Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ARTUR VARGUES | ||
Descritores: | TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES VEÍCULO INSTRUMENTO ESSENCIAL DECLARAÇÃO DE PERDA A FAVOR DO ESTADO | ||
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Data do Acordão: | 09/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Em regra, um veículo será instrumento essencial quando for utilizado para transportar droga que, pelas suas dimensões, não poderia ser transportada à mão ou num objeto de menores dimensões. Quando a droga poderia ser transportada desta outra forma, o veículo não será, quanto a este aspeto, essencial. Poderá sê-lo por transportar não tanto a droga, mas o agente, ou agentes, do crime. Nesta perspetiva, será essencial se esse transporte tornar possível a venda de estupefacientes com as dimensões e alcance de que esta se reveste em concreto. Ora, da factualidade provada , resulta que a viatura declarada perdida a favor do Estado era alugada, tendo sido utilizada pelo arguido para se deslocar apenas uma vez, em 22/06/2023, a uma localidade.. Em outras deslocações à zona onde procedia ao tráfico e localidades limítrofes utilizou diferentes veículos, também alugados, pelo que se tratou de uma utilização episódica e não frequente a da viatura declarada perdida a favor do Estado. Também a quantidade de produtos estupefacientes de que o arguido era portador nesse dia não implicava a necessidade imperiosa do seu transporte naquele veículo, podendo facilmente sê-lo até em veículo motorizado de duas rodas, em táxi, outro de aluguer ou pelo recurso a plataformas de conexão de usuários a motoristas parceiros. De onde, se concluir não ter sido o veículo declarada perdida a favor do Estado essencial para a actividade ilícita desenvolvida pelo arguido. Destarte, cumpre considerar não estarem verificados os necessários pressupostos da declaração de perda do mencionado veículo automóvel, pelo que deve o mesmo ser restituído à recorrente, sua proprietária. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO 1. Nos presentes autos com o nº 11/23.8PEBJA, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Central Cível e Criminal de … – Juiz …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, foi o arguido AA condenado, por acórdão de 10/02/2024, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência às Tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo, na pena de 6 anos de prisão. Foram declarados perdidos a favor do Estado: - todo o produto estupefaciente apreendido, bem como o material destinado ao corte, pesagem e acondicionamento. - os telemóveis, o veículo automóvel e as quantias monetárias de 220,00 euros e 3.210,00 euros, apreendidos ao arguido AA. O mesmo acórdão determinou a restituição da quantia monetária de 800,00 euros apreendida na casa do arguido AA. 2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as conclusões que de seguida se transcrevem: A subsunção dos factos dados como provados ao Artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. 1. Os factos dados como provados preenchem o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo Artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93. 2. Os factos dados como provados quanto à recorrente refletem a venda direta ao consumidor final, de pequenas quantidades/doses. 3. Foram identificados três cidadãos consumidores. 4. As quantidades não são, salvo melhor entendimento, significativas. 5. Resulta da matéria de facto dada como prova que o grau de pureza das substâncias era baixo, principalmente da heroína. 6. Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal, tal ponto assume pertinência, na medida em que quanto menos “pura” foi o produto, menos poder aditivo e de efeitos colaterais terá. 7. A quantia monetária apreendida também não se mostra expressiva, quando comparada com outras apreensões feitas em casos de tráfico de estupefacientes. 8. O Tribunal não se pode socorrer dos antecedentes criminais do arguido para justificar a subsunção dos factos ao direito, pois a sua ponderação deverá apenas ser tida em conta em sede de determinação da pena a aplicar e nem como válvula de identificação do tipo do crime. 9. A conduta ilícita imputada ao recorrente encontra-se delimitada temporalmente e geograficamente a …. 10. Tais factos permitem concluir, salvo melhor entendimento, que a projeção da sua conduta se mostra pequena e concretamente identificada. 11. Uma última nota ainda para a forma incipiente e pouco sofisticada do processo de venda do produto estupefaciente, que ocorreu em plena via pública, sem recurso a formas ocultas de pagamento ou transações de difícil constatação por parte dos OPC. 12. A atuação do recorrente e as quantidades apreendidas não permitem divisar um grau de sofisticação ou de engenho elevado que qualifique a sua conduta como a do tráfico referente ao Artigo 21.º do referido diploma. 13. Estaremos no último nível da cadeia de distribuição do narcotráfico, onde se procede à venda sem recurso a artifícios, comunicações prévias ou organização que indique um determinado nível de sofisticação. 14. Cremos que o Tribunal a quo, ao considerar que os factos preenchem a prática de um crime de tráfico de estupefacientes (previsto e punido pelo Artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, por referência às tabelas I-A e I-B anexas) aplica erradamente o referido normativo e ainda o Artigo 25.º do mesmo diploma. 15. O acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por um acórdão que condene o recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo Artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, por referência às tabelas I-A e I-B anexas (qualificação essa que foi feita em sede de primeiro interrogatório judicial, leia-se). 16. O recorrente deverá ser condenado na pela de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução (tendo em conta que se mostra social, familiar e laboralmente inserido). A devolução dos telemóveis e quantias monetárias apreendidos ao arguido. 17. O Tribunal a quo deu como provado que: “(...) 9. O arguido AA tinha ainda na sua posse: a) Duas notas de € 100,00 (cem euros) do banco central europeu; b) Duas notas de € 10,00 (dez euros) do banco central europeu, que lhe haviam sido entregues por BB; c) Um telemóvel da marca …, modelo …, de cor cinza; d) Um telemóvel da marca …, modelo …. (...)”. 18. Mais deu como provado, sob o facto n.º 11, alínea b) que o arguido tinha no quarto da sua residência 3.210,00€ (três mil, duzentos e dez euros). 19. Os referidos telemóveis e as quantias monetárias foram declarados perdidos a favor do Estado. 20. Não obstante o Tribunal a quo referir que o dinheiro apreendido ao arguido era proveniente da venda de estupefacientes, afastando a versão apresentada pelo arguido, a verdade é que não resulta absolutamente nenhum facto da matéria dada como provada que tais verbas eram vantagens ou fruto da atividade ilícita em causa. 21. A matéria de facto também é lacónica quanto ao uso dos telemóveis na prática dos factos pelos quais o arguido foi condenado. 22. Da matéria de facto dada como provada não resulta que os referidos telemóveis apreendidos ao arguido tenham sido usados na prática dos factos pelos quais veio a ser condenado. 23. Não tendo sido dado como provado que o dinheiro apreendido era proveniente da atividade de tráfico de estupefacientes nem tendo sido dado como provado que os telemóveis de marca …, modelo …, de cor cinza e de marca …, modelo ... foram usados na prática do crime, deveriam os mesmo ter sido devolvidos ao seu proprietário, sob pena de violação do princípio do acusatório e do princípio da vinculação temática – violação essa que sucedeu in casu. 24. O Tribunal violou, assim, o Artigo 110.º do C.P. e o Artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01. A redução da pena aplicada à recorrente e a aplicação do regime de suspensão da pena de prisão, nos termos do Artigo 50.º do Código Penal. 25. Caso seja de manter a qualificação jurídica, o arguido considera que o Tribunal a quo violou o disposto no n.º 2 do Artigo 40.º e Artigo 71.º, ambos do Código Penal, incorrendo em erro de aplicação ao caso concreto. 26. A pena concretamente aplicada mostra-se exagerada e desproporcional face ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste (que se consubstancia na venda direta ao consumidor) e a gravidade das suas consequências 27. A pena aplicada pela mostra-se desajustada face à culpa do arguido e às demais circunstâncias constantes do Artigo 71.º do Código Penal. 28. A conduta do arguido é circunscrita a poucas ocasiões de venda de produto estupefaciente (vendas de quantidades baixo de um grama de cocaína ou de heroína) e à detenção desse produto em pequenas quantidades. 29. As circunstâncias em que o crime foi praticado (que se inserem em ocasião especificamente delimitadas, quer no tempo, quer no espaço), o passado do arguido, a sua inserção familiar e social não foram devidamente ponderadas para efeitos de determinação da pena. 30. Uma devida ponderação dessa informação, devidamente conjugada com os factos relacionados com a prática do crime, deveriam ter levado à aplicação de uma pena inferior e, por consequência, uma pena única menor do que aquela que foi fixada. 31. O arguido, para além da família que se encontra totalmente disponível para a apoiar em liberdade, dispõe competências profissionais que certamente a ajudarão a seguir o rumo da sua vida dentro da legalidade – o que atenua as exigências especiais que se fazem sentir, não havendo necessidade de aplicar ao arguido pena tão gravosa como aquela que foi aplicada. 32. O arguido confessou os factos que vieram a ser dados como provados quanto à prática do crime e mostra-se inserido. 33. Julgamos adequada a aplicação de uma pena de prisão de 4 anos. 34. A medida da pena excedeu a medida da culpa e a gravidade das circunstâncias da conduta do arguido. 35. Não obstante os antecedentes criminais averbados no CRC do arguido, cremos ser de se fazer uma prognose favorável ao seu comportamento futuro em face da sua inserção familiar e laboral, de ter confessado os factos, sendo de suspender a pena de prisão, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal. 36. O Tribunal a quo, ao condenar o arguido na pena de 6 anos de prisão, com base nos fundamentos supra expostos, viola o disposto no n.º 2 do Artigo 40.º, o Artigo 71.º e o Artigo 77.º, todos do Código Penal, devendo antes condenar o arguido numa pena de prisão junto ao limite mínimo aplicável ao caso concreto (em 4 anos de prisão que deverá ser suspensa na sua execução, sujeitando-se o arguido a um regime de prova, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 50.º e 53.º do Código Penal). 37. Caso assim não se entenda quanto à suspensão da referida pena, deverá o recorrente ser condenado numa pena de 4 anos de prisão efetiva. 3. Também “CC” interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1. Mediante acórdão proferido em 12 de abril de 2014, foi declarada perdida a favor do Estado a viatura ligeira de passageiros, de marca …, modelo …, …, que se mostra apreendida nos presentes autos desde o dia 22 de junho de 2023, quando o arguido AA foi detido em flagrante delito. 2. A recorrente considera que a referida viatura deve ser-lhe devolvida, por esta ser a legítima proprietária da mesma (cfr. fls. 246 e 247), por desconhecer a atividade delituosa levado a cabo pelo arguido e por não ter participado na prática dos factos. 3. Não foi dado como provado qualquer facto relativo à recorrente, nomeadamente que a mesma tivesse conhecimento da atividade do arguido. 4. Não foi dado como provado que a viatura de marca …, modelo …, com a matrícula … tenha sido alugada ao arguido AA. 5. A recorrente desconhecia que a viatura estava a ser utilizada pelo arguido AA. 6. Requereu a devolução da viatura mediante e-mail datado de 22 de dezembro de 2023, mas nunca obteve qualquer resposta. 7. O Ministério Público prescindiu da audição da testemunha DD (sócia-gerente da sociedade aqui recorrente) em audiência de discussão e julgamento de dia 2 de abril de 2024. 8. O Tribunal a quo decidiu declarar perdida a favor do Estado a viatura ligeira de passageiros, de marca …, modelo …, …, por considerar que a mesma se insere no grupo dos “objectos que serviram à prática do crime, de modo essencial”. 9. Contudo, a utilização do veículo em causa não se reveste de carácter essencial à consumação do crime. 10.Conforme entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Processo n.º 41/18.1PEVIS.C1, de 19 de fevereiro de 20203: “Ora, o STJ tem enveredado por uma interpretação do n.º 1 do artigo 35º de acordo com a qual “a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada”. 11.Também foi entendimento do Tribunal da Relação de Évora no âmbito do Processo n.º 740/18.8T9EVR.E1, de 8 de junho de 20214: “(...) Assim, tem sido preconizada a orientação no sentido de se exigir que a relação do veículo com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infração se verifique em si mesma ou na forma de que se revestiu. Exige-se que da matéria factual provada resulte que entre a utilização do veículo e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu exista uma relação de causalidade adequada, de modo a que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou não o teria sido na forma em que o foi”. 12.Foi dado como provado que, em data anterior à da detenção de AA (quando este se fazia transportar no veículo em causa), este já ter-se-ia ao Concelho de … para proceder à entrega de estupefaciente noutras viaturas, mais concretamente no dia 27 de dezembro (facto n.º 3 dado como provado). 13.Resulta de fls. 37, 42, 57 e 58 a utilização de outras viaturas distintas nas datas dadas como provadas sob o ponto 2 da matéria de facto assente. 14.Não resulta da matéria de facto da como provada que o arguido utilizasse o aludido veículo automóvel, por o mesmo assegurar-lhe uma maior mobilidade ou facilidade na concretização das transações, apresentando-se como um meio relevante para que a atividade de tráfico a que se dedicava fosse desenvolvida nos termos em que o foi. 15.O arguido poderia ter desenvolvido a sua atividade com recurso a qualquer viatura, ou mesmo até com recurso a transportes públicos. 16.O produto estupefaciente (de pequenas quantidades) seria facilmente transportável por qualquer outra forma e em qualquer veículo. 17.O produto em causa poderia até ter sido dissimulado na sua roupa. 18.A viatura declarada perdida a favor do Estado não assume qualquer particularidade ou nexo de essencialidade com os factos cometidos, pois qualquer viatura serviria para o efeito, tanto que o arguido usou outras viaturas. 19.A utilização do referido veículo não era essencial para o cometimento do ilícito por parte do arguido, tratando-se apenas de um meio de transporte que seria facilmente substituível. 20.Inexistindo qualquer fator de instrumentalidade, esclarecida pela invocação da causalidade adequada, e atento o princípio da proporcionalidade (consagrado no nº 2, do artigo 18º, da CRP), mal andou o Tribunal a quo ao declarar pedido a favor do Estado o veículo de marca …, modelo …, com a matrícula …, devendo o acórdão recorrido ser revogado nessa parte, ordenando-se a sua devolução à recorrente. 21.Normas violadas: n.º 1 do Artigo 109.º do Código Penal, Artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e n.º 2 do Artigo 18.º da C.R.P. 4. Os recursos foram admitidos, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. 5. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu às motivações de ambos os recursos, pugnando pela manutenção da decisão revidenda. 6. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos, em síntese: O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 e de 24-3- 1999 e ainda Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103). Atenta a configuração do recurso apresentado pelo arguido AA conforme se extrai das respectivas conclusões temos os seguintes pontos de discordância relativamente ao acórdão proferido pelo Colectivo de …. Assim: 1 – Enquadramento jurídico-penal dos factos – tráfico de estupefacientes – artº 21 ou 25 do Dec-Lei 15/93 de 22.01 (1); 2 – A medida da pena; 3 – A suspensão da execução da pena de prisão; 4 – Devolução das quantias monetárias e dos telemóveis apreendidos ao arguido; Enquadramento jurídico-penal dos factos – tráfico de estupefacientes – artº 21 Dispõe o artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”. Por sua vez, estabelece o artigo 25.º (tráfico de menor gravidade), al. a), do mesmo diploma: “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; (…)” As substâncias em causa – cocaína, em todas as situações, exceto na referida no ponto 5 da matéria de facto provada, que respeita à detenção de dois fragmentos de cannabis – incluem-se nas tabelas I-B e I-C, respetivamente, anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93. O artigo 25.º remete, assim, para a previsão do artigo 21.º, com adição de elementos respeitantes à ilicitude, que não à culpa, que atenuam a pena. A atenuação não resulta de um concreto elemento típico que acresça à descrição do tipo fundamental (artigo 21.º), mas sim da verificação de uma diminuição considerável da ilicitude, em função de circunstâncias referidas exemplificativamente – “os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade e a quantidade das substâncias”. Como tem sido sublinhado, o tipo de crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21.º) (2) “é um crime de perigo abstracto, protector de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública”, que se realiza com a colocação em perigo do bem jurídico protegido. “O bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente a saúde pública. (…) Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes” 3). A previsão legal do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, contém a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, de “maneira compreensiva” e de “largo espectro”. Como se tem afirmado, trata-se de um tipo plural, com atividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extração ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os atos têm entre si um denominador comum, que é a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação. Por outra banda, a construção do crime de “tráfico de menor gravidade”, surgido na sequência da revisão da “lei da droga”, de 1993, que levou ao desaparecimento do anterior crime de “tráfico de quantidades diminutas” (cfr. Proposta de Lei n.º 32/VI, que deu origem à Lei n.º 27/92, de 31 de Agosto, que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária à aprovação do Decreto- Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sequência da ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Viena, 1988), assenta na técnica do uso de uma cláusula geral, expressa no conceito de “ilicitude consideravelmente diminuída”, com recurso a circunstâncias exemplificativas relativas aos elementos da ilicitude da acção. A disposição do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 é usada pelo legislador “como uma espécie de válvula de segurança do sistema em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas, no propósito de uma maior maleabilidade na escolha da medida da reacção criminal”, estando a sua aplicação “de certo modo parametrizada mediante a verificação das circunstâncias aí indicadas a título exemplificativo, o que aponta para a necessidade de uma valorização dos factos imputados ao arguido e provados, não podendo deixar de se ter em conta todos os tópicos a que o preceito se refere, aditados de outros, se os houver” (4). A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem sublinhado a necessidade de uma “avaliação global do facto”, nas suas circunstâncias particulares, as quais, consideradas no seu conjunto, devem permitir afirmar, nomeadamente, que as quantidades de estupefacientes, nomeadamente as detidas, vendidas, distribuídas, oferecidas ou proporcionadas a outrem (actividades que se incluem na definição do tipo de crime fundamental, da previsão do artigo 21.º), são reduzidas; que a sua qualidade, aí se incluindo o potencial grau de danosidade para os bens jurídicos protegidos pela incriminação, também deverá ser reduzida; que os meios utilizados, o modo e as circunstâncias da acção deverão ser simples, não planeados, não organizados . A este propósito importa frisar a doutrina do acórdão do S.T.J. de 18.02.2016, em que se consagra: “… a conduta do arguido deve ser qualificada como tráfico de estupefacientes de menor gravidade… alimentando um negócio de bairro, de venda directa aos consumidores de heroína e cocaína, os meios de preparação e a maneira de fazer chegar a droga aos consumidores rudimentares, não atingindo o produto estupefaciente e o dinheiro apreendidos grandes quantidades…”. Vale isto por dizer que a conduta do arguido plasmada nos factos dados como provados encontra-se, de forma segura, nas antípodas do acabado de descrever. Com efeito e desde logo, a (elevada) distância entre o local da prática dos factos/sua zona de actuação (…/…) e a sua residência (…), a(s) quantidades e a qualidade (5) do produto estupefaciente transportada (a) 43 (quarenta e três) embalagens contendo um total de 142,825 gramas de heroína, com grau de pureza de 13,1%, quantidade suficiente para 187 doses diárias; b) 5 (cinco) embalagens contendo um total de 25,666 gramas de cocaína (Éster met.), com grau de pureza de 73.9%, quantidade suficiente para 632 doses diárias e1 (uma) embalagem contendo um total de 9,598 gramas de cocaína (Cloridrato), com grau de pureza de 43.9%, quantidade suficiente para 21 doses diárias) , bem como o dinheiro apreendido levam a que fique afastada, de todo, a pretensão do arguido de ver a sua conduta delituosa abrangida pelo disposto no artº 25 do Dec-Lei 15/93 de 22.01. A quantidade e qualidade de estupefacientes traficadas não são, portanto, reduzidas e as circunstâncias em que estas eram entregues aos seus destinatários, requeriam meios, planeamento e organização adequados, que foram efectivamente assegurados pelo arguido, de modo a satisfazer as necessidades e a procura do seu mercado local, bem distante do seu local de residência. Consequentemente, bem andou o Colectivo de …, não merecendo o douto acórdão qualquer reparo ou censura. A medida da pena O crime da previsão do artigo 21.º (tráfico e outras actividades ilícitas) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos, moldura a partir da qual há que determinar a pena concreta, de acordo com os critérios e factores estabelecidos na Parte Geral do Código Penal (artigo 48.º daquele diploma). Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, o que deve constar da fundamentação (n.º 3). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial. Compulsados os autos, mormente o douto acórdão ora posto em crise verifica- se, no nosso modesto parecer, absoluto respeito pelas normas legais e pelos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência sobre esta matéria. Cumpre referenciar que o arguido / recorrente não pode olvidar, em circunstâncias alguma quer o seu passado criminal e, muito menos, o seu envolvimento com crimes de idêntica natureza. Nessa conformidade, a pena aplicada ao arguido não merece censura ou reparo. Também se entende e defende que com o quadro apresentado pelo arguido e tudo o mais que resulta dos autos não se podia fazer, com um mínimo de segurança, um juízo de prognose favorável, se fosse legalmente possível, a eventual suspensão da pena. Finalmente, o arguido peticiona a devolução do dinheiro apreendido e dos telemóveis. Neste ponto importa respigar aquilo que acima se deixou expresso: “…A quantidade e qualidade de estupefacientes traficadas não são, portanto, reduzidas e as circunstâncias em que estas eram entregues aos seus destinatários, requeriam meios, planeamento e organização adequados, que foram efectivamente assegurados pelo arguido, de modo a satisfazer as necessidades e a procura do seu mercado local, bem distante do seu local de residência…”. Cumpre adiantar que dúvidas não nos restam que o dinheiro apreendido ao arguido era resultado – directo – das suas vendas de produto estupefaciente. Nestas circunstâncias entregar/devolver o dinheiro ao arguido era uma forma, perdoe-se-nos a expressão, de o recompensar pela sua actividade ilícita. Assim sendo, o nosso parecer vai no sentido de ser mantido o sentido do acórdão de … que determinou, e bem, a perda a favor do Estado quer do dinheiro quer do telemóvel apreendido. A sociedade, CC interpõe recurso do acórdão à margem referenciado porquanto não concorda com a declaração de perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula …, de marca …, modelo … Relativamente a este recurso apresentado pela CC adere-se à resposta formulada pela nossa Ex.ma Colega. Cumpre apenas referenciar pela aplicabilidade ao caso concreto o Ac. Relação de Évora de 04.04.2017, relatora Maria Fernanda Palma, no âmbito do processo 7/16.6GIBJA.E1, em cujo sumário consta: I – Em matéria de perda de objectos a favor do Estado, o DL n.º 15/93, de 22-01, contém um regime especial em relação ao regime, geral, contido no artigo 178.º, n.º 7, do CPP; II – Por isso, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de tráfico de droga, p. e p. pelo artigo 21.º do referido DL, em relação à perda a favor do Estado do veículo aprendido no âmbito do processo deverá aplicar-se o regime previsto neste diploma legal; III – O referido veículo deve ser declarado a perdido a favor do Estado por se apresentar como essencial para o desenvolvimento da actividade ilícita, face às distâncias entre as localidades envolvidas no tráfico em causa e a inexistência de uma rede de transportes públicos regulares que as una; Atento tudo o que já atrás se deixou exposto, nomeadamente no que tange ao esforço organizativo levado a cabo pelo arguido para transportar o produto estupefaciente da sua zona de residência (abastecimento) – … para a zona de venda (… /…), a utilização de uma viatura automóvel surge como absolutamente essencial para levar a cabo a sua actividade ilícita. Ao que acresce e muitas vezes não é, no nosso modesto parecer, devidamente sublinhado e valorizado, o veículo automóvel em apreço foi utilizado como “ponto de venda”, conforme decorre do ponto 6 dos factos dados como provados “… Alguns instantes depois, BB saiu do interior da residência sita no n.º … e deslocou-se junto do veículo, entregando ao arguido AA duas notas de dez euros para comprar cocaína …”. Essa utilização do veículo automóvel nesta concreta venda de estupefaciente realça a ligação veículo – cometimento do crime. Nesta conformidade, no nosso modesto parecer, impunha-se a perda a favor do Estado do veículo automóvel referenciado no acórdão. Pelo que sem necessidade de outras considerações, nenhuma censura ou reparo merece a decisão recorrida. Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado pelo arguido AA e a CC e manter o douto acórdão recorrido. 7. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta. 8. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência. Cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO 1. Âmbito do Recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995. No caso em apreço, atendendo às conclusões da respectiva motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes: Recurso interposto pelo arguido AA Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido. Dosimetria da pena aplicada. Verificação dos pressupostos de aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena. Declaração de perda a favor do Estado dos telemóveis e quantias monetárias de 220,00 euros e 3.210,00 euros, apreendidos ao arguido AA. Recurso interposto por “CC” Declaração de perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula …. 2. A Decisão Recorrida O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição): 1. Pelo menos desde Dezembro de 2022 que o arguido AA se dedica à actividade de venda e distribuição de produtos estupefacientes, nomeadamente heroína e cocaína, fornecendo consumidores mediante cobrança de um preço superior ao despendido na compra, como forma de obter proventos para custear o seu sustento e proporcionar melhores condições de vida. 2. Para proceder às entregas, o arguido AA desloca-se com regularidade da área da sua residência, na …, à zona de … e localidades limítrofes, o que faz com recurso a viaturas alugadas, marcando encontros em locais ermos com os seus clientes, de forma a não ser interceptado pelas autoridades policiais, o que aconteceu, entre outras datas, nos dias 27.12.2022, 17.01.2023 e 01.03.2023. 3. No dia 27.12.2022, pelas 20h11m, o arguido AA deslocou-se à localidade de …, mais concretamente junto de um hotel abandonado conhecido por hotel “…”, utilizando a viatura alugada de matrícula …, onde se encontrou com EE e FF e a quem forneceu produto estupefaciente, concretamente cocaína e heroína. 4. No dia 22.06.2023, no período da tarde, o arguido AA, fazendo-se acompanhar do arguido GG, deslocou-se ao …, no veículo com a matrícula …, da marca …, modelo …, a fim de proceder a transacções de produto estupefaciente, concretamente heroína e cocaína. 5. Pelas 19h30m, o veículo em que se deslocava saiu nas portagens de …, acedeu à EN …, no sentido de …, entrando na localidade de …, e seguiu na direcção da Rua …, parando junto ao n.º …. 6. Alguns instantes depois, BB saiu do interior da residência sita no n.º … e deslocou-se junto do veículo, entregando ao arguido AA duas notas de dez euros para comprar cocaína. 7. Nesse momento, os arguidos foram interceptados por agentes da P.S.P. 8. No interior do veículo, o arguido AA transportava: a) 43 (quarenta e três) embalagens contendo um total de 142,825 gramas de heroína, com grau de pureza de 13,1%, quantidade suficiente para 187 doses diárias; b) 5 (cinco) embalagens contendo um total de 25,666 gramas de cocaína (Éster met.), com grau de pureza de 73.9%, quantidade suficiente para 632 doses diárias; c) 1 (uma) embalagem contendo um total de 9,598 gramas de cocaína (Cloridrato), com grau de pureza de 43.9%, quantidade suficiente para 21 doses diárias. 9. O arguido JAA tinha ainda na sua posse: a) Duas notas de € 100,00 (cem euros) do banco central europeu; b) Duas notas de € 10,00 (dez euros) do banco central europeu, que lhe haviam sido entregues por BB; c) Um telemóvel da marca …, modelo …, de cor cinza; d) Um telemóvel da marca …, modelo …. 10. O arguido GG tinha na sua posse: a) Três notas de € 20,00 (vinte euros) do banco central europeu; b) Duas notas de € 10,00 (dez euros) do banco central europeu; c) Uma nota de € 5,00 (cinco euros) do banco central europeu; d) Um telemóvel da marca …, de cor azul. 11. No dia 23.06.2023, pelas 00h20m, no interior da residência, sita na Rua …, n.º …., …, e fruto da actividade delituosa que pratica, o arguido AA detinha: a) Duas balanças de precisão, uma escondida atrás do espelho do quarto do arguido e outra no balde do lixo; b) € 3.210,00 (três mil, duzentos e dez euros) em notas do banco central europeu acondicionadas no interior de uma bolsa no quarto do arguido em cima da tábua de passar a ferro; c) 1 (um) pacote contendo um total de 608,500 gramas de cafeína e paracetamol, utilizada como produto de corte, que se encontrava acondicionada no interior de um saco, debaixo do saco do lixo doméstico. 12. O arguido AA encontra-se empregado no “…”, auferindo um vencimento mensal de € 500,00 (quinhentos euros). 13. O arguido GG encontra-se desempregado, não auferindo qualquer rendimento quer a título de pensão, subsídio, complemento, prestação paga pelo Instituto da Segurança Social. 14. O arguido AA não tem nem nunca teve autorização para deter, preparar, oferecer, vender, colocar à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, qualquer produto estupefaciente. 15. O arguido AA tinha perfeito conhecimento que os produtos que detinha e transportava são considerados, pela sua composição, natureza, característica e efeitos substâncias estupefacientes e, como tal, que toda a actividade relacionada com ele, designadamente, transporte, posse, consumo, oferta ou cedência a qualquer título a terceiros, por ele levada a cabo, lhe estava vedada. 16. O arguido AA quis actuar da forma descrita, com o propósito de obter ganhos monetários com o transporte, distribuição e venda das referidas substâncias, como efectivamente sucedeu. 17. O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. 18. O arguido GG foi condenado, no âmbito do processo n.º 198/21…. do Juiz … do Juízo Local Criminal de …, por acórdão de 14.07.2021, transitado em julgado em 13.01.2022, na pena de prisão de 18 (dezoito) meses, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, relativamente a factos cometidos em 13.07.2021. 19. Em virtude de tal condenação o arguido GG iniciou o cumprimento da pena de prisão em 20.07.2023, após ter sido sujeito à medida de coacção aplicada nos presentes autos de prisão preventiva. 20. O arguido GG foi condenado, no âmbito do processo n.º 468/20…. do Juiz … do Juízo Local Criminal da …, por acórdão de 02.03.2022, transitado em julgado em 26.09.2022, na pena de prisão de 18 (dezoito) meses, pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, relativamente a factos cometidos em 10.09.2020 e 03.02.2021, e um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, do Código Penal, relativamente a factos cometidos a 10.08.2020. Mais se provou relativamente ao arguido AA: 21. À data dos factos residia com a companheira, …, relacionamento iniciado em 2018, que se mantém na actualidade. Viviam em casa arrendada sita em … e encontrava-se em situação de baixa médica. O casal vivia em regime de coabitação com 2 filhas da companheira, de … e … anos de idade, num relacionamento gratificante, não obstante já ter passado por uma crise associada a questões de infidelidade do arguido e ao nascimento das 2 filhas fora do contexto conjugal, entre 2020 a 2021. É natural de …, país onde viveu até aos 10 anos de idade, inserido num agregado de origem que incluía os progenitores e 5 irmãos, sendo o 3º por ordem de nascimento. Os progenitores trabalhavam como comerciantes, possuindo situação económica precária e viriam a separar-se, ambos reconstruindo-se familiarmente. A dinâmica familiar foi marcada pela vinda da mãe para Portugal na procura de melhores condições de vida, quando este contava com 5 anos de idade, ficando aos cuidados do pai e madrasta, de quem o arguido guarda imagem positiva. Possui um total de 11 irmãos, sendo 5 de natureza consanguínea, 4 germanos e 3 uterinos, mantendo um relacionamento amistoso com toda a família, através das redes sociais e contactos presenciais. Os progenitores e familiares de ambos, madrasta e padrasto, eram de condição humilde e trabalhadores. Aos 10 anos vem para Portugal, passando a viver com a mãe e padrasto, que residiam em bairro de construção clandestina e contexto socio-residencial com problemáticas de marginalidade/exclusão social. Retomou a frequência escolar em Portugal e, após 2 retenções no 5º ano de escolaridade, foi encaminhado para o Colégio …, da …, onde concluiu o 9º ano e, simultaneamente, curso de electricista, não havendo problemas de relacionamento interpessoal em contexto escolar. Aos 18 anos foi pai pela 1ª vez, decorrente de uma relação de namoro. Posteriormente viveu em união de facto com …, com quem teve mais 2 filhos, actualmente, com … e … anos de idade, relacionamento que terminou em 2018 e que culminou com processo de violência doméstica por parte do arguido, condenado a pena suspensa. Entre 2020 a 2021 teve mais 2 filhas, de relacionamentos diferentes. Os filhos residem com as respectivas progenitoras, mantendo com todos relacionamentos afectivos/próximos. No plano profissional o arguido começou a trabalhar por volta dos 19 anos, em regime de colaboração num café explorado pela mãe, no mesmo local da sua residência, à data. Regista um percurso caracterizado por alguma precariedade e intermitência, onde se assinalam períodos de trabalho para várias empresas na distribuição de publicidade, construção civil, electricista, aprovisionamento e estafeta em regime de contratos com termo. No EP mantém comportamento adequado às regras e normas institucionais sem registos transgressivos e não possui ocupação estruturada. Conta com apoio familiar e recebe visitas da família e amigos. 22. O arguido AA sofreu as seguintes condenações: i) Por sentença transitada em julgado no dia 20.08.2010, no âmbito do proc. n.º 627/10…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de um crime de injúria agravada, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução na sua execução pelo período de um ano e numa pena de multa, por factos praticados em 25.04.2010. As penas foram declaradas extintas. ii) Por acórdão transitado em julgado no dia 05.11.2012, no âmbito do proc. n.º 850/11…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, numa pena de 4 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova, por factos praticados em 13.07.2011. A pena foi declarada extinta. iii) Por sentença transitada em julgado no dia 09.05.2013, no âmbito do proc. n.º 425/08…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de roubo, numa pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, por factos praticados em 13.03.2008. A pena foi declarada extinta. iv) Por sentença transitada em julgado no dia 02.05.2013, no âmbito do proc. n.º 368/13…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 5, por factos praticados em 24.03.2013. A pena foi declarada extinta. v) Por sentença transitada em julgado no dia 30.09.2013, no âmbito do proc. n.º 880/13…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 6, por factos praticados em 16.07.2013. A pena foi declarada extinta. vi) Por sentença transitada em julgado no dia 20.09.2018, no âmbito do proc. n.º 35/17…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução tráfico de menor gravidade na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova, por factos praticados em 31.03.2017. A pena foi declarada extinta. vii) Por sentença transitada em julgado no dia 17.10.2022, no âmbito do proc. n.º 932/21…. foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova e ainda na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, por igual período de tempo, por factos praticados em 21.08.2021. Mais se provou relativamente ao arguido GG: 23. GG encontra-se em cumprimento da pena de 24 meses de prisão, no Estabelecimento Prisional de …, no qual havia dado entrada em 23 de Junho do ano transacto, à ordem dos presentes autos. À data dos factos GG residia com a companheira, …, em …, …, habitação propriedade desta. Contudo, e com alguma frequência, permanecia junto do agregado da progenitora, viúva há cerca de 9 anos, a qual reside na …, …, em bairro, inicialmente de construção clandestina, actualmente legalizada, em imóvel de construção familiar, no qual, e contiguo à habitação paterna, o arguido também possui habitação. O conjunto familiar de origem, progenitora e quatro irmãos, demonstram-se solidários e apoiantes do arguido, sendo o mesmo acolhido após alguns períodos de reclusão e, anteriormente, após cumprimento de medidas tutelares educativas, de internamento em Centros Educativos. Não lhe são conhecidas ocupações laborais de carácter regular. Durante período em que se manteve em liberdade condicional, de Maio de 2019 a Abril de 2020, manteve ocupação laboral no sector da construção civil e na prestação de serviços de lavagem de automóveis, sem vinculação contratual. Trabalhado, por último, com um irmão num bar, na zona de residência, e, como ajudante de motorista, num período relativamente curto, na …. Anteriormente foi praticante federado de futsal. O segundo de cinco filhos, por ordem de nascimento, de um casal … emigrante, o arguido cresceu num bairro de construção clandestina, caracterizado pela precariedade das condições ambientais e por um clima de marginalidade e exclusão social, no qual o respectivo processo de socialização foi fortemente influenciado pela convivialidade de rua, num meio social degradado e contexto familiar pouco contentor, em face da absorção laboral dos progenitores, a braços com a subsistência da família. Possui o 2.º Ciclo do Ensino Básico, pese embora tivesse efectuado a frequência do 3.º ciclo e lhe tivessem sido facultadas oportunidades de obtenção desse nível de ensino, às quais não deu continuidade, tanto por desmotivação como pelos problemas comportamentais e vinculação a grupos de pares de referências marginais, decorrendo desde idade precoce, o seu contacto com o sistema de justiça. Manteve uma curta relação afectiva, durante um dos períodos em que esteve a cumprir pena de prisão, da qual veio a nascer …, de … anos de idade, o seu filho mais velho, que na actualidade está a residir com a respectiva progenitora em …. O relacionamento afectivo que mantém com …, há cerca de 14 anos, atravessa fase menos positiva. Desta união tem uma filha, …, que perfaz, em Agosto, … anos de idade. Não lhe são conhecidos consumos aditivos relativamente a substâncias estupefacientes ou ao álcool. O arguido HH não tem antecedentes criminais. 24. Além das já referidas, o arguido GG foi condenado pela prática de crimes de furto qualificado, furto de uso de veículo, condução perigosa, condução sem habilitação legal, ofensa à integridade física simples, tráfico de estupefacientes e roubo. Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição): - O arguido AA vendia estupefacientes a quem pretendia adquirir maiores quantidades dessas substâncias para posterior revenda; - Os € 800,00 apreendidos na casa do arguido AA eram produto da sua actividade de tráfico. - Desde data não concretamente apurada, o arguido GG passou a exercer em comunhão de esforços com o arguido AA a actividade de tráfico de produtos estupefacientes, acompanhando-o nas referidas entregas, procedendo a transacções de tais produtos a consumidores ou a outros traficantes, sendo o produto das vendas repartido por ambos de forma não apurada. - O arguido GG agiu em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano delineado por AA. - Não obstante as condenações sofridas o arguido GG não interiorizou a gravidade e o desvalor jurídico dos actos por si praticados, e bem assim a necessidade de actuar de acordo com o Direito, o que apenas ao mesmo é imputável. Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição): Saliente-se, em primeiro lugar, que toda a prova produzida na audiência de julgamento se encontra gravada. Essa gravação, permitindo a ulterior reprodução de toda a referida prova e, assim, um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, legitima uma mais sucinta fundamentação desta convicção e que nos concentremos nos aspectos mais importantes em matéria de prova, tornando desnecessário tudo o que vá além disso. A convicção do Tribunal resultou assim da conjugação das declarações produzidas em audiência com a prova documental/pericial junta aos autos. Concretizando, considerou-se desde logo: i. Auto de notícia, de fls. 3 a 8; ii. Autos de apreensão, de fls. 9 a 12; iii. Cópia, de fls. 13; iv. Auto de busca e apreensão, de fls. 23 a 25; v. Testes rápidos, de fls. 26 a 28; vi. Reportagem fotográfica, de fs. 29 a 36; vii. Cópias dos relatórios de vigilância extraídas do processo de inquérito n.º 23/22.9PEBJA, de fls. 37 a 58; viii. Aditamento n.º 2, de fls. 141; ix. Cópias dos contratos celebrados com a rent-a-car, de fls. 302 a 309; x. Autos de exame, fls. 323 e 340; xi. Relatório de exame pericial n.º 202306053-BTX, de fls. 235 a 236. Ambos os arguidos prestaram declarações. O arguido AA admitiu, no essencial, a prática dos factos, negando apenas a venda a outros fornecedores e ainda que as quantias monetárias apreendidas fossem produto daquela actividade delituosa. Relativamente ao arguido GG afirmou que nunca actuou conjuntamente com ele, sendo que no dia em que foram interceptados, aquele tinha-se limitado a acompanhá-lo, desconhecendo qual a finalidade da deslocação. O arguido GG confirmou a versão apresentada pelo co-arguido, negando ter tido qualquer tipo de intervenção na actividade de tráfico, desconhecendo a finalidade daquela deslocação ao …. Embora esta versão suscite estranheza ao Tribunal – sem lhe ter sido dada qualquer explicação quanto aos motivos, acedeu a efectuar a viagem – o certo é que nenhuma prova foi produzida no sentido de a infirmar – o agente da PSP II apenas viu o arguido no momento da detenção e o único consumidor inquirido (BB) declarou nunca o ter visto. Acresce que o arguido nada tinha na sua posse que permitisse concluir que o mesmo actuava conjuntamente com o co-arguido AA e a droga apreendida na viatura não se encontrava visível. Donde, ao Tribunal não restou senão considerar como não provada a intervenção do arguido na actividade de venda de estupefacientes. Quanto à dimensão da actividade do arguido AA, não foi feita prova suficiente para afastar a versão dele de que não fornecia outros vendedores. É que, apesar de o mesmo ter admitido vender estupefacientes a EE, condenada por tráfico de estupefacientes no âmbito de um outro processo que correu termos neste Tribunal, não se demonstrou que o arguido tivesse conhecimento de que a mesma se dedicasse àquela actividade, até porque, como o próprio referiu e é do conhecimento funcional deste Tribunal, as quantidades por ela adquiridas não eram expressivas, não permitindo a conclusão de que se destinavam à revenda a terceiros. Relativamente às quantias monetárias apreendidas, o Tribunal aceitou a versão do arguido relativamente à quantia de € 800,00, que se encontrava guardada numa caixa no interior da mesa de cabeceira, de que correspondiam às poupanças da sua companheira JJ, o que foi confirmado por esta. Com efeito, atendendo a que se trata de uma quantia não muito elevada e à forma como se encontrava acondicionada no interior da mesa de cabeceira, é possível crer que se tratava efectivamente do “mealheiro” da companheira do arguido, onde guardava as pequenas quantias que conseguia auferir nas actividades profissionais que exercia. Já quanto ao restante, a versão apresentada por eles de que a quantia de € 3.210,00 teria sido recebida por aquela no Verão anterior à detenção do arguido, quando se deslocou para … e trabalhou um mês, e que teria como finalidade a compra de uma viagem para … no Natal, não se mostra verosímil. Em primeiro lugar, importa referir que o arguido e o seu agregado familiar demonstram uma situação económica modesta. Assim sendo, não é crível que mantivessem tal quantia (a que acresce os € 800 encontrado na mesinha de cabeceira e ainda a quantia apreendida na posse do arguido), sem necessidade de a ela recorreram para os gastos normais do dia-a-dia. Por outro lado, a quantia em causa (bastante elevada) não se encontrava acondicionada num sítio mais recôndito, oculto (como estavam os € 800) e protegido de eventuais subtracções, estava sim em cima da tábua de passar a ferro, no quarto, numa bolsa do arguido, de forma a possibilitar o seu fácil acesso a este. A explicação do arguido e da sua companheira de que teria sido ela que lho tinha entregue para ir à agência de viagens comprar as passagens, daí se encontrar naquela bolsa e naquele local, não colhe. Se assim fosse e sabendo o arguido que se iria deslocar ao …. no final do dia para vender estupefacientes (pelo que não teria possibilidade de ir à referida agência) não deixaria uma tal quantia, acondicionada daquela forma e naquele local. A única explicação para tal é que efectivamente aquela bolsa era utilizada pelo arguido para guardar os proventos da sua actividade (sendo a elevada quantia compatível com a dimensão da actividade, atenta a quantidade de droga apreendida) e, como tal, estava num local acessível, onde o mesmo iria guardar os lucros da venda daquela noite, o que só não aconteceu porque foi detido. Igual conclusão a retirar quanto às notas apreendidas na posse do arguido aquando da detenção. Quanto à intenção do arguido, a mesma extrai-se dos factos objectivos demonstrados, sendo do conhecimento geral a ilicitude envolvendo qualquer tipo de actividade relacionada com a aquisição, detenção, venda, cedência de produtos estupefacientes. Considerou-se ainda o teor dos CRC´s bem como os relatórios sociais juntos aos autos. Quanto aos factos não provados, o decidido funda-se na circunstância de não ter sido feita prova suficiente acerca da sua verificação, nos termos descritos. Apreciemos. Recurso interposto pelo arguido AA Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido O recurso versa sobre matéria de direito, não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e, posto que se não vislumbra qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, nem nulidade alguma de conhecimento oficioso, cumpre considerar, como se considera, definitivamente fixada a matéria de facto constante do acórdão sob recurso. O arguido começa por se insurgir contra a subsunção jurídica efectuada pelo tribunal a quo, por os factos dados como provados não configurarem, em seu entender, a prática do crime p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, antes se integram na previsão do artigo 25º, alínea a), com referência ao artigo 21º mencionado. Analisemos então. Os bens jurídicos protegidos com a incriminação pelo tráfico de estupefacientes são, como se lê no Ac. do STJ de 09/12/2010, Proc. nº 59/07.0PEBRG.S2, disponível em www.dgsi.pt, “a protecção da saúde individual e a liberdade individual do consumidor, no plano do interesse particular da sua prática. Já no aspecto público, o tráfico de estupefacientes repercute-se na economia do Estado, na medida em que propicia economias paralelas, representando um negócio temível e comunitariamente repugnante, fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor, e com particular afectação das camadas mais jovens do tecido social e na maior parte dos casos, a desgraça total do seu agregado familiar, censurável em alto grau no plano ético-jurídico, pelos custos sociais a que conduz, relacionados com o absentismo laboral, contracção de doenças transmissíveis e destruição progressiva da pessoa humana”. O artigo 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, contém a matriz do crime de tráfico de estupefacientes, caracterizada por uma estrutura que abrange uma tipicidade de comportamentos em que a actividade ilícita se pode traduzir. A existência do tipo legal do artigo 25º, do mesmo diploma, prende-se com a necessidade de evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas, o que poderia acontecer se ficassem abrangidas na previsão genérica do artigo 21º, sendo erigido como elemento justificativo deste crime a considerável diminuição da ilicitude do facto, traduzida, como se enuncia a título exemplificativo, nos meios utilizados, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade ou quantidade das plantas ou substâncias. Ou seja, para a sua aplicação não se exige apenas uma diminuição da ilicitude na actuação criminosa, mas que se apresente ela como consideravelmente diminuída, sendo que esta conclusão terá de resultar de uma valoração global dos factos, ponderando-se, não só as mencionadas circunstâncias, mas ainda outras que apontem para aquela considerável diminuição, como a intenção lucrativa, o período mais ou menos dilatado da duração da actividade, o tipo de actos concretamente praticados ou a existência de estrutura organizativa. Do quadro factual apurado resulta que o arguido em 27/12/2022 forneceu heroína e cocaína a EE e FF e em 22/06/2023 recebeu de BB a quantia de 20,00 euros para aquisição de cocaína, quando foi interceptado pelas autoridades policiais; nesse dia e dia seguinte detinha 142,825 gramas de heroína, com grau de pureza de 13,1%, (dividida por quarenta e três embalagens), quantidade suficiente para 187 doses diárias; 25,666 gramas de cocaína (Éster met.), com grau de pureza de 73,9% (dividida por cinco embalagens), quantidade suficiente para 632 doses diárias e ainda 9,598 gramas de cocaína (Cloridrato), com grau de pureza de 43,9% (em uma embalagem), quantidade suficiente para 21 doses diárias, que destinava à entrega a terceiros, com o escopo de obter proventos monetários. Ora, no que diz respeito à qualidade da substância, trata-se de heroína e cocaína, que são consideradas como “drogas duras” – pese embora os mais recentes estudos científicos coloquem cada vez mais em causa, quanto aos efeitos para a saúde, a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”, certo é que o legislador de 1993 pretendeu considerar a sua pertinência - o que, nesta perspectiva, revela já um efeito de não diminuição da ilicitude. E, vero é, a quantidade global dos produtos detida pelo arguido mostra-se já bem significativa. Cumpre ainda atender a que a actividade perdurou, pelo menos, pelo período de seis meses, com a dita diversidade de produtos e se apresenta deslocalizada geograficamente em relação à área da respectiva residência (em …, como se dá como provado nos pontos 2 e 11 e não em …, como por lapso consta do ponto 21 dos factos provados, erro que, aliás, deriva do que consta do relatório social junto aos autos aos 12/03/2024) e que para a mesma utilizava veículos automóveis alugados, assim revelando já cuidadosa planificação e alguma sofisticação e mesmo o forte empenho em dificultar e mesmo iludir a acção das autoridades policiais. Assim, considerado este circunstancialismo, cumpre concluir que não se verificam circunstâncias excepcionais que diminuam, em grau considerável – acentuado - a ilicitude dos factos, antes as circunstâncias que provadas se encontram apontam para uma ilicitude normal para o tipo base de tráfico. Estão também provados os elementos subjectivos do tipo de ilícito em causa, tendo agido ainda deliberada, livre e conscientemente. Termos em que, a conduta do arguido integra a prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 e não o do artigo 25º, alínea a), pelo que a decisão da 1ª instância se mostra isenta de censura neste segmento. Dosimetria da pena aplicada Inconformado se encontra igualmente o arguido com a pena em que foi condenado, considerando-a excessiva face à sua culpa e inserção social, familiar e laboral. Pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência às Tabela I- A e I-B anexas, foi encontrada pelo tribunal recorrido a pena de 6 anos de prisão, propondo o arguido a pena de 4 anos de prisão (conclusão 33 da motivação de recurso). Ao crime em causa corresponde pena de 4 a 12 anos de prisão. Conforme resulta do estabelecido no artigo 40º, do Código Penal, toda a pena tem como finalidades “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” – nº 1, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” – nº 2. Nos termos do artigo 71º, do Código Penal, para a determinação da medida da pena cumpre atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele. De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor. A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade. Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs. Ou, dito de outra forma, opera através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa - Claus Roxin, Derecho Penal-Parte Geral, I, Madrid, Civitas, 1997, pág. 86. Assim, do exposto resulta que a pena concreta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente. Destarte, daquela primeira aproximação decorrem duas regras basilares: a primeira, explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que se impõe ter em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido no seio da comunidade e da necessidade desta dele se defender, mantendo a confiança na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada. Percorrendo o acórdão recorrido, como enunciado se mostra, verifica-se que, para a determinação da medida concreta da pena foi ponderado, mondadas as referências legais, jurisprudenciais e doutrinárias: - As circunstâncias da acção que, dentro do quadro de tráfico comum, permitem considerar a ilicitude do facto como média baixa, tendo em consideração a natureza do produto, os meios empregues e a quantidade de droga apreendida; - Agiu com dolo directo e intenso; - A sua contribuição para a descoberta da verdade; - Os seus antecedentes criminais, inclusivamente por factos de idêntica natureza; - O seu enquadramento familiar; Tudo visto e ponderado, a pena terá de se situar num patamar médio baixo por referência à moldura abstracta, pelo que será o arguido condenado numa pena de seis anos de prisão. Face ao que supra ficou transcrito, é patente que a decisão revidenda levou em linha de conta os factores relevantes para a determinação concreta da pena individual, nos termos estabelecidos no artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, em termos que não merece crítica, atentos os factos que provados se encontram. Importa apenas realçar que, ainda que tenha o recorrente confessado parcialmente os factos imputados, não revelou interiorização do desvalor da sua conduta delituosa, o que contra si fortemente milita, não se podendo deixar de ter também em consideração que averba condenações por decisões transitadas em julgado em 20/08/2010, 05/11/2012, 02/05/2013, 09/05/2013, 30/09/2013, 20/09/2018 (esta pelo cometimento de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, tendo sido condenado na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período) e 17/10/2022 (pela prática de crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período). Pelo exposto, efectuado juízo de ponderação sobre a culpa, como medida da pena e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71º, do Código Penal, não se mostra que a pena em que foi condenado (não muito afastada do limite mínimo) extravase a medida da respectiva culpa e também não ultrapassa os limites dentro dos quais a justiça relativa havia de ser encontrada, não se evidenciando como desajustada por excesso. Em conclusão, inexiste fundamento para a alterar. Verificação dos pressupostos de aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena Pretende também o recorrente a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena. Pressuposto formal da aplicação desta pena de substituição é o de a sua medida não ser superior a 5 anos – artigo 50, nº 1, do Código Ora, o arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão, pelo que preenchido não está esse pressuposto, de onde resulta a sua inadmissibilidade. Declaração de perda a favor do Estado dos telemóveis e quantias monetárias de 220,00 euros e 3.210,00 euros, apreendidos ao arguido AA O tribunal recorrido declarou perdidos a favor do Estado, entre o mais, os telemóveis e as quantias monetárias de 220,00 e 3.210,00 euros, apreendidos ao arguido AA, por entender que os telemóveis são objectos através dos quais eram efectuados os contactos com os consumidores e quanto às aludidas quantias por serem produto da actividade de tráfico, ao abrigo do estabelecido no artigo 35º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01. Pois bem. De acordo com a referida norma legal chamada à colação na decisão revidenda, “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”. Ora, da factualidade que foi dada como assente pelo tribunal recorrido não consta facto algum relativo a ser a quantia de 200,00 euros apreendida (duas notas de 100,00 euros do Banco Central Europeu) produto da actividade de tráfico de estupefacientes (ao contrário do que acontece com a quantia de 20,00 euros – duas notas de 10,00 euros - que se relata terem sido entregues por BB ao arguido para a aquisição de cocaína). Daí que, a sua perda a favor do Estado não tenha sustentação legal, pelo que deve ser devolvida. Já no que tange à quantia de 3.210,00 euros, que se encontrava no interior da residência do recorrente na …, provado está que é fruto da actividade delituosa que pratica e vero é que esta materialidade não foi impugnada. Sempre se dirá, ainda assim, para sossego das consciências, que no acórdão sob censura cabalmente se elucidam as razões dessa conclusão fáctica, como segue: Já quanto ao restante, a versão apresentada por eles de que a quantia de € 3.210,00 teria sido recebida por aquela no Verão anterior à detenção do arguido, quando se deslocou para … e trabalhou um mês, e que teria como finalidade a compra de uma viagem para … no Natal, não se mostra verosímil. Em primeiro lugar, importa referir que o arguido e o seu agregado familiar demonstram uma situação económica modesta. Assim sendo, não é crível que mantivessem tal quantia (a que acresce os € 800 encontrado na mesinha de cabeceira e ainda a quantia apreendida na posse do arguido), sem necessidade de a ela recorreram para os gastos normais do dia-a-dia. Por outro lado, a quantia em causa (bastante elevada) não se encontrava acondicionada num sítio mais recôndito, oculto (como estavam os € 800) e protegido de eventuais subtracções, estava sim em cima da tábua de passar a ferro, no quarto, numa bolsa do arguido, de forma a possibilitar o seu fácil acesso a este. A explicação do arguido e da sua companheira de que teria sido ela que lho tinha entregue para ir à agência de viagens comprar as passagens, daí se encontrar naquela bolsa e naquele local, não colhe. Se assim fosse e sabendo o arguido que se iria deslocar ao … no final do dia para vender estupefacientes (pelo que não teria possibilidade de ir à referida agência) não deixaria uma tal quantia, acondicionada daquela forma e naquele local. A única explicação para tal é que efectivamente aquela bolsa era utilizada pelo arguido para guardar os proventos da sua actividade (sendo a elevada quantia compatível com a dimensão da actividade, atenta a quantidade de droga apreendida) e, como tal, estava num local acessível, onde o mesmo iria guardar os lucros da venda daquela noite, o que só não aconteceu porque foi detido. Destarte, não merece censura ter sido essa quantia declarada perdida a favor do Estado. Já não é assim no que diz respeito aos dois telemóveis apreendidos (marca “…”, modelo “…” e marca “…”, modelo “…”, respectivamente), pois também quanto a eles não consta qualquer facto provado na decisão revidenda que os conexione com a actividade criminosa do arguido, desde logo, que fossem esses concretos aparelhos utilizados por este para efectuar os contactos com os consumidores. Assim, terão de lhe ser devolvidos, por não ter base legal a declaração de perda. Recurso interposto por “CC.” Declaração de perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula … O tribunal a quo declarou a perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula …, ao abrigo do consagrado no artigo 35º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, fundando-se em que se trata de objecto que serviu à prática do crime, de modo essencial, sendo nele que o arguido se fez transportar desde a sua residência na … até ao local da venda dos produtos estupefacientes. Contra esta decisão está a recorrente “CC”, que afirma ser proprietária da viatura e desconhecer a actividade delituosa do arguido e mesmo que estava a ser por este utilizada. Analisemos. Que o veículo em causa era alugado, resulta da conjugação da factualidade dada como provada vertida sob os pontos 2 e 4. E a ora recorrente, após ter sido deduzida acusação, mas em data anterior ao seu recebimento, por requerimento de 22/12/2023 dirigido ao Mmº Juiz, em que invoca o disposto no artigo 178º, nº 7, do CPP, referiu ter a qualidade de proprietária do veículo e ser “totalmente alheia ao processo criminal em questão”, requerendo lhe fosse o mesmo devolvido. Sobre este requerimento não incidiu qualquer despacho. No entanto, estando em causa um bem apreendido no âmbito de processo de tráfico de droga, o que era do conhecimento da então requerente, as normas aplicáveis eram as do artigo 36º-A, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, normas especiais face às ínsitas no CPP e concretamente quanto à em que o requerimento se estriba. De acordo com o nº 1, desse artigo 36º-A, “o terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no presente diploma pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova.” Ora, mesmo entendendo-se que seria de aproveitar o requerimento referido para este efeito (o que imporia se desse cumprimento ao consagrado no nº 3, do artigo 36º-A), vero é que a recorrente não reagiu à omissão de pronúncia do tribunal sobre a questão, (tendo até a sua legal representante sido notificada para a audiência de julgamento, como testemunha do Ministério Público, não tendo, porém, prestado depoimento, por ter sido prescindido), omissão que integra uma irregularidade e, por isso, segue o regime estabelecido no artigo 123º, nº 1, do CPP - não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do mesmo – pelo que se mostra sanada. Aduz, também a recorrente que a utilização do veículo não se revestiu de carácter essencial à consumação do crime. A propósito, o Ac. do STJ de 13/09/2023, Proc. nº 48/20.9GBBCL.S1, consultável em www.dgsi.pt, dá-nos a conhecer a sua adesão ao entendimento vertido no Ac. da Relação do Porto de 12/10/2022, Proc. nº 13630/17.2T9PRT.P1, que é o seguinte: “(…) a jurisprudência vem limitando, com razoabilidade, o possível alcance da alteração efetuada, apelando a critérios de causalidade e proporcionalidade. De acordo com uma orientação jurisprudencial constante, para a declaração de perda a favor do Estado, é necessário que o crime não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante) sem o objeto em causa. É necessário, por outro lado (também de acordo com alguma jurisprudência), que o malefício correspondente à perda represente uma medida justa e proporcional à gravidade do crime. Nesta linha, há que apurar do carácter essencial, ou não essencial, do objeto em causa para a prática do crime. Para a declaração de perda, há que concluir que o crime não seria praticado sem a utilização desse objeto. A utilização do objeto seria, assim, condição sine qua non da prática do crime. Alguma jurisprudência alude, também, a situações em que o crime não seria praticado nos moldes em que o foi, mas seria praticado de outra forma. Importa, porém, restringir o alcance desta afirmação. A diferença entre a forma como crime é praticado com ou sem o objeto há de ser significativa. Se o crime poderia ser praticado de outra forma sem a utilização do objeto e se essa prática não se tornava significativamente mais fácil sem essa utilização, não pode dizer-se que o objeto é instrumento essencial. Por exemplo, se a droga poderia, sem particular esforço e sem prejuízo para a dimensão do negócio, ser transportada a pé, não se justifica a perda do veículo em que ela possa ter sido, casualmente, transportada. Há que distinguir a utilização episódica ou ocasional da utilização regular. Se o próprio crime não se traduzir numa atuação isolada, mas consistir numa atuação reiterada e prolongada no tempo, não pode dizer-se que um veículo utilizado de forma ocasional é instrumento essencial para a prática do crime. Em regra, um veículo será instrumento essencial quando for utilizado para transportar droga que, pelas suas dimensões, não poderia ser transportada à mão ou num objeto de menores dimensões. Quando a droga poderia ser transportada desta outra forma, o veículo não será, quanto a este aspeto, essencial. Poderá sê-lo por transportar não tanto a droga, mas o agente, ou agentes, do crime. Nesta perspetiva, será essencial se esse transporte tornar possível a venda de estupefacientes com as dimensões e alcance de que esta se reveste em concreto. Ora, a factualidade provada (…) permite concluir que a utilização do veículo em apreço era frequente e regular, não ocasional. Por outro lado, essa utilização era necessária (essencial) para dar à colaboração do ora recorrente na venda de estupefacientes aquela dimensão e aquele alcance de que essa venda efetivamente se revestiu. Sem esse veículo e com recurso a outros meios de transporte (como o táxi ou outros transportes públicos), é óbvio que essa atividade muito menor dimensão e alcance teria. A jurisprudência – como vimos – também tem feito apelo a um critério de proporcionalidade como orientador da decisão de perda de bens instrumento do crime de tráfico de estupefacientes. Na verdade, e apesar do propósito do legislador de reforço da reação penal relativa ao tráfico de estupefacientes que subjaz à alteração da redação do artigo 35º em apreço, há de entender-se imperioso, à luz dos princípios gerais do Direito Penal, o respeito pelo princípio da proporcionalidade entre a gravidade do crime e a gravidade da reação penal, nesta se incluindo não só a pena principal, como todas as penas, sanções acessórias e consequências da condenação. Não fará sentido que a gravidade das consequências da perda de instrumentos do crime supere a gravidade do crime, ou a gravidade da própria pena. Mas também não pode ignorar-se, nesse juízo de apreciação de gravidade, a severidade com que o legislador encara o crime de tráfico de estupefacientes em geral. A este respeito, considerando que o arguido e recorrente foi condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão. não suscita dúvidas a proporcionalidade entre a gravidade deste crime e a perda do veículo em apreço” – fim de citação. Este é o posicionamento também por nós sufragado. E, retornando ao caso dos autos e ao que provado se encontra, resulta que a viatura declarada perdida a favor do Estado era alugada, tendo sido utilizada pelo arguido para se deslocar apenas uma vez, em 22/06/2023, à localidade de …. Em outras deslocações à zona de … e localidades limítrofes utilizou diferentes veículos, também alugados, pelo que se tratou de uma utilização episódica e não frequente a da viatura matrícula …. Também a quantidade de produtos estupefacientes de que o arguido era portador nesse dia não implicava a necessidade imperiosa do seu transporte naquele veículo, podendo facilmente sê-lo até em veículo motorizado de duas rodas, em táxi, outro de aluguer ou pelo recurso a plataformas de conexão de usuários a motoristas parceiros. De onde, se concluir não ter sido o veículo de matrícula … essencial para a actividade ilícita desenvolvida pelo arguido. Destarte, cumpre considerar não estarem verificados os necessários pressupostos da declaração de perda do mencionado veículo automóvel, pelo que deve o mesmo ser restituído à recorrente, sua proprietária – cfr. fls. 246/247. III - DISPOSITIVO Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: A) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e revogar a decisão recorrida no segmento em que declara perdidos a favor do Estado os telemóveis das marcas “…”, modelo “…” e “…”, modelo “…”, bem como a quantia de duzentos euros, determinando-se agora que lhe sejam restituídos aqueles e esta; No mais, confirma-se a decisão recorrida. Sem tributação. B) Conceder provimento ao recurso interposto por “CC” e revogar a decisão recorrida no segmento em que declara a perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula …, determinando-se seja restituído à sua proprietária, a recorrente. Sem tributação. Évora, 10 de Setembro de 2024 (Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário) ________________________________________ (Artur Vargues) _______________________________________ (Anabela Simões Cardoso) _______________________________________ (Laura Goulart Maurício .............................................................................................................. 1 Sobre esta matéria encontram-se numerosos acórdãos que merecem referência. Porém, correndo o risco de ser injusto saliento os seguintes: Ac. do S.T.J de de 23.11.2011, relator Santos Carvalho, 18.02.2016, relator Souto Moura e 19.01.2022, relator Lopes da Mota 2 Ac. S.T.J.de 02.10.2014, proc. 45/12.8SWSLB.S1, www.dgsi.pt 3 Lourenço Martins, Droga e Direito, Aequitas/Editorial Notícias, 1994, p. 122. 4 Neste sentido, Ac. S.T.J. de 02.06.1999, relator Lourenço Martins 5 Heroína e cocaína, drogas ditas “duras” por excelência e que geram forte dependência física e psíquica. |