Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA MATA-MOUROS | ||
Descritores: | GRAVAÇÃO DA PROVA NULIDADE PRAZO DE ARGUIÇÃO DA NULIDADE | ||
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Data do Acordão: | 06/05/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | DECLARADA INVALIDADE PARCIAL DO JULGAMENTO | ||
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Sumário: | Existindo o vício de nulidade decorrente de deficiente gravação da prova e relativamente ao qual cabia, em primeira mão, ao tribunal de julgamento, identificá-lo e repará-lo, o mesmo pode ser arguido durante o prazo das alegações de recurso. | ||
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Decisão Texto Integral: | NUIPC 789/10.9GESLV.E1 Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório 1. No processo comum singular n.º 789/10.9GELSV foi o arguido A submetido a julgamento no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Silves e condenado pela prática de crime de furto qualificado, p. e p. nos arts. 203.º/1 e 204.º/2e) do CP, na pena de dois anos e dez meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo. 2. Inconformado com a mencionada decisão o arguido interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e consequente absolvição ou anulação do julgamento com reenvio para nova audiência, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões: 1- O Arguido vem acusado de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 203, nº1 e 204º, nº 2, al. e), ambos do Código Penal. 2 - Ao Arguido é imputado o facto de, entre as 17 horas do dia 14/12/2010 e as 04 horas do dia 15/12/2010, ter entrado furtivamente numa obra em construção e da mesma ter retirado uma série de objectos próprios para os trabalhos de construção civil e que haviam ficado guardados no interior da obra, transportando-os consigo até que foi interceptado pela patrulha da GNR no interior da Fortaleza de Armação de Pêra, onde, alegadamente, ao avistar a dita patrulha da GNR, se teria refugiado com os bens que alegadamente retirou da obra. 3- O Arguido, desde o primeiro minuto, sempre alegou que aqueles objectos lhe pertenciam, no pressuposto de os ter encontrado perto de um caixote do lixo e não no interior de qualquer obra, muito menos na obra que os agentes identificaram como sendo aquela de onde os objectos teriam sido furtados. 4 - Os objectos que foram apreendidos ao Arguido foram 7 extensões eléctricas (3 delas com bobinas), 1 nível de construção civil, 1 curva de canalização, 1 tubo de material flexível, 1 bomba de ar de pé e 1 lanterna, tudo num valor não concretamente apurado mas “superior” a € 102, apoderando-se dos mesmos e pondo-se, de seguida, em fuga. 5 - O Arguido, nos termos dos factos que lhe são imputados e que foram dados como provados em sede de audiência e julgamento, escalou a vedação do estaleiro (leia-se obra) composta por redes e taipais, tendo desta forma se introduzido no estaleiro. 6 - Foi dado ainda como provado: 1- Que o Arguido é Vigilante de profissão, auferindo uma remuneração mensal de cerca de € 700,00 / € 800,00 (setecentos/oitocentos euros); 2 - Que vive em união de facto com uma companheira que não exerce qualquer actividade profissional remunerada; 3- Que vive com dois filhos da companheira e com um seu e da companheira. 7 - O Arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1; e 204º, nº 2, al. e), ambos do C.P. na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 10 meses. 8 - Ora é com esta decisão com que o Arguido se não conforma e da mesma interpõe o presente recurso para o Venerando Tribunal da Relação, recurso este que é de Direito e de Facto, pelo que o Arguido está em tempo e tem toda a legitimidade para recorrer, nos termos do art. 399º; com efeito suspensivo, nos termos do art. 408º, nº 1, al. a); com subida imediata e nos próprios autos, nos termos dos arts. 407º, nº 2, al. a); e 406º, nº 1, todos do C.P.P. 9 - O Tribunal recorrido apreciou mal a matéria de facto e julgou-a mal, sendo que se o tivesse feito de acordo com as regras da experiência comum, certamente que teria absolvido o Arguido, por manifesta falta de prova da sua Autoria dos factos que lhe são imputados ou, o que só por mera hipótese académica se concede, por efeito da dúvida razoável sobre a Autoria dos factos. 10 - Na verdade, nenhuma prova foi feita de que o Arguido tenha praticado o furto qualificado dos bens elencados em qualquer obra de construção civil ou respectivo estaleiro, 11 - Os objectos que o Arguido transportava no momento em que foi interceptado, ou melhor, casualmente encontrado, pela patrulha da GNR, segundo o mesmo, e nada há que leve a julgar o contrário, foram pelo mesmo referidos como achados em plena via pública, junto, ou perto, por detrás, de um caixote do lixo, o qual não se situa sequer perto da obra que é referida nos autos. 12 - Por outro lado, se as declarações do Arguido serviram para aferir da sua situação económica e pessoal, não se vislumbra porque não mereceram igual crédito quanto aos factos que relatou e de é o único conhecedor, pois não existem quaisquer testemunhas oculares. 13 - Ora se o Tribunal a quo tivesse apreciado bem a matéria de facto e dado o mínimo crédito à única testemunha ocular dos eventos (o próprio Arguido), facilmente chegaria à conclusão de que, a ter existido furto, nenhuma prova foi feita de que foi o Arguido o Autor material do dito crime de furto qualificado. 14 - Mais, o Arguido, quando foi surpreendido pela patrulha da GNR, não fugiu nem o tentou sequer fazer, quando, pela natureza da edificação “Fortaleza de Armação de Pêra”, com toda a facilidade o teria conseguido e, diz a defesa, certamente com grandes possibilidades de êxito. Vd. gravação das declarações do Arguido, no início da gravação, e da testemunha B. 15 - O Arguido, contudo, aguardou e foi, conforme se alcança da gravação inaudível do julgamento, mas que foi apontada por escrito, segundo a testemunha B, colaborante com as autoridades. 16 - Ora um “ladrão” não tem por hábito colaborar com as autoridades para a descoberta da verdade material que o vai incriminar. 17 - O Arguido, ao colaborar com o órgão de polícia criminal, demonstrou estar à vontade e não se sentir minimamente preocupado com tal facto pois, como sempre afirmou, achou os objectos, não os furtou de nenhum local vedado ao público, antes junto de um caixote do lixo, o que não constitui qualquer acto criminoso. 18 - Pelo exposto, o Tribunal a quo deveria ter decidido dar como não provado que o Arguido foi o Autor dos factos que integram o tipo do crime de furto qualificado. 19 - Se o Tribunal recorrido assim tivesse julgado, como deveria, certamente que aplicaria o Direito aos factos de forma diferente e mais favorável ao Arguido, nomeadamente, absolvendo-o do crime que lhe é imputado. 20 - Mais se acrescenta que a apreciação da matéria de facto foi feita com base nos apontamentos retirados na audiência de discussão e julgamento, por a gravação da audiência facultada à defesa se encontrar inaudível, sendo impossível recorrer à mesma para alegar e concluir com mais precisão. 21 - O Arguido, aliás, junta o cd que o Tribunal recorrido lhe facultou para que V. Exas. possam, “in loco”, confirmar que o julgamento não foi devidamente gravado ou, se o foi, a cópia da gravação que foi fornecida não se encontra nas condições adequadas para efectuar qualquer trabalho de apreciação da prova, se exceptuarmos os apontamentos recolhidos durante os trabalhos judiciais. 22 - O Arguido, face a esta desigualdade de armas, requer a V. Exas. se dignem proferir Acórdão a determinar a anulação do julgamento e a mandar repetir o mesmo. 23 - O Arguido entende que só assim se poderá atingir o grau de certeza jurídica da verdade material dos factos e a correcta aplicação do Direito aos mesmos. 24 - O Tribunal recorrido julgou mal os factos quanto à atribuição do valor dos bens que foram encontrados na posse do Arguido. 25 - De facto, não parece nada lógico que o Arguido tenha referido que esperava obter € 10,00 ou € 15,00 pela venda dos mesmos a um sucateiro e o Tribunal, sem qualquer fundamento que não a pouco credível opinião da Testemunha C, que disse que os mesmos tinham um valor “não concretamente apurado” mas superior a € 102,00. Vd. declarações gravadas da testemunha C, bem como fls. 100. 26 - Afinal, conforme se alcança das declarações da Testemunha C, o mesmo não fazia qualquer ideia do valor dos bens apreendidos e que foram, alegadamente, furtados da obra de que era responsável. A testemunha disse não saber, que tanto podia ser € 10,00 como € 200,00. 27 - Ora, este testemunho não possuía qualquer valor probatório que permitisse ao Tribunal recorrido concluir que o valor era superior a € 102,00. Aliás, o valor era “não completamente apurado”, isto é, não se sabe o valor, e era esta a decisão que o tribunal recorrido deveria ter tido em conta: um valor não concretamente apurado é um valor que não se sabe qual é, que se desconhece por inteiro. Vd. fls. 100. 28 - O Arguido tem por certo que se o Tribunal a quo tivesse decidido bem nesta matéria sempre julgaria que o valor não se tinha apurado mas que tudo indicava tratar-se de um valor diminuto. E tudo isto recorrendo às declarações da Testemunha C. 29 - Ora o valor diminuto dos bens apreendidos nos autos sempre implicaria a desqualificação do furto, nos termos do art. 204º, nº 4 do Código Penal. 30 - A desqualificação do crime de furto, a ter sido feita, como deveria, pelo Tribunal a quo, alteraria por completo a gravidade dos factos e obrigaria o Tribunal a arquivar os autos por prescrição do direito de queixa, uma vez que a queixa foi apresentada pela Testemunha C, que se provou não ser o proprietário da obra, dos estaleiros e dos bens apreendidos ao Arguido nos presentes autos. 31 - Salvo melhor opinião, ainda que assim não seja, mais parece que a atribuição do valor que o Tribunal recorrido fez aos bens objecto do presente processo, foi um valor que mantivesse a qualificação do crime, ainda que sem qualquer fundamento seguro para suportar tal atribuição. 32 - O Tribunal a quo não decidiu bem também quando julgou que o Arguido era o Autor do alegado furto qualificado à obra representada pela Testemunha C. 33 - Se o Tribunal recorrido tivesse decidido de acordo com a prova realizada em audiência, por certo que não poderia julgar como provado que o Arguido foi o Autor do furto dos bens na obra representada pela Testemunha C, tendo, em consequência, absolvido o Arguido. 34 - O cd da gravação do julgamento encontra-se inaudível, sendo impossível remeter para o mesmo e transcrever, por audição, qualquer frase de forma “ipsis verbis”. 35 - O Arguido vai juntar o referido cd para apreciação por V. Exas. que, melhor e mais correctamente decidirão. 36 - Assim, a decisão correcta que o Tribunal recorrido deveria ter tomado era a Absolvição do Arguido, senão por não ter sido ele o Autor dos factos pelo menos por respeito ao princípio “in dubio pro reu”. 3. Respondeu o MP, sustentando a improcedência do recurso referindo, em conclusão, que: 1. Não tendo o arguido indicado as concretas passagens em que fundamenta a impugnação da matéria de facto, como era seu dever, não podemos contra-alegar com a devida precisão; 2- O tribunal não fundou a sua convicção quanto ao valor dos objectos no depoimento da testemunha C, mas sim atendendo à sua natureza e quantidade e às regras da experiência, tendo concluído, e bem, que os mesmos teriam, seguramente, um valor superior a € 102,00 3 - Na verdade, o recorrente põe em crise, no fundo e essencialmente, a forma como o tribunal apreciou a prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova inserta no artigo 127°, do Código de Processo Penal; 4 - Da sentença recorrida consta claramente os meios de prova tidos em consideração, encontrando-se devidamente fundamentado o processo lógico-dedutivo percorrido pelo Tribunal para chegar àquela decisão; 5 - Inexiste qualquer violação das regras invocadas, encontrando-se a sentença recorrida nos limites do princípio da apreciação da prova, ou seja, o da livre apreciação da prova. 6 - Pelo exposto, entende-se que nenhuma censura merece a sentença ora recorrida. 4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação pronunciou-se no sentido da improcedência da impugnação da matéria de facto deduzida no recurso. 5. Cumprido o disposto no art. 417.º/2 do CPP e efectuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso. 6. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir. II – Fundamentação 1. Mediante os presentes recursos o arguido-recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior a questão do erro de julgamento, invocando também a deficiência da gravação da prova produzida na audiência enquanto circunstância impeditiva da respectiva avaliação em sede de recurso. 2. Importa, portanto, começar pela uma questão que se apresenta como de conhecimento necessariamente prévio, porquanto prejudicial relativamente ao demais invocado: a questão da deficiência das gravações incidindo sobre a prova por declarações produzida na audiência de julgamento, e que se impõe como circunstância que obsta ao conhecimento do recurso em que se visa impugnar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida. Com efeito, ouvidas as gravações da prova remetidas a este TRE (2 CDs contendo a mesma gravação), verificou-se que as mesmas se apresentam com deficiência que inviabiliza a audição do depoimento de uma das testemunhas inquiridas, designadamente a testemunha C. Cumpre tirar desta deficiência as necessárias consequências. São conhecidas as divergências jurisprudenciais afirmadas na resolução desta questão, havendo decisões que entendem que a inaudibilidade e imperceptibilidade da prova gravada, não sendo classificada legalmente como nulidade, constitui uma mera irregularidade, que se tem por sanada se não for arguida nos 3 dias seguintes àquele em que o sujeito processual tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou haja intervindo em algum acto nele praticado, e existindo também decisões, que numa visão diferente do problema determinada pela afectação do direito ao recurso implicada na tese da sanação do vício, sustentam que independentemente de se tratar de mera irregularidade, o tribunal deve poder conhecer oficiosamente da mesma e determinar a sua reparação ou sustentam mesmo a qualificação do vício como uma nulidade insuprível. Assim, são exemplo da primeira corrente, acórdãos como aqueles cujos sumários aqui se deixam reproduzidos: I – O recurso interposto por um arguido abrange, em princípio, toda a decisão contra ele proferida, aproveitando, salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, aos restantes arguidos no caso de comparticipação. II – Tendo o recorrente verificado, quando preparava o recurso que veio a interpor, que uma parte da prova produzida oralmente na audiência não se encontrava gravada e considerando que tal era essencial ao apuramento da verdade, deveria, invocando esses factos, ter formulado, perante o tribunal de 1.ª instância, um requerimento pedindo a repetição do acto, interpondo recurso da decisão sobre ele proferida caso a sua pretensão não viesse a ser acolhida. III – Não tendo a questão sido suscitada na 1.ª instância, nem se tendo o tribunal recorrido pronunciado sobre ela, não pode a mesma ser suscitada no presente recurso, que tem apenas por objecto o acórdão condenatório. IV – A repetição do depoimento só deveria, de resto, ter lugar quando tal fosse essencial ao apuramento da verdade. V – Em face da nova redacção do Código de Processo Penal, nomeadamente dos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 310.º, nunca a conclusão, em fase de julgamento, de que a prova obtida nas fases preliminares não pode ser valorada, por constituir uma prova proibida, poderá implicar ao retorno do processo à fase de instrução. (Ac. TRL de 17-12-2008 Processo nº 10227/08 3ª S.) “O facto de a gravação de depoimentos prestados em audiência não permitir que os mesmos não sejam perceptíveis constitui mera irregularidade, a arguir nos termos do artigo 123º C P Penal, com o fundamento no não cumprimento do princípio geral da documentação das declarações orais” (Acórdão do STJ de 29ABR2009, in CJ, S, I, 250.) “A eventual inaudibilidade e imperceptibilidade da prova gravada, uma vez que não é tida legalmente como nulidade, constitui uma mera irregularidade, que se tem por sanada se não for arguida nos 3 dias seguintes àquele em que o sujeito processual tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou haja intervindo em algum acto nele praticado.” (ac. STJ de 26-9-2007, processo 07P2052, disponível no site da DGSI) Ainda em sentido idêntico ao destas decisões, também os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24/9/2008, proc. nº0894957 e de 1/4/2009, proc. nº531/07.1TAESP.P1, igualmente disponíveis no site da DGSI. Constituem ilustrativos exemplos da outra linha decisória, o Ac. TRL de 4-10-2007 (processo 3986/07-9), e Ac. TRP de 20-3-2006 (processo 0650954). Vinício Ribeiro (in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, p. 763-765) depois de dar uma panorâmica das divergências detectadas na jurisprudência ditada na matéria, sobretudo ao nível da apreciação da tempestividade da arguição do vício em alusão, socorre-se de um Ac. TRG, de 3 de Julho de 2006, para salientar que muitas das decisões «são incertas, formalmente inadequadas e, quase com certeza, materialmente injustas. E tudo, lembremo-lo em consequência de um erro apenas imputável à actividade do tribunal, lato sensu. Em conclusão, as soluções possíveis traduzem-se na violência de, pelo mecanismo da sanação de irregularidades processuais, se transferir para os destinatários da decisão as consequências, venham elas a ser quais forem, de um erro material da responsabilidade do tribunal. E, além disso, afastam, contra a vontade das partes e do próprio tribunal, a norma relativa à competência material do tribunal superior para conhecer de facto e de direito. (…) Temos para nós que, nos casos de gravação da prova claramente ineficaz para os fins a que se destina – nos quais hoje, é pacificamente incluído o de habilitar o tribunal de recurso a sindicar a matéria de facto provada – se deve ter tal gravação como inexistente. O que tem de repercutir-se na subsistência do próprio julgamento na parte em que inexistam, desde logo dada a desconformidade entre o que a acta do mesmo documenta e a realidade dos factos». Um dado novo importa, porém, considerar na resolução desta questão: a revisão do CPP introduzida pela Lei n.º 48/2007 passou a exigir a obrigatoriedade de documentação de todas as audiências de julgamento, independentemente da composição do tribunal ou da forma do processo. E a referida obrigatoriedade passou a ser imposta sob pena de nulidade (art. 363.º e 118.º/1 do CPP). Desta forma, procurou o legislador tornar não apenas «realmente efectivo o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como permitir ao tribunal ou a qualquer interessado o permanente e fidedigno conhecimento do que foi dito na audiência e da exacta intervenção de cada um dos actos da cena judiciária», como assinalado in Código de Processo Penal, Comentários e Notas práticas, da autoria de Magistrados do Ministério Público do Distrito do Porto, editado pela Coimbra Editora em 2009, p. 924 e ss. E logo se acrescenta na obra em referência: «a documentação integral cumpre assim uma dupla função: - Processual. Serve ao tribunal para poder recordar ou avivar o teor exacto das declarações e depoimentos na hora da sua análise em sede de julgamento; serve aos sujeitos processuais para analisar da oportunidade e da existência de suporte para impugnar o julgamento dos factos; serve para instruir o recurso em matéria de facto; serve ao tribunal de recurso para o reexame do julgamento nesta matéria. - Extra-processual: permite que a comunidade possa certificar-se da justeza da decisão em matéria de facto, contribuindo para garantir o prestígio e para reforçar a legitimidade do tribunal». Eis quanto basta para afirmar a nulidade do julgamento quando não acompanhado da documentação integral de toda a prova oral produzida na audiência, fazendo caducar a jurisprudência fixada no Ac. STJ n.º 5/2002, por via da qual, a não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no art. 363.º do CPP, constituía irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no art. 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não podia conhecer. Ora, uma deficiente documentação da prova, designadamente por imperceptibilidade de fala gravada, traduz realidade exactamente igual à traduzida pela sua falta ou omissão. No caso dos autos, as gravações da prova oralmente produzida no julgamento que remetidas foram a este Tribunal apenas permitem a audição (ainda que nem sempre nas melhores condições) das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento da testemunha B, encontrando-se a gravação do depoimento da testemunha C imperceptível no que respeita ao relato apresentado por esta testemunha bem como todas as respostas que iam sendo dadas pela mesma às sucessivas perguntas que lhe iam sendo feitas pelas diversos intervenientes na audiência de julgamento (estas, sim –as perguntas -, audíveis na gravação). O vício consistente na deficiente gravação da prova pode ser arguido no prazo de dez dias a contar do encerramento da audiência nos termos do art. 105.ºdo CPP. Todavia, independentemente da arguição, o tribunal deve suprir este vício logo que do mesmo tome conhecimento, uma vez que lhe compete zelar pela conformidade legal do processado, tendo o poder-dever de reparar atempadamente os actos que se inserem na formação da decisão. Por outro lado, e tal como se decidiu no Ac. RP de 19-06-2006 (proc. 650736), ainda na vigência da anterior versão do CPP, «não é exigível ao mandatário da parte, que recorre também do julgamento da matéria de facto, que, no prazo de 10 dias, após a recepção das cassetes por si pedidas, em função da sua intenção de recorrer da matéria de facto, as analise, para eventual detecção de irregularidades, começando a partir da entrega a contagem do prazo para arguição de nulidade, em caso da gravação estar em branco ou ser inaudível; bem pode fazê-lo atempadamente, durante o prazo das alegações de recurso, se só, aquando da motivação dele, se aperceber da existência de anomalias na gravação, que comprometam a apreciação útil da prova no Tribunal da Relação». Na verdade, estamos perante um vício que cabia, em primeira mão, ao tribunal de julgamento identificá-lo e repará-lo oficiosamente, desde logo por constituir um auxiliar na formação da convicção do julgador, para além de constituir um relevante factor de legitimação da decisão do tribunal perante a comunidade em que se insere. Mas, como decorre do acima já consignado, a função da documentação da prova serve, também a possibilidade de analisar da existência de suporte para impugnar o julgamento dos factos e instruir o recurso em matéria de facto bem como o reexame do julgamento nesta matéria na instância de recurso. A deficiente gravação da prova não permite sequer censurar o recorrente por não ter dado devido cumprimento ao ónus de indicação das concretas passagens da prova oralmente produzida em audiência. Como fazê-lo se a gravação não o permite? Certo é que no caso em presença o recorrente fundamenta a sua pretensão de ver alterados os factos provados, em especial, na apreciação que faz do resultado das declarações do arguido com o depoimento das duas testemunhas inquiridas em audiência, afirmando a errada avaliação do seu conjunto feita pelo tribunal. Por sua vez, o Tribunal a quo motivou a matéria de facto apurada, entre outras provas, também com base no depoimento prestado pela testemunha C (designadamente no que respeita à forma como o autor do furto terá entrado nas instalações bem como no que concerne ao destino que a empresa dá aos material que já não usa). Não sendo possível aceder ao suporte sonoro deste depoimento, prejudicado se mostra, inevitavelmente, o direito ao recurso do arguido constitucionalmente reconhecido, além do mais, enquanto forma de garantia dos direitos da defesa. O vício detectado afecta a validade do julgamento e da sentença produzida com base no mesmo. A sua reparação implica a repetição da prova oralmente produzida que não se encontra em condições de permitir a respectiva audição, com adequada gravação. A saber, a repetição do depoimento prestado pela testemunha C, e na sua sequência de todas as diligências que o tribunal entender úteis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa. ******** III. Decisão Em face do exposto decide-se declarar a invalidade parcial do julgamento realizado, bem como a invalidade da sentença, como acto dele dependente, e determinar a repetição da audiência de julgamento na parte correspondente ao depoimento da testemunha C e todas as diligências cuja realização se suscite em face do teor daquele depoimento, tudo com a respectiva gravação e documentação em acta, a que se seguirá, por último, prolação de nova sentença em conformidade. Sem tributação. Notifique. (Elaborado em computador e revisto pela signatária). * Évora, 5 de Junho de 2012 Maria de Fátima Mata-Mouros Maria Filomena de Paula Soares |