Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
344/16.0T8OLH.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 01/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I- Nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida.
II- Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com valor mensal fixado pelo Tribunal.
III- Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do nº4 do art.º 239º do C.I.R.E. é inexistente.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

I – RELATÓRIO

1. BB, insolvente nos autos à margem identificados, veio interpor recurso do despacho proferido em 2.10.2018 que é do seguinte teor:
“Nos presentes autos aquando da prolação do despacho liminar quanto à exoneração de passivo restante foi fixada a quantia de dois salários mínimos nacionais, como rendimento disponível, devendo todo o excedente mensal ser entregue ao fiduciário designado. Nesta decisão foi desde logo tida em consideração a pensão de alimentos que o insolvente teria de pagar aos seus filhos menores, no valor mensal de €290,00.
Por outro lado, tal como decorre da lei, e bem assim da sentença proferida, o rendimento disponível do insolvente é de dois salários mínimos mensais, devendo entregar todo o excedente. O facto de o insolvente ter solicitado que os seus subsídios de natal e de férias lhes fossem pagos todos num mês só não afasta esta decisão.
Aliás, dos recibos do insolvente facilmente se demonstra que as penhoras são efectuadas mensalmente e não apenas no mês em que aquele solicitou o recebimento dos subsídios. Para além disso, o valor final é aquele que efectivamente fica para o insolvente e que se tem em consideração aquando do cálculo dos dois salários mínimos mensais.
Por outro lado, atento o disposto no artigo 239.º, n.º 3, e n.º 4, alínea c), do CIRE, se os rendimentos são recebidos mensalmente, também a entrega tem de ser mensal, o que afasta qualquer espécie de cálculo anual para apuramento dos rendimentos objecto da cessão.
A lógica é, então, muito simples: todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, independentemente da sua proveniência ou designação, que excedam o judicialmente fixado como rendimento indisponível, devem ser objecto de cessão, e, quando recebidos pelo insolvente, por si imediatamente entregues ao fiduciário.
De facto, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.03.2017 “Sobre a natureza da cessão prevista no n.º 2 do artigo 239.º, seguimos o entendimento de que se trata de uma cessão de bens futuros ao fiduciário, que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 789, Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, páginas 176 e 177].
Segue-se daqui que todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com excepção – além de outros sem relevância para o caso – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Deste modo, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se necessariamente a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário.
E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês.
Com efeito, apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE, não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo (…)”.
Aliás, quando se fixa o mencionado valor disponível é sempre por consideração a um mês e às despesas mensais do insolvente e não às despesas anuais.
Assim sendo, deverá o insolvente entregar ao Sr. Fiduciário a quantia em falta e, caso não o faça, poderá ser proferida decisão de cessão antecipada do procedimento de exoneração nos termos do artigo 243.º, do CIRE.”

2. O recorrente formulou, na sua apelação, as seguintes conclusões:

I. Salvo o devido respeito, consideramos que o douto Tribunal a quo efectuou uma errada interpretação do disposto no artigo 239.º, n.º 3 e alínea b), i) do referido artigo.
II. O insolvente está obrigado a ceder ao Fiduciário os rendimentos que excedam o valor corresponde a 2 salários mínimos nacionais (SMN);
III. Durante o ano de 2017, o SMN fixou-se em 557€;
IV. No decurso do ano de 2017 o insolvente estaria obrigado a entregar ao Fiduciário o montante que excedesse o valor anual de 15.596€ (557€ X 2 X 14 meses);
V. Durante o ano de 2017, o rendimento anual do insolvente foi de apenas 13.000€;
VI. Considerando o acima exposto, e salvo melhor opinião, entendemos que o insolvente não estaria obrigado a entregar o valor de 827,75€ ao Exmo. Senhor Fiduciário porquanto o rendimento auferido pelo insolvente no decurso do ano de 2017 não excedeu o valor correspondente a 24 SMN.
VII. O período de referência do rendimento disponível do insolvente deverá ser anual.
VIII. Consequentemente, a decisão recorrida violou, ou não fez a melhor interpretação do disposto conjugadamente nos artigos 13.º e 59.º, n.º 2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa, bem como do artigo 239.º, ponto i), alínea b), do n.º 3 do CIRE.
Termos em que, o despacho recorrido deverá ser anulado, por errada interpretação do disposto no artigo 239.º, ponto i), alínea b), do n.º 3 do CIRE, devendo ser substituído por outro que determine que o insolvente não está obrigado a proceder à entrega do valor de 827,75€ porquanto o rendimento auferido pelo insolvente no decurso de 2017 não excedeu o valor correspondente a 24 SMN, devendo ser considerado o rendimento disponível do insolvente em termos anuais.
Assim se fazendo a costumada Justiça!

3. Não houve contra-alegações.

4. Foram dispensados os vistos.

5. OBJECTO DO RECURSO

Circunscreve-se o objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr. artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2, todos do CPC) à questão de saber se o apelante está adstrito a entregar € 827,75 ao fiduciário relativamente aos rendimentos auferidos em 2017.

II- FUNDAMENTAÇÃO

i) Os factos a considerar são os que emergem do relatório antecedente, sendo de salientar que:
- O montante do rendimento “indisponível” do apelante foi oportunamente fixado em valor correspondente a dois salários mínimos nacionais;
- Em 2017 o seu rendimento líquido anual se cifrou em € 13.000,00, sendo que no mês de Março de 2017 lhe foram “adiantados” o subsídio de férias e de Natal.



ii) Do mérito do recurso

De acordo com a tese do despacho recorrido, sendo os rendimentos do insolvente recebidos mensalmente, também a entrega tem de ser mensal, o que afasta qualquer espécie de cálculo anual ou compensação entre meses para apuramento dos rendimentos objecto da cessão. Isto é, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, independentemente da sua proveniência ou designação, que excedam o judicialmente fixado como rendimento indisponível, devem ser objecto de cessão.

Na senda do entendimento expendido, nos meses em que os rendimentos excedem o que foi considerado necessário para o sustento do insolvente, terá de ocorrer a entrega dos valores em excesso ao Fiduciário.
Nos meses em que for inferior, não há rendimento disponível e por isso não há cessão de rendimentos.

Diremos que, em regra, assim será.

Porém, há casos em que o rendimento em determinados meses não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou há meses em que nem sequer há rendimento (veja-se a situação de um profissional liberal que durante os meses de Verão nada recebe e que os demais têm de servir para garantir o seu sustento nesse período).

Ora, se em determinados meses o rendimento do insolvente – por razões várias - não chega a alcançar o entendido como necessário à sua subsistência terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida.

Como é sabido, durante o período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir será afectado ao pagamento dos credores da insolvência com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o que bem revela a intenção do legislador de fazer prevalecer a função interna do património (suporte de vida económica do seu titular) sobre a função externa (garantia geral dos credores).

No caso, apesar de o apelante auferir apenas o salário mínimo nacional, entendeu o Tribunal de 1ª instância “fixar como limiar do rendimento disponível o valor correspondente a dois salários mínimos nacionais, que em cada momento vigorar, devendo todo o excedente mensal ser entregue ao fiduciário designado.”.

Por conseguinte, o Tribunal não deixou de equacionar que o insolvente não estaria em condições de entregar o que quer que fosse proveniente do seu trabalho, já que dificilmente os seus rendimentos mensais excederiam os ditos dois salários mínimos (mesmo nos meses em que recebesse os subsídios de férias e de Natal).

Sendo certo que o montante mensal médio correspondente aos rendimentos auferidos pelo apelante em 2017 perfez € 1083,33 (€ 13000/12) ou seja, não chegou a alcançar o valor de € 1114 correspondente a duas vezes o salário mínimo nacional então em vigor - € 557 – não se lhe pode exigir que, só porque num mês lhe foram pagos simultaneamente, a seu pedido, ambos os subsídios que entregue o remanescente ao fiduciário.

Se os rendimentos do insolvente no ano fiscal a considerar não excederem globalmente o valor mensal fixado pelo Tribunal, tal obrigação é inexistente.

É, por isso, que a decisão recorrida não se pode manter.

III – DECISÃO

Face ao exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revogando-se o despacho recorrido, decide-se que o insolvente fica eximido de entregar ao fiduciário a quantia de € 827,75 relativamente ao exercício de 2017.
Sem custas.

Évora, 17 de Janeiro de 2019

Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente