Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1253/21.6T8ENT.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: POSSE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
ARRENDAMENTO
POSSE PRECÁRIA
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. No caso não pode considerar-se que o contrato promessa transferiu a posse do prédio para a ora Autora, pois, o teor do mesmo não permite concluir pela existência, ao tempo da promessa, ou da transação, de uma vontade comum das partes no sentido da transferência, imediata e definitiva, da posse correspondente ao direito de propriedade.
II. E quanto ao arrendamento, é sabido que tal contrato não pode senão conferir a posse em nome alheio, não deixando qualquer dúvida em qualquer dos contraentes quanto ao modo como se inicia o poder de facto sobre a coisa - não basta uma qualquer atuação material sobre a coisa para se criar a situação jurídica “posse”, a qual nunca se verifica nos detentores ou possuidores precários, exceto traditio brevi manu ou inversão do título de posse, sendo que o arrendatário é um possuidor em nome próprio em relação ao arrendamento e um possuidor em nome alheio em relação ao direito de propriedade; tem uma posse precária, exercendo sobre a coisa poderes materiais, mas no interesse de outrem.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,

I. RELATÓRIO.
1. A A. Alcobia Máquinas e Alfaias Agrícolas, Ld.ª intentou ação declarativa sob a forma de processo comum contra MSR…, Ld.ª, pedindo:
- o reconhecimento do direito de propriedade da AA. sobre o prédio id. no artigo 9ºda petição inicial;
- o reconhecimento de que o limite das estremas norte, sul, nascente e poente do mesmo prédio é o identificado na planta que juntou;
- que seja a Ré condenada a respeitar as referida estremas;
- que seja ordenado o cancelamento da inscrição de aquisição da propriedade sobre o imóvel referido a favor da Ré e a inscrição do mesmo a favor da Autora.
Para tanto alegou que:
- por transação no âmbito de ação judicial, celebrada com CADAP – Cooperativa Agrícola Apoio e Desenvolvimento Agro Pecuário, CRL, lhe foi transmitido o direito daquela no âmbito do contrato promessa de compra e venda referente ao imóvel identificado nos autos;
- no âmbito daquele contrato promessa, AA, em representação de BB e CC, prometeu vender à CADAP o imóvel vendido nos autos, bem como a diligenciar pela participação na venda dos demais comproprietários;
- em 04/01/1996, a CADAP procedeu ao pagamento do valor de Esc. 2.400.000$00, procedendo ao pagamento integral do valor para a prometida venda;
- desde 5 de Janeiro de 1996 a Autora encontra-se na posse, como dona e proprietária do prédio, utilizando-o em toda a sua área e extensão, cuidando do mesmo, arrancando as ervas daninhas, lavrando-o, gradando-o com trator, cultivando-o, cuidando das árvores que ali existem, depositando e guardando materiais diversos e usando-o como estaleiro da sua atividade social, pública, pacífica e ininterruptamente, de forma pacífica e sem oposição de ninguém;
- o prédio tem aquisição inscrita a favor da Ré.
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Citada, a Ré contestou, impugnando os factos alegados pela Autora, designadamente o contrato promessa pela mesma invocado, e deduziu pedido reconvencional peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado pela Autora e que seja esta condenada a desocupá-lo e a restitui-lo à Ré.
Sustentou, para tanto, ter adquirido o imóvel, por compra, ao seu anterior proprietário, encontrando-se a aquisição do mesmo inscrita a seu favor.
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A Autora apresentou réplica, impugnando os factos alegados pela Ré e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, fixado o valor da causa, delimitado objeto do litígio e elencados os temas de prova.
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Procedeu-se à realização da Audiência Final, no termo da qual veio a ser proferida sentença em cujo dispositivo pode ler-se:
“Pelo exposto, decido julgar a presente ação improcedente e, em consequência, absolvo a R. dos pedidos.
Mais julgo a reconvenção procedente e, em consequência:
- reconheço o direito de propriedade da R. sobre o imóvel referido em 1.1.;
- condeno a A., reconvinda, a desocupar o mesmo e a restituir o mesmo imóvel, à R.. Custas nos termos determinados (art. 527º do CPC).
Registe e notifique.”
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Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando, após alegações, as seguintes conclusões:
(…)
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A Ré contra-alegou, apresentando a seguinte síntese conclusiva:
(…)
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II. QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, importa, no caso, apreciar e decidir se se procede a impugnação de facto e se devem os pedidos formulados pela Autora/Apelante ser julgados procedentes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO.
III.1. Na decisão recorrida foram considerados com interesse para a decisão da questão em apreço, provados os seguintes factos:
1.1. Encontra-se inscrita, por ap. 2 de 2000/02/20, a aquisição, por compra, a favor de MSR, Ld.ª, do prédio rústico situado em …, com a área de 5680 m 2, composto de terra com oliveiras, solo subjacente de cultura arvense e estrada, confrontando a norte e nascente com estrada, a sul com … e …, a poente com …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Golegã sob o n.º … – art. 21º e 24º da petição inicial.
1.2. No âmbito dos autos de ação ordinária que correram termos sob o n.º 193/95 que correu termos no extinto Tribunal de Círculo de Abrantes, em que era A. Alcobia – Máquinas e Alfaias Agrícolas, Ld.ª, e R. Cadap – Cooperativa Agrícola Apoio e Desenvolvimento Agro Pecuário, CRL, as ali A. e R., celebraram a seguinte transação, homologada por sentença transitada em 26/01/1996:
1ª A Ré confessa-se devedora à Autora da quantia peticionada. (…)
2º A Ré subroga a Autora em todos os direitos emergentes do contrato de promessa de compra e venda sobre o prédio rústico sito no lugar do …, na Golegã, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, onde se encontra instalado o equipamento atrás referido, contracto que celebrou em Março de 1994, com AA e de que fornecerá à A. o exemplar de que dispõe, sendo que tal contracto é do conhecimento de ambas as partes.
5ª A Ré subroga, ainda, a Autora, em todos os direitos emergentes do contracto de arrendamento rural sobre o mesmo prédio, celebrado com o mesmo AA em 02 de Abril de 1994 e que é, igualmente, do conhecimento de ambas as partes e de que entregará à Autora o exemplar de que dispõe” – art. 1º a 8º da petição inicial.
1.3. Na sequência do referido em 1.2. a Cadap – Cooperativa Agrícola Apoio e Desenvolvimento Agro Pecuário, CRL, entregou à A. o escrito particular designado por “Contrato Promessa de Compra e Venda”, junto com a petição inicial – art. 9º da petição inicial.
1.4. Pelo escrito referido em 1.3., AA, em representação de BB e CC, e como co-herdeiro e cabeça-de-casal da herança de DD, na qualidade de promitente vendedor e 1º outorgante, e CADAP, Cooperativa de Apoio e Desenvolvimento Agro Pecuário CRL, como promitente compradora e outorgante, declararam:
“1ª – O 1º outorgante e os seus representados são legítimos donos e possuidores de ¾ de um prédio rústico sito na freguesia e concelho da Golegã, no lugar do …, prédio que foi atravessado pela variante da estrada nacional, sendo hoje constituído por duas partes, uma década lado da dita estrada e que corresponde ao inscrito na respectiva matriz sob o Art.º …, na conservatória do Registo Predial.
2ª O 1º outorgante obriga-se a diligenciar no sentido de obter a participação dos restantes co herdeiros do prédio identificado para tonar possível a venda prometida de todo o prédio livre de ónus e encargos.
3ª Pelo presente contrato, o 1º outorgante promete vender à 2ª outorgante, a qual promete comprá-lo ao 1ºs outorgante, o dito prédio, que se destina à construção das instalações convenientes à actividade da 2ª outorgante.
4º O preço será de 2.500.000$00.
5ª A outorgante já entregou 100 contos e pagará a quantia de 2.400.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento depois de assinado o presente contrato.
6ª A escritura pública que ambas as partes se obrigam a outorgar será marcada em data a acordar, depois de regularizada a situação registal do prédio prometido vender.” -arts. 10º a 18º da petição inicial.
1.5. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2004, a A. utiliza o prédio id., nele depositando com regularidade não concretamente apurada máquinas e alfaias agrícolas, em número não concretamente apurado – arts. 28º a 39º da petição inicial.
1.6. A A. actuou como descrito em 1.5. à vista de toda a gente, de forma pacífica, e sem oposição de ninguém, como dona e proprietária do mesmo – arts. 30º, 31º e 42º da petição inicial.
1.7. Por escritura pública outorgada em 18 de Janeiro de 2000, AA e EE, o primeiro por si e na qualidade de sócio e gerente da sociedade comercial por quotas MSR, Ld.ª, declararam, que:
“(…) em seu nome próprio, pela presente escritura e pelo preço global já recebido de QUINZE MIL E DUZENTOs CONTOS, vendem à sociedade que ele, varão representa, os três seguintes prédios rústicos, todos sitos na freguesia e concelho da Golegã, livres de quaisquer ónus ou encargos: (…)
DOIS – Sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã o número …, registado de aquisição a favor dos vendedores nos termos da inscrição G – 1, inscrito na matriz sob o artigo (…).
Que, ele, varão, para a sua representada, aceita a presente venda, nos termos exarados, cujo objecto a mesma destina a revenda (…)” – art. 90º da contestação.
1.8. Em 6 de Junho de 2013, MSR, Ld.ª, a qualidade de comodante, e FF, na qualidade de comodatário, subscreveram o escrito particular junto aos autos, designado por “Contrato de Comodato”, em que declaram:
“1ª A primeira outorgante é plena proprietária do prédio rústico chamado …, sito na freguesia e concelho da Golegã e inscrito na matriz predial rústica sob o art.º …, com a área de 0,5680 hectares, inscrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o N.º …;
2ª A primeira outorgante cede gratuitamente ao segundo outorgante, no regime de comodato, prédio a que se refere a cláusula 1ª, para que nele o segundo outorgante guarde as suas alfaias, as suas sementes, os seus outros produtos agrícolas, nos termos e condições das cláusulas seguintes.” – art. 105º da contestação.
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III.2. O Tribunal Recorrido considerou não provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
2.1. Na sequência do referido em 1.4. a CADAP – Cooperativa Agrícola Apoio e Desenvolvimento Agro Pecuário, CRL, pagou em 4 de Janeiro de 1996 a AA a quantia de 2.400.000$00 para pagamento da restante parte e totalidade do preço do contrato de compra e venda, através de cheque do Banco Português do Atlântico art. 19º da petição inicial.
2.2. Com o referido em 2.1. ficou integralmente pago o preço acordado em 1.4. – art. 20º da petição inicial.
2.3. O prédio referido em 1.1. possui uma forma aproximadamente rectangular, com as linhas de estrema de 37,50 metros a poente, de 153,50 metros a norte, 32,50 metros a nascente e 131,50 metros a sul – art. 22º da petição inicial.
2.4. Desde 5 de Janeiro de 1996 a A. tem utilizado o prédio id. em 1.1. como referido em 1.5. - arts. 28º a 39º da petição inicial.
2.5. A A. utiliza o prédio id. em toda a sua área e extensão, cuidando do mesmo, arrancando ervas daninhas, lavrando-o, gradando-o com tractor, cultivando-o, cuidando das árvores que no mesmo existem, retirando destas os respectivos frutos e nele depositando e guardando materiais como lenha, veículos automóveis e usando-o como estaleiro da sua actividade e objecto social e utilizando-o livre e continuamente para nele circularem a pé e através de veículos automóveis os seus sócios, gerentes, funcionários e clientes – arts. 28º a 39º da petição inicial.
2.6. Desde 5 de Janeiro de 1996, a A. colocou ao longo das estremas norte, sul, nascente e poente uma vedação com blocos de cimento, postes de madeira, rede e um portão, tudo com cerca de dois metros de altura, impedindo desde essa data o acesso de terceiros ao prédio referido – art. 40º da petição inicial.
2.7. A A. actuou como descrito em 1.5. e 1.6., com a convicção de que não lesava direitos de terceiros.
2.8. Desde o referido em 1.7. a R. “exerce a posse” sobre o imóvel referido em 1.1. -art. 46º da contestação.
2.9. Em 2004 a R. interpelou a A. para desocupar o terreno referido em 1.1. - art. 53º da contestação.

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III.3. Da impugnação de facto.
(…)
Conclui-se desta forma pela improcedência da pretensão recursiva no que respeita à impugnação da matéria de facto.
Permanecendo inalterada a matéria de facto, provada e não provada, aqui nos dispensamos de a voltar a reproduzir.
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III.4. Fundamentação jurídica.
A Autora sustenta a sua pretensão na constituição do direito de propriedade sobre o prédio dos autos por via do instituto da usucapião, entendendo que a totalidade do terreno se encontra na sua posse e seus antecessores há mais de 20 anos.
Mantendo-se inalterada a factualidade provada, afigura-se não poder deixar de considerar-se improcedente a pretensão da Apelante, diversamente do que a mesma entende.
Vejamos.
Estatui o artigo 1287º do Código Civil que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. É o que se designa por usucapião, prescrição positiva ou aquisitiva.
Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251º Código Civil.
A posse, de acordo com a conceção subjetivista acolhida pela nossa lei, é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa e o animus, elemento psicológico, que se traduz na intenção de actuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente.
Possuidor é, pois, aquele que exerce efectivos poderes materiais sobre a coisa e com a intenção de exercer um direito real próprio.
Os actos materiais incidentes directamente sobre a coisa hão-de ser aqueles que se ajustem à utilização normal da coisa em concreto, que sejam adequados às particularidades de fruição proporcionados por essa mesma coisa.
O «animus» que resulta da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse, na apelidada teoria da causa; o elemento intencional deve aferir-se não pela vontade concreta do adquirente da posse mas pela natureza jurídica do acto que originou a posse - se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade. Se a tradição se realizou em consequência de um acto de locação, pelo qual se transferiu um determinado prédio, a intenção do locatário é a de exercer o direito pessoal de arrendatário[2].
No caso em apreço, a Autora faz referência de forma vaga à aquisição da posse, à apropriação material da coisa, nos termos do disposto no artigo 1263º, al. a) do Código Civil. Parece entender que a prática reiterada de atuação material sobre a coisa traduz a intenção de se apoderar dela.
Porém, o certo é que se demonstrou, até por alegação da própria Autora, que a relação material com o prédio teve origem na transação referida nos factos provados, na qual se declarou que a mesma ora Autora passava a ocupar a posição de promitente compradora e de arrendatária, respetivamente nos contratos promessa e de arrendamento ali previstos.
Ora o contrato promessa, porque não se demonstrou o pagamento da maior parte do preço, da tradição por objeto do contrato, que o promitente vendedor adquiriu naquele momento a totalidade do prédio prometido vender, não podia nunca transmitir a posse com o elemento subjetivo relativo ao direito de propriedade.
De igual modo, o contrato de arrendamento apenas poderia conferir à Autora a qualidade de possuidora em nome alheio.
Essa circunstância, incontroversa nos autos, faz dela “possuidora em nome de outrem” (cfr. al. c) do artigo 1253.º do Código Civil), incompatível com uma posse animo domini já que a faculdade de gozo do prédio foi-lhes proporcionada por um contrato de arrendamento. O inquilino de um prédio em nome próprio exerce apenas o direito obrigacional de arrendatário, direito que não se confunde com o direito de propriedade no corpus, isto é, na detenção e no uso do prédio.
Os meros detentores ou possuidores precários são aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não praticam sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente, pelo que não podem adquirir por usucapião para si próprios.
Tanto assim que, como dispõe o artigo 1290.º, “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.
Inversão que pode resultar de acto de oposição do próprio detentor contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º do Código Civil). A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. Não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base. Necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito.
Caso estivesse a Autora investida numa posse precária (derivada do arrendamento, ou caso assim se tivesse demonstrado, do contrato promessa), seria necessária a conversão dessa posse em nome de outrem em posse em nome próprio.
Sucede que dos factos não resultam atos suficientes de oposição da Autora em relação aos anteriores donos suscetíveis de consubstanciar a inversão da posse, de modo a poder concluir-se que de possuidora em nome alheio passou à qualidade de possuidores em nome próprio do direito de propriedade.
Aliás, nem tais factos foram alegados, tendo o legal representante da Autora rejeitado que tivesse havido qualquer contacto com a Ré ou o seu legal representante.
Assim, na ausência de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por atos positivos de oposição ao proprietário, sobrepondo-se à aparência representada pelo arrendamento, à Autora é vedado adquirir por usucapião.
Porém, ainda que assim não se entendesse, e que se considerasse, como parece ter sido a posição da sentença recorrida, a verificação (a partir de 2004) de uma situação de posse em termos de direito de propriedade, importa ter presente que a Autora não demonstrou ignorar que ao adquiri-la não lesava o direito de terceiro (cf. artigo 1260º do Código Civil).
E assim, como se refere na sentença recorrida:
“(…) Relevam ainda, os caracteres da posse elencados nos arts. 1258º e ss. do CC. No que aqui nos interessa – e porque está em causa um imóvel – ater-nos-emos aos prazos previstos nos arts. 1295º e 1296º do CC. Mais concretamente reportar-nos-emos ao art. 1296º do CC, porquanto o mesmo dispõe sobre a posse não registada. A posse pode ser, assim, titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta. Interessa-nos, essencialmente, a dicotomia posse de boa fé/posse de má fé. Porém, as demais dicotomias relevam na medida em que fazem presumir a boa ou má fé e para efeitos de início de contagem do prazo da prescrição aquisitiva. A posse titulada é a que se funda num modo legítimo de adquirir o direito sobre a coisa (justa causa traditionis), independentemente do direito do transmitente ou da validade substancial do negócio jurídico que sustenta tal aquisição; a posse não titulada será, a contrario, a que não se funde em modo legítimo de adquirir. A existência de título deve ser demonstrada por quem o invoca.
A posse titulada presume-se de boa fé e, ao invés, a não titulada presume-se de má fé (cfr. art. 1260º, n.º 2, do CC). (…)
Finalmente, a posse de boa fé é a exercida na ignorância de que se lesam direitos de terceiro, conforme dispõe o art. 1260º, n.º 1, do CC, revestindo a boa fé, aqui, natureza psicológica e não ética ou moral. A posse de má fé será, a contrario, a exercida sem se desconhecer a lesão de direitos de terceiro. Tal distinção releva, mais uma vez, quanto ao prazo para se consumar a aquisição do objecto por usucapião.
Cumpre, desde já considerar, que pese embora a A. alegue a celebração de transacção no âmbito de acção judicial em que lhe foram transmitidos os direitos de promitente comprador no âmbito de contrato de promessa relativamente ao imóvel em causa nos autos, acaba por não radicar a sua posse e subsequente usucapião naquele contrato (ou na transmissão de posse decorrente da transmissão dos direitos contratuais) ou na tradição da coisa dele decorrente, considerando que não alega ter havido tradição da coisa no âmbito do contrato promessa ou transmissão da posse do anterior possuidor. A alegação da A. é completamente omissa quanto ao possuidor do imóvel à data do contrato promessa ou da transmissão dos direitos referentes ao mesmo no âmbito da transacção, pelo que parece não estar em causa a invocação da transmissão da posse.(…)
Fixada, assim, a posse da A., verifica-se que desde, pelo menos desde 31 de Dezembro de 2004 (atendendo a que apenas se deu como demonstrado que a mesma se iniciou no ano de 2004, sem melhor concretização, terá que se ter em conta o último dia do ano) até à interposição da presente acção (12/05/2021), decorreram 16 anos, 4 meses e 12 dias.
Ora, nos termos do disposto no art. 1296º do CC, “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé.”
Por seu turno, dispõe o art. 1260º, n.º 2, do CC, que se presume de má fé a posse não titulada, sendo esta a que não seja fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (cfr. art. 1259º, n.º 1, do CC).
No caso, a posse invocada não é titulada – decorre da prática de actos materiais sobre a coisa – pelo que se presume de má fé. A A. não legrou demonstrar o contrário.
Assim, o tempo de posse não é suficiente para, nos termos do art. 1296º do CC permitir a aquisição do terreno por usucapião.
Face ao exposto, permanece a presunção de inscrição registal a favor da R., pelo que não pode proceder qualquer dos pedidos formulados pela A.
Finalmente, no que concerne ao pedido reconvencional deduzido pela A., cumpre considerar que esta beneficia de inscrição registal da aquisição a seu favor, pelo que tem aplicação a presunção constante do art. 7º do Código de Registo Predial.
Por outro lado, a A. não logrou afastar aquela presunção.
Face ao exposto, cumpre reconhecer o direito de propriedade da R. sobre aquele imóvel e, inexistindo qualquer circunstância que justifique a sua manutenção pela A., cumpre condenar esta na desocupação do mesmo e na sua restituição à R. reconvinte. (…)”

Em suma, não tendo a Autora demonstrado a aquisição por usucapião do prédio em causa nos autos, importa concluir que a sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo ser confirmada.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente – artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
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Évora, 28.09.2023
Ana Pessoa
José António Moita
Elisabete Valente

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[1] Da exclusiva responsabilidade da relatora

[2] Cf. Ac. a Relação de Coimbra de 17.11.2009, proferido no âmbito do processo n.º 106/06.2TBFCR.C1