Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
167/24.2T8ORM-A.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
ESCUSA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - não é abusivo, por proibição da conduta contraditória em face da convicção criada, o exercício do direito a escusa do cargo de cabeça-de-casal, contando já a Requerente 84 anos de idade, tendo decorrido cerca de um ano após ter assumido o compromisso do desempenho no cargo no processo de inventário;
- o deferimento do pedido de escusa não depende do cumprimento de deveres processuais em falta pela cabeça-de-casal no processo de inventário.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Interessada: (…)
Recorrida / Interessada: (…)
Inventariado: (…)

No âmbito do presente inventário, foi nomeada cabeça-de-casal a interessada (…), o cônjuge sobrevivo.
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, apresentou-se a Cabeça-de-casal a deduzir o incidente de escusa do cargo, invocando o seguinte:
- conta com mais de 70 anos de idade, pois nasceu a 16/02/1941;
- enfrenta limitações de mobilidade que dificultam as deslocações necessárias ao exercício do cargo;
- tais limitações tornam penoso e inviável o cumprimento dos deveres inerentes ao cargo.
Em resposta ao incidente, a Interessada (…) pugnou pelo respetivo indeferimento, sustentando ainda que o deferimento só pode ocorrer após a Cabeça-de-casal entregar o Modelo 1 do Imposto de Selo, responder pelas consequências do incumprimento e juntar as certidões negativas solicitadas pelo Tribunal.
Para tanto, invocou o seguinte:
- a Cabeça-de casal aceitou o cargo para que foi nomeada quando contava já 83 anos de idade, e nenhum impedimento invocou;
- a Cabeça-de-casal constituiu mandatários a quem atribuiu poderes para o exercício de funções relevantes para o cargo;
- a Cabeça-de-casal compareceu pelo seu próprio pé na audiência de inquirição de testemunhas;
- a Cabeça-de-casal não participou o óbito do Inventariado aos serviços tributários e mantém em seu poder a documentação relativa ao acervo hereditário;
- é, por isso, abusivo o exercício do direito a escusa, na modalidade venire contra factum proprium.

II – O Objeto do Recurso
O Incidente foi decidido nos seguintes termos:
«A cabeça de casal nos presentes autos, (…), veio deduzir o incidente de escusa através do seu requerimento aqui junto. Vem invocar como outro fundamento do seu pedido de escusa a sua idade avançada, na medida em que tem mais de 70 anos.
Cumpre decidir.
Resulta dos elementos juntos autos, designadamente do seu cartão de cidadão, que a cabeça de casal terá atualmente a idade de 84 anos.
Deste modo, existirá igualmente no caso concreto o fundamento para o cabeça de casal pedir escusa para o exercício do cargo previsto no artigo 2085.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, ou seja o facto de ter mais de 70 anos de idade.
Em conformidade, defere-se o pedido de escusa da cabeça-de-casal, (…), dispensando-se o mesmo do exercício do cargo.»

Inconformada, a Interessada (…) apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que indefira o pedido de escusa do exercício do cargo de Cabeça-de-casal ou, se assim não for entendido, que imponha que o deferimento do pedido de escusa só possa ocorrer após o cumprimento, pela Cabeça-de-casal, das obrigações de entrega do Modelo 1 do Imposto de Selo, respondendo pelas consequências do respetivo incumprimento, e após juntar aos autos as certidões negativas pedidas pelo Tribunal. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«A) Dos Factos relevantes para a apreciação do thema decidendum
1. Para a apreciação e boa decisão do thema decidendum do presente recurso, a ora Apelante sistematizou os factos relevantes para o efeito, os quais se encontram aduzidos nas págs. 6 a 8 das presentes alegações e estão devidamente documentados no seio dos presentes autos.
B) De Jure Constituto
2. A aceitação do cabecelato por parte da Recorrida com uma idade [bem] superior a 70 (setenta) anos, sem quaisquer reservas, bem como a constituição de mandatários com poderes especiais para a prática de atos para o efeito; o efetivo exercício das respetivas funções durante um período prolongado de tempo, através da prática de uma série de atos; a comparência pessoal no Tribunal; todos estes factos [i.e. comportamentos concludentes] geraram nos demais Interessados a legítima expectativa de que assumiria as funções do cargo ao longo do processo [a não ser que surgisse alguma justificação devidamente fundamentada].
3. É manifesto que, conforme flui dos autos, a invocação da idade por parte da Apelada, como fundamento de escusa, apenas visa furtar-se ao cumprimento de obrigações mais exigentes, nomeadamente a junção de certidões negativas exigidas pelo Tribunal a quo, para não falar da entrega do Modelo 1 do Imposto de Selo (declaração de óbito junto da A.T.).
4. A Doutrina e a Jurisprudência são uníssonas ao afirmar que o direito de escusa fundado na idade não confere um poder irrestrito e incondicional ao cabeça-de-casal. Tal faculdade deve ser exercida tempestivamente e com lealdade perante os demais interessados, não podendo servir de meio para o cabeça-de-casal se eximir às suas funções quando tal lhe seja conveniente, sob pena de preclusão do direito por uso abusivo do mesmo.
5. Ao deferir o pedido de escusa nos termos em que o fez, a decisão recorrida não ponderou devidamente os factos concretos e acabou por incorrer numa errónea interpretação do artigo 2085.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.
6. Mas, mesmo que assim não fosse, o que se admite por mera hipótese académica e cautela de patrocínio, o Despacho recorrido sempre violaria o artigo 334.º do C.C., pelo facto de não sancionar o chamado “venire contra factum proprium” em que incorreu a Apelada, ao arrepio dos mais elementares ditames do princípio da boa-fé.
7. Por fim, diga-se ainda que, só após o cumprimento integral dessas obrigações mínimas [identificadas na conclusão n.º 3] é que poderia ser eventualmente equacionada a admissibilidade de um pedido de escusa.
Tal solução evitaria que o incumprimento dessas obrigações fosse convertido, na prática, numa causa legítima de exoneração, com benefício direto para a Cabeça-de-casal que nele incorreu e em claro prejuízo para os demais Interessados.
8. Permitir o contrário equivaleria a abrir um precedente particularmente gravoso, ao admitir que a Cabeça-de-casal se desvincule das suas funções precisamente no momento em que os deveres legais se tornam mais exigentes, transferindo injustamente para o seu sucessor o ónus de suprir as omissões e incumprimentos por si praticados.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por acertada. Invocou que as suas limitações foram evidenciando as suas dificuldades no desempenho do cargo, que tomou a iniciativa de pedir escusa bem sabendo que a falta de cumprimento dos seus deveres podia implicar na sua remoção do cargo, o que não aconteceu.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) do abuso do direito à escusa do cargo pela Cabeça-de-casal;
ii) do cumprimento das obrigações inerentes ao cargo.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os que resultam do que se deixa exposto.

B – As Questões do Recurso
i) Do abuso do direito à escusa do cargo pela Cabeça-de-casal
Nos termos do disposto no artigo 2079.º do CC, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.
O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem estabelecida no artigo 2080.º do CC, que enuncia, em 1.ª linha, o cônjuge sobrevivo, não separado de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal (cfr. n.º 1, alínea a), do CC).
Se todas as pessoas referidas nos artigos 2080.º a 2082.º do CC se escusarem ou forem removidas, é o cabeça-de-casal designado pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado – cfr. artigo 2083.º do CC.
A escusa do exercício do cargo encontra-se prevista no artigo 2085.º do CC, cujo n.º 1, alínea a), estabelece que o cabeça-de-casal pode a todo o tempo escusar-se do cargo se tiver mais de setenta anos de idade.
A remoção do cabeça-de-casal pode ter lugar, designadamente, se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser – artigo 2086.º, n.º 1, alínea c), do CC.
Ora, sendo instaurado processo de inventário, cabe ao juiz, em sede liminar, confirmar ou designar o cabeça-de-casal (cfr. artigo 1100.º, n.º 1, alínea b), do CPC), a quem compete, designadamente, identificar o autor da herança e os interessados na partilha, apresentar relação de bens, relação de créditos e de dívidas, tal como vem enunciado no artigo 1097.º do CPC.
O pedido de escusa foi apresentado pela Cabeça-de-casal aludindo à sua avançada idade e às limitações daí decorrentes.
Considerando que a Cabeça-de-casal contava já 84 anos de idade, tal pretensão foi atendida.
Considera a Recorrente que a tanto obsta o instituto do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
O instituto do abuso do direito está consagrado no artigo 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, é ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Por via deste regime, “a lei procura obter um controlo ou uma moderação do poder, fazendo com que o exercício do direito subjetivo por parte do seu titular se efetue dentro do quadro resultante do fim para o qual foi atribuído. O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções.”[1]
Estão em causa “os direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça, (…) as hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria no caso concreto intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”[2]. “Há abuso de direito, segundo a conceção objetiva aceite no artigo 334.º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. (…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode em qualquer dos casos afirmar-se a exclusão dos fatores subjetivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.”[3]
A toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do venire contra factum proprium, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento no sentido de não pretender exercer o direito. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo, por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra[4], o princípio da proibição do venire contra factum proprium impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração da responsabilidade pela confiança.
Na jurisprudência deste Tribunal, “Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinando direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra qual é invocado.”[5]
No caso em apreço, inexistem factos provados no processo dos quais resulte ser clamorosamente ofensivo do sentido de justiça o exercício do direito de escusa do cargo de cabeça-de-casal (pretensão esgrimida cerca de um ano após ter assumido o cargo no processo de inventário), que tenham sido manifestamente excedidos os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito de escusa com fundamento na idade superior a 70 anos do cabeça-de-casal.
A circunstância de ter assumido tal compromisso quando contava já 83 anos de idade não permite criar a convicção de que iria exercer o cargo até ao termo do processo. Por conseguinte, o pedido de escusa deduzido com fundamento na sua idade superior a 70 anos não consubstancia conduta contraditória em face de qualquer convicção criada nesse sentido, que não se criou.
Termos em que se conclui não ter a Requerida, no presente incidente, logrado demonstrar ser abusivo o exercício do direito consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2085.º do CC pela Requerente.

ii) Do cumprimento das obrigações inerentes ao cargo
A Recorrente sustenta que, ainda que seja concedida a pretendida escusa, deverá sempre a Cabeça-de-casal cumprir as obrigações que, nessa qualidade, ainda não realizou.
Não lhe assiste razão.
Inexiste, nem a Recorrente indica, fundamento legal que possa condicionar o deferimento do pedido de escusa ao cumprimento prévio de incumbências de cariz processual inerentes ao cargo de cabeça-de-casal.
Por outro lado, o incumprimento, pela cabeça-de-casal, dos deveres decorrentes do processo de inventário pode implicar na remoção do cargo (cfr. artigo 2086.º/1, alínea c), do CC). As tarefas e diligências que não terá realizado podem constituir fundamento para que seja afastada no exercício do cargo. Ora, se a cabeça-de-casal pediu escusa do cargo com fundamento na sua avançada idade e nas limitações daí decorrentes para regular exercício do mesmo, espontaneamente pretendendo alcançar o mesmo efeito, afigurar-se-ia ser destituído de sentido fazer depender o deferimento da pretendida escusa do cargo do cumprimento dos deveres cujo incumprimento podem implicar na respetiva remoção.
Não cumpre os deveres, não se lhe concede a escusa.
Não cumpre os deveres, sujeita-se a ser removida do exercício do cargo.
Poderia ser? Manifestamente, não.

Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 30 de outubro de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Emília Melo e Castro
José Manuel Tomé de Carvalho


__________________________________________________
[1] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 281.
[2] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, pág. 63.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, págs. 436 a 438.
[4] RLJ ano 105.º, pág. 28.
[5] Ac. do TRE de 05/11/2020 (Tomé de Carvalho).