto não provado B) O. Entendemos que estes factos foram indevidamente julgados e que os meios probatórios existentes no processo apontavam noutro caminho. P. (Depoimento da Testemunha: HH - início da gravação às 16:43:00 e fim às 17:04:00, do dia 16 de Março de 2022): Inquirida sobre quem saltou em último lugar, respondeu: eu e mais outro senhor. Inquirida se, em alguma altura viu o GG dirigir-se à porta e depois voltar para trás, respondeu: Eu vi o GG dirigir-se à porta, não o vejo voltar para trás, mas vejo o GG dirigir-se à porta, não vejo mais nada porque entretanto saltei (12:50-13:31); Inquirida sobre se o GG teria dito: Não vou saltar porque vou ficar a ajudar o piloto, respondeu: Não, não tivemos essa conversa. Não existiu conversa. (16:20-16:36). Q. Ora, se a última pessoa a saltar, não viu o GG regressar ao posto de pilotagem, tal facto não pode constar da matéria assente, pois não foi testemunhado por quem quer que seja. R. Por outro lado, consta da certidão judicial extraída do inquérito (documento 2 junto com a PI – primeiro parágrafo folha 255) e que serviu de fundamentação a outros factos assentes que: O piloto contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem contudo informar da falha do motor ou pedir qualquer assistência (negrito e sublinhado nosso). S. Ninguém contradisse este facto em sede de audiência de discussão e julgamento e o mesmo consta de documento junto ao processo. Pelo que, não há qualquer motivo para que tal facto não seja dado como assente, à semelhança de todos os outros constantes do referido documento. T. Pelo que o Facto 8 deve sair da matéria assente e o Facto não provado B deve passar a constar como assente. U. Termos em que se tem que considerar que o GG não actuou culposamente, não tendo qualquer conduta sua contribuído para a sua própria morte, devendo a responsabilidade pelo que lhe sucedeu ser inteiramente (100%) imputável ao piloto. V. Entendeu o Tribunal a quo que o contrato de seguro existente entre a proprietária do avião e a seguradora La Reunion Aerienne padece de um vício que o invalida – anulabilidade, vício esse que é oponível ao lesado nos termos do artigo 147.º do RJCS. W. Não lhe assiste qualquer razão, conforme passaremos a demonstrar. X. Nos termos do artigo 24.º do RJCS: 1. O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. 2. O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito. (…) 4. O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais. Y. Nos termos do artigo 25.º do RJCS:1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro. 2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento. 3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade. 4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante. 5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato. Z. Se é verdade que, como afirma o Tribunal a quo, o incumprimento do disposto no n.º 1 da citada norma dita a anulabilidade do contrato, caso as omissões ou inexatidões sejam dolosas, também é verdade que estamos perante anulabilidade, a qual tinha que ser invocada no prazo de um ano, o que não aconteceu. AA. Nos termos do artigo 287.º 1 do Código Civil, só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento. BB. Ora, a seguradora La Reunion Aerienne apenas veio invocar a anulabilidade do contrato na contestação da presente acção, quando já tinham decorridos quase 6 anos sobre o acidente e quase 4 anos sobre o encerramento do inquérito. CC. Termos em que a mencionada anulabilidade é inoponível aos lesados, devendo a ré La Reunion Aerienne responder perante os autores, independentemente do eventual direito de regresso que tenha sobre os herdeiros CC, DD e EE, e sobre a Ré Avioarte, Lda. DD. Sem conceder na nulidade anteriormente invocada e que tem que ser aclarada e corrigida, substituindo-se a decisão por outra em virtude da contradição existente (o valor da indemnização deve ser corrigido para € 148.713,58), por mero dever de patrocínio e porque outras questões quanto ao valor da indemnização se levantam, sempre se dirá que o montante de € 108.000,00 é inaceitável e contraditório com o explanado anteriormente pelo mesmo Tribunal. EE. A indemnização pela perda do direito à vida, não pode ser inferior aos 80.000,00 peticionados em 2014, valor esse que tem que ser actualizado, atendendo a que desde essa data decorreram 10 anos. Aceita-se que a actualização seja feita em função dos valores da inflação, como decidido na sentença, pelo que deverá ascender ao montante de € 94. 627,82 (factor de actualização 1,18284772679918). FF. Como consta da matéria assente, à data do acidente, o GG tinha 30 anos, era bom filho, bom profissional, trabalhador, responsável, com força e iniciativa. Era alegre, bem-disposto, gostava de viver, cultivava amizades, era forte e saudável. GG dava amparo e conforto dos seus pais na velhice destes, a quem era muito dedicado e com quem mantinha relações de grande afetividade. A morte do filho GG foi o maior desgosto da vida dos seus pais. Com a sua morte, os autores perderam a alegria de viver, que não recuperaram. Os autores recordarão sempre com profundo sofrimento e tristeza a morte do seu filho muito amado e do qual muito se orgulhavam (factos assentes 19 a 24). GG. A ressarcibilidade do dano não patrimonial constituído pela perda do direito à vida (art.496 nº3 CC), é o mais importante dos direitos fundamentais e o dano morte, no plano dos interesses da ordem jurídica, o prejuízo supremo. HH. A jurisprudência portuguesa, sobretudo a partir de meados da década de 90 (do século passado) deu um salto qualitativo, aumentando progressivamente a indemnização pela perda do direito à vida, como se resumiu no Ac do STJ de 17/2/2002 ( www dgsi.pt/jstj ), com indicação de diversas decisões. II. Se já em 2013 a jurisprudência passou a atribuir valores que oscilam entre € 50.000,00 e € 80.000,00, chegando a atingir € 100.000,00 para vítimas jovens ( cf., por ex., Ac STJ de 29/10/2013 ( proc. nº 62/10.2TBVZL ), Ac STJ de 18/12/2013 ( proc. nº 1749/06.0TBSTS), em www dgsi.pt ), a posterior evolução e o princípio da actualidade reclamam claramente valores superiores. JJ. Sendo assim e partindo destes valores de referência, é evidente que o valor peticionado de 94.627,82 (actualização dos 80.000, 00 peticionados em função do valor da inflacção) é justo e adequado, se é que se pode falar de justiça quando uma vida jovem foi ceifada desnecessária e antecipadamente. KK.Por outro lado, não foi estabelecida qualquer indemnização pelos danos sofridos pela iminência da morte. LL. Em consequência do acidente, o corpo de GG sofreu o seguinte: a cabeça, o pescoço, o ombro direito e o tronco ficaram carbonizados, tendo ocorrido fratura comunicativa exposta do crânio com perda de substância óssea e cerebral; o abdómen sofreu queimaduras de 1.º grau; os membros superiores sofreram fraturas cominutivas expostas, o fémur direito sofreu fratura, ocorreu fratura exposta dos dois ossos da perna esquerda (terços superior e inferior) luxação metatarso falagica do segundo, terceiro, quarto e quinto dedos do pé direito, extensas feridas contusas dos joelhos, queimaduras de 1.º e 2.º graus dos membros inferiores; rutura da aorta torácica, fratura cominutiva de vários arcos costais à direita e esquerda com lesão pulmonar grave, lesões que foram causa direta da sua morte (Facto assente 13). MM. Subsiste alguma dúvida que o GG sofreu quando se apercebeu que o avião ia cair e que a morte era certa? Subsiste alguma dúvida que o GG padeceu sofrimento físico com os danos corporais acima descritos e que constam da matéria assente? NN. O que está em causa não é apenas o dano resultante da perceção da morte (iminente) que é abarcado por este núcleo indemnizatório. Efetivamente, são também suscetíveis de compensação outros danos, designadamente os provocados por dores e demais padecimentos físicos e espirituais sofridos pela vítima entre o momento do acidente e o surgimento da morte, e que, pela sua gravidade merecem a tutela do direito (art. 496º, nº1 e nº 4, do CC). OO. Em causa está o dano não patrimonial próprio sofrido pela vítima pela antevisão da sua respectiva morte, sofrido pela própria vítima entre o facto danoso e a morte, antes de falecer, com a percepção da iminência da morte, com a perturbação, susto, medo, sofrimento, até à morte, mesmo que de forma fugaz. PP. A jurisprudência é unânime no sentido de que estes danos não têm que ser demonstrados pois muitas vezes não conseguem ser demonstrados. São danos óbvios e que se presumem. QQ. Assim sendo, mal andou o Tribunal a quo quando não arbitrou indemnização pelo valor peticionado de € 20.000,00, o qual deve ser actualizado para € 23.656,95 (factor de actualização 1,18284772679918). RR. Por fim, aceita-se que o valor da indemnização pelos danos morais dos próprios autores seja no montante de € 30.000,00 (trinta mil euros), a atribuir a cada um dos Autores a título de danos morais, ou seja, € 60.000,00 no total, pedindo-se apenas que essa questão fica clara na sentença, corrigindo-se o valor da indemnização a atribuir. SS. Assim sendo, entende-se que a condenação não poderá ser de montante inferior a € 178.284,77. Termos em que se requer que declare a nulidade da sentença e que a mesma seja substituída por outra que determine que GG em nada contribuiu para o acidente, sendo arbitrada indemnização, a favor de seus pais, no montante de € 178.284,77. No pedido deverá ser condenada a ré La Reunion Aerienne e subsidiariamente os réus CC, DD e EE, pelas forças da herança de FF, e a Ré Avioarte, Lda.» A ré La Réunion Aérienne contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida e consequente improcedência do recurso, tendo ainda requerido a ampliação do seu âmbito, nos termos do art. 636º do CPC, formulando as seguintes conclusões: «I - DAS CONTRA-ALEGAÇÕES AO RECURSO DOS AUTORES A.1) DA ALEGADA NULIDADE DA SENTENÇA A. O texto da douta Sentença é perfeitamente claro e não incorre em qualquer obscuridade, ambiguidade ou contradição. B. Pois que os Réus CC, DD, EE e Avioarte - Serviços Aéreos Lda, foram condenados a pagar aos Autores/Recorrentes os seguintes danos morais: 75.000,00€ a título de perda do direito à vida, “atualizado nesta data em função dos valores da inflação”; e “valor global e atualizado de € 30.000,00”, a atribuir a cada um dos Autores a título de danos morais C. Ou seja, cada um desses valores compensatórios está já actualizado à data da prolação da douta Sentença. D. E sendo o “valor global e atualizado de € 30.000,00” de danos morais próprios atribuídos aos Autores, tal quererá dizer que o referido valor global e actualizado se traduz em 15.000€ para cada um dos Autores. E. Existe, contudo, um mero erro de cálculo da douta Sentença (por defeito e não por excesso), pois a soma das duas verbas indemnizatórias (i.e. 75.000€ + 30.000€) perfaz antes o montante de 105.000,00€ (cento e cinco mil euros), já devidamente actualizados à data da prolação da douta Sentença. F. Devendo, assim, indeferir-se a nulidade arguida pelos Recorrentes/Autores e rectificar-se o valor condenatório para 105.000,00€ (cento e cinco mil euros), nos termos do art. 249.º Cód. Civil. A.2) DA RESPOSTA À IMPUGNAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO G. Face aos depoimentos testemunhais transcritos nestas contra-alegações, não apenas ficou provado que "Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto" (facto provado 8). H. O que resulta também do relatório do acidente (fls. 105), onde se refere claramente que o Sr. GG chegou a estar junto à porta pronto para saltar, mas optou antes por regressar ao cockpit, escolhendo ficar a bordo contra as instruções do piloto. I. Sendo este facto também confessado pelos Autores no art. 20.º da PI. J. Não podendo agora os Autores, em sede de recurso, tentar impugnar um facto provado que os próprios confessaram na PI. K. Como ficou ainda provado, face aos depoimentos testemunhais transcritos, que o Sr. GG declarou que não saltava e que iriam salvar o avião. L. Quanto ao Facto não provado (B), apenas há que salientar que não foi produzida qualquer prova sobre essa questão, pelo que não existe qualquer fundamento para se alterar a resposta dada, devendo a impugnação sobre esse ponto da matéria de facto improceder. A.3) DA AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO PELA RECORRIDA PARA IMPUGNAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO (cfr. art. 636.º, n.ºs 1 e 2) M. Nos termos dos arts. 5.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC (por ser um facto que resultou da instrução do processo) e art. 636.º, n.ºs 1 e 2 (ampliação do recurso pelo recorrido no que diz respeito à impugnação da matéria de facto),em virtudedos depoimentostestemunhais transcritos, se requer que: i. Seja aditado ao facto provado (8), o seguinte: Facto provado 8: "Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto e tendo declarado que não saltava e que iriam salvar o avião". Ou, em alternativa, deverá ser aditado um facto inteiramente novo à lista de factos provados, com essa mesma matéria de facto: Novo facto provado: "Após ter estado junto à porta e ter depois regressado para o lugar ao lado do piloto no cockpit da aeronave, o Sr. GG declarou que não saltava e que iriam salvar o avião". ii. Devendo-se ainda alterar o facto provado n.º 18, passando esse facto provado a ter a seguinte redacção: “GG detinha licença de Piloto Tandem e já tinha realizado mais de 750 saltos a solo.” A.4) DA AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE ADEQUADA E CULPA DO LESADO EXCLUENTE DE QUALQUER RESPONSABILIDADE IMPUTÁVEL À RECORRIDA SEGURADORA N. O piloto comandante deu ordem aos paraquedistas para abandonarem a aeronave quando estavam a 10.500 pés do solo (3200m de altitude), sendo essa ordem vinculativa nos termos do art. 4.º, n.º 1 do Estatuto Comandante Aeronaves (Decreto-Lei n.º 71/84, de 27/2). O. E, nos termos do art. 15.º, n.º 4 do Estatuto Comandante Aeronaves, o comandante não é responsável pelas consequências do incumprimento das suas ordens. P. O Sr. GG, infelizmente, optou voluntariamente por desobedecer a tal ordem para abandonar a aeronave, bem sabendo (por ser um paraquedista licenciado e experiente) que essa desobediência era ilegal. Q. Assim, o infortúnio falecimento do Senhor GG deveu-se, exclusivamente, a uma conduta de culpa do lesado, nos termos do art. 570.º Cód. Civil, traduzida na desobediência a uma ordem do comandante da aeronave. R. Não há, também, um nexo decausalidadeadequadaentreosfactoseo dano, nos termos do art. 563.º Código Civil, pois qualquer outra pessoa na mesma situação do Sr. GG teria respeitado a ordem do seu comandante e teria saltado em segurança da aeronave. S. Tal como,de resto, fizeram os outros 11 paraquedistas (alguns muito menos experientes que o Sr. GG). T. Assim, não só existe culpa do lesado no incumprimento ilícito da ordem do comandante da aeronave que, nos termos do art. 570.º Cód. Civil, exclui o dever de indemnizar, como falta também o nexo de causalidade adequada, como pressuposto básico para qualquer responsabilidade civil. A.5) DA ALEGADA INDEVIDA ABSOLVIÇÃO DA RÉ LA REUNION AERIENNE DO PEDIDO CONTRA ELA FORMULADO U. Ficou provado que foram dolosamente prestadas informações falsas à Aélia (Corretora de Seguros) e, por sua vez, à Ré La Reúnion Aérienne, quanto à qualificação do piloto FF e número de horas de pilotagem deste em aeronaves bimotores (factos provados 28 a 34). V. Pelo que, apenas tendo a seguradora tomado conhecimento das falsas declarações prestadas dolosamente pelo tomador do seguro depois do acidente, não está esta obrigada a cobrir o sinistro (nos termos do art. 25.º, n.º 3, primeira parte, da Lei do Contrato de Seguro), razão pela qual recusou a Recorrida qualquer responsabilidade pelo mesmo. W. Vêm agora, pela primeira vez nestes autos, os Autores invocar que não foi declarada a anulabilidade do contrato dentro do prazo legal. X. Ora, por um lado, a anulabilidade do contrato apenas diz respeito à relação entre seguradora e tomador do seguro, sendo que perante terceiros, e tendo as declarações dolosos sido conhecidas pela seguradora após o sinistro, tem sempre esta o direito a recusar a sua cobertura, nos termos do art. 25.º, n.º 3, primeira parte da Lei do Contrato de Seguro. Y. Por outro lado, a questão do prazo para a anulabilidade nunca foi suscitada em primeira instância pelos Autores, pelo que talmatéria não pode ser agora conhecida (pela primeira vez) em sede de recurso, sob pena de violação do princípio da preclusão e da própria finalidade dos recursos. Z. mesmo que assim não fosse (no que não se concede), sempre se aplicariam outras exclusões da apólice que inviabilizam a cobertura dos danos. AA.Pois que os danos causados por: i. pilotos não licenciados/qualificados; ii. no exercício de uma actividade área também ela não licenciada pelas autoridades competentes; e iii. através de uma aeronave não licenciada para ser utilizada em Portugal, em particular numa actividade sensível como é o lançamento de paraquedistas; Encontram-se expressamente excluídos da apólice (vide condições gerais da apólice, Secção IV, Capítulo A das referidas condições gerais e Capítulo B Condições Prévias Aplicáveis a Todas as Secções). BB.Ou seja, a cobertura do seguro da ora Ré encontra-se excluída se qualquer uma das seguintes condições se verificar: i.a aeronave for utilizada para qualquer actividade ilegal (i.e. não devidamente licenciada pelas autoridades competentes); ii.a aeronave for pilotada por alguém que não esteja habilitado para o efeito; ou iii.a aeronave não tenha o devido certificado de aeronavegabilidade para a instrução e lançamento de paraquedistas, emitido pelas competentes autoridades aeronáuticas (em Portugal, a ANAC). CC. Todas estas circunstâncias, que, individualmente, inviabilizam a cobertura do seguro, encontram-se cumulativamente preenchidas e nos termos do art. 147.º da Lei Contrato Seguro, aplicável aos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, o segurador é livre de utilizar, como meios de defesa perante o terceiro lesado, a invalidade do contrato e as exclusões e demais condições contratuais que digam respeito a factos ocorridos antes do sinistro. A.5) SUBSIDIARIAMENTE, DA QUANTIFICAÇÃO DOS DANOS (COM NOVA DE AMPLIAÇÃO DO RECURSO A PEDIDO DO RECORRIDO, cfr. art. 636 CPC) DD.Subsidiariamente, há que referir que os Autores já receberam uma compensação de 24.110,00€ (facto provado 17) pelo falecimento do Sr. GG, pago pela seguradora Tranquilidade ao abrigo do seguro de acidentes pessoais da Federação Portuguesa de Paraquedismo. EE. Este valor compensou o dano morte (fixado pela douta Sentença recorrida no valor actualizado à inflacção de 75.000€) e terá de ser deduzido da indemnização que venha a ser atribuída aos Autores a esse título, sob pena de enriquecimento sem causa (cfr. art. 473.º Código Civil), o que foi devidamente alegado nos autospelas partes, ecujo conhecimento expresso em sede de recurso (por ampliação do objecto a pedido da Recorrida) se solicita nos termos do art. 636.º, n.º1 CPC. FF. Para além disso, a jurisprudência portuguesa tem fixado a indemnização pelo dano morte de um cidadão masculino, com aproximadamente 30 anos de idade, em €50.000, pelo que, os 75.000€ fixados em primeira instância para o dano morte são, no caso concreto e salvo o devido respeito, excessivos, o que igualmente se invoca solicitando-se o conhecimento expresso da redução do valor dos danos em sede de recurso (por ampliação do objecto a pedido da Recorrida), nos termos do art. 636.º, n.º1 CPC.. GG. Por outro lado, o lamentável acidente ora em discussão causou a morte imediata dos seus ocupantes, tal como consta do relatório do acidente e do relatório de autópsia e foi dado por provado no Facto 13 da matéria provada, pelo que não se pode falar de qualquer sofrimento pré-morte que seja ressarcível, como correctamente foi decidido na douta Sentença recorrida. HH. Quanto aos danos morais próprios dos pais, não se trata de um filho único, ou sequer de um filho menor, ou que ainda vivesse com os seus pais (cfr. facto não provado D). II. Nessas circunstâncias, as indemnizações que são atribuídas pela jurisprudência em virtude do sofrimento dos pais é de 12.500€ para cada um, o que vai em linha com o que se deixou exposto acima a propósito da alegada nulidade da Sentença, pois os danos morais atribuídos aos Pais não poderão ultrapassar o valor de 15.000€ (valor já actualizado à inflação) para cada (30.000€ no valor global e actualizado). JJ. E caso haja alguma condenação da Ré La Reunion Aérienne, também terá de ficar reconhecido, a título meramente subsidiário (e ao abrigo do art. 636.º CPC, o direito de regresso ou sub-rogação (cfr. arts. 136.º, n.º 1 e 144.º, n.º 1 Lei do Contrato de Seguro e Cláusula 2.ª, do Capítulo C “General Conditions Applicable to All Sections”, da Secção IV da apólice) contra a segurada Avioarte e, mais importante (porque essa sociedade já não terá realisticamente qualquer património ou actividade), contra a Sra. CC, sócia que assinou o contrato de seguro e declarou factos manifestamente falsos e dolosos quanto à alegada qualificação do Sr. FF para pilotar a aeronave bimotor, e pela herança deste aqui representada pelos 1.º a 3.º Réus. II – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES AO RECURSO DOS RÉUS CC. DD, EE E A AVIOARTE - SERVIÇOS AÉREOS LIMITADA. B.1) DA RESPOSTA À IMPUGNAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO KK. Quanto à impugnação ao facto não provado (B), vale aqui o que se deixou exposto acima a propósito da mesma questão suscitada no recurso dos Autores, dando-se o mesmo por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. LL. Relativamente aos factos provados 8 e 37 que foram igualmente impugnados pelos Recorrentes, vale também aqui o já referido acima nas contra-alegações ao recurso dos Autores, a propósito “Da Ampliação Do Objecto Do Recurso Pela Recorrida Para Impugnação À Matéria De Facto”, tudo se dando aqui por integralmente reproduzido, por uma questão de economia processual. MM. Nada se tendo a opor à solicitada adição de um facto provado 39 com a redacção proposta pelos Recorrentes (vide art. 44.º das Alegações de Recurso). NN. Quanto à impugnação do facto provado n.º 32, rejeita-se por completo tal impugnação. OO. Já que se provou, a partir das declarações de parte prestadas pela própria em audiência de julgamento, que a Sra. CC compreendeu o que assinou, pois teve a ajuda do marido, de colaboradores, da filha e do filho, para o efeito. B.2) DA ALEGADA INDEVIDA ABSOLVIÇÃO DA RÉ LA REUNION AERIENNE DO PEDIDO CONTRA ELA FORMULADO PP. Improcedendo a impugnação ao facto provado n.º 32, improcede também toda a alegação de direito quanto à suposta cobertura dos danos pela Recorrida em substituição da segurada Avioarte. QQ. Valendo aqui, também a esse propósito, tudo o que se expôs a mesmo propósito nas contra-alegações ao recurso dos Autores, o que deixamos igualmente integralmente reproduzido por uma questão de economia processual. RR. Mais se solicitando, a título meramente subsidiário (e ao abrigo do art. 636.º CPC, a ampliação do recurso a pedido da Recorrida para estes mesmos efeitos), que caso haja alguma condenação da Ré La Reunion Aérienne, fique também reconhecido o direito de regresso ou sub-rogação (cfr. arts. 136.º, n.º 1 e 144.º, n.º 1 Leido Contrato de Seguro e Cláusula 2.ª, do Capítulo C “General Conditions Applicable to All Sections”, da Secção IV da apólice) contra a segurada Avioarte e, mais importante (porque essa sociedade já não terá realisticamente qualquer património ou actividade), contra a Sra. CC, sócia que assinou o contrato de seguro e declarou factos manifestamente falsos e dolosos quanto à alegada qualificação do Sr. FF para pilotar a aeronave bimotor, e pela herança deste aqui representada pelos 1.º a 3.º Réus. Pelo que, devem os dois recursos ser julgados totalmente improcedentes, mantendo-se integralmente a douta decisão recorrida, ou, subsidiariamente, ser reconhecido o direito de regresso da Recorrida contra a segurada Avioarte, contra a Sra. CC, e contra a herança do Sr. FF aqui representada pelos 1.º a 3.º Réus.» Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO O objeto dos recursos, delimitados pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), assim como a ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art. 636º do CPC, consubstancia-se na apreciação, atenta a sua precedência lógica, das seguintes questões: - erro de cálculo/nulidade da sentença; - impugnação da matéria de facto; - anulabilidade do contrato de seguro; - culpa e nexo de causalidade; - quantum indemnizatório. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA A 1ª instância considerou provados os seguintes factos2: 1. Os autores são pais de GG, falecido no dia ... de ... de 2009, sem deixar descendentes, testamento ou qualquer disposição de última vontade. 2. Os Réus CC, EE e DD são herdeiros de FF, piloto que no dia ... de ... de 2009 conduzia a aeronave Beechcraft BE-99, modelo BE-99, nº de série U79, com a matrícula francesa F-BTME, propriedade da Ré Avioarte – Serviços Aéreos, Lda.. 3. No referido dia ... de ... de 2009, a aeronave Beechcraft BE-99, modelo BE-99, nº de série U79, com a matrícula francesa F-BTME realizava um voo local de largada de paraquedistas, na área do Aeródromo Municipal de Cidade 1 (LPEV) ao serviço da Avioarte, Lda.. 4. Nessa aeronave haviam embarcado 12 paraquedistas, completamente equipados, e era pilotada por um só piloto. 5. A referida aeronave descolou na pista 01 às 18:47, pretendia alcançar a altitude de 13000 pés (4000m), altitude a que seriam efetuadas as largadas de todos os paraquedistas que levava a bordo. 6. Quando passava por volta dos 9500ft (3200m) o motor esquerdo (#1) parou e o n hélice entrou automaticamente em “bandeira”. 7. O piloto parou a subida a cerca de 10500ft (3200m), informou os passageiros que tinha um motor parado e deu indicação para que todos abandonassem o avião, propondo-se ele aterrar com um só motor, na pista de onde acabara de descolar. 8. Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto. 9. O avião continuou em aproximação à pista 01, com trem em baixo flaps na posição de aproximação (13º), mas com uma velocidade elevada, percorreu todo o comprimento da pista a baixa altitude e sem tocar com as rodas no chão; Chegado ao fim da pista continuou a voar, aumentou a potência do motor direito, voltando ligeiramente pela esquerda, sem aumentar a altura ao solo. 10. Quando se aproximou do Bairro A, a aeronave efetuou uma manobra “tonneau” para a esquerda, ficando com as rodas para o ar e colidiu com um prédio de habitação, na Rua 1, no Bairro A, situado a 1160m de distância do topo da pista, no rumo 330º. 11. Após a colisão com o prédio, a aeronave precipitou-se no solo, em voo invertido, incendiando-se de imediato. 12. Em consequência, os dois ocupantes da aeronave faleceram. 13. Em consequência do acidente, o corpo de GG sofreu o seguinte: a cabeça, o pescoço, o ombro direito e o tronco ficaram carbonizados, tendo ocorrido fratura comunicativa exposta do crânio com perda de substância óssea e cerebral; o abdómen sofreu queimaduras de 1.º grau; os membros superiores sofreram fraturas cominutivas expostas, o fémur direito sofreu fratura, ocorreu fratura exposta dos dois ossos da perna esquerda (terços superior e inferior) luxação metatarso falagica do segundo, terceiro, quarto e quinto dedos do pé direito, extensas feridas contusas dos joelhos, queimaduras de 1.º e 2.º graus dos membros inferiores; rutura da aorta torácica, fratura cominutiva de vários arcos costais à direita e esquerda com lesão pulmonar grave, lesões que foram causa direta da sua morte. 14. Em virtude do mencionado acidente foi feita participação que deu origem ao inquérito que sob o n.º 669/09.0..., correu pela 1.ª secção do Departamento de investigação e Ação Penal de Cidade 1, findo por despacho de arquivamento proferido no dia 27 de setembro de 2011, junto aos autos a fls. 43 a 59, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo o mesmo sido notificado aos autores no dia 7 de novembro de 2011. 15. FF não estava habilitado a pilotar a aeronave referida em 2.. 16. Não tinha formação, nem 50 horas de treino de voo naquela classe de aeronave, nem conhecimento dos procedimentos de aterragem com um motor inoperativo. 17. À data do acidente, o falecido GG era associado da Federação Portuguesa de Paraquedismo e titular do cartão de seguro desportivo n.º ..., válido até 31 de Dezembro de 2009, com a apólice n.º..., com capital seguro em caso de morte ou invalidez no montante de € 24.110,00, quantia que foi paga aos Autores. 18. GG detinha licença de Piloto Tandem. 19. GG era bom filho, bom profissional, trabalhador, responsável, com força e iniciativa. 20. Era alegre, bem-disposto, gostava de viver, cultivava amizades, era forte e saudável. 21. GG dava amparo e conforto dos seus pais na velhice destes, a quem era muito dedicado e com quem mantinha relações de grande afetividade. 22. A morte do filho GG foi o maior desgosto da vida dos seus pais. 23. Com a sua morte, os autores perderam a alegria de viver, que não recuperaram. 24. Os autores recordarão sempre com profundo sofrimento e tristeza a morte do seu filho muito amado e do qual muito se orgulhavam. 25. A Ré Avioarte, Lda. é uma sociedade que foi constituída em 31.01.2008, tendo como sócios o falecido FF e a Ré CC, com a finalidade de ser iniciado o processo de licenciamento para transportes aéreos junto do INAC, o que não veio a acontecer. 26. À data dos factos FF era o gerente da referida sociedade. 27. A referida sociedade cessou a sua atividade em termos de IVA em 31.03.2010. 28. A Ré Avioarte, Lda. não possuía Certificado de Operador Aeronáutico (ou Certificado de Operador de Trabalho Aéreo), nem se encontrava registado na Autoridade Portuguesa para a Aviação Civil (INAC) 29. A Ré Aelia Assurances interveio como corretora de seguros no procedimento pré-contratual do contrato de seguro que a Ré Avioarte, Lda. contratou com a La Reunion Aerienne com a apólice n.º ... referente à aeronave descrita em 2.. 30. No âmbito dos atos preparatórios à celebração do referido contrato de seguro, a Aelia Assurances enviou à Ré La Reunion Aerienne, a 30 de julho de 2009, uma consulta de condições onde se lê: “em anexo, o nosso pedido de cotação para um Beechcraft 99 matriculado F-BTME, para a sociedade AVIOARTE, SERVIÇOS AÉREOS, LDA.”, conforme decorre do teor de fls. 1259/1261 cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. 31. No dia 4 de agosto de 2009, e ainda no âmbito dos atos preparatórios à celebração do seguro, a Ré La Reunion Aerienne voltou a enviar uma comunicação à Aelia Assurances, dando conta de que « Na sequência da aceitação pelo cliente, agradecemos que considerem a data de 04/08/2009 –0h00 como início do seguro do Beechcraft 99 matriculado F-BTME. Em anexo, as condições validadas pelo cliente. Aguardamos o número da apólice e o contrato correspondente.(…)”, conforme decorre do teor de fls. 1262/1265 cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. 32. O contrato de seguro foi assinado pela Senhora CC em representação da sociedade Avioarte, Lda.. 33. Nas condições do seguro foi afirmado que o Senhor FF era um piloto licenciado e devidamente qualificado para pilotar aeronaves bimotor e expressamente referido que tinha mais de 50 horas de voo nesse mesmo tipo de aeronave Beechcfrat 99. 34. FF era titular de uma licença de Piloto Particular de Aeronaves, emitida pela Autoridade Norte Americana para a Aviação Civil (FAA), a qual apenas lhe permitia voar Monomotores de Hélice, de Massa Máxima à Descolagem (MTOM) de 5.700kgs, ou inferior, com registo dos Estados Unidos da América. 35. A Federação Portuguesa de Paraquedismo é uma associação com estatuto de utilidade pública desportiva que visa promover, regulamentar e dirigir a prática desportiva da modalidade de paraquedismo, defender e representar os interesses desportivos dos seus associados e licenciados, tudo nos moldes definidos nos seus estatutos, juntos a fls. 166/169 cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. 36. A Skydive é uma marca/patente registada. 37. GG era instrutor de paraquedismo. E considerou não provados os seguintes factos: a) O voo descrito em 3. era realizado ao serviço da empresa “SKYDIVE”. b) O piloto contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem contudo informar da falha do motor ou pedir qualquer assistência. Foi-lhe respondido para reportar na final, o que não chegou a fazer. c) Nos termos do protocolo existente à data entre a sexta ré e o oitavo réu, a sexta ré comprometeu-se, antes da realização de qualquer atividade de lançamento de paraquedistas, a certificar-se de que estão reunidas todas as condições legais para a utilização quer da infraestrutura, quer dos meios aéreos que irão ser utilizados, quer das qualificações dos pilotos que irão realizar a operação, o que não fez. d) GG era o único filho e a única companhia de seus pais, aqui autores. e) A Avioarte, Lda. nunca teve qualquer tipo de atividade. f) GG prestou serviços à Ré Avioarte, Lda.. Do erro de cálculo/nulidade da sentença Na resposta ao recurso, sustenta a ré La Réunion Aérienne que o montante da condenação deve ser retificado para o valor de € 105.000,00, aduzindo que a soma das duas verbas indemnizatórias (€ 75.000 + € 30.000) perfaz antes o montante de € 105.000,00, já devidamente atualizados à data da prolação da sentença. Por sua vez, embora tal seja de todo omisso nas conclusões do recurso, dizem os réus, no artigo 1º do corpo alegatório, que foram condenados a pagarem aos autores a quantia de € 108.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da sentença e até integral pagamento, existindo erro de cálculo na soma dos valores, sendo o verdadeiro valor o montante de € 105.000,00. Já os autores/recorrentes sustentam que a sentença recorrida é nula por contradição e ambiguidade, que a torna ininteligível, aduzindo que consta da mesma que o valor de € 75.000,00 é atualizado na data em que foi proferida a sentença, em função dos valores da inflação, «mas não consta da sentença para quanto é actualizado», isto porque, segundo os autores tendo a ação sido instaurada em 2014 e a sentença proferida em 2024, «o valor de € 75.000,00 deve ser actualizado para o valor de € 88.713,58 (factor de actualização 1,18284772679918)», pelo que somando € 88.713,58 a 60.000,00 [€ 30.000,00 a atribuir a cada um dos autores a título de danos morais] alcança-se o valor de € 148.713,58 e não o valor de € 108.000. Lê-se na sentença recorrida: «(…) tendo em consideração quanto vem de se dizer afigura-se que a conduta (por omissão) do lesado contribuiu em parte para o evento danoso, no entanto, ainda assim, o facto culposo perpetrado pelo piloto contribuiu em maior medida para a produção daquele dano morte e, por isso, reputamos adequado imputar ao piloto a responsabilidade por 80% dos danos reclamados na ação.» - p. 39. - «(…), em face da factualidade apurada nos autos, cremos que o valor de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), atualizado nesta data em função dos valores da inflação, é adequado à compensação do dano morte, tanto mais que se contém dentro dos valores referenciais que vêm sendo apontados pelo Supremo Tribunal de Justiça.» - p. 45. - «Relativamente aos danos morais sofridos pelos próprios Autores em consequência da morte do seu filho, dada a forte ligação familiar que os unia à vítima e tendo presente a factualidade apurada relativamente aos Autores – cf. factos n.ºs 21 a 24 - , mas não se vislumbrando razões para os distinguir entre si, julgamos como justa e adequada a fixação da indemnização no valor global e atualizado de € 30.000,00 (trinta mil euros), a atribuir a cada um dos Autores a título de danos morais.- fixou-se a indemnização pelos danos morais dos Atores no valor global e atualizado de € 30.000,00 (trinta mil euros), a atribuir a cada um dos Autores.» p. 46. E a final, na alínea b) do dispositivo da sentença, os réus/recorrentes CC, DD e EE, pelas forças da herança de FF, e a Avioarte, Lda. foram condenados solidariamente no pagamento aos autores da quantia de € 108.000,00 (cento e oito mil euros). Ora, verificando-se que: i) a indemnização devida pelo dano morte e danos não patrimoniais corresponde ao montante global de €135.000,00; ii) a responsabilidade do piloto pela produção dos danos emergentes do acidente de aviação foi fixada em 80%; iii) que os Réus CC, DD e EE, pelas forças da herança de FF, e a Ré Avioarte, Lda. respondem civilmente pelos danos da responsabilidade do piloto, só pode concluir-se, feitas as devidas contas, que a responsabilidade daqueles ascende ao montante de € 108.000,00 [correspondente a 80% do valor da indemnização total devida pelo dano morte e pelos danos morais: € 75.000 + 60.000 x 80%]. Inexiste, pois, qualquer erro de cálculo na sentença recorrida no que concerne à indemnização atribuída aos autores. E que dizer da nulidade da sentença invocada pelos autores? Dispõe a alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC que a sentença é nula quando «[o]s fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível». Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis3, esta nulidade verifica-se quando «a sentença enferma de vício lógico que a compromete (…)», quando «a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto». Ou, nas palavras do acórdão do STJ de 02.12.20134: «(…), quando ocorre um vício real no raciocínio expresso na decisão, consubstanciado na circunstância da fundamentação explicitada na mesma apontar num determinado sentido, e, por seu turno, a decisão que foi proferida seguir caminho oposto, ou, pelo menos, diferente. Dito de outro modo, quando a fundamentação adoptada conduz logicamente a determinada conclusão e, a final, o juiz extrai outra, oposta ou divergente (de sentido contrário). Não se confunde com o erro de julgamento, seja quanto à apreciação dos factos feita pelas instâncias, seja quanto às consequências jurídicas deles extraídas, por inadequada ter sido a sua subsunção à regra ou regras de direito pertinentes à situação concreta a julgar. Trata-se, pois, de uma irregularidade lógico-formal e não lógico-jurídica.» Ou, como se sumariou no acórdão do STJ de 03.03.20215: «Verifica-se tal nulidade quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão e não contradição entre os factos provados e a decisão, ou contradições da matéria de facto, que a existirem, configuram eventualmente erro de julgamento.» Face a estes ensinamentos só pode concluir-se pela total falta de razão dos autores, uma vez que o valor da indemnização fixado pelo tribunal a quo foi atualizado à data da prolação da sentença, como consta, aliás, da mesma: «[u]ma vez que o valor da indemnização supra fixada foi atualizado na data da prolação da sentença, são devidos juros de mora apenas a partir deste momento até que se verifique o pagamento, conforme acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio de 2002, (…)». Coisa diferente é saber se o valor da indemnização atualizada na sentença corresponde a um valor adequado face ao circunstancialismo do caso, o que será objeto de apreciação infra. Em suma, a sentença recorrida não enferma de erro de cálculo nem de qualquer nulidade. Da impugnação da matéria de facto Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa. Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, declarações de parte e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital. Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que os autores e os réus/recorrentes cumpriram formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificaram os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados, indicaram os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por eles propugnados, referiram a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e indicaram as passagens da gravação em que fundam o respetivo recurso, que transcreveram em parte no corpo das alegações, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto. No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto. Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas. Infere-se das alegações/conclusões dos autores, que estes discordam da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente ao ponto 8 dos factos provados e à alínea b) dos factos não provados. Por sua vez, infere-se das alegações/conclusões dos réus/recorrentes, que estes discordam também da decisão sobre a matéria de facto relativamente ao ponto 8 e alínea b) referidos, e ainda quanto aos pontos 37 e 32. No ponto 8 dos factos assentes deu-se como provado que: «Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto». Segundo os autores, o ponto 8 devia sair do elenco dos factos provados e a alínea b) devia passar a integrar o elenco dos factos provados, convocando, a propósito, o depoimento da testemunha HH que, inquirida sobre quem saltou em último lugar, respondeu ter sido ela e outro senhor, e sobre se viu o GG (infeliz vítima) dirigir-se à porta e depois voltar para trás, respondeu que viu o GG dirigir-se à porta, mas não o viu voltar para trás, e não viu mais nada porque entretanto saltou. Questionada também sobre se o GG teria dito que não vou saltar porque vou ficar a ajudar o piloto, a testemunha respondeu negativamente esclarecendo que essa conversa não existiu. Concluem assim os autores que «se a última pessoa a saltar, não viu o GG regressar ao posto de pilotagem, tal facto não pode constar da matéria assente, pois não foi testemunhado por quem quer que seja», e, por sua vez, «consta da certidão judicial extraída do inquérito (documento 2 junto com a PI – primeiro parágrafo folha 255) e que serviu de fundamentação a outros factos assentes que: O piloto contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem contudo informar da falha do motor ou pedir qualquer assistência, sendo que «[n]inguém contradisse este facto em sede de audiência de discussão e julgamento e o mesmo consta de documento junto ao processo. Pelo que, não há qualquer motivo para que tal facto não seja dado como assente, à semelhança de todos os outros constantes do referido documento» Já no recurso dos réus, estes defendem que o facto dado como não provado na alínea b) «está em nítida contradição com o depoimento da testemunha, pelo que o mesmo deverá passar a provado», e que o facto dado como provado no ponto 8, «não refletiu com rigor e clareza tudo o que foi dito pelas testemunhas, embora na motivação da decisão os mesmos apareçam, pelo que o referido facto deverá ser corrigido para: “Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequencia, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto e tenda afirmado que não saltava e que iriam salvar o avião.”» No que concerne ao ponto 37 dos factos provados, segundo os recorrentes, «e por força de todos os depoimentos invocados e da própria fundamentação da sentença, deve ao facto em apreço ser adicionada o seguinte: “GG era instrutor de paraquedismo, experiente”». E quanto ao ponto 32, defendem os réus/recorrente que deve ser corrigido e passar a ter uma redação da qual conste a seguinte redação: «O contrato de Seguro, que foi apresentado em inglês e já preenchido, foi assinado pela Sr.ª CC, que não sabe ler nem falar inglês ou francês, em representação da Sociedade Avioarte Lda.”». Comecemos então a análise pelo ponto 8 dos factos provados. Relevam, nesta sede, os depoimentos da já mencionada testemunha HH, assim como das testemunhas II, assistente técnico no Aeródromo Municipal de Cidade 1, estando afeto à Sala de Operações e Comunicações (SALOC), e JJ. Apreciando de forma crítica e conjugada estes depoimentos, entendemos que não merece censura a decisão do tribunal a quo de dar como provada a matéria do ponto 8 dos factos provados, pois não só não oferece dúvida que os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG, como também está demonstrado que estando este junto da porta da aeronave, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto. Significativo a este respeito é o depoimento da testemunha II que referiu existir um rádio de banda aeronáutica que os operadores na SALOC estão permanentemente a ouvir, rádio esse que faz uma transmissão em tempo real, esclarecendo a testemunha que o piloto (Sr. Resende) disse que tinha um motor avariado e para que todos saltassem, o que todos fizeram à exceção da infeliz vítima, tendo a testemunha referido ter ouvido o GG (vítima) dizer que não saltava e que iam (ele e o piloto) salvar o avião, mais esclarecendo que só é possível ouvir qualquer comunicação no cockpit, dado aí existir micro, concluindo por isso que a infeliz vítima estava ao lado do piloto quando disse aquela palavras. O que resulta também do relatório do acidente6, lendo-se na sua página 277: «Onze paraquedistas saltaram em sequência e aterraram em segurança nas imediações da pista, enquanto que o último, tendo estado próximo da porta, regressou à cabina de pilotagem, para fazer companhia ao piloto» (sublinhado nosso). Ademais, sempre haveria de considerar-se provada tal factualidade, por a mesma ter sido confessada pelos autores no artigo 20º da petição inicial: «Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com excepção do autor da herança que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto». Quanto à alteração de redação do ponto 8 pretendida pelos réus/recorrentes, não se vê a relevância de acrescentar que a vítima disse que não saltava - como não saltou - e que iria com o piloto salvar o avião, pois o que é essencial à boa decisão da causa é que a vítima tenha optado por não saltar e tenha regressado ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto, e foi assim que foi alegados pelos autores, como se acabou de ver. Mantém-se, pois, intocado o ponto 8 dos factos provados. Relativamente à alínea b) dos factos não provados - «o piloto contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem contudo informar da falha do motor ou pedir qualquer assistência], é certo, como referem os autores, que consta do despacho de arquivamento do inquérito que correu termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de Cidade 1, que «[o] piloto contactou a torre para reportar que estava na perna base, sem contudo informar da falha do motor ou pedir qualquer assistência». Trata-se, porém, de uma afirmação que, nos termos do referido despacho, resultou do que foi apurado pelo «GPIAA, conforme com o relatório elaborado», mas que não logrou comprovação na restante prova produzida nos autos. Acresce que a testemunha II, referenciada pelos réus/recorrentes, não confirmou a factualidade em causa, «afirmando clara e firmemente que ouviu as comunicações radio da aeronave durante o voo e que o piloto declarou que tinham uma avaria num motor, o que desde logo contraria a matéria de facto ínsita na alínea b) e, nesta parte, também o relatado no relatório acima mencionado, sendo que nenhuma outra testemunha se pronunciou quanto a esta factualidade», como bem se aduziu na motivação da decisão de facto da sentença recorrida. Assim, fica intocada a alínea b) dos factos não provados. Quanto a aditar ao ponto 37 dos factos provados [GG era instrutor de paraquedismo] que o mesmo era pessoa experiente nessa atividade e não obstante isso ser referido por algumas testemunhas, não se vê qual a relevância que tal menção acrescentaria à boa decisão da causa, designadamente para explicar o facto de não ter abandonado a aeronave, sendo certo que alguém que é instrutor de paraquedismo se presume ter experiência na área. Mantém-se deste modo inalterado o ponto 37 dos factos provados. Também não se justifica, ao invés do pretendido pelos réus/recorrentes8, que se acrescente «num ponto 39 que “GG não obedeceu à ordem dada pelo comandante de saída imediata da aeronave”», isto porque o que releva nesta matéria é o que está dado como provado nos pontos 7 e 8, donde se retira a inevitável conclusão de que a vítima GG não obedeceu à referida ordem do piloto. Não há, pois, que acrescentar nenhum novo ponto ao elenco dos factos provados. Por último, importa analisar a impugnação feita pelos réus/recorrentes ao ponto 32, onde se deu como provado: «O contrato de seguro foi assinado pela Senhora CC em representação da sociedade Avioarte, Lda..» Segundo os réus, com base no depoimento da própria ré CC, ficou provado que a mesma não sabe ler nem falar inglês nem francês, pelo que este ponto da matéria de facto deverá ser corrigido, passando a ter a redação supra referida, ou seja, que «[o] contrato de Seguro, que foi apresentado em inglês e já preenchido, foi assinado pela Sr.ª CC, que não sabe ler nem falar inglês ou francês, em representação da Sociedade Avioarte Lda.”. Na sentença recorrida fundamentou-se a decisão de dar como provado o constante do ponto 32, com base no exame dos documentos juntos a fls. 1259 a 1265, considerando ainda que a própria ré CC «reconheceu como sua a assinatura aposta naquele documento». Ora, sendo esta ré gerente de uma sociedade alegadamente dedicada à aviação civil comercial e sabendo-se que o inglês é a língua comum a tal atividade, não se afigura credível que a ré desconheça de todo essa língua. Aliás, a esclarecimentos solicitados pelo mandatário da ré seguradora, no sentido de que estando a ré na área de paraquedismo, dirigindo uma empresa no sector da aviação, em que grande parte das comunicações é feita em inglês, e em que muitos clientes se dirigem à empresa a falar inglês, como é que a ré geria a situação, a mesma respondeu que tinha a filha e o filho que falam muito bem inglês, sendo eles que a ajudam. Mas se assim é, mesmo admitindo que a ré CC tivesse um conhecimento rudimentar da língua inglesa, não deixaria de solicitar a ajuda dos filhos antes de assinar o contrato de seguro, resultando incompreensível que assinasse “de cruz”. Mantém-se, por isso, intocado o ponto 32 dos factos provados. Resulta assim do exposto, que não se vislumbra – no que tange aos factos impugnados por autores e réus/recorrentes - uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto nos referidos pontos, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC. Da anulabilidade do contrato de seguro Sustentam os autores, ora recorrentes, que ré La Réunion Aérienne apenas veio invocar a anulabilidade do contrato de seguro na contestação, quando já tinham decorrido quase 6 anos sobre o acidente e quase 4 anos sobre o encerramento do inquérito, pelo que tal anulabilidade é inoponível aos autores, nos termos do art. 287º, nº 1, do Código Civil9. Também os réus/recorrentes defendem que «o contrato de seguro deverá cobrir os prejuízos causados pelo acidente (caso esses venham a ser confirmados) pois que as falsas declarações não se podem enquadrar no regime do contrato de seguros, de forma literal, visto o contrato ter sido assinado por quem não sabia ler Inglês nem compreender a língua». A ré La Réunio Aérienne, na resposta ao recurso dos autores, sustenta, além do mais, que uma vez que apenas teve conhecimento das falsas declarações prestadas dolosamente pelo tomador do seguro depois do acidente, não está obrigada a cobrir o sinistro, além de que só agora, pela primeira vez nestes autos, vêm os autores invocar que não foi declarada a anulabilidade do contrato dentro do prazo legal, pelo que estamos perante questão nova que não pode ser conhecida em sede de recurso, além de que sempre teriam aplicação outras causas de exclusão previstas na apólice, que inviabilizam a cobertura dos danos. Já no que respeita ao recurso dos réus/recorrentes, diz a ré que, improcedendo a impugnação ao facto provado nº 32, improcede também toda a alegação de direito quanto à suposta cobertura dos danos pela recorrida em substituição da segurada Avioarte. Vejamos: Na sua contestação, a ré La Réunion Aérienne invocou a ineficácia do contrato de seguro celebrado com a ré Avioarte, Lda., nos termos do artigo 268.º do Código Civil, uma vez que a apólice foi assinada pela ré CC e não pelo representante legal da sociedade, e ainda a anulabilidade daquele contrato por falsas declarações prestadas pela segurada. Quanto à invocada ineficácia, entendeu-se na sentença, que por a mesma não ter sido invocada pela sociedade a favor de quem foi estabelecida, ou seja, a ré Avioarte, mas sim pela seguradora (a ré La Réunion Aérienne), inexistia fundamento legal para declarar que o negócio está ferido de invalidade e que não se operou o efeito decorrente da declaração negocial emitida por quem atuou em representação da sociedade. Já quanto à anulabilidade do contrato de seguro por falsas declarações da segurada, entendeu a sentença recorrida estarem verificados os respetivos pressupostos, concluindo padecer o contrato de um vício que o invalida, devendo, por isso, «considerar-se verificada a correspondente anulabilidade, oponível ao lesado nos termos do artigo 147.º do RJCS.» Sobre a questão a dilucidar - invocação pelos autores da anulabilidade dentro do prazo - preceitua o art. 287º, nº 1, do CC que «[s]ó tem legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento”. Mas quando cessa o vício que serve de fundamento à anulabilidade do contrato? Pires de Lima e Antunes Varela10 referem que «[n]o caso do erro e do dolo, o prazo só começa a contar-se a partir do momento em que o declarante se apercebeu deles; no caso da coação, a partir do momento em a ameaça cessa». Manuel de Andrade11 define os mais importantes vícios da vontade: «se a vontade se determinou com defeituoso conhecimento de causa, temos a figura do erro, se o erro foi provocado por maquinações da outra parte, ou por ela ilicitamente dissimulado, fala-se então de dolo. Se a vontade se determinou sem liberdade exterior, sob a pressão de violências ou ameaças, temos a coacção». Por seu turno, Castro Mendes12 refere que “a caducidade do direito de anular verifica-se, tendo o negócio sido cumprido, em regra no prazo de um ano desde a cessação do vício (art. 287º, nº 1, in fine; cfr. também o nosso já conhecido art. 125º”. Sendo que este preceito aponta para a data do conhecimento, como a data da cessação do vício, pois que no nº 1, al. a) do referido art. 125º do CC se estabelece os negócios jurídicos celebrados pelo menor podem ser anulados «[a] requerimento, conforme os casos, do progenitor que exerça o poder paternal, do tutor ou do administrador de bens, desde que a ação seja proposta no prazo de um ano a contar do conhecimento que o requerente haja tido do negócio impugnado…». E, no mesmo sentido, no direito da família, o art. 1687º do CC, no qual se dispõe que «[o] direito de anulação pode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do acto …», reportando-se a atos de alienação ou oneração de bens, praticados por um dos cônjuges sem o consentimento, necessário, do outro. Assim, temos como correta na interpretação do termo “cessação do vício” constante do nº 1 do art. 287º do CC, como a data do conhecimento do mesmo e não a data da certeza da existência do vício13. Ora, no caso em apreço, não está de modo algum demonstrado que a ré tenha tido conhecimento das falsas declarações prestada pela segurada, antes da sua citação para a presente ação, na qual, foram juntos com a petição inicial, o despacho de arquivamento do inquérito crime e do relatório do acidente do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves. E, sendo assim, tendo a ré invocado na sua contestação a anulabilidade do contrato de seguro por falsas declarações, é manifesto que tal arguição foi feito dentro do prazo de um ano a que alude o nº 1 do art. 287º do CC. Assim, resta saber se no caso houve omissões ou inexatidões dolosas da ré Avioarte. O art. 25.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro)14, «que se refere a «dolo» e a comportamentos «dolosos» do tomador ou do segurado, usa estas palavras no sentido do dolo-culpa. Trata-se de identificar o elemento subjetivo de uma ação, a ação desconforme com o prescrito no art. 24.º, n.º 1. O art. 24.º estatui um dever, os arts. 25.º e 26.º distinguem entre a violação dolosa e a violação negligente desse dever. Contudo, o art. 25.º dispõe sobre um caso de dolo-artimanha, de dolo negocial. Ou seja, dispõe sobre um caso de erro negocial qualificado pela existência de dolo»15. É justamente o que se verifica in casu. Na verdade, resulta da factualidade apurada que a segurada declarou que o Senhor FF era um piloto devidamente qualificado para pilotar aeronaves bimotor e expressamente referido que tinha mais de 50 horas de voo nesse mesmo tipo de aeronave Beechcfrat 99, o que não tinha correspondência na realidade, conforme decorre dos pontos 16 e 34 dos factos provados, sendo essa inexatidão necessariamente dolosa e essencial para a apreciação do risco pelo segurador, com incidência na quantificação do prémio. Como bem se aduz na sentença recorrida, «afigura-se não existir qualquer justificação, à luz do critério da boa fé, para considerar a inexatidão daquela menção como irrelevante, antes pelo contrário reputamo-la como sendo essencial para a seguradora aderir à celebração do contrato de seguro nos termos e com as condições em que o fez», sabendo-se ademais, estar em causa uma atividade considerada perigosa16. Bem andou, pois, a sentença recorrida ao considerar verificada a anulabilidade do contrato de seguro, oponível aos autores nos termos do artigo 147.º do RJCS17. Da culpa na produção do acidente/nexo de causalidade Depois de se enquadrar o caso dos autos no campo da responsabilidade civil extracontratual, e após se fazer menção à norma do art. 493º, nº 2, do CC, escreveu-se na sentença recorrida: «A navegação de meios aéreos de transporte é, a nosso ver, uma atividade perigosa, subsumível na previsão do artigo 493.º, n.º 2, do CC, em face da gravidade dos danos causados pelas falhas de funcionamento desses meios de transporte, “tendo em consideração não só a frequência com que ocorrem acidentes, mas sobretudo pela sua potencial danosidade (reconhecimento da perigosidade que, de resto, fundamentará a responsabilidade objetiva do piloto e do proprietário consagrada no art.º 40.º DL n.º 238/2004)..” – assim Acórdão do Tribunal de Évora, de 12.06.2019, in www.dgsi.pt. Entendemos ser de afastar a aplicação do disposto no artigo 6.º do DL 172/93, de 11 de maio (diploma que regulava a atividade de trabalho aéreo à data dos factos), uma vez que os operadores aéreos com intervenção no acidente em causa – o piloto e a Avioarte, Lda., - não eram titulares de licenças concedidas ao abrigo daquele diploma legal, sendo essa titularidade um dos pressuposto de aplicação daquela norma legal. Desse modo, haverá que convocar o regime jurídico previsto no artigo 500.º do CC, que preceitua: “1- Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar. 2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.” Perante o contexto factual apurado, entendemos que situação em análise nos autos deve ser analisada à luz do regime consagrado nos citados dispositivos legais que definem os pressupostos da responsabilidade civil. Dentre esses pressupostos, para além de ter de existir uma conduta voluntária, a lei exige, para efeitos de responsabilização, que essa conduta seja uma conduta ilícita. Neste âmbito poderá incluir-se a violação de direitos subjetivos alheios ou a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, o que sucedeu no caso concreto uma vez que foi violado um direito fundamental, o direito à vida de GG. Mas, para que o facto ilícito gere responsabilidade, é também necessário que o autor tenha agido com culpa. (…).» Afigura-se correto o enquadramento feito na sentença, sendo que dele também não dissentem as partes, pelo que se passa, desde já, a apreciar a culpa na eclosão do sinistro ocorrido. É o seguinte o quadro factual a considerar: - No dia ........2009, a aeronave Beechcraft BE-99, modelo BE-99, nº de série U79, com a matrícula francesa F-BTME realizava um voo local de largada de paraquedistas, na área do Aeródromo Municipal de Cidade 1 (LPEV) ao serviço da ré Avioarte, Lda.. - Nessa aeronave haviam embarcado 12 paraquedistas, completamente equipados, e era pilotada por um só piloto. - A referida aeronave descolou na pista 01 às 18:47, pretendia alcançar a altitude de 13000 pés (4000m), altitude a que seriam efetuadas as largadas de todos os paraquedistas que levava a bordo. - Quando passava por volta dos 9500ft (3200m) o motor esquerdo (#1) parou e a hélice entrou automaticamente em “bandeira”. - O piloto parou a subida a cerca de 10500ft (3200m), informou os passageiros que tinha um motor parado e deu indicação para que todos abandonassem o avião, propondo-se ele aterrar com um só motor, na pista de onde acabara de descolar. - Os paraquedistas foram abandonando a aeronave em sequência, com exceção do ocupante GG que, tendo estado junto da porta, regressou ao posto de pilotagem, ficando a bordo com o piloto. - O avião continuou em aproximação à pista 01, com trem em baixo flaps na posição de aproximação (13º), mas com uma velocidade elevada, percorreu todo o comprimento da pista a baixa altitude e sem tocar com as rodas no chão; chegado ao fim da pista continuou a voar, aumentou a potência do motor direito, voltando ligeiramente pela esquerda, sem aumentar a altura ao solo. - Quando se aproximou do Bairro A, a aeronave efetuou uma manobra “tonneau” para a esquerda, ficando com as rodas para o ar e colidiu com um prédio de habitação, na Rua 1, no Bairro A, situado a 1160m de distância do topo da pista, no rumo 330º. - Após a colisão com o prédio, a aeronave precipitou-se no solo, em voo invertido, incendiando-se de imediato e, em consequência, os dois ocupantes da aeronave faleceram [pontos 3 a 12 dos factos provados]. Entendem os réus/recorrentes que a culpa do lesado foi determinante para a ocorrência do resultado, sendo a sua conduta causa direta da sua morte, pelo que é aplicável ao caso o disposto no art. 570º, nº 2 do CC. Já os autores, por sua vez, entendem que a infeliz vítima em nada contribuiu para a sua própria morte, devendo a responsabilidade pelo que lhe sucedeu ser inteiramente atribuída ao piloto do avião. A sentença recorrida afastou a aplicação ao caso do nº 2 do art. 570º do CC, por se tratar de culpa efetiva do piloto, também ele infeliz vítima, o que se mostra de todo correto em face da factualidade acima escrita. Com efeito, o piloto FF, gerente da ré Avioarte, Lda., tripulava a aeronave bimotor, propriedade desta última, para transporte de paraquedistas quando um dos motores deixou de funcionar e, em face disso, deu indicação para todos os ocupantes/paraquedistas saltarem, o que GG não fez. Mostra-se igualmente assente que o piloto iniciou a manobra de aterragem com um dos motores inoperacional, aproximou-se da pista, colocou o trem de aterragem em baixo e acionou os flaps, percorreu todo o comprimento da pista a baixa altitude, sem tocar com as rodas no chão, e chegado ao fim da pista continuou a voar, aumentou a potência do motor direito, voltando ligeiramente pela esquerda, sem aumentar a altura ao solo, sendo esse “recuo” na aterragem (manobra apelidada de “borrego”) realizado com uma aeronave com as características daquela – bimotor com um motor inoperacional, com trem e flaps em baixo – que conduziu à falta de controle do avião e à sua queda, manobra que deveria ter sido evitada a todo o custo naquelas circunstâncias, conforme foi explicitado no relatório final de averiguação deste acidente, como bem se aduz na sentença recorrida. Ademais, o piloto não estava habilitado a pilotar aeronaves bimotor, desconhecendo o procedimento a adotar em caso de aterragem de aeronave bimotor com um dos motores inoperacional [pontos 15 e 16 dos factos provados]. Em face do exposto, é possível concluir, como na sentença recorrida, «que o acidente ocorreu devido à inexperiência do piloto e à sua impreparação para efetuar uma aterragem em segurança com um motor inoperativo, não resultando da factualidade provada que o piloto do avião tenha empregado todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos que causou (designadamente, não recolheu o trem e os flaps, antes de efetuar o “borrego”)». Considerou assim a sentença recorrida estarem preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito relativamente ao piloto da aeronave, nos termos do art. 483º do CC, bem como os pressupostos da responsabilidade civil objetiva da ré Avioarte, Lda., nos termos do art. 500º, nº 1, do CC, enquanto proprietária da aeronave, sociedade que se dedicava à atividade de paraquedismo que era desenvolvida naquele voo pelo seu sócio e gerente, o piloto FF, entendendo que não obstava a tal o facto deste ser o gerente da sociedade, o que se afigura correto. Lê-se no sumário do Acórdão do STJ de 05.07.201218: «I- É patente e inarredável que se verifica uma subordinação jurídica do gerente (ainda que simultaneamente sócio) à sociedade, que não se confunde com o vínculo de subordinação jurídica do trabalhador à entidade patronal, no contrato individual de trabalho. (…). II- A comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de contrôle, na expressão da jurisprudência francesa) ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo». III- Não há dúvida de que os sócios gerentes, constituindo órgãos directivos e sendo representantes de uma sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato e, em regra, não por contrato de trabalho subordinado (neste sentido, cfr. o Ac. deste Supremo Tribunal, de 29-09-1999 in BMJ, 489º-232). Porém, tal participação não identifica a vontade psicológica do gerente com a vontade da pessoa colectiva, embora aquela se deva subordinar a esta, já que, como ensinou Raul Ventura, «na gerência das sociedades por quotas – como, aliás, na administração de todas as sociedades e até de pessoas colectivas, em geral – há que distinguir dois sectores: a gestão (também chamada administração stricto sensu) e a representação». IV- É na posição de gestão e/ou na prática de uma actividade executiva da sociedade, que o gerente, distinguindo-se sempre da própria sociedade que gere, conduz a viatura da sociedade em nome e no interesse desta, assim agindo como comissário, sendo comitente a sociedade proprietária do veículo. Não se afigura essencial a alegação da factualidade integrante do poder de direcção da sociedade (ordens, direcção e fiscalização) sobre o gerente, pois tais factos integram o quadro legal da função de gerente, embora distinta da subordinação jurídico-laboral que permite distinguir o contrato de trabalho subordinado de outras figuras afins, tais como o contrato de prestação de serviço, de mandato, de agência, etc. V- O que o artº 500º, nº 3 do Código Civil exige é a condução por conta de outrem e o sócio-gerente que conduz a viatura empresarial, numa actividade de distribuição de produtos da empresa que gere, desempenha tal actividade por conta de tal empresa.» Assim é forçoso concluir, como na sentença recorrida, que o piloto FF e a ré Avioarte, Lda. – o primeiro como comissário que agindo com culpa deu causa ao evento danoso e a segunda como comitente – devem ser solidariamente responsáveis pelos danos causados pelo acidente aeronáutico ocorrido no dia ... de ... de 2009. Mas será que alguma responsabilidade deve ser assacada à vítima GG? Lê-se a este propósito na sentença recorrida: «No caso concreto, o piloto da aeronave deu indicação para todos os ocupantes/paraquedistas saltarem do avião uma vez que um dos motores não estava a funcionar; GG dispunha de equipamento e conhecimento técnico para realizar o salto, inclusivamente dirigiu-se à porta do avião; porém, acabou por “arrepiar” caminho e decidiu permanecer dentro da aeronave juntamente como piloto. De acordo com o disposto no artigo 4.º do DL n.º 71/84, de 27 de fevereiro, que aprovou o Estatuto do Comandante de Aeronave, o comandante é a autoridade máxima a bordo, sendo responsável pela aeronave, tripulação, passageiros, carga e correio. Esta é uma regra do conhecimento geral do comum dos cidadãos, que também GG, paraquedista experiente, não poderia desconhecer e, por isso, era-lhe exigível naquelas particulares circunstâncias, que obedecesse ao piloto, cumprindo as instruções que este lhe deu. Porém, não o fez. No entanto, a verdade é que decorre da factualidade acima elencada que a queda do avião não resultou diretamente de uma falha do motor, mas sim de uma manobra aeronáutica indevidamente executada pelo piloto, num momento em que o lesado já não tinha a possibilidade de abandonar o avião. Assim, tendo em consideração quanto vem de se dizer afigura-se que a conduta (por omissão) do lesado contribuiu em parte para o evento danoso, no entanto, ainda assim, o facto culposo perpetrado pelo piloto contribuiu em maior medida para a produção daquele dano morte e, por isso, reputamos adequado imputar ao piloto a responsabilidade por 80% dos danos reclamados na ação.» A apreciação da culpa do lesado é indissociável da questão do nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano sofrido por si, como pressupostos da responsabilidade civil extracontratual [art. 483º, nº1, do CC]. Dispõe o art. 570º, nº1, do CC: «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.» Estabelece, por sua vez, o art. 563º do CC, que «[a] obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão». Este preceito consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Enneccerus-Lehmann, segundo a qual o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado causa adequada se, dada a sua natureza, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo e só se tornou sua condição por virtude de outras circunstâncias. Há, naturalmente, que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado, isto é, o agente só responderá pelos danos para cuja produção a sua conduta era adequada. Se o agente produziu a causa donde resultou o dano, sem dúvida que a sua conduta é adequada ao resultado, mesmo que, concomitantemente com a sua conduta, haja a conduta de terceiros a concorrer para esse resultado ou, pelo menos, a não o evitar. Com efeito «desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano», justifica-se perfeitamente «que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano»19. Como ensina Almeida Costa20: «Assim como não se impõe que o nexo causal entre o facto e o dano se apresente directo ou imediato, pois basta uma causalidade indirecta ou mediata. Será suficiente, sem dúvida, que o facto, embora não tenha ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, contanto que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada do facto que deu origem à primeira. A solução justifica-se, porque o dano, muitas vezes, apenas se torna possível pela intermediação de factores de diversa ordem (factos naturais, acções ou omissões do próprio lesado ou de terceiro), sendo razoável que o agente responda por esses factos posteriores, desde que especialmente favorecidos pela sua conduta ou tão-só prováveis segundo o curso normal das coisas. Acrescenta-se, como última observação, que a doutrina da causalidade adequada não postula especificamente a previsibilidade do dano. Tal previsibilidade apenas será necessária, como sabemos, em relação ao facto constitutivo da responsabilidade, sempre que esta pressuponha culpa do agente, mas não para os danos dele derivados (…)”. In casu, não tendo a vítima saltado da aeronave - como fizeram os demais paraquedistas - após o piloto ter informado que tinha um motor parado e dado indicação para que todos abandonassem o avião, poderia dizer-se que, não fora essa atuação da vítima, a sua morte não teria ocorrido. Mas, em termos de causalidade adequada, pode-se questionar se a sua atuação foi a causa adequada, em certo sentido, a causa eficiente, a causa sem a qual o dano não se teria produzido. Ora, porque a causalidade adequada se refere não apenas ao facto ou ao dano isoladamente considerados, mas a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano21, repugna considerar que a infeliz vítima, com a sua atuação, tenha de alguma forma contribuído para o desfecho fatal. Com efeito, como decorre da factualidade provada (pontos 9 e 10), a queda do avião não resultou diretamente de uma falha do motor, mas sim de uma manobra aeronáutica indevidamente executada pelo piloto22, num momento em que o lesado já não tinha sequer a possibilidade de abandonar o avião e, por isso, entendemos que apenas o piloto podia ter evitado o desfecho fatal do voo em causa. Ademais, no momento em que a vítima decidiu não abandonar a aeronave, nada fazia prever que esta não viesse a aterrar ilesa na pista do Aeródromo Municipal de Cidade 1. Neste conspecto, crê-se que a auto-responsabilização da vítima por efeitos lesivos da sua conduta, à luz do necessário juízo de censura, com os contornos enunciados, e de critérios de justiça e equilíbrio de repartição do dano, não colhe justificação. Assim, face à matéria de facto provada e ao que acima se deixou dito, entendemos que a imperícia do piloto na realização da manobra de aterragem (falhada) da aeronave23, é de todo adequada ao evento e ao resultado verificado, tendo em conta a situação concreta aqui apreciada ou, como ensina A. Varela24, tendo em conta o “processo factual que, em concreto, conduziu ao dano”. E foi essa imperícia do piloto - também ele vítima no acidente -, a única razão pela qual o filho dos autores veio a falecer. Procede, pois, nesta parte, o recurso dos autores. Do quantum indemnizatório Dano morte Considerou-se na sentença recorrida que GG tinha uma forte ligação à vida, era praticante de paraquedismo, uma pessoa alegre e trabalhadora, nos moldes descritos nos pontos 18 a 20 dos factos provados e, nessa medida, entendeu-se que o valor de € 75.000,00, atualizado na data da sentença em função dos valores da inflação, era o adequado a compensar o dano morte, «tanto mais que se contém dentro dos valores referenciais que vêm sendo apontados pelo Supremo Tribunal de Justiça». Segundo os autores, o valor justo e adequado para ressarcir a perda do direito à vida do filho, deve ser fixado no montante € 94.627,82 (atualização dos € 80.000, 00 peticionados, em função do valor da inflação). Já os réus/recorrentes consideram que o dano morte foi calculado de forma desproporcional, pelo que o mesmo deverá ser reduzido. Na fixação da indemnização a título de danos não patrimoniais, direito à vida incluído, deverá atender-se ao grau de culpa do responsável, à sua situação económica, bem como à do lesado e do titular da indemnização – art. 494º ex vi art. 496º, nº 3, do CC – não esquecendo os padrões da jurisprudência e a conjuntura económica de enquadramento. O filho dos autores tinha uma forte ligação à vida, era praticante de paraquedismo – sendo mesmo instrutor -, uma pessoa alegre e trabalhadora [cfr. pontos 19, 20 e 37 dos factos provados]. A jurisprudência mais recente do STJ tem valorado a perda do bem vida em valores próximos do valor fixado na sentença recorrida. Lê-se no acórdão do STJ de 19.01.202325: «Na fixação da indemnização do dano da perda da vida, tendo em consideração que não é o lesado que vai beneficiar da quantia indemnizatória, o valor a atribuir deve reflectir uma censura à conduta do lesante e sinalizar a importância do bem jurídico supremo sacrificado, conferindo-lhe uma tutela que satisfaça as exigências de um Estado de direito democrático, necessariamente atento à reparação dos danos injustamente provocados pela conduta de outrem, sendo aconselhável seguir-se uma orientação padronizadora; o valor padrão desta indemnização que nos últimos tempos tem norteados a jurisprudência dos tribunais superiores tem rondado os €80.000,00, avultando como critério diferenciados o grau de culpa do lesante.” Donde, o acórdão recorrido ao fixar em € 75.000,00 a compensação pelo dano morte decidiu em linha com os critérios jurisprudenciais mais recentes, não sofrendo nem da modéstia nem do exagero que os autores e réus, respetivamente, lhe imputam. Este montante de € 75.000,00 e, bem assim, as quantias de € 30.000,00 atribuídas a título de indemnização por danos não patrimoniais a cada um dos autores, que não foi questionada nos recursos, são devidas na totalidade [75.000 + 30.000 x 2 = 135.000], uma vez que se considerou no acórdão que a culpa na eclosão do acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do piloto da aeronave. Danos não patrimoniais sofridos pela vítima Insurgem-se também os autores quanto ao facto de não ter sido arbitrada nenhuma indemnização pelos danos sofrido pelo seu filho, nos momentos que antecederam a sua morte. Entendeu-se na sentença recorrida que não resultou provado (nem foi alegado) o período de sobrevida do lesado, nem se o mesmo teve consciência da iminência da sua morte, ainda que por um curto período de tempo e, por isso, não se fixou qualquer indemnização a esse título. Na verdade, percorrendo a matéria de facto dada como provada, não se encontra nada que indicie ter a infeliz vítima sofrido algo antes da sua morte, tudo apontando, aliás, para o contrário, considerando a dinâmica do acidente e a rapidez com que tudo se passou [cfr. pontos 9 a 12 dos factos provados]. Não merece por isso censura a não consideração, na sentença recorrida, de uma indemnização pelos danos sofridos pela própria vítima. Da ampliação do âmbito dos recursos, a título subsidiário Não tendo havido procedência do recurso dos autores e dos réus/recorrentes no tocante à responsabilidade da ré La Réunion Aérienne, pelas razões acima expostas, com a consequente manutenção da absolvição da ré do pedido, não há que apreciar a ampliação do objeto do recurso, a título subsidiário, ficando obviamente prejudicada a apreciação do suscitado nessa sede pela referida ré. Não obstante, todas as questões suscitadas pela ré, porque intrinsecamente relacionadas com o objeto dos recursos, não deixaram de ser apreciadas no acórdão, designadamente a «ausência de nexo de causalidade adequada e culpa do lesado», pelo que nada mais haveria a dizer a esse respeito. Vencidos no recurso, parcialmente os autores, e na totalidade os réus/recorrentes, suportarão os mesmos as respetivas custas [art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC]. Sumário: (…) IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação dos autores e improcedente a apelação dos réus e, consequentemente: a) Alteram a sentença recorrida, condenando solidariamente os réus CC, DD e EE, pelas forças da herança de FF, e a ré Avioarte, Lda. a pagarem aos autores a quantia de € 135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros), acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a data do presente acórdão até efetivo e integral pagamento. b) Mantêm no mais o decidido. Custas da ação e dos recursos a cargo de autores e réus/recorrentes, na proporção do decaimento, sem prejuízo, quanto aos primeiros, do benefício do apoio judiciário concedido. * Évora, 10 de julho de 2025 Manuel Bargado (Relator) Maria João Sousa e Faro Susana Costa Cabral (documento com assinaturas eletrónicas)
____________________________________ 1. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, invocando-se o disposto nos artigos 627.º, n.º 2, 644.º, n.º 1, al. b), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 1 e n.º 3 a contrario. Não obstante, decidiu-se, “face ao teor do despacho saneador” que viria a ser proferido em seguida, desfavorável à pretensão dos autores, e à consequente previsibilidade de novo recurso, relegar para momento posterior a decisão de subida dos autos (fls. 1031).↩︎ 2. Mantém-se a redação e numeração constante da sentença.↩︎ 3. Código de Processo Civil anotado, Volume V (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra - 1984, p. 141.↩︎ 4. Proc. 110/2000.L1.S1, disponível, como os demais citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.↩︎ 5. Proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1.↩︎ 6. Junto com o requerimento de 08.06.2014.↩︎ 7. Página 105 dos autos.↩︎ 8. Cfr. artigo 44º do corpo alegatório.↩︎ 9. Doravante CC.↩︎ 10. In Código Civil Anotado, 3ª edição, p. 262.↩︎ 11. In Teoria Geral da Relação Jurídica, 1983, vol. II, p. 227↩︎ 12. In Direito Civil – Teoria Geral, vol. III, p. 676, edição da AAFDL 1979.↩︎ 13. Cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 14.12.2021, proc. 12977/16.0T8SNT.L1.S2.↩︎ 14. Doravante RJCS.↩︎ 15. Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro, 2016-3ª edição, p. 154.↩︎ 16. Cfr. P. Lima e A. Varela, ob. cit. p. 469.↩︎ 17. Uma vez que permaneceu incólume a redação do ponto 32 dos factos provados, não colhe o argumento dos réus/recorrentes de que «o contrato de seguro deverá cobrir os prejuízos causados pelo acidente (caso esses venham a ser confirmados) pois que as falsas declarações não se podem enquadrar no regime do contrato de seguros, de forma literal, visto o contrato ter sido assinado por quem não sabia ler Inglês nem compreender a língua».↩︎ 18. Proc. 1032/04.5TBVNO.C1.S1, aplicável com as devidas adaptações ao caso dos autos.↩︎ 19. Cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações em Geral, I Volume, 6ª edição, p. 864.↩︎ 20. In Direito das Obrigações, 12ª edição, p. 766.↩︎ 21. Cfr. Acórdão do STJ de 22.11.2016, proc. 10/04.9TBSTB.E1.S1.↩︎ 22. A que não é certamente alheio o facto de o mesmo não estar habilitado a pilotar a aeronave em causa, nem ter formação, nem 50 horas de treino de voo naquela classe de aeronave, nem conhecimento dos procedimentos de aterragem com um motor inoperativo (pontos 15 e 16 dos factos provados).↩︎ 23. Recorde-se que o piloto FF não estava habilitado a pilotar a aeronave, não estando demonstrado que esse facto fosse do conhecimento do filho dos autores.↩︎ 24. Direito das Obrigações em Geral, I …, cit., p. 867. Na jurisprudência, inter alia, os Acórdãos do STJ de 20.06.2006, in CJSTJ, Tomo II/2006, p. 119, de 13.01.2009, proc. 08A3747 e de 27.04.2017, proc. 1523/13.7T2AVR.P1.S1.↩︎ 25. Proc. 347/21.8T8PNF.P1.S1. No mesmo sentido o Ac. do STJ de 23.04.2025, proc. 1470/19.9T8BJA.E1.S1.↩︎ |