Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | EDGAR VALENTE | ||
Descritores: | REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO PRESENÇA DO ARGUIDO | ||
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Data do Acordão: | 04/27/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - A presença simultânea do condenado e do técnico (previstas no art.º 495.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) permite estabelecer uma relação dialética em que o contraditório se pode concretizar em termos dinâmicos, possibilitando a prestação imediata de qualquer esclarecimento ou dúvida que a tomada de declarações possa suscitar. Também habilitará o tribunal, em face do conteúdo de tais declarações, a, eventualmente, decidir modificar os deveres impostos (art.º 51.º, n.º 3 do CP), determinar a sujeição do condenado a tratamento médico ou a cura em instituição adequada (art.º 52.º, n.º 3 do CP) ou, de forma geral, a tomar qualquer das decisões previstas nos artigos 55.º e 56.º do CP. II - Caso o tribunal não fixe (nos termos do n.º 2 do art.º 50.º do CP), como condição de suspensão de execução da pena, deveres, regras de conduta ou regime de prova e o potencial motivo de revogação seja apenas e tão-só a prática de crime (cfr. art.º 56.º, n.º 1, alínea b) do CP), cumpre questionar porque motivo se exigiria sempre, para além da presença do condenado, concomitantemente, a presença de um técnico “que apoia a fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” que, in casu, não foram impostas? III – É significativa, em termos sistemáticos, a colocação do teor do n.º 3 do art.º 495.º do Código de Processo Penal após o recorte procedimental traçado pelos números 1 e 2 do art.º 495.º do CPP, pois, caso a lei tivesse pretendido aplicar o procedimento do n.º 2 quanto às duas situações (falta de cumprimento de condições - n.º 1 - e condenação por crime durante a suspensão – n.º 3), seria sistematicamente lógico que fixasse os dois deveres de comunicação previamente ao procedimento instituído para as duas etiologias da revogação da suspensão de execução da pena. IV - Com a ordenação numérica referida em III do artigo em questão, pretendeu excluir a referida etiologia da prática de crime, ficando os procedimentos previstos nos números 1 e 2 hermeneuticamente recortados para as situações de falta de cumprimento das condições da suspensão que aí se mencionam. V – Não se afigura existir, nas situações de condenação pela prática de crime durante o período da suspensão, necessidade de um “especial” acautelamento do princípio do contraditório (em qualquer dos casos desconhecido pelo legislador até 2007) concretizado numa audição presencial, pois a lei fundamental apenas consagra (no art.º 32.º, n.º 5) o princípio do contraditório tout court, não tendo a imediação e oralidade o mesmo grau de proteção, admitindo-se, em determinadas situações, que possa ser dispensada a presença do arguido (art.º 32.º, n.º 6). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório.
No Juízo Local Criminal de Portimão (J3) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, corre termos o processo Comum Singular n.º 302/13.6PAPTM, tendo aí sido, em 02.06.2014, proferida sentença, transitada em julgado em 02.07.2014, na qual foi o arguido OEBM condenado, pela prática, em 03.03.2013, de um crime de roubo, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com regime de prova. Foi, no dia 09.12.2020, proferido despacho, onde se decidiu: “Nestes termos, impõe-se a revogação da suspensão da execução de tal pena de prisão, o que se decide, determinando-se que o arguido OM cumpra os 3 anos de prisão, fixados na sentença condenatória.” Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “a) Salvo o devido respeito, entende o arguido que o douto despacho da decisão da revogação da suspensão da execução da pena autos acima referenciados, incorre na nulidade prevista no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal. b) Previamente à prolacção de tal decisão impunha-se ouvir presencialmente o arguido, nos termos previstos no artigo 495º, n.º 2, do Código do Processo Penal. c) Pese embora a defensora oficiosa, tenha requerido a audição presencial do arguido, não foi designada data para o efeito. d) O douto tribunal entendeu como dispensável a sua audição e proferiu decisão no sentido de revogação da suspensão da execução da pena, e) E, na ausência da audição pessoal do arguido, o despacho que revogou a suspensão da execução da pena, para além de enfermar da aludida nulidade, ainda não transitou em julgado. f) Foi cometida a invocada nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal, já que a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos não foi precedida da tentativa de prévia audição presencial do arguido, nos termos do disposto no artigo 495º, n.º 2 do Código de Processo Penal. g) De facto, o arguido foi notificado e requereu a sua audição. h) Tendo sido surpreendido com a decisão do douto despacho do qual, ora recorre, uma vez que foi decretada a revogação da suspensão da execução da pena, sem mais e em clara violação do procedimento previsto no artigo 492º e ss. do CPP. i) Sendo vedado ao arguido o exercício do direito em que se concretiza o princípio constitucional das garantias de defesa, consubstanciado pela nulidade resultante da sua não audição presencial nos termos do artigo 495º, n.º 2, do Código de Processo Penal. j) Tal facto permite concluir pela inobservância do princípio do contraditório, já que, a audição presencial do condenado/arguido foi inviabilizada pelo douto tribunal. k) Antes de ser proferida a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, sem serem envidados os esforços necessários à audição presencial do arguido e não ter sido ouvido na presença do técnico que fiscalizou o cumprimento das condições da suspensão, entendemos que o despacho de revogação, incorre em nulidade prevista no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal. l) Sendo que, o artigo 495º, n.º 2, do CPP, dispõe que para tanto “O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido Parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” e actualmente também “sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente” (cfr. redacção dada pela Lei n.º 130/2015 de 4/9) m) A falta de audição do arguido consubstancia a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c) do CPP e, como tal, “devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento”. n) Sobre esta matéria temos, O Acórdão da Relação do Porto, 4/3/2009 www.dgsi.pt, “A falta de audição presencial do arguido prevista no n.º 2 do artigo 495º do Código de Processo Penal preenche a nulidade insanável da alínea c) do artigo 119º do mesmo código”. E, entre outros, o Acórdão TRP de 4/11/2009, CJ, 2009, T5, página 190: “I. O Juíz, antes de revogar a suspensão de execução da pena por incumprimento das condições impostas ao arguido, tem que ouvir este, acompanhado do técnico do IRS. II. Para o efeito, deve o arguido ser convocado para ser ouvido presencialmente na pressença do dito técnico. III. A revogação da suspensão de execução da pena sem que o arguido tenha sido assim convocado constitui nulidade insanável, de conhecimento oficioso”. o) Nesse mesmo sentido, O Acórdão TRL de 30/06/2010: “III. Perante o que estabelece o n.º 2 do artigo 495º, do CPP, é necessária a audição presencial do condenado antes de se decretar a revogação da suspensão da execução da pena, ou, ao menos, deve possibilitar-se essa audição presencial. IV. A preterição desta audição prévia do arguido integra uma nulidade insanável e, por conseguinte, de conhecimento oficioso pelo tribunal – artigo 119º, al. c) do CPP.” p) E o Ac. da RL de 28/2/2012, processo 565/04.8TAOER.L1-5, www.dgsi.pt, “I – Em caso de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, a falta de audição do condenado, constitui nulidade insanável” e ainda o Ac. da RP de 18/06/2014 em www.dgsi.pt. q) E, atenda-se, também, ao Ac. do TRP de 29/03/2017, em cujo sumário se considera “I – O despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, sujeita a regime de prova é precedido de audição presencial do arguido”. r) Em idêntico sentido, pode ler-se no Ac. de 16.06.2015, in www.dgsi.pt: “IV. O Tribunal a quo deve procurar por todos os meios ouvir presencialmente o condenado, sob pena de violação do disposto no artigo 495º, do Código de Processo Penal. Para o efeito, deve ser designada data para audição do arguido, o que deverá ocorrer na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.” s) Circunstâncias em que, o tribunal deve proceder à audição presencial do condenado, em virtude de a falta de audição do condenado configurar uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea c) do CPP, o que ora se requer.”
Termina pedindo:
“Nestes termos (...), deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, por provado e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que ordene a audição presencial do arguido condenado, nos termos gerais e nos previstos nos artigos 61º e 495º, n.º 2 do Código de Processo Penal (...).”
O recurso foi admitido. O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição): “I - O presente recurso é interposto despacho proferido a fls. 411 a 414, que determinou a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nestes autos e o cumprimento pelo arguido dos 3 anos de prisão, fixados na sentença condenatória. II - Para tanto, o recorrente alegou, em síntese, que foi preterida a audição do arguido, nos termos do disposto nos artigos 495º, nº 2, e 61º, nº 1, als. a) e b), do CPP, o que consubstancia uma nulidade insanável, por ausência do arguido em caso em que a lei exige a respetiva comparência - artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal. III – Sucede que, como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 6/02/2008, in CJ XXXI, 1, 207, “a obrigação de o juiz ouvir o arguido antes de decretar a revogação da suspensão da pena só existe quando esteja em causa o fundamento da alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do C. Penal (infracção grosseira ou repetida das condições impostas para a suspensão da execução da pena), e não também quando o fundamento seja o da al. b) do mesmo dito art. 56.º (condenação por crime cometido no período da suspensão).” IV - É verdade que, em ambas as situações, é obrigatório cumprir o contraditório, antes da revogação da suspensão da execução da pena. No entanto, tal não significa que, em ambas as situações, o arguido tenha de ser ouvido presencialmente. V - Conforme dispõe o art. 492.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, o despacho de revogação da suspensão é precedido da audição do condenado e ainda dos serviços de reinserção social “no caso de a suspensão ter sido acompanhada de regime de prova”, quando esteja em causa a modificação dos deveres, regras de conduta e outras obrigações impostas. VI - No mesmo sentido apontam os art. 55.º e 495.º, do CPP, cuja aplicação pressupõe, como decorre das próprias epígrafes, a falta de cumprimento das condições de suspensão. VII - Ora, no caso dos autos, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido não teve como fundamento o incumprimento das obrigações e deveres impostos no regime de prova, mas sim o cometimento de crime da mesma natureza durante o período de suspensão. VIII - Assim, o Tribunal apenas tinha que notificar o arguido, sobre a promoção do Ministério Público, de revogação da suspensão da execução da pena, assegurando assim o exercício do contraditório, o que foi feito na pessoa da defensora do arguido, tendo este respondido por escrito, expondo as razões por que, no seu entender, não se justificava a revogação pretendida pelo Ministério Público, concluindo pela manutenção da suspensão da execução . IX - De resto, e ainda que a revogação da suspensão da execução duma pena de prisão não seja automática e exija que se apure se as finalidades que estiveram na base dessa suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, o certo é que os autos dispunham já dos elementos necessários a essa ponderação. X - Resulta dos autos que o arguido demonstrou manifestamente, com o seu comportamento, não ter cumprido as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da execução da pena, afigurando-se-nos que a simples ameaça da pena e a censura do facto não se mostraram suficientes para o direccionar no sentido da adesão interna aos valores inerentes à vida em sociedade, direccionada para o Direito. XI - Mostram-se, pois, irremediavelmente goradas as esperanças depositadas na suficiência e eficácia desta pena de substituição, para além de que não é já, também, socialmente tolerável manter os votos de confiança concedidos ao arguido, visto que o mesmo tem demonstrado, sucessivamente, que não é deles merecedor, ao ter desprezado as diversas oportunidades que lhe foram concedidas para retomar um diferente rumo de vida. XII - Pelo exposto, não se vislumbra a existência de qualquer violação das normas, nomeadamente os artigos 61.º, nº 1, als. a) e b), e 495.º, n.º 2, do CPP, 119º, nº 1, al. c), do Código Penal, e 32º, nº 2 e 5, da CRP, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura.”
Termina do seguinte modo:
“Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmado inteiramente o douto despacho recorrido.”
O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente. Procedeu-se a exame preliminar. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa: “Foi elaborado relatório social, a fls. 161 a 162, o qual mereceu o consentimento do arguido. 6 meses após a homologação do plano, em Março de 2016, é apresentado pela DGRSP relatório de anomalias (fls. 172), dando nota da impossibilidade de contactar o arguido, quer por via postal, como telefónica, mais indicando as técnicas que o acompanham, que teria duas medida de trabalho a favor da comunidade também em incumprimento. Nessa sequência, foi pessoalmente notificado para comparecer nas instalações da DGRSP no sentido de dar inicio ao acompanhamento, sob pena de revogação da suspensão da pena de prisão (fls. 185). Segue-se nova informação de anomalias, em 08.10.2016 (fls. 187), no sentido de o arguido faltar às entrevistas agendadas e encontrar-se incontactável. Foi ouvido em declarações a 12.12.2016, referindo que “ultimamente tem comparecido com regularidade na DGRSP”, desconhecendo quaisquer outras obrigações, mais referindo efectuar alguns biscates na área da construção civil e numa quinta. A fls. 304 é apresentado o relatório final, não sendo positiva a avaliação realizada relativamente à execução da medida, não tendo existido efectivo acompanhamento do arguido no período da suspensão. Por seu turno: por sentença proferida em 09.01.2018, transitada em julgado em 08.02.2018, no âmbito do Proc. 671/16.6PAPTM, foi o arguido condenado pela prática, em 18.05.2016, ou seja, durante o período da suspensão da pena que nestes autos lhe foi aplicada, de dois crimes de injúrias agravadas, na pena única de 170 dias de multa; por acórdão proferido em 03.12.2018, transitado em julgado em 08.07.2020, no âmbito do Proc. 70/15.7PBPTM, foi o arguido condenado pela prática, em 29.12.2015, ou seja, durante o período da suspensão da pena que nestes autos lhe foi aplicada, de um crime de tráfico de menor gravidade e três crimes de ameaça agravada, na pena única de 4 anos de prisão efectiva. Dos autos resulta, bem assim, que o arguido já havia sido condenado: por sentença proferida em 17.12.2012, no âmbito do Proc. 541/12.7PAMTJ, pela prática, em 30.06.2012, de um crime de furto de uso de veículo, na pena de 150 dias de multa; por sentença proferida em 01.07.2013, no âmbito do Proc. 1414/12.9PAPTM, pela prática, em 10.09.2012, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo; por sentença proferida em 11.07.2013, no âmbito do Proc. 2163/11.0PAPTM, pela prática, em 13.12.2011, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 13 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo; por sentença proferida em 22.10.2015, no âmbito do Proc. 1383/12.5PAPTM, pela prática, em 04.09.2012, de um crime de furto de uso de veículo, na pena de 180 dias de multa. * Promoveu o Ministério Publico a revogação da suspensão da execução da pena de prisão. Notificado para se pronunciar relativamente à possibilidade de revogação da suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada nos presentes autos, face às condenações sofridas, o arguido pronunciou-se a fls. 408 e 409. Assim, cumpre apreciar e decidir. * Estipula o legislador no art. 56º/1 a) do C.Penal que “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir, grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de condutas (…) ou o plano individual de readaptação social” impostos como condição da suspensão. O mesmo sucede quando o arguido “cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas” (cfr. al. b) do mencionado preceito legal). Acrescenta o nº 2 do citado art. 56º que “a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (…)”. No caso que nos ocupa, constata-se, que: o arguido não aderiu, minimamente, ao plano de reinserção social que lhe foi traçado, não comparecendo às entrevistas e consulta na …, e estando incontactável a maior parte do tempo; no decurso do prazo de suspensão da pena aplicada nos presentes autos, praticou o arguido 6 crimes, pelos quais veio a ser condenado numa pena única de multa e numa pena única de prisão efectiva. O arguido desvalorizou, em absoluto, a condenação sofrida, denotando ausência de auto-censura e de interiorização da gravidade das suas condutas. Entende o Tribunal, quer pela análise dos factos, dos antecedentes criminais do arguido e da sua conduta posterior aos factos, quer pela sua postura e ausência de interiorização da gravidade dos factos praticados, existir a premente necessidade de evitar a prática de novos ilícitos – como resulta à evidência da sucessão de condenações –, tanto mais que decorrido pouco mais de um ano, voltou a praticar vários ilícitos, nomeadamente reincidindo no tráfico de droga, revelando não possuir uma personalidade estruturada e um estilo de vida conforme com o ordenamento jurídico vigente, vivendo, ademais, sem grandes recursos financeiros e procurando obter, da prática de crimes, evidentemente, os seus rendimentos. O circunstancialismo exposto impede que o Tribunal conclua que as finalidades que estiveram na base da suspensão da pena de prisão que foi aplicada ao arguido foram alcançadas. Ademais, não é possível formular, relativamente ao arguido, qualquer juízo de prognose favorável no sentido de no futuro não voltar a delinquir. Nesse mesmo sentido decidiram as Mmas. Juízas que compuseram o ultimo colectivo, cujo acórdão foi integralmente confirmado pelo Tribunal da Relação de Évora. Nestes termos, impõe-se a revogação da suspensão da execução de tal pena de prisão, o que se decide, determinando-se que o arguido OM cumpra os 3 anos de prisão, fixados na sentença condenatória.”
2 - Fundamentação.
A. Delimitação do objecto do recurso.
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º do CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. A questão (única) a decidir no presente recurso é a seguinte: Deveria a decisão de revogação da suspensão da execução da pena ter sido, in casu, antecedida da audição presencial do arguido prevista no art.º 495.º, n.º 2 do Código de Processo Penal?
B. Decidindo. Questão - Deveria a decisão de revogação da suspensão da execução da pena ter sido, in casu, antecedida da audição presencial do arguido prevista no art.º 495.º, n.º 2 do Código de Processo Penal? Antes de mais, importa precisar que, ao contrário do que é alegado pelo recorrente, nunca o próprio despacho objeto de recurso poderia incorrer “na nulidade prevista no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal” (1) , pois, a existir, a referida nulidade decorreria da ausência ilegal do arguido em pessoa previamente à decisão e não de qualquer despacho subsequente a tal omissão (2). Por outro lado, também se alega que o despacho recorrido viola “o procedimento previsto no art.º 492.º e ss do CPP” (3), o que se mostra incompreensível quanto aos artigos 492.º a 494.º, que nada têm a ver com a situação dos autos. Vejamos, antes de mais, a evolução legislativa da disposição em causa: Anteriormente à Lei 48/2007, de 29.08, o n.º 2 do art.º 495.º do CPP, tinha a seguinte redação: “O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado.” Após a mencionada Lei, a redação passou a ser a seguinte: “O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão (4).” Importa, pois, traçar o círculo hermenêutico a que esta norma se aplica: A obrigação de audição pessoal do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão mostra-se estabelecida para todos os casos de revogação da suspensão de execução da pena? É questão jurisprudencialmente controversa, existindo decisões sustentando a afirmativa e a negativa. Para Paulo Pinto de Albuquerque (5), “o arguido deve ser ouvido, independentemente do motivo da revogação da suspensão, sob pena da nulidade do artigo 119.º, alínea c), uma vez que a lei não relaciona a audição do arguido com nenhum motivo em especial”. Parece-nos incontroversa a existência do direito de audição do condenado previamente à decisão de revogação da suspensão da execução da pena, desde logo considerando o disposto no art.º 61.º, n.º 1, alínea b) do CPP, que prevê o direito do arguido, em especial e em qualquer fase do processo, de “ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete”, onde se inclui, obviamente, a citada decisão, por significar a supressão da sua liberdade. Efetuando a necessária sintonia fina interpretativa, importa indagar se esse direito de audição do condenado apenas pode materializar-se presencialmente. Vejamos. Desde logo, quanto ao elemento literal, quando se menciona no n.º 2 do art.º 495.º, o “técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”, deve entender-se, em nossa opinião, que tais condições são as condições previstas no n.º 2 do art.º 50.º do CP, ou seja, os “deveres, regras de conduta ou obrigações” cuja falta de cumprimento motiva, nos termos referidos no n.º 1 da norma, a comunicação ao tribunal pelos serviços respetivos. É na sequência dessa comunicação e, portanto, nessas situações, que o procedimento previsto no n.º 2 tem lugar, não podendo, a nosso ver, ser descontextualizado. E por assim ser, faz todo o sentido (e é essa a ratio da lei) exigir a presença do condenado no tribunal, para, perante o juiz e com a presença concomitante do técnico que tem como funções apoiar e fiscalizar aqueles, poder explicar as circunstâncias que levaram ao incumprimento das condições de suspensão. A presença simultânea do condenado e do técnico permite estabelecer uma relação dialética em que o contraditório se pode concretizar em termos dinâmicos, possibilitando a prestação imediata de qualquer esclarecimento ou dúvida que a tomada de declarações possa suscitar. Também habilitará o tribunal, em face do conteúdo de tais declarações, a, eventualmente, decidir modificar os deveres impostos (art.º 51.º, n.º 3 do CP), determinar a sujeição do condenado a tratamento médico ou a cura em instituição adequada (art.º 52.º, n.º 3 do CP) ou, de forma geral, a tomar qualquer das decisões previstas nos artigos 55.º e 56.º do CP. Aliás, caso o tribunal não fixe (nos termos do n.º 2 do art.º 50.º do CP) como condição de suspensão de execução da pena deveres, regras de conduta ou regime de prova e o potencial motivo de revogação seja apenas e tão-só a prática de crime (cfr. art.º 56.º, n.º 1, alínea b) do CP), cumpre questionar porque motivo se exigiria sempre, para além da presença do condenado, concomitantemente, a presença de um técnico “que apoia a fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” que, in casu, não foram impostas? Não faz sentido (6). Ao invés, é significativa, em termos sistemáticos, a colocação do teor do n.º 3 após o recorte procedimental traçado pelos números 1 e 2 do art.º 495.º do CPP. Com efeito, é nessa norma que se estabelece o dever de comunicação da condenação pela prática de qualquer crime durante o período de suspensão. Caso a lei tivesse pretendido aplicar o procedimento do n.º 2 quanto às duas situações (falta de cumprimento de condições – n.º 1 e condenação por crime durante a suspensão – n.º 3), seria sistematicamente lógico que fixasse os dois deveres de comunicação previamente ao procedimento instituído para as duas etiologias da revogação da suspensão de execução da pena. Com a ordenação numérica do artigo em questão pretendeu excluir a referida etiologia da prática de crime, ficando os procedimentos previstos nos números 1 e 2 hermeneuticamente recortados para as situações de falta de cumprimento das condições da suspensão que aí se mencionam (7). Relativamente ao cometimento de crime durante o período da suspensão, o tribunal da execução deve ponderar se tal cometimento revela ou não que as “finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”. (art.º 56.º, n.º 1, alínea b) do CP) A finalidade da suspensão é, dogmaticamente, “o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes”, sendo decisivo “o ‘conteúdo mínimo’ da ideia de socialização , traduzida na ‘prevenção da reincidência’ (8).” Deste modo, nuclear é a valoração dos factos e circunstâncias do novo crime e tais factos e circunstâncias estão na decisão condenatória. Afirma-se, para defender a tese da obrigatoriedade, seja qual for a etiologia, de audição presencial do condenado previamente à decisão de revogação da suspensão de execução da pena, que tal necessidade “emerge da necessidade de garantir um efectivo direito de defesa, sendo que a solução que impõe que o condenado se pronuncie pessoalmente na presença do juiz, e não por meio de alegação escrita (do defensor ou até mesmo do próprio), traduz um especial acautelamento do contraditório” (9). Salvo o devido respeito, desconhecemos porque motivo haverá aqui necessidade de um “especial” acautelamento do princípio do contraditório (em qualquer dos casos desconhecido pelo legislador até 2007): com efeito, a lei fundamental, apenas consagra (no art.º 32.º, n.º 5) o princípio do contraditório tout court, não tendo a imediação e oralidade o mesmo grau de proteção, admitindo-se, em determinadas situações, que possa ser dispensada a presença do arguido (art.º 32.º, n.º 6). No caso de prática de crime durante o período de suspensão e assegurado o contraditório através da audição do condenado, como vimos supra, em face dos elementos constantes da decisão condenatória (que aquele obviamente conhece), não vislumbramos razões que imponham a presença do arguido previamente a uma decisão que apenas desses elementos necessita. Aliás, caso o tribunal entenda conveniente, poderá sempre determinar essa audição pessoal, mas de forma facultativa. No caso dos autos, verifica-se que, apesar da suspensão ter sido sujeita a regime de prova, a decisão recorrida fundamentou-se, como acima se mencionou, no seguinte: “(...) decorrido pouco mais de um ano, voltou a praticar vários ilícitos, nomeadamente reincidindo no tráfico de droga, revelando não possuir uma personalidade estruturada e um estilo de vida conforme com o ordenamento jurídico vigente, vivendo, ademais, sem grandes recursos financeiros e procurando obter, da prática de crimes, evidentemente, os seus rendimentos. O circunstancialismo exposto impede que o Tribunal conclua que as finalidades que estiveram na base da suspensão da pena de prisão que foi aplicada ao arguido foram alcançadas. Ademais, não é possível formular, relativamente ao arguido, qualquer juízo de prognose favorável no sentido de no futuro não voltar a delinquir. Nesse mesmo sentido decidiram as Mmas. Juízas que compuseram o ultimo colectivo (...).” Verifica-se, assim, uma situação em que a revogação foi motivada, exclusivamente, pela prática de novos crimes durante o período da suspensão e, nessa situação, “a tomada de declarações ao arguido, se se revelasse útil para a decisão, até poderia ser feita, a par de outras diligências, embora não se impusesse, necessariamente, enquanto ‘audição’ do mesmo. ” (10) No caso dos autos, estando em causa a revogação pela prática de crimes durante o período de suspensão de execução da pena, o contraditório foi plenamente assegurado através da notificação prévia ao condenado para se pronunciar. Consequentemente, nem o despacho recorrido enferma da nulidade prevista no art.º 119.º, alínea c) do CPP, nem anteriormente foi cometida qualquer omissão que traduzisse tal nulidade. O recurso é, pois, improcedente.
3 - Dispositivo.
Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)
(Processado em computador e revisto pelo relator)
Évora, 27 de Abril de 2021 Edgar Gouveia Valente Laura Maria Peixoto Goulart Maurício
Sumário I - A presença simultânea do condenado e do técnico (previstas no art.º 495.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) permite estabelecer uma relação dialética em que o contraditório se pode concretizar em termos dinâmicos, possibilitando a prestação imediata de qualquer esclarecimento ou dúvida que a tomada de declarações possa suscitar. Também habilitará o tribunal, em face do conteúdo de tais declarações, a, eventualmente, decidir modificar os deveres impostos (art.º 51.º, n.º 3 do CP), determinar a sujeição do condenado a tratamento médico ou a cura em instituição adequada (art.º 52.º, n.º 3 do CP) ou, de forma geral, a tomar qualquer das decisões previstas nos artigos 55.º e 56.º do CP. II - Caso o tribunal não fixe (nos termos do n.º 2 do art.º 50.º do CP), como condição de suspensão de execução da pena, deveres, regras de conduta ou regime de prova e o potencial motivo de revogação seja apenas e tão-só a prática de crime (cfr. art.º 56.º, n.º 1, alínea b) do CP), cumpre questionar porque motivo se exigiria sempre, para além da presença do condenado, concomitantemente, a presença de um técnico “que apoia a fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” que, in casu, não foram impostas? III – É significativa, em termos sistemáticos, a colocação do teor do n.º 3 do art.º 495.º do Código de Processo Penal após o recorte procedimental traçado pelos números 1 e 2 do art.º 495.º do CPP, pois, caso a lei tivesse pretendido aplicar o procedimento do n.º 2 quanto às duas situações (falta de cumprimento de condições - n.º 1 - e condenação por crime durante a suspensão – n.º 3), seria sistematicamente lógico que fixasse os dois deveres de comunicação previamente ao procedimento instituído para as duas etiologias da revogação da suspensão de execução da pena. IV - Com a ordenação numérica referida em III do artigo em questão, pretendeu excluir a referida etiologia da prática de crime, ficando os procedimentos previstos nos números 1 e 2 hermeneuticamente recortados para as situações de falta de cumprimento das condições da suspensão que aí se mencionam. V – Não se afigura existir, nas situações de condenação pela prática de crime durante o período da suspensão, necessidade de um “especial” acautelamento do princípio do contraditório (em qualquer dos casos desconhecido pelo legislador até 2007) concretizado numa audição presencial, pois a lei fundamental apenas consagra (no art.º 32.º, n.º 5) o princípio do contraditório tout court, não tendo a imediação e oralidade o mesmo grau de proteção, admitindo-se, em determinadas situações, que possa ser dispensada a presença do arguido (art.º 32.º, n.º 6).
1 Cfr. conclusão a). 2 Que poderá estar afetado da invalidade decorrente da declaração de nulidade, nos termos do art.º 122.º, n.º 1 do CPP, com a mesma, porém, não se confundindo. 3 Cfr. conclusão h). 4 A Lei 130/2015, de 04.09, veio acrescentar à redação “bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente”. 5 In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, Lisboa, 2009, página 1240 (anotação ao art.º 495.º). 6 Assim, Acórdão da Relação de Coimbra de 25.09.2019 proferido no processo 121/13.0JALRA-A.C1 e disponível em www.dgsi.pt (disponibilidade aplicável a todas as referências jurisprudenciais ulteriores): “Se porventura a suspensão da execução da pena tiver sido uma suspensão tout court, não subordinada ao cumprimento de deveres, ou se mesmo tendo sido fixados deveres não tiver sido determinado o apoio no seu cumprimento, devendo a fiscalização ser efectuada pelo próprio tribunal em momento determinado, normalmente, no termo do prazo de suspensão – o caso típico da condição de pagamento de indemnização – não terá sentido a exigência da parte final do nº 2 do art. 495º do CPP, que se reporta apenas às situações em que tenha operado o nº 1 do mesmo artigo e por referência ainda ao nº 4 do art. 51º, nº 4 do art. 52º e nº 2 do art. 53º, estes do Código Penal.” 7 Neste sentido, Vinício A. P. Ribeiro in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2020, página 1145: “Dada a redacção introduzida pela cit. Lei 48/2007 (que acrescentou a expressão ‘na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão’), inclinamo-nos para a obrigatoriedade da audição presencial do arguido apenas nos casos em que a ‘suspensão tenha sido subordinada a condições sujeitas a apoio e/ou fiscalização dos serviços de reinserção social’”, com indicação de vária jurisprudência concordante. Podemos conceber que seja adotado o mecanismo de audição presencial do condenado previsto no n.º 2 também às situações em que sejam comunicadas pelos serviços competentes violações dos deveres impostos e prática concomitante de crime. 8 Jorge de Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, página 343. 9 Acórdão da Relação de Coimbra de 06.02.2019 proferido no processo 221/14.9SBGRD-A.C1. 10 Acórdão da Relação de Guimarães de 09.01.2017, proferido no processo 2/12.4PEBRG.G2, com indicação / reprodução de várias decisões jurisprudenciais onde se entende ser a audição presencial do condenado prévia à decisão de revogação da suspensão apenas legalmente exigida quando está em causa o fundamento previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 56.º do CP. |