Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
848/10.8TTSTB.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: INTERESSE EM AGIR
BENEFICIÁRIO ASCENDENTE
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 01/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL DO TRABALHO DE SETÚBAL
Texto Integral: S
Sumário:
I- O interesse em agir, consiste no direito do demandante estar necessitado de tutela judicial. É um pressuposto processual que implica a necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, devido à existência de uma conflitualidade sobre um direito.
II- A nível jurisprudencial tem-se entendido que a falta deste pressuposto processual constitui uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente, como tal, à absolvição da instância.
III- Numa acção especial emergente de acidente de trabalho, sujeita ao regime previsto pela Lei nº 98/2009, reclamando a ascendente do falecido sinistrado o direito à pensão por morte, e, mostrando-se provado, na fase do saneador, que a mesma, é viúva e aufere uma pensão de valor superior à pensão social, a mesma não pode preencher os requisitos legalmente exigidos para a qualidade de beneficiário. Tal questão, porém tem a ver com o mérito da acção.
IV- Todavia, a mesma tem interesse em agir, pois existe conflito entre as partes, no que respeita a saber se a mesma preenche ou não os pressupostos exigidos para a qualidade de beneficiária legal, no âmbito da legislação que disciplina o direito à reparação do acidente de trabalho.
Assim, não estamos perante a falta de um pressuposto processual que devesse ser apreciado oficiosamente no despacho saneador.

Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
I.Relatório
No Tribunal do Trabalho de Setúbal corre termos a acção especial emergente de acidente de trabalho, com o nº 848/10.8TTSTB, em que são autoras M… e I… e entidades responsáveis Companhia de Seguros…, S.A. e R…, Lda., todos com os sinais identificadores nos autos.
Iniciada a fase contenciosa, com a apresentação das petições iniciais, seguiu-se a fase normal de apresentação dos articulados.
Foi então elaborado despacho saneador, que apreciou, entre outras questões, as excepções da ilegitimidade activa e passiva, invocadas pela demandada R…, Lda e considerou que “não existem nem foram invocadas outras excepções, questões prévias ou nulidades de que cumpra conhecer e que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa”.
Procedeu-se à selecção dos factos assentes e à organização da Base Instrutória.
Inconformado em parte com o decidido, veio R…, Lda, interpor recurso de Apelação de tal despacho, na parte em que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade da autora I…, bem como, na parte em que julgou que não existem nem foram invocadas outras excepções, questões prévias, ou nulidades de que cumpram conhecer e que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
Foi arguida a nulidade do despacho saneador, em separado, com referência às duas decisões postas em crise.
A Meritíssima Juíza da 1ª instância, pronunciou-se no sentido da improcedência da arguida nulidade.
Em sede de recurso, foram apresentadas as seguintes conclusões:
1- O douto despacho saneador padece de nulidade ao abrigo do disposto no art° 668°, n° 1 al. d) conjugado com o disposto no n° 3 do art° 666° e n° 2 do art° 660°, todos do CPC, por omissão de pronúncia, porquanto,
2- A recorrente invocou na sua contestação (artºs 1°, 2°, 3º) que a A. I… auferia à data dos factos, uma pensão mensal no valor de € 394,19, logo superior à pensão social no valor de € 189,00 fixada pela Portaria no 1457/2009 de 31 de Dezembro, aplicável à data dos factos.
3- Tais factos encontram-se aceites pela A. l…
4- Nos termos no disposto na al., d) do art° 57º e al., d) do art° 49° da Lei 98/2009 de 4 Setembro, aplicável aos presentes autos, a A., não reúne os pressupostos para que lhe seja atribuída qualquer pensão no âmbito dos presentes autos.
5- O douto despacho saneador, na parte que se recorre, o tribunal refere sumariamente os factos em que a Recorrente sustenta a invocada excepção de ilegitimidade, da A. l…, mas não apreciou tais factos nem efectuou qualquer aplicação do direito aos mesmos,
6- Tendo inclusivamente concluído em IV que "Não existem nem foram invocadas outras excepções, questões prévias ou nulidades de que cumpra conhecer e que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa",
7- Não obstante a Recorrente ter qualificado tais factos e direito como se tratando de uma questão de ilegitimidade activa, da A. l…, a verdade é que, o tribunal não está nesta parte vinculado a tal qualificação jurídica (art° 664° do C.P.C.);
8- Assim, auferindo a A. l… rendimentos mensais superiores ao da pensão social, não está em causa a sua ilegitimidade activa, mas em bom rigor a sua falta de interesse em agir, o que constitui um pressuposto processual e como tal, consubstancia uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso. (art°s 288° n° 1, al. e), 493º nºs 1 e 2, 494°, 495º do C.P.C. e art° 131° n° 1 als. a) e b) do C.P.T.)
9- Deste modo, porque o estado do processo permite, desde já, o conhecimento do mérito da causa, no que concerne à A. l…, impõe-se que o Tribunal a quo o faça, conforme decorre no disposto na al. b) do C.P.T.;
10- Sob pena de se estar a praticar actos inúteis, de todo vedados, pelo art. 137° do C.P.C.
11- O Despacho recorrido, na parte que se recorre, violou o disposto nos artºs 668° n° 1 al. d), 666° n° 3, 660º n° 2, 664°, 288° n° 1, al. e) 493° nºs 1 e 2, 494º, 495° e 137ºdo C.P.C, art° 131° n° 1 als. a) e b) do C.P.T e art°s 57º e 49º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.
12- O Despacho Saneador da parte que ora se recorre é nulo, devendo, por isso revogado, nesta parte, com as necessárias consequências legais.
Nestes Termos, requer a V. Ex.cias se dignem julgar procedente por provado o presente recurso, julgando nula a decisão recorrida na parte que ora se recorre com as necessárias consequências legais.
Assim se fará JUSTIÇA.
Não se mostram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido na 1ª instância, como de Apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Neste tribunal a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, que não foi objecto de resposta, pugnando pela procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.Objecto do Recurso
De harmonia com o disposto nos artigos 684º, nº3 e 685º-A, nº1 do Código do Processo Civil aplicável ex vi dos artigos 1º, nº2, alínea a) e 87º, nº1 do Código do Processo de Trabalho, é consabido que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso, que in casu não se vislumbra.
Em função destas premissas, compete a este tribunal apreciar:
- a suscitada nulidade do despacho recorrido.
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III.Matéria de Facto
Dos elementos constantes dos autos, resultam provados os seguintes factos relevantes para a apreciação da questão suscitada em sede de recurso:
1- Em 15/2/2012, foi proferido Despacho Saneador, no âmbito do qual se decidiu:
I-O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo segue a forma própria.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se devidamente patrocinadas.
(…)
III-Da ilegitimidade activa e passiva
Invocou a R. R…, Lda, a sua ilegitimidade em virtude de a sua responsabilidade por acidentes de trabalho se encontrar transferida para a R. seguradora.
Invocou também a ilegitimidade da A. I… em face do montante da pensão auferida.
Notificadas, as AA. não responderam à excepção.
Cumpre apreciar.
Dispõe o art. 26º do Código de Processo Civil que “o autor é parte legítima quando tem interesse em demandar” e “o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”. E continua o nº3 do artigo mencionado que “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Assim, atenta a forma como a A. I… configura a acção que tem interesse em demandar as RR. com vista ao reconhecimento da sua qualidade de beneficiárias de prestações por óbito do sinistrado.
E face ao modo como as AA. configuram a acção não há dúvida que a R. R…, Lda., tem interesse em contradizer, na medida em que apesar de a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ter sido transferida para a R. seguradora, foi invocada a violação de regras de segurança por parte da entidade empregadora.
Acresce que o art. 127º, nº1 do Código de Processo do Trabalho decorre que a legitimidade passiva nas acções de acidente de trabalho resulta da “eventual” responsabilidade pelo pagamento da indemnização.
Face ao exposto, julgo improcedente as invocadas excepções de ilegitimidade.
Notifique.
IV. Não existem nem foram invocadas outras excepções, questões prévias ou nulidades de que cumpra conhecer e que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa”.
2- Na selecção dos factos assentes, foi dado como provado:
“(…)
M) Por escritura de habilitação de 26/10/2010, I… foi declarada habilitada como única herdeira de A….
N) A A. I… auferia em 2010 uma pensão mensal de € 349,19”;
3- O sinistrado da presente acção especial emergente de acidente de trabalho, é A…, filho de I…, falecido no dia 29 de Setembro de 2010, no estado civil de solteiro.
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IV.Direito
Argui o recorrente, nas alegações e conclusões do mesmo, a nulidade parcial do despacho saneador nos termos previstos pelo artigo 668º, nº1, alínea d) do Código de Processo Civil, por considerar que houve omissão de pronúncia.
Basicamente, sustenta o recorrente que, muito embora, tenha qualificado a excepção que invocou, na sua contestação, como de ilegitimidade activa, o tribunal não estava vinculado a tal qualificação jurídica.
E, em bom rigor, quando o recorrente invocou no seu articulado que a autora I… auferia rendimentos mensais superiores ao da pensão social, (facto não impugnado pela autora), não estava em causa a ilegitimidade da mesma, mas a sua falta de interesse em agir, o que constitui um pressuposto processual e, como tal, consubstancia, uma excepção dilatória de conhecimento oficioso.
Deste modo, por considerar que o estado dos autos permite o imediato conhecimento do mérito da acção, no que concerne à autora I…, impõe-se que o tribunal a quo o faça, sob pena de se estarem a praticar actos inúteis.
Cumpre apreciar e decidir.
Estipula o artigo 668º, nº1, alínea d) do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Este normativo é aplicável ao despacho saneador, por força do preceituado no artigo 666º, nº3 do Código de Processo Civil.
A primeira parte da alínea d) do nº1 do supra aludido artigo 668º está directamente ligada com o nº2 do artigo 660º do mesmo Código. Preceitua tal normativo que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão estava prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
E, de harmonia com o consagrado no artigo 495º do Código de Processo Civil, o tribunal deve conhecer oficiosamente de todas as excepções dilatórias, salvo a incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 110º, bem como da preterição do tribunal arbitral voluntário.
As excepções dilatórias mostram-se exemplificadas no artigo 494º do Código de Processo de Civil, admitindo o normativo a existência de outras (ao utilizar a expressão “entre outras”, no corpo do artigo).
No recurso interposto, o recorrente insurge-se contra a circunstância da Meritíssima Juíza a quo não se ter pronunciado sobre a excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir, com referência à autora I….
O interesse em agir, consiste no direito do demandante estar necessitado de tutela judicial.
É um pressuposto processual que consiste na necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção (cfr. Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pag. 179).
O autor tem interesse processual, quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais (ob. citada, pag.180).
A nível jurisprudencial tem-se entendido que a falta deste pressuposto processual constitui uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente, como tal, à absolvição da instância (cfr. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma de Processo Civil”, 1º volume, 2ª edição, pag. 264). Vejam-se, a título meramente exemplificativo, dois Acordãos desta Relação: de 26/6/2008, P. 924/08-J e de 28/4/2005, P.160/05-3; e, ainda da Relação de Lisboa, de 14/10/2010, P.1072/10.5TRBRR.
Vejamos então, se, na situação concreta dos autos, se verifica esta excepção dilatória, que não foi conhecida no despacho saneador.
O acidente participado nos autos, ocorreu em 29/9/2010.
Mostra-se assim aplicável ao mesmo, o regime previsto pela Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro.
No que respeita aos beneficiários ascendentes, de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 57º, nº1, alínea d) e 49º, nº1, alínea d), da referida Lei, apenas os ascendentes com rendimentos individuais de valor mensal inferior ao valor da pensão social ou que conjuntamente com os do seu cônjuge ou de pessoa que com ele viva em união de facto não exceda o dobro deste valor, tem direito à pensão por morte.
À data do falecimento do sinistrado, encontravam-se em vigor as Portarias nºs 1457/2009 e 1458/2009, de 31 de Dezembro (Diário da República nº 252, I Série, de 31 de Dezembro de 2009). A pensão social prevista tinha o valor mensal de € 189,52.
Ora, mostra-se assente autos que a mãe do falecido sinistrado, a autora I…, aufere uma pensão mensal de € 349,19.
Este facto, mostra-se provado à data da prolação do despacho saneador.
Resulta do mesmo, que a demandante I… não preenche os requisitos legalmente exigidos para a qualidade de beneficiária.
Todavia, tal não significa que exista falta de interesse em agir. Bem, pelo contrário, é manifesto que entre a demandante I… e as demandadas existe um conflito que tem a ver com a aquisição ou não do direito à pensão por morte.
Tal conflitualidade origina precisamente a necessidade de intervenção dos tribunais.
Assim sendo, não se verifica a excepção dilatória inominada da falta de interesse processual.
O facto apurado, relativo à pensão mensal auferida pela autora I…, tem apenas a ver com o mérito da acção.
Deste modo, não se verificando a excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir, não existia fundamento para conhecimento da mesma.
Logo, bem andou a Meritíssima Juíza da 1ª instância em conhecer apenas da ilegitimidade activa invocada, assim como na menção que fez de que “Não existem nem foram invocadas outras excepções, questões prévias ou nulidades de que cumpra conhecer e que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa”.
Não se verifica, pois, a invocada omissão de pronúncia do despacho saneador, sendo o despacho recorrido válido e legal.
Mostram-se pois improcedentes as alegações e conclusões de recurso apresentadas.
Custas da 2ª instância a suportar pela recorrente.
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam o despacho recorrido.
Custas da 2ª instância, a suportar pela recorrente.
Notifique.
Évora, 7 de janeiro de 2013
(Paula Maria Videira do Paço)
(Acácio André Proença)
(José António Santos Feteira)