Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
913/04.0PALGS-A.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
Data do Acordão: 05/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Em caso de arquivamento do inquérito, compete ao juiz de instrução declarar o perdimento a favor do Estado dos bens apreendidos e não reclamados, no condicionalismo específico do artigo 186,º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No inquérito nº 913/04.0PALGS, distribuído para o exercício das funções jurisdicionais dessa fase processual à Secção de Competência Genérica da Instância Local de Lagos do Tribunal da Comarca de Faro, pela Digna Procuradora-Adjunta titular dos autos foi dirigida ao Exmº Juiz dessa Secção, em 31/3/16, a seguinte promoção:

«Remeta os autos ao Mm." Juiz de Instrução Criminal com a seguinte promoção:

Encontram-se apreendidos à ordem deste processo os objectos melhor descritos no auto de apreensão de fls.18.

Arquivado o inquérito nos termos do n.º 1 do art.277.º do Código de Processo Penal, determinou-se a entrega dos bens apreendidos a quem provasse a propriedade (fls.41).

Foi realizada notificação por via edital, nos termos do art.186.º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Foi afixado legalmente edital de igual teor (original) ao constante de fls.42 e 42 verso dos autos.

A afixação foi efectuada no dia 31/10/2013.

Nos termos do disposto no n.º 4 do art. l86º do Código de Processo Penal "Se as pessoas referidas no número anterior não procederem ao levantamento no prazo de um ano a contar da notificação referida no número anterior, os objectos consideram-se perdidos a favor do Estado".

Assim, atendendo à data em que foi afixado o edital e ao disposto na norma supra citada, devem os objectos melhor descritos no auto de apreensão de fls.18, apreendidos à ordem dos presentes autos, considerar-se perdidos a favor do Estado, o que se promove».

Na sequência da promoção transcrita, pelo Exmº Juiz do referido Tribunal, foi proferido o seguinte despacho:

«Resultam de Lei os efeitos da notificação nos termos do Art. 186°, do Código de Processo Penal, não carecendo de qualquer declaração jurisdicional, nem esta se mostra legalmente prevenida.
Nada pois, a determinar».

Do despacho proferido o MP interpôs recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1. A declaração de perda a favor do Estado de objectos, porque contende com os direitos dos cidadãos – nomeadamente o direito de propriedade consagrado constitucionalmente no art.62.º da Lei Fundamental –, constitui um acto judicial.

2. A restrição desses direitos só pode ser feita nos casos expressamente previstos na constituição e são sempre de cariz excepcional.

3. Nesta perspectiva, o disposto no art.186.º, n.º 4 do Código de Processo Penal não pode ser interpretado como funcionando ope legis.

4. O legislador no art.268.º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Penal incumbiu um juiz - o juiz de instrução criminal - de declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, quando o Ministério Público, proceder ao arquivamento do inquérito.

5. Porquanto se prende com a defesa dos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos a declaração de perda a favor do Estado de objectos apreendidos, a declaração de perda a favor do Estado dos objectos apreendidos num inquérito arquivado, por despacho do Ministério Público, é um acto da competência exclusiva do Juiz de Instrução.

6. A declaração de perda de objectos apreendidos a favor do Estado, prevista no art.186.º, n.º 4 do Código de Processo Penal importa imperativamente a verificação da regularidade das notificações, cominações ou éditos.

7. Requisitos esses que terão necessariamente que ser apreciados pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal como condição à declaração de perda a favor do Estado dos objectos apreendidos num inquérito arquivado.

8. Por conseguinte, não nos afigura ser de efeito automático, razão pela qual cabe ao Juiz – no caso dos autos o Juiz de Instrução Criminal – verificar se estão preenchidos todos os requisitos tendentes à declaração da perda a favor do Estado dos objectos apreendidos.

9. Por tudo isto e, salvo melhor opinião, a prolação de despacho judicial que declare a perda de bens a favor do Estado, ao abrigo da citada norma do art.186.º, n.º 4 do Código de Processo Penal não é inútil.

10. Por despacho de 21/10/2016 foi decidido pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal que a declaração de perda a favor do Estado dos objectos apreendidos no inquérito, quando decorrente do disposto no art.186.º do Código de Processo Penal, não carece de qualquer declaração jurisdicional, nem esta se mostra legalmente prevenida.

11. O Mm.º Juiz de Instrução Criminal ao interpretar o disposto no art.186.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, como interpretou no douto despacho de fls.48 [no sentido de interpretar a disposição normativa prevista no art.186.º, n.º 4 do Código de Processo Penal como contendo um funcionamento automático, com dispensa de prévio despacho judicial] violou as normas do art.268.º, n.º 1, al. e) em conjugação com o art.186.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal e os arts.62.º, n.º 1 e 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.

12. Por tudo isto, o despacho recorrido deve ser revogado, por violação dos citados normativos legais e consequentemente, ser apreciada a promoção efectuada pelo Ministério Público a fls.44.

Termos em que deverá o despacho judicial recorrido revogado, por violação do disposto no art.186.º, n.º 4 em conjugação com o art.268.º, n.º 1, al. e), ambos do Código de Processo Penal e arts.62.º e 18.º, ambos da constituição da República Portuguesa.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata e em separado.

Não há informação de ter sido proporcionado o exercício do direito ao contraditório.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, no sentido da sua procedência.

O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, o que não fizeram.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões da Digna Recorrente, resume-se à pretensão da sua revogação e substituição por um despacho que conheça da sua promoção de 31/3/16, reproduzida no relatório do presente acórdão.

O art. 186º do CPP é do seguinte teor:
1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito.

2 - Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.

3 - As pessoas a quem devam ser restituídos os objectos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 90 dias, findo o qual passam a suportar os custos resultantes do seu depósito.

4 - Se as pessoas referidas no número anterior não procederem ao levantamento no prazo de um ano a contar da notificação referida no número anterior, os objectos consideram-se perdidos a favor do Estado.

5 - Ressalva-se do disposto nos números anteriores o caso em que a apreensão de objectos pertencentes ao arguido ou ao responsável civil deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º.

A Digna Recorrente invoca também a violação pelo despacho recorrido do disposto no art. 268º nº 1 al. e) do CPP:

Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
(…)
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
(…)

O sucesso da pretensão recursiva depende exclusivamente da resposta que se dê à questão interpretativa de saber se a perda de objectos a favor do Estado prevista no nº 4 do art. 186º do CPP carece de ser declarada judicialmente ou se, pelo contrário, opera por mero efeito da lei.

Ao nível da jurisprudência dos Tribunais Superiores, temos conhecimento de dois Acórdãos, um da Relação de Lisboa de 27/5/10, proferido no processo nº 525/07.7TARMR.L1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Trigo Mesquita (sumariado em www.pgdlisboa.pt) e outro da Relação de Évora de 25/2/14, proferido no processo nº 233/10.1PALGS.E1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Fernando Pina (disponível em www.dgsi.pt), que trataram a questão, que agora nos cumpre dirimir, em sentido oposto ao entendimento subjacente ao despacho recorrido e favorável à pretensão recursiva, desconhecendo qualquer decisão de sinal contrário.

A al. e) do nº 1 do art. 268º do CPP foi introduzida pela reforma da lei processual penal aprovada pela Lei nº 59/98 de 25/8, pelo que, ao tempo, a perda de bens apreendidos a favor do Estado nela referida era necessariamente a prevista na lei penal substantiva, mormente, nos arts. 109º e 111º do CP, pois a hipótese de perdimento, a que se refere o nº 4 do art. 186º do CPP provém da alteração originada pela Lei nº 48/07 de 29/8.

De todo o modo, uma vez entrada em vigor a actual redacção do nº 4 do art. 186º do CPP, não vislumbramos razão para excluir da competência atribuída ao Juiz de Instrução pela al. e) do nº 1 do art. 268º do CPP a produção do efeito jurídico cominada pela referida disposição legal.

É certo que as hipóteses de perda de objecto a favor do Estado previstas na lei penal substantiva pressupõem outro tipo de actividade judicativa, como sucede com a disposição do nº 1 do art. 109º do CP:

São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

A produção do efeito jurídico previsto na norma legal acabada de transcrever tem lugar em consequência da emissão pelo Tribunal de um duplo juízo de valor jurídico-material, consistente na verificação cumulativa de:

1) Ter o objecto servido para prática de facto ilícito típico ou ter sido por este produzido;

2) Oferecer o objecto sério risco de vir a utilizado no cometimento de novos factos ilícitos típicos ou perigo para os valores mencionados no preceito.

Diferentemente, no caso previsto no art. 186º do CPP, o perdimento depende exclusivamente da reunião de certos pressupostos de natureza processual, a saber as notificações e o decurso dos prazos previstos nos nºs 3 e 4 do referido normativo, o que implica, ainda assim, que alguém tenha de ser incumbido da fiscalização de tais pressupostos.

Em todo o caso, os mecanismos legais previstos respectivamente no nº 1 do art. 109º do CP e nº 4 do art. 186º do CPP têm entre si de comum o efeito jurídico deles emergente, que é transferência para a esfera da pessoa jurídica Estado do direito de propriedade sobre determinado objecto, o que acarreta, a não ser no caso muito específico das «rei nulliae», a preterição do direito de outrem.

Dado que o direito de propriedade, conforme a Digna Recorrente salientou, é tutelado constitucionalmente pelo art. 62º da CRP, um acto do Estado que vulneração definitiva desse direito, terá de ser apanágio de um órgão dotado das características de independência e imparcialidade, como é um Tribunal.

Ness sentido, teremos de concordar com a tese jurídica subjacente à pretensão recursiva, reconhecendo procedência a esta e revogando o despacho em crise.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro, que conheça efectivamente da promoção do MP formulada em 31/3/16 e transcrita no relatório do presente acórdão.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 2/5/17 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)