Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARIA CLARA FIGUEIREDO | ||
Descritores: | ARGUIDO ESTRANGEIRO TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE DIRETIVA DA UE EFEITO DIRETO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 03/08/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (o tribunal e o Estado português) existirá posto que se encontrem cumpridos cumulativamente determinados pressupostos, a saber: que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta; que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares; que esteja esgotado o prazo de transposição. II - Encontrando-se verificados todos os requisitos dos quais depende a atribuição de efeito direto vertical às Diretivas e considerando o primado do Direito da União constitucionalmente reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, somos a concluir que as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, concretamente as normas constantes dos artigos 1º a 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º2012/13/EU, têm efeito direto vertical em Portugal, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno. III - Encontrando-se operativo o efeito direto vertical das Diretivas convocadas, não tem qualquer aplicação à situação dos autos o princípio da interpretação conforme, também designado efeito indireto – traduzindo-se tal princípio numa imposição de interpretação do direito nacional orientada no sentido da sua conformidade com o Direito da União, com vista a, tanto quanto possível, a atingir os objetivos visados por este – uma vez que, aplicando-se diretamente o Direito da União, nenhum direito nacional haverá a interpretar. IV - Todos os atos processuais levados a efeito nas fases preliminares do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir. V - Entre os referidos atos – e pese embora o único artigo do CPP português que prevê o direito à tradução, o artigo 92º, não os contemple em previsão expressa – contam-se, indubitavelmente, pela sua importância ao nível das garantias de defesa dos arguidos, decorrente das informações processuais que aportam, a prestação de Termo de Identidade e Residência realizada nos termos 196º do CPP, a notificação do arguido nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena. VI - Temos por certo que a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas, “in casu” por efeito direto vertical, atendendo ao princípio do primado do Direito da União, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União. Porém, no que à economia do caso dos autos diz respeito, importa questionar se o regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120º, nº 3 do CPP, aplicado na decisão recorrida, se revela verdadeiramente contrário às normas das Diretivas que pretendemos aplicar ou se com ele pode coexistir. VII - No ordenamento jurídico da União Europeia, nos termos expressamente previstos no artigo 267º do TFUE, sempre que uma questão de interpretação do DU seja suscitada em processo pendente perante um tribunal nacional, este pode ou deve – consoante a sua decisão seja ou não suscetível de recurso – submeter a questão ao Tribunal de Justiça da EU através do reenvio prejudicial. (Sumário da relatora) | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. Nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Cuba, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, com o n.º 53/19.8GACUB-B, foi proferido despacho indeferindo o requerimento apresentado pelo arguido de verificação das nulidades decorrentes da falta de nomeação de intérprete ou da omissão de tradução - sendo o arguido de nacionalidade moldava e não entendendo, nem se expressando na língua portuguesa - aquando do ato de prestação de T.I.R., bem como aquando da notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e da notificação do despacho de revogação de suspensão da execução da pena, por ter entendido que, constituindo nulidades relativas ou dependentes de arguição, as mesmas se encontravam sanadas, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea c) e nº 3, alíneas a) e d) do C.P.P., por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido. * Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:“I) Primeiramente, o presente recurso vem interposto do despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica de Cuba, pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca de Beja, datado de 20/11/2021, que decidiu inferir as invalidades invocadas pelo Arguido no seu requerimento de 18/11/2021. II) De facto, entendeu o Tribunal a quo que as nulidades de falta de nomeação de intérprete ou a omissão de tradução a arguido que não entenda ou se expresse na Língua Portuguesa, aquando dos actos de constituição de arguido e da prestação de T.I.R., bem como do despacho de revogação de suspensão da execução da pena e respectiva notificação, constituem nulidades relativas ou dependentes de arguição, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. III) Tendo ainda entendido o Tribunal recorrido que tais nulidades consideram-se sanadas, segundo o disposto no artigo 120.º, n.º 3, alíneas a) e d) do C.P.P., porquanto não foram suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao Arguido, o que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode o merecer o acompanhamento e o aplauso do Recorrente em qualquer medida. IV) Por outra banda, constitui entendimento do Tribunal a quo que as Directivas n.º 2010/64/EU e 2012/13/EU não podem implicar a revogação directa e expressa do direito interno, designadamente o artigo 120.º, n.º 1, alínea c) do C.P.P. V) Considerando ainda o Tribunal recorrido que tal interpretação, de modo geral e abstracto, seria alegadamente ab-rogativa do direito interno, sem conferir qualquer efeito útil ao preceito legal supra indicado, sendo ilegal por alegadamente não se compadecer com os princípios constitucionais a que o Estado Português e os Tribunais Nacionais se encontram vinculados, designadamente o princípio da interpretação conforme. VI) Todavia, uma vez mais, tal entendimento do Tribunal a quo não merece acolhimento, tendo o mesmo incorrido em erro de julgamento de direito. VII) Na realidade, na hierarquia das fontes de direito, convém realçar que a doutrina e jurisprudência nacionais defendem maioritariamente que a C.E.D.H. assume uma posição intermédia entre a C.R.P. e as Leis Ordinárias. VIII) Razão pela qual, ainda que vigore na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, a C.E.D.H., face ao preceituado no artigo 8.º, n.º 2 da C.R.P., apresenta valor superior às leis ordinárias, pelo que, no caso de confronto com o C.P.P., a Convenção Europeia prevalece sobre a mesma. IX) Além disso, diga-se ainda que a C.E.D.H. integra não só o texto da Convenção e seus protocolos, como também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelo que o estudo e ponderação de tal jurisprudência é uma sequência lógica da obrigação assumida pelo Estado Português, implicando a obrigação de os Magistrados Judiciais terem presentes as suas linhas evolutivas. X) Neste seguimento, tais medidas e regras mínimas seguidas pelos órgãos da União Europeia vieram dar origem à Directiva n.º 2010/64/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho e da Directiva n.º 2010/64/EU. XI) Assim, a primeira Directiva n.º 2010/64/EU, cuja publicação no Jornal Oficial da União Europeia ocorreu a 26/10/2010 e cujo prazo final de transposição para Portugal ocorreu em 27/10/2010, tem aplicação directa em Portugal desde 28/10/2013, sendo assim aplicável ao caso concreto atenta a data da ocorrência dos factos. XII) Todavia, ainda que esta directiva não tenha sido transposta pelo Estado Português, tal não significa que a mesma não vigore no nosso ordenamento jurídico e no da União Europeia, porquanto se encontra há muito consolidado o princípio da interpretação conforme. XIII) Determinando este princípio que sempre que se interpretar uma norma de direito interno, é obrigatório escolher o resultado interpretativo que dê execução às obrigações constantes da directiva (Cfr. artigo 4.º, n.º 3 do T.U.E. e artigo 288.º do T.F.U.E. e pelas especificidades com o direito processual penal o Acórdão Pupino, de 16/06/2005 (Caso C- 105-03), acessível in www.curia.europa.eu). XIV) Sem conceder, mesmo no caso de não ser possível esta interpretação conforme, uma Directiva pode ter aplicação directa, sem que seja objecto de transposição, desde que já tenha decorrido o prazo de transposição e desde que, conferindo direitos, o conteúdo da norma que confere esses direitos seja suficientemente claro, preciso e incondicional (Veja- se neste sentido o Acórdão Van Gend en Loos, de 06/10/1970 (Caso 26/62) e Van Duyn, de 04/12/1974 (Caso 41/74)), o que se verifica no caso concreto. XV) Deste modo, não obstante não ter sido transposta pela República Portuguesa, verificam-se todos os requisitos para a Directiva em apreço, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, vigorar directamente na nossa ordem jurídica interna e produzir efeitos directos, concretamente efeito directo vertical, podendo assim o Recorrente invocar a sua aplicabilidade directa perante qualquer Tribunal no âmbito do território da União Europeia. XVI) Assim, a definição clara da aplicabilidade e exigibilidade do acautelar do direito a intérprete ao longo de todo o processo é algo de essencial, como os presentes autos demonstram, em que o Arguido só teve intérprete em audiência de julgamento. XVII) Como refere Sandra Oliveira e Silva, in “The right to interpretation and translation in criminal proceedings: the situation in Portugal.”, pág. 90, acessível através do sítio http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/13620.pdf: “(…) No exercício do seu poder discricionário, os juízes devem sempre presumir de boa-fé a necessidade de um intérprete (…). O «ónus da prova» referente à capacidade do arguido de entender a linguagem do Tribunal recai sobre as autoridades judiciais e não sobre o arguido – refere o TEDH (Brozieck contra a Itália).” XVIII) Por seu turno, ainda que se verifique uma resistência à aceitabilidade da tradução de actos, o certo é que esta Directiva prevê um regime próprio que se encontra vigente desde o momento em que o seu efeito directo vertical se impôs face ao nosso direito interno. XIX) Na realidade, a Directiva n.º 2010/64/EU, no que concerne à tradução de actos processuais, é clara ao estabelecer um catálogo de actos que devem ser objecto de tradução, definidos como “direitos mínimos”, à imagem sistemática dos “minimum rights” do artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H. XX) Ora, a este respeito, no Acórdão Frank Sleutjes, de 12/10/2017, referente ao Proc. C- 278/16, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que: “(…) o artigo 3.º da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, deve ser interpretado no sentido de que um acto como um despacho de condenação previsto no direito nacional com vista a sancionar infrações penais menores e proferido por um juiz no termo de um processo unilateral simplificado constitui «documento essencial», na aceção do n.º 1 deste artigo, do qual deve, em conformidade com os requisitos formais estabelecidos nessa disposição, ser facultada uma tradução escrita aos suspeitos ou aos acusados que não compreendam a língua do processo em causa, por forma a salvaguardar a possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e garantir a equidade do processo.” XXI) Nesta medida, esta Directiva apresenta um catálogo, análogo ao dos “minimum rights” do artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H, concretizado num número mínimo de documentos que a ordem jurídica comunitária entendeu como adequado e razoável estabelecer para o ordenamento jurídico da União Europeia. XXII) Porém, na Lei Processual Penal portuguesa não existe em vigor qualquer norma que preveja directamente um catálogo semelhante de direitos mínimos ou documentos sujeitos a tradução, não se prevendo sequer um mínimo comunitário de documentos que devem ser traduzidos. XXIII) O que, infelizmente, conduz uma prática judiciária nacional que exclui sistematicamente as traduções em todos os casos, sendo aqui que a não transposição da Directiva mais se faz notar, fazendo-nos equiparar a qualquer outro Estado pouco exigente nos mínimos processuais penais e pouco defensor do Estado de Direito Democrático. XXIV) Sucede porém que este direito do Arguido de tradução de documentos essenciais impõe-se directamente ao Estado Português e aos seus Tribunais, os quais se vêm obrigados a determinar como regra geral a de determinar a tradução de todas as “(…) as decisões que imponham uma medida privativa da liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”, a que acrescem os documentos a integrar na cláusula geral do artigo 3.º, n.º 3 desta Directiva. XXV) Posto isto, sempre os actos processuais de constituição de arguido e da prestação de T.I.R., conjuntamente com o despacho que revogou a suspensão da execução da pena, por ser um despacho condenatório e privativo da liberdade, e respectiva notificação, deviam ter sido traduzidos ao Arguido, o que não sucedeu. XXVI) Do mesmo modo, no Acórdão Frank Sleutjes, de 12/10/2017, referente ao Proc. C- 278/16, afirmou-se que um despacho de condenação se “(…) só é enviado na língua do processo em causa a uma pessoa apesar de esta não dominar essa língua, essa pessoa não está em condições de compreender as acusações e provas contra ela deduzidas e não pode, portanto, exercer validamente o seu direito de defesa se não lhe for facultada uma tradução do referido despacho numa língua que compreenda.” XXVII) Por outro lado, a Directiva n.º 2012/13/EU, relativa ao direito à informação em processo penal, tem aplicação directa em Portugal desde 02/06/2014 e é aplicável igualmente aos presentes autos tendo em conta a data da prática dos factos que constituem o seu objecto. XXVIII) Com efeito, este direito do arguido ser informado em língua que perceba é um direito concreto e efectivo, como se afirma no Acórdão Kamasinski Vs. Áustria do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 19/12/1989, não bastando às autoridades judiciárias a mera nomeação de intérprete, mas incumbindo-lhes o controlo ulterior sobre o valor do acto. XXIX) Salientando-se ainda a este respeito a posição de Irineu Cabral Barreto in “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Almedina, 3.ª edição, 2005, pág. 166: “(…) a informação deve ser feita de modo a assegurar a um acusado que não compreende a língua utilizada no processo as mesmas possibilidades de defesa de um outro que a compreende.” XXX) Desta feita, não se pode deixar de fazer apelo à C.E.D.H. e à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, usando-as para interpretar e integrar a nossa Lei Processual Penal, porquanto foi precisamente o labor de Juízes neste Tribunal Europeu que sedimentou um entendimento favorável aos arguidos e acusados na leitura dos “minimum rights” do artigo 6.º, n.º 3 daquela Convenção. XXXI) Estatuindo as alíneas a) e e) do artigo 6.º da C.E.DH. que o acusado tem, como mínimo, o direito a “Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada.”, bem como a “Fazer- se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.” XXXII) Ora, sendo as previsões legais claras e abrangentes, com a garantia ao Arguido de intérprete e de tradução, desde o início até ao termo do processo, não podemos descansar na prática habitual de apenas em audiência de julgamento ser nomeado intérprete ao Arguido, como foi o que sucedeu in casu. XXXIII) Neste sentido, como se assinalou no Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, referente ao Proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Gomes de Sousa, disponível in www.dgsi.pt: “(…) 9 – As Directivas impõem uma obrigação positiva de facere sobre os tribunais nacionais, desde logo sobre a necessidade de nomeação de intérprete e/ou tradutor, até ao controlo da qualidade da interpretação/tradução. (…) 20 – A partir do momento em que fixa por norma (aqui Directiva) ou jurisprudência, que se encontra consagrada uma obrigação de facere a onerar um tribunal, uma obrigação positiva procedimental de acautelar a inteligibilidade dos actos processuais por arguido não conhecedor da língua em que se praticam os actos processuais, (…) Na dúvida a nomeação do intérprete é uma imposição para o tribunal, o Ministério Público e a polícia. O mesmo se diga quanto à natureza das restantes invalidades. 21 – As obrigações positivas impostas às polícias, ao M.P. e aos tribunais implicam a revogação de todas as normas do direito nacional – existentes ou a existir – que sejam contrárias ao estabelecido nas Directivas e que consagrem imperativamente um regime comunitário comum. Aqui se incluindo um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado. (…)” (Sublinhados nossos). XXXIV) Na realidade, no caso concreto deparamo-nos com o Estado Português, personificado na G.N.R., no Ministério Público e no Tribunal recorrido que desprezaram a nomeação de intérprete nos actos policiais de constituição de arguido e da prestação de T.I.R. e a concessão de tradução do Arguido desses actos e de várias notificações e despachos essenciais. XXXV) Destarte, salvo o devido respeito, pode-se concluir que não houve a mínima preocupação em saber se o Arguido sabia ou dominava minimamente a Língua Portuguesa, não tendo o Tribunal a quo e principalmente a G.N.R. e o Ministério Público acautelado o seu dever de actuação para garantir que o Arguido percebesse os actos processuais em que intervinha e compreendia minimamente as obrigações que para si resultavam ao ter prestado o T.I.R., nem analisado o acerto dos actos realizados em sede de inquérito. XXXVI) Sendo agora consabido que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Directiva n.º 2010/64/EU obrigam as autoridades judiciárias nacionais a dar “positive steps” no sentido de assegurar o direito do Arguido de compreender todos os actos do processo, ou seja, cumprindo assim as “obrigações positivas” nela previstas. XXXVII) Desta feita, uma vez que se mostram violados no caso concreto os direitos do Recorrente à interpretação e tradução de actos processuais, bem como o direito à sua informação, decorrentes das Directivas comunitárias supra referidas, mostram-se igualmente violados os deveres e obrigações que delas emanam para o Estado Português, no qual se incluem os Tribunais Judiciais. Sem conceder, o que só por questão de raciocínio jurídico se equaciona, diga-se ainda, XXXVIII) Por conseguinte, conforme se pode constatar no auto de constituição de arguido e do T.I.R. prestado nos presentes autos, o Recorrente é de nacionalidade moldava, encontrando-se o T.I.R. redigido em Língua Portuguesa, sendo através do mesmo que lhe foram (alegadamente) dados a conhecer as respectivas obrigações, designadamente a obrigação prevista no artigo 196.º, n.º 3 alínea b) do C.P.P. XXXIX) De igual modo, do auto de constituição de arguido e do T.I.R., bem como dos actos processuais e notificações efectuados posteriormente, nos quais se inclui a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena, nada resulta que qualquer um desses actos processuais tenha sido traduzido para a língua nativa do Arguido ou então que o mesmo conheça ou domine a Língua Portuguesa. XL) Na realidade, o Arguido não conhece, nem domina minimamente a Língua Portuguesa, pelo que sempre lhe deveria ter sido nomeado intérprete idóneo logo no acto de constituição de arguido e da prestação de T.I.R., como preceitua o artigo 92.º, n.º 2 do C.P.P., actos nos quais o mesmo também esteve desacompanhado de defensor. XLI) Com efeito, o Arguido teve apenas um breve contacto com a Defensora Oficiosa que lhe foi anteriormente nomeada nos autos, apenas na realização da audiência de julgamento, não lhe tendo sido minimamente explicado que o mesmo tinha as obrigações decorrentes da prestação do T.I.R., previstas no artigo 196.º, n.º 3 do C.P.P., bem como das regras e deveres que deveria cumprir no período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada. XLII) Tendo, posteriormente, o Arguido alterado a sua residência para a Rua da (…), sem que o mesmo tivesse qualquer consciência ou noção de que estava obrigado a comunicar tal facto a este Tribunal ou a cumprir qualquer outra das obrigações decorrentes da prestação de T.I.R. XLIII) Acabando todas as notificações dos autos (incluindo a do despacho de revogação da suspensão da execução da pena, que foi remetida para aquela morada anterior apenas por via postal simples), por serem recepcionadas por outras pessoas que não as entregaram ao Arguido, nem lhe deram qualquer conhecimento da sua existência. XLIV) Nesta medida, para poder ser responsabilizado pelo seu não cumprimento, sempre o Arguido deveria ter consciência das obrigações a que estava adstrito pela prestação do T.I.R., o que não veio a suceder de modo algum. XLV) Na realidade, numa leitura jusfundamental dos seus direitos, não se pode ter a certeza que o Recorrente tenha compreendido minimamente o significado dessas obrigações e deveres e muito menos que o mesmo estivesse em condições de suscitar as nulidades de falta de nomeação de intérprete e de omissão de tradução de vários actos processuais até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da execução da pena. XLVI) Desta feita, o auto de constituição de arguido e o T.I.R. prestado, bem como outros actos processuais subsequentes, nos quais se inclui a notificação do despacho que revogou a pena suspensa, não podem ter qualquer relevância processual, atentos os direitos fundamentais de defesa do Recorrente e o direito constitucional a um processo justo e equitativo. XLVII) De facto, tratando-se o Arguido de um cidadão estrangeiro que não conhece ou domina a Língua Portuguesa, deve-lhe ser nomeado intérprete para qualquer acto processual em que o mesmo esteja presente, designadamente quando lhe são comunicados os seus direitos e as suas obrigações, como decorre do artigo 92.º, n.º 2 do C.P.P. XLVIII) No caso de falta de nomeação de intérprete, a Lei Processual Penal comina essa desconformidade como sendo uma nulidade sanável, que deverá ser suscitada pelo interessado e no caso de o mesmo estar presente no próprio acto antes deste estar encerrado ou no início da audiência no caso de um processo especial, sob pena da mesma ficar sanada, segundo o disposto no artigo 120.º, n.º 2 alínea c) e n.º 3 alíneas a) e d), ambos do C.P.P. XLIX) Porém, mormente no âmbito do processo penal, não se pode descurar que ao acusado devem ser asseguradas e de modo efectivo as suas garantias de defesa, bem como os instrumentos que as acautelam, dispondo de um processo justo e equitativo. L) O que só é possível se lhe forem conferidas as devidas oportunidades para o mesmo se poder defender, não o colocando, de forma directa ou indirecta, numa posição de desvantagem face aos seus oponentes, designadamente ao Ministério Público enquanto parte acusatória. LI) Neste sentido, à luz do disposto no artigo 202.º, n.º 2 da C.R.P., compete aos Tribunais, no exercício da sua função jurisdicional, assegurar a essência dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, conferindo-lhes conteúdo. LII) Dito isto, ainda que não haja a necessidade de se exigir a entrega ao Arguido de um documento integralmente traduzido, sempre se dirá que a tradução para a sua língua nativa e a nomeação de intérprete nos actos de constituição de arguido e na prestação do T.I.R. possibilitaria aquele estar em condições de conhecer as suas obrigações e das consequências das suas inobservâncias, bem como de preparar condignamente a sua defesa. LIII) Deste modo, tendo ocorrido nos autos as invalidades acima indicadas, não se pode deixa de salientar o entendimento plasmado a este respeito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/01/2006, referente ao Proc. n.º 06P4179, acessível in www.dgsi.pt, com os seguintes moldes: “(…) É certo que, quanto aos termos de «constituição de arguido» subscritos ante o órgão de polícia criminal (de que os visados receberam «cópia» e que, aliás, assinaram depois de declararem deles «ficar ciente»), a Relação veio a declará-los «nulos» por não terem sido subscritos na presença de «intérprete» (art. 120.º, n.º 2, al. c), do CPP). (…) Assim impõe-se declarar nulo e de nenhum efeito os autos de constituição dos recorrentes como arguidos operada através dos documentos de fls. 62 e 63, bem como dos termos de identidade e residência a estes respeitantes, devendo ser repetidos apenas os termos de identidade e residência (cf. art. 122.º n.º 2 do CPP).” LIV) Assim sendo, a garantia de uma compreensão efectiva por parte do Arguido, relativamente a actos processuais de tão sérias consequências não se basta com uma aparência de possibilidade de compreensão. LV) Por sua vez, no que respeita à obrigatoriedade de tradução do despacho que determinou a revogação da suspensão da pena aplicada ao Arguido e respectiva notificação, sempre o impõe o artigo 113.º, n.º 10 da CPP, por tal interpretação ser a que se mostra mais conforme com a Constituição e o artigo 6.º, n.º 3, alínea a) da C.E.D.H. LVI) No mesmo sentido e devidamente adaptado, saliente-se o entendimento perfilhado no Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 01/04/2008, referente ao Proc. n.º 331/08-1, disponível in www.dgsi.pt, com os seguintes moldes: “(…) A previsão do art. 113.º n.º 9 do Código de Processo Penal, quando devidamente conjugado com a letra e a ratio do art. 6.º n.º 3 al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem exigem, no caso do arguido que não domine a língua portuguesa, que sejam traduzidas as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil.” LVII) Do mesmo modo também se pronunciou o Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 26/06/2007, referente ao Proc. n.º 848/07-1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Gomes de Sousa, acessível in www.dgsi.pt, onde se pode ler no respectivo sumário: “I – A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional e consagra, com concretização do princípio do processo equitativo, que o arguido tem, como mínimo («minimum rights»), o direito a ser informado, no mais curto prazo compatível com o direito de defesa, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza da causa da acusação contra ele formulada. (…) III – Porque o arguido tem um direito pessoal, concreto e efectivo, à notificação da acusação em língua que entenda, não basta a simples notificação do defensor nomeado para que aquele direito se considere concretizado. IV – Direito que apenas se considera efectivado com a notificação da acusação integralmente traduzida por escrito. V – É processualmente inexistente a notificação de uma acusação redigida em português a uma arguida que apenas entende o marroquino.” (Sublinhados nossos). LVIII) Ademais, diversamente do que foi entendido pelo Tribunal recorrido, as nulidades invocadas pelo Arguido de falta de nomeação de intérprete e de omissão de tradução dos actos de constituição de arguido, da prestação de T.I.R. e do despacho revogatório da suspensão da execução da pena e respectiva notificação não se tratam de nulidades sanáveis. LIX) Em bom rigor, cite-se a este respeito o entendimento plasmado no Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, referente ao Proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Gomes de Sousa, onde se salienta no respectivo sumário, disponível in www.dgsi.pt: “(…) Entende-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma “obrigação positiva” a onerar o Estado e proveniente de norma comunitária imperativa, levando necessariamente a considerar revogada a alínea c) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.” (Sublinhado nosso). LX) Posto isto, entre outros, os actos de constituição de arguido, a prestação de T.I.R., o despacho que revogou a suspensão da execução da pena e respectiva notificação deveriam ter sido traduzidos para língua materna do Arguido. LXI) Além disso, o Arguido deveria ter disposto de intérprete logo no auto de constituição de arguido e na prestação de T.I.R., nomeado pela força policial e/ou pelo Ministério Público, a partir do momento da sua detenção ou, pelo menos, desde o momento em que se viu obrigado a assinar a documentação que lhe foi apresentada pela G.N.R., assegurando-se assim que o mesmo tivesse compreendido as obrigações para o mesmo resultaram pela prestação do T.I.R. LXII) Neste sentido, na actual Lei Processual Penal, o T.I.R. é um documento essencial e que se integra na previsão do artigo 3.º, n.º 1 da Directiva n.º 2010/64/EU e, subsequentemente, necessita de ser traduzido na língua de origem do Arguido, sendo neste acto onde se encontram referidas as obrigações previstas no artigo 196.º, n.º 3 do C.P. LXIII) Como se não bastasse, o Arguido assinou ainda um termo de “Constituição de Arguido” em Língua Portuguesa, onde constam os direitos que lhe são conferidos pelo artigo 61.º do C.P.P., o que devidamente ponderado implica uma outra invalidade processual. LXIV) Neste sentido, veja-se como se decidiu no Acórdão do TJUE, de 28/08/2018, Vizgirda vs. Slovenia, o qual é peremptório ao sustentar que os arguidos têm que ser notificados da existência desses direitos, dos direitos à interpretação e tradução, precisamente por serem equiparados ao direito ao silêncio, à não auto-incriminação e ao direito a advogado. LXV) Posto isto, as invalidades invocadas pelo Recorrente centram-se na inexistência de nomeação de intérprete nos actos processuais iniciais, bem como na inexistência de tradução dos actos de constituição de arguido, da carta de direitos dessa qualidade, da prestação de T.I.R., do despacho que revogou a suspensão da execução da pena e da respectiva notificação. LXVI) Em bom rigor, se a prática de actos se destina a dar a conhecer o conteúdo de um acto e nada se transmite, esse actos não podem deixar de ser inexistentes, tratando-se, assim, de uma situação com gravidade não previsível pelo Legislador ordinário, não se incluindo nas nulidades previstas no C.P.P., caindo então no âmbito das inexistências processuais. LXVII) Nas palavras de João Conde Correia, in “Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais”, Stvdia Ivridica, n.º 44, pág. 121, Coimbra Editora, 1999: “(…) trata-se de um recurso excepcional, utilizado para repor a justiça em situações extremas, que quase ultrapassam as fronteiras do imaginável. (…) A anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica.” LXVIII) Para além disso, existindo uma obrigação positiva a onerar o Estado Português quanto à prática de actos, a inexistência dessa prática só onera o Estado Português, não se podendo atribuir às invalidades processuais invocadas uma natureza sanável, como defende o Tribunal a quo, se o beneficiário do acto não reagir, tanto mais que tais invalidades são imputáveis à G.N.R., ao Ministério Público e ao Tribunal recorrido. LXIX) Além de que as obrigações impostas às polícias, ao Ministério Público e aos Tribunais implicam a revogação de todas as normas de direito nacional que sejam contrárias ao consagrado nas Directivas acima indicadas e que consagram um regime comunitário comum, aqui se incluindo um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado. LXX) Efectivamente, em sentido contrário do que propugna o Tribunal recorrido, os actos processuais acima indicados são inexistentes, não sendo originalmente válidos e assim se mantendo se e enquanto o sujeito processual interessado o não invalidar, exercitando o seu direito de arguição de nulidades. LXXI) Assim sendo, uma vez que são inexistentes nos presentes autos, cumpre ser declarada a invalidade dos actos de constituição de arguido, da prestação de T.I.R., do despacho revogatório da suspensão da execução da pena aplicada ao Recorrente e respectiva notificação, não podendo os mesmos produzirem efeitos jurídicos e devendo os mesmos serem repetidos, com a consequente anulação do posteriormente processado nos autos. Sem conceder, o que só se equaciona por mero dever de cautela, note-se ainda, LXXII) Por outra banda, constitui entendimento do Tribunal a quo considerar sanadas as nulidades por omissão de tradução na constituição de arguido, na prestação de T.I.R. e na notificação do despacho que determinou a revogação da suspensão da pena e respectiva notificação, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho. LXXIII) Contudo, numa leitura jusfundamental dos seus direitos, não se pode ter a certeza que o Recorrente tenha compreendido minimamente o significado dessas obrigações e deveres e muito menos que o mesmo estivesse em condições de suscitar as nulidades de falta de nomeação de intérprete e de omissão de tradução de vários actos processuais até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da execução da pena. LXXIV) Em bom rigor, o auto de constituição de arguido e o T.I.R. prestado, bem como outros actos processuais subsequentes, nos quais se inclui a notificação do despacho que revogou a pena suspensa, não podem ter qualquer relevância processual, atentos os direitos fundamentais de defesa do Recorrente e o direito constitucional a um processo justo e equitativo. LXXV) De facto, no caso concreto estão em causa direitos, liberdades e garantias constitucionais e direitos fundamentais, como é o caso da liberdade do Arguido, das suas garantias de defesa, direito à interpretação e tradução, do direito à informação, do direito a um processo justo e equitativo, os quais se encontram consagrados nos artigos 2.º, 20.º, n.ºs 2 e 4, 27.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 e 5, todos da Lei Fundamental. LXXVI) Surgindo as garantias constitucionais de defesa do arguido como autênticos direitos fundamentais e sendo todos os direitos constitucionais acima indicados de aplicação imediata, à luz das disposições conjuntas dos artigos 16.º, 17.º e 18.º, todos da C.R.P. LXXVII) Efectivamente, em situações concretas em que estão em causa invalidades processuais praticadas na presença de arguido estrangeiro que não entende nem compreende a Língua Portuguesa, uma questão de constitucionalidade há-de ser sempre apreciada tendo fundamentalmente por objecto o princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P., conjugado devidamente com o princípio do contraditório. LXXVIII) Como se assinalou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/95: “(…) Nos termos do artigo 32.º da Constituição, «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» (n.º 1), estabelecendo o n.º 5 do preceito que «o processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório» (…)”. LXXIX) Assim, segundo o Prof. Figueiredo Dias, in “A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais”, pág. 51, ao invocar-se no artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P. o próprio princípio da defesa, está a chamar-se à colação o “núcleo essencial” de tal princípio, podendo assim atribuir-se a tal forma um “(…) iminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em caso limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária.” LXXX) Efectivamente, a norma do artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P., enquanto “cláusula geral” que permita identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no preceito, não pode deixar de configurar o processo criminal como um “due process of law” que considere ilegítimas quer normas processuais quer procedimentos decorrentes das mesmas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (veja-se, neste sentido, os Acórdãos n.º 337/86 e 61/88, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 8.º e 11.º volumes, págs. 277 e 661, respectivamente). LXXXI) Vertendo ao caso concreto, a inexistência de nomeação de intérprete nos actos de constituição de arguido e de prestação de T.I.R. e a falta de tradução do despacho que revogou a suspensão da execução da pena e respectiva notificação afectaram gravemente o direito de defesa do Arguido, impedindo-o de contraditar logo no início dos autos o que lhe foi comunicado em Língua Portuguesa e de compreender os deveres processuais que para o mesmo resultaram ao ser constituído arguido e ao prestar o T.I.R. LXXXII) Ainda para mais quando o Arguido, sendo moldavo, desconheceu as obrigações a que alude o artigo 196.º, n.º 3, alíneas b), c) e d) do C.P.P que deram origem ao despacho revogatório da suspensão da execução da pena e ao cumprimento da sua pena de prisão, não tendo sido por incumprimento pelo Arguido do seu dever de diligência que o mesmo não compreendeu nem teve conhecimento dessas obrigações processuais. LXXXIII) Efectivamente, tais invalidades implicaram para o Recorrente um encurtamento inadmissível das suas possibilidades e garantias de defesa e uma clara violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo justo e equitativo, consagrados constitucionalmente no artigo 20.º, n.º 4 da C.R.P. LXXXIV) E não se diga que as garantias de defesa do Arguido se encontraram ressalvadas pela norma do artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P., quando a sua defesa não foi assegurada de forma efectiva e a sua Defensora nada fez quanto à tomada de qualquer posição sobre as decisões desfavoráveis que foram proferidos contra o mesmo, deixando transitar em julgado quer a sentença condenatória, quer ainda o despacho revogatório da suspensão da execução da pena e que determinou o cumprimento pelo mesmo da pena de prisão. LXXXV) No mesmo sentido, acompanhando de perto o entendimento que foi perfilhado pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 203/2004, a imposição da arguição dessas invalidades constitui um ónus excessivo e desproporcionado para um Arguido estrangeiro, não tendo o mesmo possibilidade de reagir atempadamente contra essas invalidades segundo o disposto no artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P. e até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada. LXXXVI) Na verdade, não se pode deixar de se reconhecer que prescindir-se da mínima compreensão, tradução e cognoscibilidade das invalidades pelo Arguido para determinar a não tempestividade da sua arguição é modelar o processo penal como um “unfair process”, não equitativo e, como tal, lesivo dos direitos de defesa do Arguido. LXXXVII) Em face do exposto, a interpretação do artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P. propugnada pelo Tribunal a quo de considerar sanadas as nulidades por omissão de tradução na constituição de arguido, na prestação de T.I.R. e na notificação do despacho que determinou a revogação da suspensão da pena, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho, padece de inconstitucionalidade material LXXXVIII) Por violar de forma ostensiva as garantias constitucionais de defesa e do contraditório do Recorrente e os direitos constitucionais à tutela jurisdicional efectiva e a um processo justo e equitativo, previstos nos artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.ºs 1 e 4 da C.R.P., a qual desde já se deixa invocada para todos os efeitos legais. LXXXIX) Por outro lado, o entendimento do Tribunal recorrido de que o direito de audição do Arguido foi salvaguardado por o mesmo ter sido representado por Defensora Oficiosa ao longo do processo, salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode merecer acolhimento. XC) Na realidade, como se constata nos autos, além de tal Defensora que lhe foi nomeada não o ter representado no auto de constituição de arguido, nem na prestação do T.I.R., a mesma limitou-se a estar presente na audiência de julgamento e na audição a que alude o artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e a requerer o pagamento faseado da pena de multa aplicada ao Arguido. XCI) Não tendo tomado qualquer posição prévia sobre qualquer decisão que afectasse pessoalmente o Arguido, acabando por deixar transitar em julgado todas as decisões que afectaram gravemente os direitos fundamentais do Arguido. XCII) Neste sentido, não se pode dizer que o direito de audição do Arguido tenha sido de modo algum exercido através da Defensora Oficiosa que lhe foi nomeada, tendo sido violado tal direito que lhe assiste ao abrigo do disposto no artigo 61.º, n.º 1 alínea b) do C.P.P. XCIII) Com efeito, quando nos reportamos à assistência e defesa por Advogado, está também em causa a sua eficácia, o que passa por uma defesa efectiva, tanto na preparação como na sua realização, e não por uma defesa aparente ou fictícia, como foi o que se sucedeu na situação sub judice. XCIV) Neste sentido, veja-se como foi decidido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos nos Acórdãos Artico Vs. Itália, de 13/05/1980, Goddi Vs. Itália, de 09/04/1984, Daud Vs. Portugal, de 21/04/1998 e Bogumil Vs. Portugal, de 07/10/2008. XCV) Efectivamente, para que uma defesa seja efectiva e não meramente aparente ou formal, tal implica que o arguido contacte com o seu defensor e vice-versa, sabendo aquele que tem defensor e este é advogado, o que não veio a acontecer, já que o Recorrente apenas conseguiu contactar com a sua defensora na audiência de julgamento durante escassos minutos, não tendo o mesmo sido esclarecido, nem devidamente informado dos direitos e deveres que lhe incumbiam pela prestação do T.I.R. e pelo regime de prova a que foi sujeito durante o período de suspensão da execução da pena de prisão. XCVI) Não tendo ainda tal Defensora sido uma Advogada por ele constituída, o que não permite indiciar que tenha existido uma relação de confiança pessoal e de reconhecimento da sua competência técnica. XCVII) Aqui chegados, diga-se ainda que a interpretação efectuada pelo Tribunal a quo de que o direito de audição de arguido estrangeiro que não percebe nem compreende a Língua Portuguesa foi salvaguardado por o mesmo ter estado representado por defensora ao longo do processo que foi notificada regular e validamente de todos os actos praticados nos autos padece igualmente de inconstitucionalidade material. XCVIII) Por ser violadora das garantias constitucionais de defesa do Recorrente e dos direitos constitucionais à tutela jurisdicional efectiva e a um processo justo e equitativo, previstos nos artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.ºs 1 e 4 da C.R.P., a qual desde já se deixa invocada para todos os efeitos legais..” Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare inexistentes o auto de constituição de arguido, a prestação do T.I.R., o despacho revogatório da suspensão da execução da pena e respetiva notificação, com determinação da ineficácia do processado posterior. * O recurso foi admitido.Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida e tendo apresentado as seguintes conclusões: “1º O arguido ZUG alegou as invalidades da prestação de TIR, da notificação que foi efectuada em português nos termos do artigo 495º n.º 2 do CPP, do despacho proferido a 9 de junho de 2021, que determinou a revogação da pena de prisão suspensa. 2º Invocou para o efeito o arguido que o despacho que determinou a revogação da pena de prisão suspensa, pelo facto de não ter sido traduzido para a língua moldava é um ato inexistente, por violação direta da Diretiva nº 2012/13/EU e Diretiva nº 2010/64/EU, do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6º n.º 3 da CEDH. 3.º Por força do princípio da legalidade, a violação ou a inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei, sendo nos demais casos o ato ilegal qualificado de irregular (art.º 118.º, n.º 1 e 2 do Código Penal). 4º Assim se conclui que a omissão de tradução ou intérprete a arguido estrangeiro que não percebe a língua portuguesa quer da notificação das obrigações do TIR, quer da notificação do despacho que revoga a suspensão da pena de prisão, constituirá quanto muito uma nulidade relativa ou dependente de arguição, por força do disposto no art.º 120.º, n.º 1 al.ª c) do Código Penal. 5º Em todos os actos processuais o arguido esteve assistido pelo seu Ilustre Defensor, que foram regularmente notificados de todos atos processuais e de todos os despachos proferidos, em especial da douta sentença e do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão. 6º Acresce que o Ilustre Defensor do arguido, apesar de notificado do douto despacho que revogou a suspensão da pena de prisão, não reclamou ou recorreu de tal despacho, nem tão pouco invocou tais nulidades, pelo que as mesmas se consideram sanadas e respectivos despachos transitados em julgado. 7º Cumpre ainda referir que tendo o arguido prestado TIR logo aquando da instauração do inquérito, mesmo que se considere que a omissão de tradução das obrigações decorrentes do TIR consubstancia a prática de nulidade, nos termos do art.º 120.º, n.º 1 al.ª c), forçoso será concluir que mesma se encontra há muito sanada. 8º Com efeito, o Ilustre Defensor do arguido não invocou tempestivamente tal nulidade, nem antes da realização da audiência de julgamento, nem no decorrer desta, nem posteriormente ao proferimento da douta sentença. 9º Sendo certo que quanto à omissão de intérprete ou tradução na notificação do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão, considera-se que tal falta a constituir uma nulidade relativa, a mesma devia ter sido invocada pelo Ilustre Defensor do arguido, logo após ter sido notificado de tal despacho, o que não se verificou. 10º Não foram, pois, violados os artigos 120.º do Código de Processo Penal e 32.º, n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. Por tudo isto se conclui no sentido do presente recurso ser declarado totalmente improcedente e, consequentemente, mantendo-se os doutos despachos recorridos.” * O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.* Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, tendo o recorrente apresentado resposta na qual reiterou os fundamentos consignados na motivação do recurso. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação. II.I Delimitação do objeto do recurso. Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso. Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida. * Assim, considerando as conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber: A) Determinar se as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, que consagram, respetivamente, o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal, têm aplicação na ordem interna nacional, por via de um “efeito direto vertical”, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno ou, alternativamente, inexistindo esse efeito, por via de interpretação do direito nacional de acordo com o “princípio da interpretação conforme” (nos termos consagrados no Acórdão Marleasing, respetivo n.º 8). B) Em qualquer caso – efeito direto vertical; interpretação conforme – haverá que determinar, de seguida, se os atos processuais cuja validade vem posta em causa pelo arguido – auto de constituição de arguido, prestação de TIR, notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão – se incluem no conceito de “documentos essenciais” a que alude o artigo 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU, por forma a acautelar os “minimum rights” previstos no artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H, e se nos mesmos deveriam ter sido assegurados os direitos à nomeação de intérprete e à tradução a que aludem o artigo 1.º a 3.º da mesma Diretiva e o artigo 3.º, n.º 1, alínea d) da Diretiva 2012/13/UE. C) Em caso de resposta afirmativa à questão precedente, importará estabelecer as consequências jurídico-processuais da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos referidos atos, e, consequentemente, determinar se a interpretação do artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P. propugnada pelo Tribunal “a quo” – no sentido de considerar sanadas as nulidades por omissão de tradução na constituição de arguido, na prestação de T.I.R., na notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e na notificação do despacho que determinou a revogação da suspensão da pena, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho – se se revela compatível com a aplicação das identificadas Diretivas Comunitárias. *** II.II - A decisão recorrida. O requerimento do arguido de verificação das nulidades decorrentes da falta de nomeação de intérprete ou da omissão de tradução mereceu por parte do tribunal a quo a seguinte decisão: “Requerimento com a Ref. 40500367 e Promoção com a Ref. 32232899: Transitada em julgado a decisão que determinou a revogação da pena suspensa aplicada ao arguido, e após ter sido notificado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu o seu pedido de habeas corpus, veio o condenado ZUG alegar a invalidade da prestação de TIR, da notificação que foi efectuada (em português) nos termos do artigo 495º n.º 2 do Código de Processo Penal e do despacho proferido a 9 de junho de 2021, que determinou a revogação da pena de prisão suspensa. Requer, a final, a sua imediata libertação, a prestação de novo TIR (traduzido para a língua moldava) e nova notificação, na língua moldava, nos termos do disposto no artigo 495º n.º 2 do Código de Processo Penal. Para fundamentar o seu pedido o condenado invoca que, à excepção da audiência de julgamento (em que foi assistido por intérprete), o TIR e o despacho que determinou a revogação da suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada (despacho proferido nos termos do art. 495.º do Código de Processo Penal) são actos inválidos/”inexistentes” pois não foram traduzidos para língua moldava, o que determinou que este não compreendesse o conteúdo dos actos processuais supra referidos. Entende que não está perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entende estarem revogadas, pois existe uma “obrigação positiva” a onerar o Estado Português proveniente de normas comunitárias imperativas (Directiva n.º 2012/13/EU e Directiva nº 2010/64/EU, do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6º n.º 3 da CEDH). O Digníssimo Procurador manifestou-se no sentido de que deverá ser indeferido o requerido por falta de fundamento legal, porquanto entende que as invalidades suscitadas não foram invocadas em devido tempo, considerando-se actualmente sanadas. Cumpre apreciar e decidir. Antes de mais, importa relembrar a seguinte tramitação dos autos: - Por sentença proferida nos autos, transitada em julgado a 26-09-2019, o arguido foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por idêntico período e subordinada a regime de prova, e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 12 meses se traduz nomeadamente, na proibição de obter título de condução que lhe permita conduzir durante esse período e na pena de multa de 80 dias de multa, à razão diária de €6,00, num montante total de € 480,00; - Em audiência de julgamento o arguido foi assistido por defensora, tendo sido nomeada intérprete, que prestou compromisso legal (de bem desempenhar as suas funções); - O arguido não respondeu às diversas tentativas de contacto efectuadas pela D.G.R.S.P., na morada constante do TIR; - O arguido não comunicou qualquer alteração de morada aos autos; - Em 12 de Janeiro de 2021, na sequência de despacho proferido a 07/01/2021, foi o arguido notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 495.º n.º 1 e 2 do C.P.P., por via postal simples com prova de depósito para o endereço constante do TIR, a Rua da (…), Cuba, para comparecer nos presentes autos a fim de ser ouvido relativamente ao incumprimento dos deveres, regras de conduta e obrigações que lhe foram impostas em sede de sentença; - Em 6 de abril de 2021, foi repetida tal notificação, para a mesma morada, por carta simples com prova de depósito, a notificar o condenado de uma nova data - No dia 9 de Junho de 2021 foi proferido despacho no qual se revogou a suspensão da pena aplicada ao condenado e se determinou a emissão de mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional; - Este despacho foi notificado à defensora do arguido e a este, por via postal simples com prova de depósito em 25 de Junho de 2021, tendo transitado a 20 de Setembro de 2021; - A 30 de Setembro de 2021 foi o condenado detido para cumprimento da pena de 3 anos de prisão; - A 11 de Outubro de 2021 o arguido constituiu advogada nos autos, juntando a respectiva procuração forense; Ora, estabelece o artigo 92.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal que “nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade”, sendo certo que “Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada. Para o arguido, este direito corresponde à garantia de um processo equitativo, onde se contem necessariamente a possibilidade efectiva de se defender em igualdade de circunstâncias, num procedimento leal e justo. À luz das disposições contidas no artigo 6.º n.º 3, alíneas a). e e). da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a nomeação e a intervenção de um intérprete, nos actos processuais, integram um reduto essencial de “direitos mínimos” do arguido em procedimento criminal. A assistência por intérprete deve garantir ao arguido a possibilidade de ser informado de forma minuciosa da natureza e da causa da acusação contra ele formulada em língua que entenda. É indiscutível que o arguido tem o direito de estar presente em todos os actos que directamente lhe disserem respeito, como acontece com a audiência de julgamento e também o direito de ser ouvido pelo tribunal sempre que haja que tomar uma decisão que pessoalmente o afecte, ou de ser informado dos factos que lhe são imputados (artigo 61.º n.º 11, a) e b) e que a ausência do arguido ou do defensor nos casos em que a lei exigir a sua comparência constitui uma nulidade insanável – cfr. artigo 119.º, alínea c), ambos do C.P.P.) Porém, como já se escreveu no acórdão do STJ de 14-11-2007, proc.07P4289 Relat. Maia Costa, “A al. c) do art. 119.º do CPP deve ser lida em conjugação com o art. 61.º, n.º 1, do mesmo diploma, que enumera os direitos do arguido e que distingue com clareza entre o direito de estar presente aos actos processuais que directamente lhe digam respeito (al. a) do n.º 1), e o direito de ser ouvido sempre que o tribunal tenha de tomar uma decisão que pessoalmente o afecte (al. b) do mesmo n.º 1). São direitos distintos, com protecção jurídica também diferente, sendo evidentemente mais forte a do primeiro, que se reporta a situações em que o direito de defesa tem de beneficiar de uma mais intensa protecção. O direito à presença do arguido em determinado acto tem necessariamente o significado de presença física, e constitui uma superior garantia de defesa, ao permitir ao arguido a imediação com o julgador e com as provas que contra ele são apresentadas, estando naturalmente esse direito circunscrito a um número reduzido de actos, entre os quais sobressai o julgamento. O direito de audição não envolve a presença física do arguido, nem sequer a sua intervenção pessoal: trata-se do direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor. Efectivamente, por força do princípio da legalidade, a violação ou a inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei, sendo nos demais casos o ato ilegal qualificado de irregular (art.º 118.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal). A falta de nomeação de intérprete ou de omissão de tradução a arguido que não entenda ou se expresse na língua portuguesa, aquando da constituição com o arguido e da notificação do despacho proferido ao abrigo do art. 495.º do C.P.P., constitui uma nulidade relativa ou dependente de arguição, tipificada no art.º 120.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal. Em conformidade com o disposto no n.º 3, alínea a) e d). deste artigo 120º do C.P.P., as nulidades por omissão de tradução na constituição de arguido e do despacho proferido ao abrigo do art. 495.º do C.P.P., consideram-se sanadas porquanto, não foram suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou, no limite, até ao trânsito em julgado da decisão que revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido. Por outro lado, convém ressaltar que não se desconhece o teor das Directivas, nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal (possui um catálogo de “minimum rights” de compreensão da linguagem falada e escrita no processo para qualquer cidadão confrontado com qualquer tribunal no espaço comunitário; e um conjunto de obrigações mínimas comuns vinculando os Estados na disponibilização do direito à informação/interpretação/tradução de forma gratuita na UE) e da Directiva n.º 2012/13/EU relativa ao direito à informação. Mais, apesar de, em regra, uma Directiva só produzir efeitos após a sua transposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça tem considerado que uma directiva que não foi objecto de transposição ou de errada transposição pode produzir directamente determinados efeitos (efeito directo vertical), podendo os particulares invocar a directiva junto de um tribunal, caso: a) - não tenha sido efectuada a sua transposição para a legislação nacional ou tenha sido objecto de transposição incorrecta; b) - as disposições da directiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; c) - as disposições da directiva confiram direitos a particulares; d) - Esteja esgotado o prazo de transposição. Contudo não se antevê, como o condenado pretende, que em face de tais diplomas comunitários se encontre revogado directa e expressamente revogado o direito interno, designadamente o 120.º n.º 1 al. c) que culmina com nulidade sanável, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei considere obrigatória constitui nulidade dependente de arguição, devendo ser invocada nos hiatos temporais previstos no n.º 3 do mesmo normativo. Entende-se que assumir tal interpretação (ab-rogativa do direito interno), de modo geral e abstracto, sem conferir qualquer efeito útil à norma do art. 120.º n.º 1 al. c). do Código de Processo Penal, é ilegal e não se compadece com os princípios comunitários a que o Estado Português (e os Tribunais) se encontra vinculado (designadamente o da interpretação conforme), como pretende o condenado. Em face do exposto, e em súmula, entende-se que: - A omissão de tradução ou intérprete a arguido estrangeiro que não percebe a língua portuguesa, quer da notificação das obrigações do TIR, quer da notificação do despacho que revoga a suspensão da pena de prisão, constitui uma nulidade relativa ou dependente de arguição, por força do disposto no art.º 120.º, n.º 1 al. c). do Código de Processo Penal. - A arguição de tal nulidade tem se ser feita nos termos das als. a). e d). n.º 3 do art. 120.º do Código de Processo Penal, no qual se estabelecem prazos para a respectiva invocação, findos os quais, a nulidade considera-se sanada (cfr. art. 212.º do Código de Processo Penal). - O arguido esteve presente fisicamente no Julgamento, tendo sido nomeada intérprete idónea e assistido por defensora – acto no qual pode exercer cabalmente o seu direito de defesa, tendo sido foi confrontado com os factos cuja prática que lhe era imputada e, bem assim, foi notificado da sentença final (todos estes actos foram objecto de tradução oral no próprio acto); - O direito de audição do arguido (direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor) foi salvaguardado nos autos: o condenado foi regular e validamente notificado de todas as decisões e despachos proferidos nos autos, nos termos do arts. 196.º n.º 2 e 3 e 113.º, n.º1, 10 e 11, todos do Código de Processo Penal; o condenado esteve sempre representado por defensora, ao longo de todo o processo, a qual foi valida e regularmente notificada de todos os actos processuais praticados nos autos (sentença, despachos a convocar o arguido para ser ouvido nos termos do art. 495.º do CPP e do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão); - Todos os despachos e decisões proferidas nos autos transitaram em julgado, sem terem sido objecto de qualquer recurso ou reclamação, pelo que qualquer (eventual) invalidade cometida no decurso dos autos considera-se, na presente data, sanada. Deste modo, e com os fundamentos expostos, indeferem-se as invalidades arguidas pelo condenado, por falta de fundamento legal. Notifique e D.n.”. *** II.III - Apreciação do mérito do recurso. Compulsados os autos, constatamos que, para análise da questão que somos chamados a apreciar, releva a seguinte factualidade, consignada parcialmente na decisão recorrida e que não se encontra posta em causa no recurso: - O arguido é de nacionalidade moldava e não compreende nem se expressa na língua portuguesa. - Foi constituído arguido em 10.07.2019, tendo o respetivo auto sido redigido em língua portuguesa e traduzido para a língua oficial da Moldávia, a língua romena, conforme resulta do respetivo auto assinado pelo arguido. - O arguido foi sujeito a Termo de Identidade e Residência em 10.07.2019, tendo sido fixada em tal documento a seguinte morada: Rua da (…), Cuba. - Não foi facultada ao primeiro a tradução do Termo de Identidade e Residência para a língua oficial da Moldávia, a língua romena. - Nos atos de constituição de arguido e de prestação de TIR não foi nomeado intérprete ao arguido. - Em audiência de julgamento o arguido foi assistido por defensora, tendo sido nomeada intérprete para proceder à tradução dos atos da audiência, intérprete que prestou compromisso legal de bem desempenhar as suas funções. - Por sentença proferida nos autos em 11.07.2019 e transitada em julgado a 26.09.2019, o arguido foi condenado, em cúmulo jurídico, pela prática dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 2 do Código Penal, condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. no artigo 291.º, alíneas a) e b) e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.º s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período com subordinação a regime de prova, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 12 meses e na pena de 80 dias de multa, à razão diária de €6,00, num montante total de €480,00. - O arguido não respondeu às diversas tentativas de contacto efetuadas pela D.G.R.S.P. na morada constante do TIR. - O arguido não comunicou qualquer alteração de morada aos autos. - Em 12 de Janeiro de 2021, na sequência de despacho proferido a 07.01.2021, foi o arguido notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 495.º n.º 1 e 2 do C.P.P., por via postal simples com prova de depósito, enviada para o endereço constante do TIR – a Rua da (…), Cuba – para comparecer no tribunal a fim de ser ouvido relativamente ao incumprimento dos deveres, regras de conduta e obrigações que lhe haviam sido impostas na sentença. - Em 6 de abril de 2021 foi repetida tal notificação, para a mesma morada, por carta simples com prova de depósito, a notificar o arguido de uma nova data. - Tais notificações foram efetuadas na língua portuguesa. - Na data designada o arguido não compareceu em Tribunal. - No dia 9 de junho de 2021 foi proferido despacho no qual se revogou a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido e se determinou a emissão de mandados de detenção e condução do mesmo ao estabelecimento prisional. - Este despacho foi notificado à defensora do arguido e a este último, por via postal simples com prova de depósito enviada para a morada do TIR, em 25 de junho de 2021, tendo transitado a 20 de setembro de 2021. - O referido despacho foi notificado ao arguido na língua portuguesa, não lhe sido facultada a respetiva tradução para a língua oficial da Moldávia, a língua romena. - A 30 de Setembro de 2021 foi o condenado detido para cumprimento da pena de 3 anos de prisão, tenho o mandado sido cumprido na nova morada do mesmo, sita na Rua da (…), Évora, encontrando-se o arguido preso desde tal data. - A 11 de Outubro de 2021 o arguido constituiu advogado nos autos, tendo juntado a respetiva procuração forense. * No presente recurso impugna o recorrente a validade dos atos processuais consubstanciados na sua constituição como arguido, na prestação de TIR, na notificação nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do CPP e na notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada nos autos, por violação das garantias de defesa face à não disponibilização de tradução do conteúdo de tais atos para a sua língua materna. A juiz “a quo” não perfilhou o entendimento exposto pelo arguido, tendo, ao invés, subscrito a argumentação expendida pelo Ministério Público na sua resposta, com base na qual proferiu a decisão recorrida indeferindo o requerimento do arguido, sustentando que as faltas de nomeação de intérprete e de tradução dos mencionados atos processuais consubstanciam nulidades relativas e, portanto, dependentes de arguição no prazo legal, encontrando-se, à data da prolação do despacho, já sanadas. Vejamos. A forma dos atos processuais e a sua documentação em processo penal, no que diz respeito à língua a utilizar e à nomeação de intérprete, encontra-se regulada no artigo 92.º do CPP, nos seguintes termos: “Artigo 92.º Língua dos atos e nomeação de intérprete 1 - Nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade. 2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao ato ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada. 3 - O arguido pode escolher, sem encargo para ele, intérprete diferente do previsto no número anterior para traduzir as conversações com o seu defensor. 4 - O intérprete está sujeito a segredo de justiça, nos termos gerais, e não pode revelar as conversações entre o arguido e o seu defensor, seja qual for a fase do processo em que ocorrerem, sob pena de violação do segredo profissional. 5 - Não podem ser utilizadas as provas obtidas mediante violação do disposto nos n.ºs 3 e 4. 6 - É igualmente nomeado intérprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada. 7 - O intérprete é nomeado por autoridade judiciária ou autoridade de polícia criminal. 8 - Ao desempenho da função de intérprete é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 153.º e 162.º.” * Sobre as nulidades, sua natureza, regime de arguição, formas de sanação e efeitos da sua declaração, dispõem os artigos 118.º a 122.º do CPP.O vício arguido pelo recorrente, decorrente da falta de tradução e de nomeação de intérprete, não se encontrando incluído no elenco das nulidades insanáveis constante do artigo 119.º do CPP, encontra previsão expressa na alínea c) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, que estabelece as nulidades dependentes de arguição, dispondo da seguinte forma: “Artigo 120.º Nulidades dependentes de arguição 1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte. 2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória; (…) 3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: a) Tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado; b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência; c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito; d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.” * Por seu turno, artigo 122.º, estabelecendo os efeitos da declaração de nulidade, estatui que:“Artigo 122.º Efeitos da declaração de nulidade 1 - As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar. 2 - A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade. 3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.” * Ao nível do direito da União Europeia, a respeito da matéria que nos ocupa, importa convocar as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 2010/64/EU de 20 de outubro de 2010 e n.º 2012/13/EU de 22 de maio de 2012, que, respetivamente, consagram regulamentação atinente ao direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos atos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal.Especificamente no que tange ao direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos atos processuais aos arguidos estrangeiros, estabelece a Diretiva n.º 2010/64/EU nos seus artigos 1.º a 3.º que: “Artigo 1.º Objeto e âmbito de aplicação 1. A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus. 2. O direito a que se refere o n.º 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado. 3. Caso a lei de um Estado-Membro determine que, no caso de infrações de menor gravidade, as sanções são impostas por uma autoridade que não é um tribunal competente em matéria penal e que a imposição dessa sanção é passível de recurso para um tribunal com essas características, a presente diretiva só se aplica à ação que correr termos nesse tribunal na sequência do recurso. 4. A presente diretiva não afeta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo. Artigo 2.º Direito à interpretação 1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias. 2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual. 3. O direito à interpretação referido nos n.ºs 1 e 2 inclui a assistência adequada a pessoas com deficiência auditiva ou da fala. 4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete. 5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo. 6. Se for caso disso, pode recorrer-se a tecnologias de comunicação como a videoconferência, o telefone ou a Internet, a menos que a presença física do intérprete seja necessária para garantir a equidade do processo. 7. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes disponibilizem interpretação nos termos do presente artigo às pessoas submetidas a esses mandados que não falam ou não compreendem a língua do processo. 8. A interpretação disponibilizada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa. Artigo 3.º Direito à tradução dos documentos essenciais 1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo. 2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças. 3. As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito. 4. Não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas. 5. Os Estados-Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo. 6. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão. 7. Como exceção às regras gerais estabelecidas nos n.os 1, 2, 3 e 6, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo. 8. A renúncia ao direito à tradução de documentos previsto no presente artigo fica sujeita ao requisito de que o suspeito ou acusado tenha previamente recebido aconselhamento jurídico, ou obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária. 9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.” * A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu artigo 3.º um conjunto de direitos que, no essencial, coincide com o elenco constante do artigo 61.º do C.P.P., acrescentando, porém, na alínea d) do n.º 1 do um direito que não encontramos no preceito do CPP português:“Artigo 3.º Direito a ser informado sobre os direitos “1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo: (…) d) O direito à interpretação e tradução;(…)” * No âmbito do enquadramento normativo do direito dos arguidos à informação e à nomeação de intérprete, assume ainda especial relevância a C.E.D.H., que, no seu artigo 6.º estatui que:“Artigo 6.° Direito a um processo equitativo (…) 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; (…) e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo(…).” *** Tendo por base o enquadramento normativo agora definido, e vertendo à situação dos autos, analisemos cada uma das questões acima enunciadas e que constituem o objeto do recurso. * A) Das Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho e da sua relação com o direito interno português.As Diretivas em referência[1] – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal – não se encontram transpostas no ordenamento jurídico português, sendo certo que se mostram esgotados os respetivos prazos de transposição, que terminaram, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014. Encontramos no Tratado de Funcionamento da União Europeia (T.F.U.E), concretamente no seu artigo 288.º[2] o princípio segundo o qual uma Diretiva, à partida, só produz efeitos na ordem interna do Estado-Membro após ser transposta, vinculando, porém, os Estados-Membros à sua transposição. Todavia, para além da aplicabilidade direta[3], a possibilidade de aplicação de uma norma comunitária na ordem jurídica dos Estados-Membros pode resultar do chamado efeito direto, que surge como uma “criação jurisprudencial” num primeiro momento relativa ao “direito comunitário originário” (Tratados) – expressamente reconhecido pela primeira vez no acórdão Van Gend & Loos, de 05.02.1963 e, em 1964 (no quadro da afirmação do princípio do primado), no Acórdão Costa c. ENEL – que tem sido estendido pela jurisprudência comunitária, no que diz respeito ao efeito direto vertical, ao “direito comunitário derivado”, onde se incluem as Diretivas.[4] Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber: - Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta; - Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; - Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares; - Que esteja esgotado o prazo de transposição.[5] No que diz respeito à verificação destes requisitos relativamente às duas Diretivas acima identificadas, acompanhamos, sem hesitações, a posição defendida por João Gomes de Sousa no estudo acima citado – e que pelo mesmo autor foi aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28.12.2018, no proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1 por si relatado, disponível em www.dgsi.pt – no sentido de que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que se impõe concluir pelo efeito direto dos dois atos da Direito da União que acima identificámos. Assim e analisando mais de perto cada um dos mencionados requisitos, verificamos que o primeiro e o último se encontram indiscutivelmente preenchidos, pois que, conforme já demos nota, nenhuma das duas Diretivas foi transposta para o ordenamento jurídico português, encontrando-se há muito esgotados os prazos fixados para as suas transposições (o que ocorreu, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014). No que diz respeito ao terceiro requisito que enunciámos, nenhuma dúvida pode igualmente subsistir relativamente à sua verificação, uma vez que as duas Diretivas em referência, nas normas aplicáveis à situação dos autos, conferem indiscutivelmente direitos a particulares, concretamente o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal. Finalmente, no que tange ao preenchimento do segundo critério definido – que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas – e que se apresenta como o que gera maior dificuldade de verificação, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça, convocamos, atenta a sua clareza e assertividade, o acórdão do Tribunal de Justiça Susanne Gassmayr c. Bundesminister für Wissenschaft und Forschung de 1 de julho de 2010 (Processo C-194/08)[6], no qual podemos ler: “(…) 44 - Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, tendo em conta o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorreta (…). 45 - Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados-Membros. Uma disposição é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (…).” * Importa fazer notar estarmos perante normas de Direito da União, concretamente normas emanadas das instituições da União Europeia, que produzem os seus efeitos na ordem jurídica interna ao abrigo do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. Sobre a interpretação deste preceito constitucional (no contexto de um pedido de fiscalização de constitucionalidade de uma norma de um Regulamento da EU) pronunciou-se o Tribunal Constitucional, pela primeira vez, no recente Acórdão nº 422/2020 relatado pelo Conselheiro José António Teles Pereira, tendo-se aí afirmado o princípio do primado do direito da EU sobre o direito interno, nos seguintes termos:“(…) 2.3.3. O princípio do primado, expressando na sua essência um modelo decisório assente na sobreposição do DUE no confronto com os Direitos nacionais, necessariamente projeta, pela sua funcionalidade intrínseca, efeitos de exclusão nas ordens jurídicas internas. A esse efeito corresponde (acaba necessariamente por corresponder) a afirmação da prevalência das normas de DUE em detrimento das normas nacionais, devendo acrescentar-se que a projeção deste efeito vale (…) relativamente ao conjunto do Direito nacional, independentemente da sua natureza e estatuto hierárquico interno. É este, com efeito, o entendimento do alcance do primado, no quadro referencial construído pelo TJUE, que sempre o afirmou, indistintamente, relativamente “[a] todas as normas de direito interno dos Estados-membros independentemente do seu nível hierárquico, incluindo, portanto, as de natureza constitucional” (Patrícia Fragoso Martins, “Princípio do Primado…”, cit., p.53). (…) 2.5.1. Com efeito, no que diz respeito às normas de Direito nacional sem natureza constitucional (rectius, ao Direito ordinário interno), o princípio do primado do DUE é recebido no artigo 8.º, n.º 4 da CRP. Consequentemente, as hipotéticas sobreposições de normas surgidas nesse espaço (referimo-nos, obviamente, ao espaço legítimo de preempção temática pelo DUE) resolvem-se – expressemo-lo desta forma, reforçando a força da asserção – afastando o direito nacional, fazendo atuar na sua essência significativa o princípio do primado, nos exatos termos fixados em 1964 pelo Acórdão Costa c. ENEL. Não se refere o presente recurso [o recurso em causa no Acórdão n.º 422/2020 referia-se ao confronto entre o direito constitucional interno e o Direito da União], pois, à dimensão, que podemos qualificar como básica e evidente, do princípio do primado, correspondente ao confronto das normas internas de direito ordinário (infraconstitucional) dos Estados-membros com o DUE. Essa questão está inequivocamente resolvida na nossa ordem jurídica pelo n.º 4 do artigo 8.º da CRP, ao estabelecer que “[a]s disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das suas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do estado de Direito democrático”. É que esta norma vale, desde logo, com o sentido de aceitação constitucional do princípio do primado na dimensão que confronta o DUE com o direito ordinário interno (…), sendo que essa dimensão do primado (a referida ao direito ordinário nacional) está, pela sua própria natureza, aquém da incidência do trecho final do mesmo n.º 4 (…). Como observa Maria Lúcia Amaral, a “[…] natureza sui generis [do DUE] […] que, não sendo direito criado pelos órgãos do Estado português, vigora na ordem interna de acordo com os princípios do ‘efeito direto’ e do ‘primado’, é reconhecida pela Constituição nos n.ºs 3 e 4 do artigo 8.º. O n.º 3 reconhece expressamente o princípio do efeito direto; e o n.º 4 reconhece implicitamente o princípio do primado, pois que diz que ‘[a]s disposições dos tratados e das normas emanadas das (…) instituições (…) vigoram na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União (…)’. Ora, […] o Direito da União não ‘define’ apenas o ‘termo’ do efeito direto das suas próprias normas; determina ainda que tais normas gozem de supremacia sobre quaisquer normas internas que com elas conflituem. O princípio do primado está, pois, aqui, implicitamente reconhecido. Ao aceitar a primazia e o efeito direto do direito europeu no seu próprio ordenamento interno – e ao fazê-lo depois de ter deixado claro que o Direito Internacional só vigora em território português em virtude de um ato de reconhecimento estadual – a CRP está, portanto, a reconhecer e a aceitar as consequências jurídicas decorrentes do compromisso assumido no artigo 7.º, n.ºs 5 e 6. Por causa deste compromisso, vigora na ordem portuguesa um direito que não é estadual nem internacional: é sui generis” (A Forma da República, Coimbra, 2012, p. 415).” Culmina o acórdão que citamos estabelecendo o que aí se identificou como “o critério geral […] com a vocação de generalidade”, com o seguinte conteúdo: “Nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Tribunal Constitucional só pode apreciar e recusar aplicação a uma norma de DUE, caso a mesma seja incompatível com um princípio fundamental do Estado de direito democrático que, no âmbito próprio do DUE – incluindo, portanto, a jurisprudência do TJUE –, não goze de valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição, já que um tal princípio se impõe necessariamente à própria convenção do “[…] exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia”. Ao invés, sempre que esteja em causa a apreciação de uma norma de DUE à luz de um princípio (fundamental) do Estado de direito democrático que, no âmbito do DUE, goze de um valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição portuguesa, funcionalmente assegurado pelo TJUE (segundo os meios contenciosos previstos no DUE), o Tribunal Constitucional abstém-se de apreciar a compatibilidade daquela norma com a Constituição.” Aqui chegados, importa clarificar que, encontrando-se operativo o efeito direto vertical das Diretivas convocadas, não tem qualquer aplicação à situação dos autos o princípio da interpretação conforme, também designado efeito indireto, ao qual o recorrente alude no recurso – traduzindo-se tal princípio numa imposição de interpretação do direito nacional orientada no sentido da sua conformidade com o Direito da União, com vista a, tanto quanto possível, a atingir os objetivos visados por este – uma vez que, aplicando-se diretamente o Direito da União, nenhum direito nacional haverá a interpretar. Aliás, como refere Maria Luísa Duarte, “(o)objetivo subjacente a qualquer exercício de interpretação conforme é o da procura de um sentido que resgate a norma interna do destino da desaplicação, nela incorporando a finalidade harmonizadora da diretiva” (Direito da União Europeia. Lições Desenvolvidas, Lisboa, AAFDL, 2021, pág. 350). Ora, no caso presente, verificados os pressupostos desencadeadores do “efeito direto vertical” das normas das Diretivas e a eventual incompatibilidade do Direito interno com estas (como adiante veremos), situamo-nos num espaço onde não há lugar à interpretação do Direito interno conforme ao Direito da União, por impossibilidade de alcançar um sentido daquele (interpretativamente construído) congruente com a sua letra. Isto mesmo, aliás, foi recentemente afirmado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21.10.2021, no caso ZX, proc. n.º C-282/20 (pontos 39, 40 e 41): “39.(…) as à questão de saber se o direito da União impõe ou a interpretação conforme do direito nacional ou que fique inaplicada a disposição do artigo 248.o, n.o 3, do Código do Processo Penal, tal como resulta de uma reforma feita no decurso do ano de 2017, a fim de se aplicar a disposição que existia até então e que permitia a suspensão do processo judicial e a remessa do processo ao procurador, importa recordar que, a fim de garantir a efetividade de todas as disposições do direito da União, o princípio do primado deste direito impõe, nomeadamente, aos órgãos jurisdicionais nacionais que, tanto quanto possível, interpretem o seu direito interno em conformidade com o direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, Pop³awski, C-573/17, EU:C:2019:530, n.o 57). “40. Só quando é impossível proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União é que o juiz nacional encarregado de aplicar as disposições do direito da União tem a obrigação de assegurar o seu pleno efeito deixando inaplicada se necessário, pela sua própria autoridade, toda e qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo posterior, sem ter de requerer ou esperar pela sua eliminação prévia pela via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, Pop³awski, C-573/17, EU:C:2019:530, n.o 58 e jurisprudência referida). 41. Assim, em caso de impossibilidade de interpretação conforme, qualquer juiz nacional, chamado a pronunciar-se no quadro da sua competência, tem, como órgão de um Estado-Membro, a obrigação de deixar inaplicada qualquer disposição nacional contrária a uma disposição do direito da União que tenha efeito direto no litígio que tem de decidir (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, Pop³awski, C-573/17, EU:C:2019:530, n.o 61 e jurisprudência referida). A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 6.o, n.o 3, da Diretiva 2012/13 deve ser considerado como tendo esse efeito direto (v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2020, Staatsanwaltschaft Offenburg, C-615/18, EU:C:2020:376, n.º 72).(…)”. Nesta conformidade, encontrando-se verificados todos os requisitos dos quais depende a atribuição de efeito direto vertical às Diretivas – uma vez que as mesmas não foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional nos prazos fixados para o efeito, sendo que as normas aplicáveis à situação vertente são claras, precisas e incondicionais e conferem direitos a particulares – e considerando o primado do Direito da União constitucionalmente reconhecido pelo artigo 8.º, n.º 4 da CRP, somos a concluir que as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, concretamente as normas constantes dos artigos 1.º a 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU, têm efeito direto vertical na ordem jurídica nacional, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno. B) Da inclusão dos atos processuais cuja validade vem posta em causa pelo arguido – auto de constituição de arguido, prestação de TIR, notificação nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do CPP e notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão – no conceito de “documentos essenciais” sujeitos a tradução, a que alude o artigo 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU, por forma a acautelar os “minimum rights” previstos no artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H e do direito à nomeação de intérprete e à tradução a que aludem o artigo 1.º a 3.º da mesma Diretiva e o artigo 3.º, n.º 1, alínea d) da Diretiva 2012/13/UE. Tal como acima demos nota, o artigo 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU, consagrando o direito à tradução, estabelece de forma clara que: “1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo. 2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças. 3. As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial.(…)”. Por seu turno, no que tange à salvaguarda do direito à nomeação de intérprete, preceitua o artigo 2.º da mesma Diretiva que: “1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias. 2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.” Para garantia de ambos os direitos (à tradução e à interpretação) estabelece ainda artigo 3.º, n.º 1, alínea d) da Diretiva 2012/13/EU que: “1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo: (…) d) O direito à interpretação e tradução;(…)” * Na previsão dos atos e documentos relativamente aos quais deverá ser garantido o direito à interpretação e à tradução, incluem-se, indiscutivelmente, todos os que se revelem importantes ou condicionadores do direito de defesa dos arguidos. Assim, para além dos que especificamente se encontram enumerados no n.º 2 do artigo 3.º transcrito – decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças – também os atos processuais levados a efeito quer nas fases preliminares, quer nas fases subsequentes do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir.Entre os referidos atos – e pese embora o único artigo do CPP português que prevê o direito à tradução, o artigo 92.º, não os contemple em previsão expressa – contam-se, indubitavelmente, pela sua importância ao nível das garantias de defesa dos arguidos, decorrente das informações processuais que aportam, a prestação de Termo de Identidade e Residência realizada nos termos 196.º do CPP, a notificação do arguido nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do CPP e a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena. A notificação do arguido nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do CPP e, bem assim, a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena, têm, ao nível das garantias de defesa do arguido, a relevância acrescida de, no que diz respeito à primeira, condicionar o exercício do direito à audição e ao contraditório e, relativamente à segunda, ela própria dar a conhecer ao condenado a determinação da privação da sua liberdade (como veio a suceder no caso dos autos), encontrando esta última situação previsão expressa na literalidade do nº 2 da Diretiva n.º 2010/64/EU “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade”. No que diz respeito ao TIR, é indiscutível que o mesmo assume hoje no processo penal português uma relevância não equiparável à assinatura de um outro qualquer documento nos autos, desde logo porquanto o mesmo aporta um conjunto de informações e de obrigações absolutamente condicionadoras do direito de defesa do arguido.[7] [8] Os próprios considerandos da Diretiva n.º 2010/64/EU, máxime os considerandos 17 e 22 – dos quais consta que “a presente diretiva deverá garantir a livre prestação de uma adequada assistência linguística (…)” e “a interpretação e a tradução previstas na presente diretiva deverão ser disponibilizadas na língua materna do suspeito ou acusado ou em qualquer outra língua que ele fale ou compreenda (…) – sustentam a convicção de que o acautelamento dos direitos à tradução e à interpretação em todos os atos processuais que integram o processo penal surge como uma obrigação positiva para os Estado-Membros. O artigo 6.º n.º 3 da CEDH, que acima transcrevemos, consagrando o direito a um processo equitativo, constitui igualmente um contributo importante para sedimentar tal entendimento. De facto, estabelecendo tal norma os “minimum rights” e prevendo concretamente que o arguido tem o direito a “ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada” [al. a)] e a “fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo” [al. e)], é legítimo concluir que da mesma resulta a obrigação para qualquer tribunal nacional de se assegurar que o arguido percebe a língua em que os atos são praticados, e, caso o mesmo não a entenda, a obrigação de lhe assegurar a interpretação dos atos e a tradução dos documentos para língua que aquele domine. Volvendo ao caso dos autos, registamos, em primeiro lugar, que, de entre os atos processuais cuja invalidação vem solicitada pelo arguido no recurso, existe um que se encontra traduzido para a língua materna do recorrente, qual seja o auto de constituição de arguido, conforme resulta do respetivo documento que se encontra assinado pelo próprio. Quanto aos demais atos processuais que o recorrente pretende invalidar, temos que, conforme é reconhecido na própria decisão recorrida, nenhum dos referidos direitos foi assegurado, uma vez que nem o TIR, nem a notificação nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do CPP, nem a notificação do despacho que revogou a suspensão de execução da pena de prisão foram traduzidos para a língua materna do arguido, a língua romena, nem em qualquer de tais momentos lhe foi nomeado tradutor. Acresce que se revela imperioso sinalizar que a diligência de audição a que alude o artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. se realizou sem presença do arguido, não tendo o mesmo sido ouvido e não lhe tendo sido dado conhecimento prévio dos argumentos invocados para justificar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão. Ademais, segundo o arguido, a frustração dos contactos que a DGRSP tentou estabelecer para implementar o regime de prova fixado como condição da suspensão – que constituiu, aliás, o fundamento único da revogação da suspensão – e, bem assim, o não recebimento efetivo das notificações para comparecer em Tribunal nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e do despacho que procedeu à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, ficaram a dever-se à mudança de residência do mesmo[9], alegando o recorrente não ter recebido tais notificações em virtude de ter deixado de residir na morada constante do TIR, desconhecendo que deveria comunicar tal alteração de residência ao processo em virtude de o TIR não lhe ter sido traduzido. C) Das consequências jurídico-processuais da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos referidos atos. Tendo a decisão recorrida reconhecido a existência dos vícios resultantes da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos mencionados atos processuais, enquadrou-os na categoria das nulidades relativas, o que fez com base na aplicação à situação vertente do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea c) do CPP, norma que comina com nulidade sanável, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considere obrigatória. Assim, considerou o tribunal “a quo” sanadas as nulidades por omissão de tradução e de nomeação de intérprete na prestação de T.I.R., na notificação do arguido para comparecer em Tribunal nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e na notificação do despacho que procedeu revogação da suspensão da execução da pena de prisão, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho, em conformidade com o disposto no nº 3, alíneas a) e d) do artigo 120.º do CPP. E assim decidiu a juiz “a quo” por ter entendido que “(…) não se antevê, como o condenado pretende, que em face de tais diplomas comunitários [as Diretivas ] se encontre revogado direta e expressamente revogado o direito interno, designadamente o 120.º n.º 1 al. c) que culmina com nulidade sanável, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei considere obrigatória constitui nulidade dependente de arguição, devendo ser invocada nos hiatos temporais previstos no n.º 3 do mesmo normativo. Entende-se que assumir tal interpretação (ab-rogativa do direito interno), de modo geral e abstrato, sem conferir qualquer efeito útil à norma do art. 120.º n.º 1 al. c). do Código de Processo Penal, é ilegal e não se compadece com os princípios comunitários a que o Estado Português (e os Tribunais) se encontra vinculado (designadamente o da interpretação conforme), como pretende o condenado.(…)” Ora, é precisamente este entendimento que pomos em causa, ou, dito de outro modo, questionamos se a interpretação do artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P. propugnada pelo Tribunal “a quo” – no sentido de considerar sanadas as nulidades por omissão de tradução e de nomeação de intérprete na prestação de T.I.R., na notificação do arguido para comparecer em Tribunal nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e na notificação do despacho que procedeu revogação da suspensão da execução da pena de prisão, por não terem sido suscitadas nos prazos aí estabelecidos – se se revela compatível com a aplicação das identificadas Diretivas Comunitárias.[10] Reiteramos que estamos a fazer aplicação de direito da União Europeia e que o que agora equacionamos é a determinação da sanção processual adequada para atos processuais penais inválidos regulados por normas constantes de atos jurídicos da União. Temos assim como imperioso o respeito pelos fins visados pelas Diretivas em causa, sendo certo que constitui um dever dos Estados-membros a aplicação do Direito da União na respetiva ordem interna “com respeito pelas suas características próprias e específicas” em cumprimento do disposto no artigo 291.º do T.F.U.E. Assenta tal premissa nos princípios da lealdade comunitária, da leal cooperação e da coerência global do sistema jurídico da União, decorrendo da referida premissa que as violações das normas do Direito da União não poderão deixar de ser sancionadas com salvaguarda do prosseguimento dos fins visados pelas normas violadas. Temos por certo que a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas, “in casu” por efeito direto vertical, atendendo ao princípio do primado do Direito da União, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União. Porém, a nosso ver, no que à economia do caso dos autos diz respeito, importa questionar se o regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120.º, n.º 3 do CPP, aplicado na decisão recorrida, se revela verdadeiramente contrário às normas das Diretivas que pretendemos aplicar ou se com ele pode coexistir. Aqui chegados e uma vez que, repete-se, nos encontramos a fazer aplicação de normas do DUE, é em tal ordenamento jurídico que se impõe procurar a resposta para a questão equacionada, questão que se insere num “(…) contexto conflitual induzido por particularidades do Direito nacional, cuja base de incidência no processo interativo da União com os Estados-membros os Tratados [no caso dos autos as Diretivas] não deixam de integrar (cfr. os artigos 4.º, n.ºs 1 e 2 e 5.º, n.ºs 1 e 2, do TUE)], [e que] traduz um fenómeno impossível de afastar em qualquer interação entre sistemas normativos autónomos – mais ainda numa relação com a complexidade gerada pela construção europeia –, postulando um enquadramento especificamente talhado em função da necessidade prática de uma resolução imediata, a qual, não obstante, se integre numa estratégia de gestão conflitual desencadeadora de cooperação, por esbatimento da potencialidade de confrontação. (…)”.[11] No ordenamento jurídico da União Europeia, nos termos expressamente previstos no artigo 267.º do TFUE, sempre que uma questão de interpretação do DU seja suscitada em processo pendente perante um tribunal nacional, este pode ou deve – consoante a sua decisão seja ou não suscetível de recurso – submeter a questão ao Tribunal de Justiça da EU. Conforme se consignou no recente acórdão do TC n.º 173/2020, relatado pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros – no qual foi colocada também uma questão prejudicial ao TJ – “(…) trata-se de uma decorrência da cooperação leal que deve existir entre os tribunais nacionais e os tribunais da União, no âmbito das respetivas jurisdições (artigo 4.º, n.º 3 do Tratado da EU [TUE]) e uma manifestação do diálogo e respeito mútuos que devem existir entre esses órgãos jurisdicionais. (…)” Dispõe tal norma da seguinte forma: “Artigo 267.º (ex-artigo 234.º TCE) O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.” Ora, na situação que dos autos, considerando que a presente decisão é insuscetível de recurso ordinário (nos termos do artigo 400.º, n.º 1, al. c) do CPP), em cumprimento do disposto no artigo 267.º do TFUE, que acabámos de transcrever, concretamente dos seus 1.º e 3.ºs parágrafos, encontramo-nos obrigados a submeter a questão acima enunciada ao Tribunal de Justiça da EU através do reenvio prejudicial. Acresce que, estando em causa uma obrigação de reenvio, nos termos sobreditos, não se verifica na situação que nos ocupa nenhuma das circunstâncias nas quais, segundo o TJUE – aqui com especial relevo o acórdão Cilfit [12] – o tribunal nacional está dispensado desse reenvio, pois que nem os atos que pretendemos aplicar são por si claros, nem encontramos no âmbito da jurisprudência do TJUE qualquer clarificação dos mesmos no que especificamente diz respeito à sua incidência quanto à questão que acima enunciámos[13]. Não se verificam, pois, as situações de dispensa à obrigação de reenvio decorrentes da jurisprudência Cilfit – acte éclairé e acte clair. D) Da decisão sobre a colocação de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da EU. No que diz respeito à formulação e ao conteúdo do pedido de reenvio prejudicial, as condições necessárias à sua completude encontram-se consignadas no artigo 94.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, estabelecendo este que: “Artigo 94.º Para além do texto das questões submetidas ao Tribunal a título prejudicial, o pedido de decisão prejudicial deve conter: a) uma exposição sumária do objeto do litígio bem como dos factos pertinentes, conforme apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio, ou, no mínimo, uma exposição dos dados factuais em que as questões assentam; b) o teor das disposições nacionais suscetíveis de se aplicar no caso concreto e, sendo caso disso, a jurisprudência nacional pertinente; c) a exposição das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar-se sobre a interpretação ou a validade de certas disposições do direito da União, bem como o nexo que esse órgão estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal.” Importante será ainda ter em conta o conjunto de recomendações, não vinculativas, dirigidas às jurisdições nacionais que pretendem orientar todo o processo de reenvio prejudicial -“Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais relativas à apresentação de processos prejudiciais”, nas quais se inclui a Recomendação 2019/C380/01.[14] Importa ainda referir que o artigo 267.º do TFUE, no 4.º parágrafo, prevê expressamente que “Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.” Ora, é precisamente esta a situação verificada os presentes autos, uma vez que o recorrente se encontra preso desde o dia 30 de setembro de 2021 em cumprimento de uma decisão cuja validade se encontra questionada no recurso. Assim, impor-se-á a formulação do pedido de tramitação acelerada ou urgente do pedido de reenvio prejudicial, em conformidade com o disposto nos artigos 105.º e seguintes do Regulamento de Processo do do Tribunal de Justiça e 23.º-A do Estatuto do TJUE. * De acordo com a regulamentação e recomendações expostas, procederemos de seguida, de forma autónoma, à colocação de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, o que faremos começando por descrever o quadro factual e jurídico do pedido de decisão prejudicial e os motivos que fundamentam a dúvida interpretativa das normas das Diretivas que justifica a apresentação do pedido de reenvio ao Tribunal.[15]*** Colocação da questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da EU1 - Quadro factual do pedido de decisão prejudicial Nos presentes autos, no Tribunal recorrido, foi proferido despacho indeferindo o requerimento apresentado pelo arguido de verificação das nulidades decorrentes da falta de nomeação de intérprete e da omissão de tradução nos seguintes atos processuais: - Prestação de Termo de Identidade e Residência (T.I.R.); - Notificação para ser ouvido presencialmente, nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do CPP, sobre os pressupostos da revogação da suspensão da pena de prisão que lhe havia sido aplicada nos autos; - Notificação do despacho de revogação de suspensão da execução da pena que veio a ser proferido. O indeferimento do requerimento apresentado pelo arguido sustentou-se no entendimento de que, consubstanciando a falta de nomeação de intérprete e de tradução dos referidos atos processuais nulidades relativas ou dependentes de arguição, as mesmas se encontravam sanadas por não terem sido arguidas nos prazos legais estipulados pelo artigo 120.º, n.º 3, alíneas a) e d) do C.P.P. É deste despacho de indeferimento que recorre o arguido para este Tribunal da Relação. Reputamos ainda relevante, com vista a melhor enquadrar a questão a prejudicial a formular, deixar registadas as seguintes incidências factuais resultantes dos autos: - O arguido é de nacionalidade moldava e não compreende nem se expressa na língua portuguesa. - Foi constituído arguido em 10.07.2019, tendo o respetivo auto sido redigido em língua portuguesa e traduzido para a língua oficial da Moldávia, a língua romena, conforme resulta do respetivo auto assinado pelo arguido. - O arguido foi sujeito a Termo de Identidade e Residência em 10.07.2019, tendo sido fixada em tal documento a seguinte morada: Rua da (…) Cuba. - Não foi facultada ao primeiro a tradução do Termo de Identidade e Residência para a oficial da Moldávia, a língua romena. - Nos atos de constituição de arguido e de prestação de TIR não foi nomeado intérprete ao arguido. - Em audiência de julgamento o arguido foi assistido por defensora, tendo sido nomeada intérprete para proceder à tradução dos atos da audiência, intérprete que prestou compromisso legal de bem desempenhar as suas funções. - Por sentença proferida nos autos em 11.07.2019 e transitada em julgado a 26.09.2019, o arguido foi condenado, em cúmulo jurídico, pela prática dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 2 do Código Penal, condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. no artigo 291º, alíneas a) e b) e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.º s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período com subordinação a regime de prova, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 12 meses e na pena de 80 dias de multa, à razão diária de €6,00, num montante total de € 480,00. - O arguido não respondeu às diversas tentativas de contacto efetuadas pela D.G.R.S.P. na morada constante do TIR, alegando não ter efetivamente recebido tais notificações em virtude de ter mudado de residência. - O arguido não comunicou qualquer alteração de morada aos autos, alegando não o ter feito por não saber que a tal estava obrigado uma vez que não lhe foi traduzido o Termo de Identidade e Residência de onde constava tal obrigação e as respetivas cominações. - Em 12 de Janeiro de 2021, na sequência de despacho proferido a 07.01.2021, foi o arguido notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 495.º n.º 1 e 2 do C.P.P., por via postal simples com prova de depósito, enviada para o endereço constante do TIR – a Rua da (…), Cuba – para comparecer no tribunal a fim de ser ouvido relativamente ao incumprimento dos deveres, regras de conduta e obrigações que lhe haviam sido impostas na sentença, alegando o arguido não ter efetivamente recebido tal notificação em virtude de ter mudado de residência. - Em 6 de abril de 2021 foi repetida tal notificação, para a mesma morada, por carta simples com prova de depósito, a notificar o arguido de uma nova data, alegando o arguido não ter efetivamente recebido tal notificação em virtude de ter mudado de residência. - Tais notificações foram efetuadas na língua portuguesa. - Na data designada o arguido não compareceu em Tribunal. - No dia 9 de junho de 2021 foi proferido despacho no qual se revogou a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido e se determinou a emissão de mandados de detenção e condução do mesmo ao estabelecimento prisional. - Este despacho foi notificado à defensora do arguido e a este último, por via postal simples com prova de depósito enviada para a morada do TIR, em 25 de junho de 2021, tendo transitado a 20 de setembro de 2021, alegando o arguido não ter efetivamente recebido tal notificação em virtude de ter mudado de residência. - O referido despacho foi notificado ao arguido na língua portuguesa, não lhe sido facultada a respetiva tradução para a língua oficial da Moldávia, a língua romena. - A 30 de Setembro de 2021 foi o condenado detido para cumprimento da pena de 3 anos de prisão, tenho o mandado sido cumprido na nova morada do mesmo, sita na Rua da (…), Évora, encontrando-se o arguido preso desde tal data. - A 11 de Outubro de 2021 o arguido constituiu advogado nos autos, tendo juntado a respetiva procuração forense. * 2 - Quadro jurídico do pedido de decisão prejudicial Encontrando-se verificados todos os requisitos dos quais depende a atribuição de efeito direto vertical às Diretivas – uma vez que as mesmas não foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional nos prazos fixados para o efeito, sendo que as normas aplicáveis à situação vertente são claras, precisas e incondicionais e conferem direitos a particulares – e considerando o primado do Direito da União constitucionalmente reconhecido pelo artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, concretamente as normas constantes dos artigos 1.º a 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal – têm efeito direto vertical em Portugal, e têm aplicação aos presentes autos impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno. Tendo a decisão recorrida reconhecido a existência dos vícios resultantes da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos mencionados atos processuais, enquadrou-os na categoria das nulidades relativas, o que fez com base na aplicação à situação vertente do disposto no artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2 alínea c) do CPP, norma que comina com nulidade sanável, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considere obrigatória. Assim, considerou o tribunal “a quo” sanadas as nulidades por omissão de tradução e de nomeação de intérprete na prestação de T.I.R., na notificação do arguido para comparecer em Tribunal nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e na notificação do despacho que procedeu revogação da suspensão da execução da pena de prisão, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho, em conformidade com o disposto no n.º 3, alíneas a) e d) do artigo 120.º do CPP. O artigo 120.º, n.º 1, n.º 2, alínea c) e n.º 3, alíneas a) e d) do CPP português dispõem da seguinte forma: “Artigo 120.º Nulidades dependentes de arguição 1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte. 2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória; (…) 3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: a) Tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado; (…) d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.” 3 - Motivos que fundamentam a dúvida interpretativa Temos por certo que a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas, “in casu” por efeito direto vertical, atendendo ao princípio do primado do Direito da União, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União. Porém, a nosso ver, no que à economia do caso dos autos diz respeito, importa questionar se o regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120.º, n.º 3 do CPP, aplicado na decisão recorrida, se revela verdadeiramente contrário às normas das Diretivas que pretendemos aplicar ou se com ele pode coexistir. 4 - Questão prejudicial Sendo colocado perante a questão da interpretação dos artigos 1.º a 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, vem o Tribunal da Relação de Évora, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, colocar a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça: - Podem os artigos 1.º a 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.º da C.E.D.H., ser interpretados no sentido de não se oporem a uma norma de direito nacional que comine com o vício de nulidade relativa, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete e de tradução de atos processuais essenciais a arguido que não compreenda a língua do processo, permitindo a sanação de tais vícios com o decurso do tempo? * 5 - Pedido de tramitação acelerada ou urgente do pedido de reenvio prejudicialConsiderando que o arguido, recorrente nos presentes autos, se encontra preso desde o dia 30 de Setembro de 2021, em cumprimento da decisão que procedeu à revogação da suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada e sendo certo que a validade de tal decisão se encontra posta em causa no recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 267.º do TFUE, 4.º parágrafo, 105.º e seguintes do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e 23.º-A do Estatuto do TJUE, solicita-se que se proceda à tramitação acelerada ou urgente do pedido de reenvio prejudicial. *** III- Dispositivo. Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: I - Colocar a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça: “Podem os artigos 1.º a 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.º da C.E.D.H., ser interpretados no sentido de não se oporem a uma norma de direito nacional que comine com o vício de nulidade relativa, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete e de tradução de atos processuais essenciais a arguido que não compreenda a língua do processo, permitindo a sanação de tais vícios com o decurso do tempo?” II - Solicitar que se proceda à tramitação acelerada ou urgente do pedido de reenvio prejudicial, ao abrigo do disposto nos artigos 267.º do TFUE, 4.º parágrafo, 105.º e seguintes do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e 23.º-A do Estatuto do TJUE. Sem custas. * Comunique, de imediato, à primeira instância o teor do presente acórdão para os efeitos tidos por convenientes.(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias) Évora, 8 de março de 2022 Maria Clara Figueiredo Maria Margarida Bacelar __________________________________________________ [1] As referenciadas Diretivas constituem a concretização das medidas A e B constantes do anexo à Resolução do Conselho da União Europeia aprovada em 30 de novembro de 2009 (2009/C 295/01) que estabeleceu um “roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais”. [2] “Artigo 288.º Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres. O regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros. A diretiva vincula o destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes. As recomendações e os pareceres não são vinculativos.” [3] Originalmente prevista no artigo 288º do TFUE acima transcrito para normas que se destinam a vigorar automaticamente na data da sua entrada em vigor. [4] A este propósito, contendo uma ampla abordagem do tema que nos ocupa, consultar o texto de João Gomes de Sousa, “Interpretar, Traduzir e Informar: “incómodos” da modernidade?”, in Julgar Online, março de 2019 | 16. [5] O que poderá ser entendido como sanção contra o Estado negligente e também como forma de permitir o controlo das omissões dos Estados-Membros pelos seus cidadãos. [6] Também referido no Estudo de João Gomes de Sousa acima citado (pag 18). [7] Defendendo a inclusão do TIR no catálogo dos atos a que alude o artigo 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU, cfr. João Gomes de Sousa in ob cit, páginas 38 a 41. [8] Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 196.º do C.P.P., do TIR deve constar que ao arguido foi dado conhecimento das seguintes informações e obrigações: “(…)a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado; b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado; c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento; d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º e) De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena.(…)” [9] A morada constante do TIR é Rua da (…), Cuba e a morada para a qual o arguido alega ter mudado e na qual foi efetivamente cumprido o mandado de detenção para cumprimento de pena em 30 de setembro de 2021 é Rua da (…), Évora. [10] Em sentido contrário, defendendo a inexistência dos autos e a inaplicabilidade do regime de sanação das nulidades constante do artigo 120º, nº 3 do CPP se pronunciou João Gomes de Sousa no Acórdão da RE de 28.12.2018 e na ob. cit, páginas 44 a 50, nos seguintes termos “(…) Aqui já não vale, face à existência das Diretivas, vir esgrimir com a afirmação habitual de que o arguido deveria ter vindo suscitar a falsidade do auto de notícia em prazo, ou a invalidade do ato (nulidade sanável ou mera irregularidade) nos curtos prazos aplicáveis. É um argumento que muito se assemelha a um “lava-mãos” bíblico que tem os dias contados. Se existe dúvida sobre o conhecimento da língua do processo e simultaneamente o cidadão tem que a conhecer para arguir a nulidade está a ficcionar-se um facto: que ele conhece (aliás, domina) a língua oficial do processo. E esse facto, para além de ficcionado assume igualmente a natureza de ato incontroverso e inimpugnável porque o prazo de arguição já decorreu. Ou seja, inviabiliza-se o direito substancial por imposição de uma ficção enroupada por uma sanação adjetiva. De tal forma que enquanto a dúvida quanto ao conhecimento da língua se mantiver empiricamente e perante o concreto cidadão (isto é, fora da teoria dos atos processuais) a consequência de tal posição é uma insuportável imposição por presunção assente num facto ficcionado e acobertada num prazo exculpatoriamente curto. (…) Entende-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma “obrigação positiva” a onerar o Estado e proveniente de aplicação de norma comunitária, levando necessariamente a considerar-se revogada a al. c) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.” [11] Acórdão nº 422/2020 relatado pelo Conselheiro José António Teles Pereira, já acima citado e transcrito e disponível do no sítio do TC. [12] Acórdão do TJ de 6 de outubro de 1982 - Proc. 283/81 Srl Cilfit et Lanificio di Gavardo SpA c. Ministerio della sanità. Estabelecendo duas situações de exceção ao reenvio obrigatório, diz-nos o TJ neste acórdão que a questão de direito em causa pode ser “tão óbvia que não deixa lugar a qualquer dúvida razoável relativamente à forma como a questão deve ser resolvida” e ainda que o esclarecimento pelo TJUE de uma situação equivalente, relativamente à qual se possa fazer um juízo de identidade de razão, confere à norma interpretada a natureza de “ato clarificado”. Consagraram-se, assim, as doutrinas do “acte éclairé e acte clair”. Reafirmando este entendimento, cfr. o Acórdão do TJ de 06.10.21, Consorzio Italian Management, proc C-561/19: “(…) O artigo 267.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso jurisdicional de direito interno deve cumprir a sua obrigação de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão relativa à interpretação do direito da União perante si suscitada, a menos que constate que essa questão não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa já foi objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a interpretação correta do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a nenhuma dúvida razoável. A existência dessa eventualidade deve ser avaliada em função das características próprias do direito da União, das dificuldades particulares que a sua interpretação apresenta e do risco de divergências jurisprudenciais na União.(…)” [13] Relativamente à interpretação das normas das Diretivas que nos presentes autos se aplicam encontramos apenas três acórdãos proferidos no âmbito de decisões de reenvio prejudicial, não tendo os mesmos abrangência interpretativa que inclua a questão da compatibilidade do regime de sanação das nulidades previsto no artigo 120.º, n.º 3 do CPP português com as normas das Diretivas n.ºs 2010/64/EU e 2012/13/EU que prevêem os direitos à tradução, à nomeação de intérprete e à informação em processo penal que no presente processo se coloca, a saber: - Acórdão do TJ de 15 de outubro de 2015, proferido no processo C‑216/14, no caso Gavril Covaci, no âmbito de uma decisão de reenvio prejudicial apresentado por um tribunal alemão, no qual se suscita questão relativa à possibilidade de apresentação de peças processuais em língua diferente da do processo; - Acórdão do TJ de 9 de junho de 2016, proferido no processo C-25/15, no caso István Balogh, no âmbito de uma decisão de reenvio prejudicial apresentado por um tribunal húngaro, no qual se discute a organização e conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre Estados-Membros. - Acórdão do TJ de 12 de outubro de 2017, proferido no processo C-278/16, no caso Franck Sleutjes, no âmbito de uma decisão de reenvio prejudicial apresentado por um tribunal alemão, no qual se questiona o conceito de “documento indispensável”. [14] A este propósito cfr. Luísa Lourenço, “O Reenvio prejudicial para o TJUE e os pareceres consultivos do Tribunal EFTA”, in Julgar 35, 2018, pag 190. [15] Com a mesma estrutura, que aqui seguimos de perto, cfr. Acórdão do TC n.º 173/2020, relatado pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, páginas 14 a 20. |