Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
90/22.5GBRDD.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: REPARAÇÃO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PREJUÍZOS SOFRIDOS
DIREITO AO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Como decorre do disposto no artigo 82º-A, nº 2, do C. P. Penal, tem de ser, sempre, assegurado o direito ao contraditório, ou seja, tem de ser dada a possibilidade ao arguido de se opor, nos termos que tiver por convenientes, à reparação dos prejuízos sofridos pela vítima do crime de violência doméstica.
II - No despacho que efetuou o recebimento da acusação ficou escrito: “a assistente não deduziu pedido de indemnização civil. Requer o MP que lhe seja arbitrada uma compensação ao abrigo do disposto nos artigos 82º-A do CPP e 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro. Assim, e desde já, sem prejuízo da prova a produzir, notifique a assistente para, no prazo de 10 dias, informar se se opõe a tal arbitramento, entendendo-se o silêncio como não oposição. Notifique-se igualmente o arguido para exercer o contraditório quanto ao requerido".
III - Efetuada que foi a ordenada notificação do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 82º-A, nº 2, do C. P. Penal, foi devidamente assegurado o respeito pelo contraditório.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 90/22.5GBRDD, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica do Redondo, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido F (…..).

Imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 alíneas a) e c), nº 2, nº 4 e nº 5, todos do Código Penal,

A ofendida J constitui-se assistente nos autos.

O arguido apresentou contestação e arrolou testemunhas.

Realizado a audiência de julgamento, veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu:

- Condenar o arguido F, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, alíneas a), b) e c) e nº 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis meses) de prisão, suspensa na execução por igual período, sujeita a regime de prova, cujo cumprimento deverá ser fiscalizado pela DGRSP, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 50º, nº 1, nº 2, nº 4, nº 5, 51º, nº 1, nº 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a), todos do CP, e art. 34º-B da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, e que deverá incluir:
i) Frequência de ações de sensibilização contra a violência doméstica, nos moldes a definir pela DGRSP;
ii) Obrigação de não contactar com a assistente, por qualquer meio e/ou por interposta pessoa;
iii) Obrigação de proceder ao pagamento à assistente J, no período da suspensão, de uma indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos, cujo valor se arbitra em €3.000,00 (três mil euros).
Para este efeito, metade da indemnização deverá ser paga até ao final dos primeiros dois anos do período de suspensão e o remanescente até ao seu termo, devendo o arguido comprovar tais pagamentos nos autos nos 15 (quinze) dias subsequentes.
(…)

Inconformado com esta sentença condenatória, o arguido F da mesma interpôs o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. A título de questão prévia, o Recorrente argui a nulidade da sentença, pelo seguinte:
2. O Tribunal a quo procedeu à alteração dos factos operada em sede de audiência de julgamento e que se traduz numa alteração da acusação, uma vez que os 54 artigos foram alterados e comunicados ao abrigo do disposto do nº 1 do art. 358º, do C.P.P., contam uma história muito alterada daquela outra que foi carreada em sede acusatória pelo Ministério Público.
3. O arguido vinha acusado da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 alínea a) e c), nº 2, alínea a) e nº, 4 e nº 5, em sede de audiência de julgamento foi comunicada também a alteração da qualificação jurídica para um crime de violência doméstica agravada, p. e p., pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a), b) e c) nº 2 e nº(s) 4 e 5 do Código Penal.
4. O Tribunal a quo comunicou ao arguido expressamente, que se tratava de uma alteração não substancial dos factos.
5. Porquanto o Tribunal não comunicou devidamente esta alteração, não manifestaram igualmente de forma unânime, quer o Ministério Público quer o arguido que o julgamento prosseguisse por aqueles novos factos.
6. Porquanto, os factos alterados e aditados e alteração da qualificação jurídica enquadram uma alteração substancial dos factos e foi cominada como uma alteração não substancial dos factos.
7. A alteração substancial é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido e um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, cfr. dispõe a alínea f) do nº 1 do art. 1º, do C.P.P.
8. O Tribunal a quo ao ter alterado os factos constantes da Acusação, os quais vierem a merecer acolhimento na sentença, embora os haja comunicado como integrando uma alteração não substancial, o tribunal terá procedido a uma alteração substancial, assim violando os artigos 358º e 359º do C.P.P., circunstância que à luz do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 379º, do C.P.P., acarreta a Nulidade da Sentença.
9. “…”
10. Apesar de ter sido comunicado ao arguido a alteração não substancial dos factos e de lhe nada ter sido requerida pela defesa, não se afigura decisivo, atendendo que a comunicação procedida foi de alteração não substancial dos factos. (…)
11. “…”
12. A Mma Juíza “a quo” na sentença recorrida, ao elencar provados os factos, limitou-se a tomar em consideração a posição da Ofendia, considerando provados factos desgarrados do contexto familiar, ignorando a situação ambiente do casal.
13. Na apreciação da matéria de facto, a Mma Juíza “a quo” apenas se fundamentou na “versão” trazida aos autos pela Ofendida, ignorando por completo, todos os factos relacionados com a vivência do casal e, até, inclusive o estado de saúde da Ofendida que está com uma depressão.
14. Todavia, e como resulta da audição do depoimento prestado pela Ofendida - cujas declarações estão gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:43:12 e o seu termo pelas 15:59:27, a vítima apresentou-se em Tribunal, de coitadinha que sempre viveu com medo e sob as ordens e imposições do marido mas de repente acaba por em sede de declarações relatar que só estava com o marido para este a acompanhar nas consultas médicas. E, que foi por força do mesmo alegadamente se ter recusado a acompanhá-la às consultas médicas que determinou em apresentar queixa-crime contra o arguido.
15. A ofendida e o arguido viveram como marido e mulher mais de 45 anos, segundo a Ofendida com episódios de agressões permanentes e, a falta de colaboração do arguido no acompanhamento a consultas médicas vai implicar apresentação do procedimento criminal.
16. O que não se coaduna com as regras da experiência comum.
17. Não foi valorado, o depoimento do Arguido, o mesmo relatou que havia muitas discussões entre o casal, provocadas por o arguido, por o mesmo ter o hábito de frequentar bares de alterne e, que nessas discussões o arguido apelidava a assistente de “torta”, “bruta”, “estúpida”, “malcriada”, e “porca” e, “pareces uma cabra a gritar”, em contrapartida, também ela o injuriava designadamente de “estúpido”, “malcriado” e “porco”.
18. Contrariamente ao que consta dos factos provados na sentença recorrida não resultou provado o elemento subjetivo do tipo de crime.
19. Aliás, atenta a essa falta de prova, a Mma Juíza “a quo” no que se refere aos pontos 5, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 25, 27, 30, 35, 41, 42, 49 deu estes factos como provados, fundamentando-se no depoimento da Ofendida e nas regras da experiência comum.
20. A Ofendida não arrolou uma única testemunha.
21. E não se refira que estamos perante um crime de difícil prova decorrente dos factos ocorrerem no domínio das relações privadas do agressor e a vítima, pois, neste caso os filhos do casal viviam com os mesmos.
22. Acresce que, para o crime em questão, as regras da experiência comum não são suficientes para atestar se determinado comportamento entre um casal é ou não possível de inquietação e humilhação.
23. Contrariamente ao que consta dos factos provados na sentença recorrida, não resultou provado que o Arguido tenha actuado com o propósito concretizado de humilhar a Ofendida na sua honra e consideração e de a deixar em estado de constrangimento, com o intuito de ser submissa e a comportar-se do modo que ele entendia por conveniente.
24. Para a qualificação e integração dos pressupostos do crime em questão, as regras da experiência comum não são suficientes para atestar se determinado comportamento entre um casal é ou não passível de inquietação e humilhação. É necessário contextualizar a vivência do casal, o nível de educação, os valores pelos quais se regem entre muitos outros factores.
25. (…)
26. Deste modo não se verificam os pressupostos ou requisitos da prática em autoria material por parte do Arguido de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art. 152º do Cód. Penal.
27. Como tal, e para além da alteração da apontada matéria de facto dada como provada, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por Douto Acórdão que absolva o Arguido do crime de que vem condenado.
Outrossim sem conceder,
28. Entende o Arguido que, nos presentes autos, não se encontram reunidos os requisitos necessários para a fixação da identificada indemnização e, como tal deve ser revogada a sentença, na parte em que condena o arguido no pagamento de indemnização à vítima e, consequentemente, no condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento dessa indemnização, tal como à condição do regime de prova, cujo cumprimento deverá ser fiscalizado pela DGRSP.
29. Pois, a Mma Juíza “a quo” na sentença recorrida suscitou, apreciou e decidiu na condenação do Arguido no pagamento de indemnização à vítima, sem, previamente, dar a exercer o contraditório ao Arguido e sem apreciar as reais necessidades de protecção da vítima.
30. O que face ao artº 82 A, do Cód. Proc. Penal sempre seria necessário.
31. Ora, a inobservância do contraditório importa uma irregularidade, passível de anulação dessa parte da sentença.
32. Veja-se a propósito o entendimento explanado no Ac. da Relação de Coimbra de 22-01-2014: …
33. O que, desde já, se argui e requer.
Outrossim sem prescindir,
34. É incompreensível a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever de entregar à Ofendida a quantia de € 3000,00, por ser desproporcionado e injustificado.
35. O arguido não tem condições para obter qualquer empréstimo junto de qualquer instituição financeira que lhe permita cumprir a tradição.
36. Assim, a aplicação desta condição subjaz o preconceito de que quem tiver capacidade económica vê a execução da pena de prisão suspensa, e quem não a tiver cumpre pena de prisão efetiva.
37. O montante arbitrado é claramente desproporcional, atentos os critérios definidos na lei civil.
38. O Douto Tribunal violou o princípio da equidade ao desconsiderar as circunstâncias de vida do arguido.
39. Assim, e atentos os critérios do art. 496º, do Código Civil, o montante indemnizatório deve ter em conta as reais possibilidades do arguido.
40. Na decisão não há apenas que atender aos interesses da ofendida, havendo também de ponderar se, no caso concreto, o dever é imposto pelas finalidades da punição visadas com a suspensão (artigo 50 n° 1 Cód. Penal), tal como o arguido ser primário e, ainda por se encontrar socialmente integrado.
41. Na perspectiva do Arguido a prova produzida em julgamento é frágil e inconsistente, sendo que não se apreciou crítica e racionalmente as provas, de acordo com as regras da experiência, da lógica e do senso comum.
42. Aliás, o longuíssimo período de suspensão da pena já constitui, de per si, pena suficientemente pesada.
43. Face a todo o exposto, deve ser revogada a sentença, na parte em que condena o arguido no pagamento de indemnização à vítima e, consequentemente, no condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento dessa indemnização.
O que, com o benévolo suprimento de Vossas Excelências, se espera seja feito, por ser de inteira Justiça!

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno (transcrição):

1. O arguido, aqui Recorrente, foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, alíneas a), b) e c) e nº 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, sujeita a regime de prova que deverá incluir: i) Frequência de ações de sensibilização contra a violência doméstica, nos moldes a definir pela DGRSP; ii) Obrigação de não contactar com a assistente, por qualquer meio e/ou por interposta pessoa; e iii) Obrigação de proceder ao pagamento à assistente J, no período da suspensão, de uma indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos, no valor de € 3.000,00.
2. O arguido, não se conformando com o conteúdo da sentença condenatória proferida nestes autos dela veio interpor recurso, invocando que a sentença é nula mos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, que procedeu a uma valoração errada da prova produzida em audiência de julgamento, pugnando, a final, pela substituição da mesma por outra que o absolva da prática do crime de violência doméstica agravado pelo qual foi condenado.
3. Mais se insurge quanto à sua condenação no pagamento de indemnização no valor de € 3.000,00 à ofendida, invocando que não foi dado cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, padecendo a sentença de irregularidade, requerendo a anulação da sentença nessa parte.
4. Entendemos que não assiste razão ao arguido.
5. Com efeito, invoca o arguido que a sentença é nula por violar os artigos 358º e 359º ambos do Código de Processo Penal, referindo que o Tribunal a quo procedeu a uma comunicação não substancial de factos em sede de julgamento que se traduz numa verdadeira alteração substancial de factos.
6. Importa referir que consubstancia uma alteração substancial dos factos, “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, conforme estabelecido no artigo 1º nº 1 al. f) do Código de Processo Penal.
7. Para avaliar da existência de uma alteração substancial de factos, importa aferir se da comunicação efetuada pelo Tribunal a quo resulta ou não a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal.
8. Ora, constatando-se que o arguido já vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica agravado pela alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 152º do Código Penal, ocorrendo em sede de julgamento uma alteração da qualificação jurídica imputando-lhe também a qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do referido artigo, como ocorreu no caso dos autos, tal não importa a imputação ao arguido de um crime diverso, visto que este já vinha acusado da prática agravada do crime de violência doméstica e portanto, do mesmo crime.
9. Em face do exposto, entendemos que o que ocorreu no caso dos autos foi uma alteração não substancial de factos, que foi comunicada nos termos do artigo 358º, nº 1, do CPP, nada tendo sido requerido pela defesa.
10. No mais, foi igualmente comunicada, ao abrigo do art. 358º, nº 3 do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica para um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, alíneas a), b) e c), nº 2 e nºs 4 e 5 do Código Penal.
11. Feitas que foram as comunicações previstas no artigo 358º nº 1 e 2 do Código de Processo Penal, nada tendo sido requerido pela defesa, não ocorreu qualquer violação do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.
12. Vem ainda o arguido, em sede do recurso que interpôs, insurgir-se contra a sentença proferida porquanto entende que o Tribunal a quo se limitou a tomar em consideração a posição da ofendida, considerando provados factos desgarrados do contexto familiar, ignorando a situação ambiente do casal.
13. Dispõe o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-02-2016, processo nº 23/14.2PCOER.L1-9, disponível em www.dgsi.pt que “…”
14. Ora, nos presentes autos o arguido limita-se apenas a fazer-se prevalecer do direito de discordar da apreciação efetuada pelo tribunal a quo relativamente à apreciação da matéria de facto, por não concordar com o sentido da convicção deste, uma vez que valorizou a versão da ofendida e não a sua e a das testemunhas que apresentou.
15. Tal discordância não possui a virtualidade de integrar os vícios indicados pelo arguido no recurso interposto. É que, efetivamente, a sentença proferida, de forma pormenorizada, esclarece das razões que formaram a sua convicção e que foram fundamento para dar como provada a matéria de facto que enuncia.
16. Resulta de forma clara do teor da sentença as razões de ciência que determinaram o tribunal a considerar como provados os factos enunciados.
17. Importa ainda, na avaliação da credibilidade de uma testemunha, atender à animosidade ou não que a mesma apresenta para com alguma das partes e a forma como responde quando é interpelada, a expressão que faz perante uma questão inesperada ou quando tenta lembrar-se de qualquer coisa.
18. Aspetos esses que devem também ser atendidos pelo tribunal na apreciação da prova, como o fez o tribunal a quo na presente sentença.
19. Entendemos que bem andou a sentença recorrida, procedendo a uma valoração de toda a prova, de forma conjugada e em consonância com as regras da experiência e da vida comum e tendo em consideração todo o conjunto do julgamento e não apenas o que foi relatado.
20. Afere-se, pois, que, bem andou o tribunal ao dar como provados os factos como o fez e, em consequência, condenar o arguido numa pena.
21. Vem ainda o arguido, no âmbito do seu recurso, insurgir-se quanto à condenação no pagamento de indemnização no valor de € 3.000,00, quantia que considera desproporcionado e injustificada, à ofendida assim como no condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão na qual foi condenado.
22. Mais alega que a sentença recorrida padece de irregularidade, porquanto não foi dado cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, requerendo a anulação da sentença nessa parte.
23. Conforme ensina o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-06-2021, processo nº 1153/18.7PBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt. “…”
24. Dispõe o artigo 123º nº 1 do Código de Processo Penal que “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.”
25. (…)
26. Uma vez que o arguido esteve presente na audiência de julgamento na qual se procedeu ao ato de leitura de sentença, tendo nesse momento tido conhecimento da condenação oficiosa no pagamento de indemnização à ofendida, deveria, querendo, invocar nesse ato a referida irregularidade consistente na preterição do contraditório.
27. Não o tendo feito, considera-se sanada essa irregularidade sanada, atento o regime do citado artigo 123º do Código de Processo Penal.
28. No mais, dúvidas não existem que se encontram, no presente caso, preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos previstos no art. 483º, nº 1 do Código Civil que permitem a atribuição à vítima de uma indeminização.
29. Quanto ao valor da quantia arbitrada à ofendida a título de reparação e na qual o arguido foi condenado, o Tribunal a quo ponderou e bem as condições económicas do arguido, a extensão dos danos provocados, o longo período temporal em causa (50 anos) e o grau de ilicitude da sua conduta.
30. Não se vislumbra, pois, ao contrário do invocado pelo arguido, em que medida é que a sentença proferida violou qualquer das normas referidas, não nos merecendo a mesma qualquer censura quanto à medida concreta da pena.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto e em consequência deve ser mantida, na integra, a decisão proferida.
Vossas Excelências, porém, decidirão fazendo a costumada Justiça.

Notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, a assistente não apresentou qualquer resposta ao recurso interposto.

Neste Tribunal da Relação de Évora, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
Com interesse para a decisão ficaram provados os seguintes factos:
1. O No ano de 1972, o arguido iniciou um relacionamento amoroso com J, nascida em 1958.
2. Em data não concretamente apurada, situada entre 1972 e 1974, quando o arguido e J se encontravam a namorar junto da porta da residência daquela, sita na (…..), em Redondo, sem que nada o fizesse prever, o arguido, exercendo força, desferiu uma palmada de mão aberta na face de J, provocando-lhe dor e vermelhidão na zona atingida.
3. No ano de 1974, o arguido e J começaram a viver em comunhão de leito, mesa e habitação na residência da progenitora do arguido, sita (…..), no Redondo, pelo período de um a dois meses.
4. Posteriormente, ainda no ano de 1974, passaram a residir só os dois no (…..), na zona de Redondo.
5. A partir desse ano de 1974 e até data não concretamente apurada, mas enquanto residiam no (…..), o arguido dirigia-se, todos os fins de semana, a bares de alterne, cuja localização não foi possível apurar, voltando na manhã seguinte ou no final do fim-de-semana.
6. Nessa sequência, sempre que o arguido regressava dos referidos bares de alterne, encetava conversa com J quando se cruzavam no interior da residência e, porque esta não lhe dirigia a palavra por saber onde o companheiro havia estado, apelidava-a de “torta”, “bruta”, “estúpida”, malcriada” e “porca”, mais lhe dizendo “Pareces uma cabra a gritar” e “Eu é que mando”.
7. Mais lhe dizia, em tom de voz sério e credível, “Já te mandei calar, se não levas um murro nos cornos”.
8. Em ato contínuo, nessas ocasiões, o arguido, exercendo força, desferia no topo da cabeça de J um número não concretamente apurado de palmadas de mão aberta, provocando-lhe dor, humilhação, vergonha e medo.
9. No dia 7 de maio de 1975, o arguido e J casaram, tendo do casamento nascido três filhos: R, A, e P.
10. Após o casamento, o casal continuou a residir no (…..), tendo posteriormente, em data não concretamente apurada, mas entre 1982 e 1993, vindo a residir no (…..) e, entre 1993 e 1997, no (…..), todos na zona de Redondo.
11. Em data não concretamente apurada, mas no ano 1982, o arguido e J deslocaram-se à residência da mãe daquele, sita na (…..), em Redondo.
12. Uma vez ali, o arguido, de modo não concretamente apurado, atingiu o nariz de J, provocando-lhe uma hemorragia e dores.
13. Em data não concretamente apurada, mas no decurso do ano de 1982, quando o agregado familiar se encontrava a residir no (…..), o arguido iniciou uma discussão com J, no quarto da residência.
14. Nessa sequência, na presença do filho R, à data com cerca de 7 anos de idade, exercendo força muscular, o arguido com a zona lateral da mão, a qual se encontrava aberta, mas com os dedos juntos, desferiu uma pancada na nuca de J, vulgarmente conhecida como “golpe do coelho”.
15. Em consequência dessa pancada, J caiu para cima da cama, tendo ficado uns segundos inconsciente.
16. Com o acima descrito, J sofreu dor, humilhação e medo.
17. Em datas não concretamente apuradas, mas enquanto o casal residia no (…..), na sequência de discussões motivadas por ciúmes da parte do arguido, este, exercendo força, desferiu no topo da cabeça de J um número não concretamente apurado de palmadas de mão aberta, provocando-lhe dor, humilhação, vergonha e medo.
18. Em data não concretamente apurada, mas do ano de 1993, quando o arguido e J se encontravam a residir no (…..), em Redondo, o arguido deslocou-se ao anexo onde se localizava a casa de banho da residência e onde J se encontrava despida a tomar banho.
19. Nessa sequência, e sem que nada o fizesse prever, o arguido, exercendo força, desferiu um número não determinado de palmadas de mão aberta e murros na zona da face de J, mais lhe dizendo “És torta”.
20. O descrito só cessou quando o filho A, à data com 16 anos, acedeu à casa de banho e retirou o arguido do local.
21. Com as condutas descritas, o arguido provocou dor e vermelhidão na face de J, bem como humilhação, vergonha e medo.
22. No ano de 1995, o filho R abandonou a residência do agregado familiar.
23. Em 1997, quando passaram a residir na Zona Industrial do Redondo, na sequência de uma discussão relacionada com uma relação extraconjugal do arguido, este, junto da entrada da casa de banho da residência, e exercendo força, desferiu um número não apurado de palmadas de mão aberta na zona da cabeça de J, provocando-lhe dor, humilhação e medo.
24. No decurso do descrito, J acabou por cair ao chão.
25. Em data não concretamente apurada, mas entre 1997 e 2013, na residência de ambos sita na Zona Industrial de Redondo, o arguido empurrou J contra a parede e, com a mão direita, exercendo força, apertou-lhe o pescoço, mais lhe dizendo: “Olha, até te mato. Até sou capaz de te matar.”
26. Em consequência, J sentiu dificuldade em respirar e medo.
27. Entre o ano de 2013 e até 2016, passaram a residir num prédio sito na Rua (…..), no Redondo, sendo que, pelo menos em uma ocasião, o arguido, dirigindo-se a J, afirmou: “Levas um murro nos cornos”, “Já te mandei calar” e “Quem manda aqui sou eu”.
28. Ainda no mesmo período, por padecer de problemas de saúde que lhe impunham deslocar-se de 3 em 3 meses a Coimbra, o arguido levou J na viatura do agregado familiar até às consultas naquela cidade.
29. Em data não concretamente determinada, mas numa dessas deslocações, o arguido, na sequência de J lhe ter pedido para baixar o volume do rádio e alterar a temperatura do ar condicionado do veículo, afirmou, em tom de voz elevado, “Já te mandei calar” e “Quem manda aqui sou eu” e, em ato contínuo, exercendo força, desferiu uma palmada com a mão direita aberta na face esquerda de J, provocando-lhe dor, humilhação e medo.
30. Em 17 de dezembro de 2020, J foi submetida a histeroscopia cirúrgica para remoção de pólipo endometrial (colo do útero) no Hospital do Espírito Santo de Évora.
31. Nessa sequência, ficou impossibilitada de manter contactos de natureza sexual, por tempo não concretamente determinado.
32. Não obstante ter conhecimento do mencionado em 30. e 31., o arguido, em datas não concretamente apuradas, mas após 17 de dezembro de 2020, disse a J que queria manter relações sexuais consigo.
33. Nessa sequência, porque J recusou manter relações sexuais com o arguido por ter sido submetida a intervenção cirúrgica mencionada, o arguido afirmou “Não sei para que tenho uma mulher. Eu tenho uma mulher para quê?”, “Eu quero uma mulher para tudo em casa”.
34. Ainda no período de convalescença do pós-operatório mencionado, e durante a pandemia, o arguido, não obstante ter ficado infetado com SARS-CoV-2 e em isolamento, puxou J para perto de si, dizendo-lhe que era impossível ela não estar infetada e que pretendia manter relações sexuais consigo, ao que aquela recusou.
35. No dia 11 de março de 2021, porque J necessitava de se deslocar a Évora, à consulta do pós-operatório, o arguido conduziu-a até ao Hospital do Espírito Santo de Évora.
36. Uma vez que a consulta se encontrava atrasada cerca de uma hora, J telefonou ao arguido que se encontrava, no exterior, no veículo à sua espera.
37. Nessa sequência, o arguido afirmou que quem mandava era ele, que queria regressar à sua residência e que J teria de abandonar a consulta e regressar consigo ao Redondo, o que aquela fez por receio de não ter forma de regressar a casa.
38. Após o regresso, e porque J recebeu um contacto telefónico do Hospital do Espírito Santo de Évora, indagando do motivo pelo qual tinha abandonado a consulta, o arguido afirmou que não voltaria a transportá-la até ao referido Hospital para as consultas médicas.
39. No ano de 2021, J deslocou-se em transportes públicos, a consultas médicas no Hospital do Espírito Santo de Évora, pelo menos em seis ocasiões distintas.
40. Como J passou a deslocar-se em transportes públicos, o arguido dirigiu-lhe as seguintes expressões: “Já te mandei daqui embora, vai-te embora” e “Não estás aqui a fazer nada”.
41. No dia 26 de janeiro de 2022, J voltou a ser submetida a uma cirurgia no Hospital do Espírito Santo de Évora.
42. Apesar disso, no dia 29 de janeiro de 2022, porque se encontrava a lavar o chão da marquise da residência e o arguido havia entrado em casa, J pediu-lhe que não pisasse o chão porque estava molhado.
43. Nessa sequência, o arguido dirigiu-se a si e, exercendo força com a mão, apertou o ombro esquerdo de J e empurrou-a, fazendo com que aquela viesse a embater na parede da cozinha, junto à chaminé.
44. Por ter acabado de ter sido operada e ter receio de cair, J agarrou-se à mesa e às cadeiras ali existentes, logrando evitar a queda.
45. A conduta descrita provocou dor, humilhação e medo em J.
46. Em todas as situações acima narradas e ao agir da forma descrita, e muitas das vezes na presença dos filhos R e A, à data menores de idade, o arguido sabia que molestava a saúde física e psicológica de J, sua mulher, que fazia com que ela receasse pela sua vida e integridade física, que abalava a sua segurança pessoal, amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.
47. O arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
Mais se provou,
48. O arguido não averba qualquer condenação no seu CRC.
49. O arguido e assistente divorciaram-se por sentença transitada em julgado a 24 de maio de 2023, residindo em habitações distintas.
50. O arguido encontra-se reformado, auferindo uma pensão no valor mensal de €800,00.
51. Apresenta como despesas fixas a renda da casa, no valor de €400,00, consumos domésticos e alimentação cujo valor médio mensal é de €300,00 e a prestação de um veículo automóvel, de €155,00 mensais.
52. Estudou até ao 4.º ano de idade.
53. O arguido não demonstrou arrependimento nem qualquer empatia pelo sofrimento causado à assistente.


Factos não provados:
Com relevância para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
1. Nas circunstâncias descritas em 6. a 8. dos factos provados, o arguido, exercendo força muscular, empurrava J de encontro à parede da habitação, desferia murros e palmadas, em número não determinado, no nariz e boca daquela e, com as mãos, apertava-lhe o pescoço até a fazer cair no chão.
2. Nessas situações, J chorava e gritava para que o arguido parasse, o que só vinha a suceder quando J caía no chão.
3. Na situação descrita em 11. dos factos provados, o casal encontrava-se acompanhado pelos três filhos.
4. Nessa sequência, e sem que nada o fizesse prever, na presença do filho R, à data menor de idade, o arguido após elevar o tom de voz para com J, exercendo força, desferiu-lhe um murro no nariz.
5. O episódio descrito em 14. dos factos provados ocorreu na presença dos filhos A e P, à data menores de idade.
6. Em data não concretamente apurada, mas por volta do ano de 1989, cerca das 3h/4h da manhã, quando o agregado familiar residia no (…..), e na sequência da passagem de uma carrinha junto da estrada de acesso aquele monte, o arguido encetou uma discussão com J no quarto do casal.
7. Nessa sequência, o arguido, exercendo força, empurrou e desferiu um número não concretamente apurado de palmadas e murros na zona da cabeça, nariz e boca de J, as quais provocaram a sua queda no chão.
8. Não obstante J ter caído do chão, o arguido continuou a desferir palmadas e murros na zona da cabeça, nariz e boca daquela que chorava para que o arguido parasse.
9. Os gritos e choro de J foram ouvidos pelos três filhos, à data menores de idade, que se encontravam no seu quarto.
10. Os factos descritos provocaram dor, humilhação e medo em J.
11. Sem prejuízo do facto provado 5., no período entre 1981 e 1991, o arguido deslocava-se todos os fins de semana a bares de alterne, cuja localização não foi possível apurar, e voltava na manhã seguinte ou no final do fim de semana.
12. Nessa sequência, e em todos os fins de semana do período mencionado, na presença dos filhos, à data menores de idade, encetava conversa com J quando se cruzavam no interior da residência e, porque esta não lhe dirigia a palavra por saber onde o marido havia estado, o arguido apelidava-a de “torta”, “bruta”, “estúpida”, dizendo-lhe em simultâneo “levas um murro nos cornos”.
13. Em ato contínuo, exercendo força muscular, o arguido empurrava J de encontro à parede da habitação, desferia murros e palmadas, em número não determinado, no nariz e boca daquela e, com as mãos, apertava-lhe o pescoço até a fazer cair no chão.
14. Nessas situações, J chorava e gritava para que o arguido parasse, o que só vinha a suceder quando J caía no chão.
15. Com as condutas descritas em 12. e 13. dos factos não provados, o arguido provocou dor nas zonas aí referidas, humilhação, vergonha e medo em J.
16. Na situação descrita em 19. dos factos provados, o arguido desferiu um número não determinado de palmadas de mão aberta e murros no nariz e boca de J, enquanto esta chorava e gritava pedindo ao arguido que parasse.
17. No episódio descrito em 23., o arguido empurrou J e desferiu um número não apurado de murros na zona da cabeça, nem como palmadas de mão aberta e murros no nariz e boca daquela.
18. No decurso do descrito, J gritou e chorou pedindo ao arguido que parasse.
19. Na deslocação referida em 29. dos factos provados, o arguido dirigiu a J a expressão “Levas um murro nos cornos”.
20. J não tem carta de condução.
21. Nas circunstâncias descritas em 32. dos factos provados, o arguido agarrou J e puxou-a contra si.

Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção relativamente à factualidade provada tendo em conta a apreciação conjugada e crítica, com base nas regras da experiência comum, da prova produzida em audiência de julgamento, das declarações para memória futura prestadas pela vítima e da prova documental junta aos autos.
Na presente situação, cabe recordar as especiais características do crime de violência doméstica, as quais terão necessariamente que ser tidas em conta pelo julgador no processo de apreciação da prova.
Com efeito, a violência doméstica é um fenómeno que ocorre, na grande maioria das vezes, no interior da residência comum ou da vítima, o que suscita particulares dificuldades ao nível dos meios de prova, em virtude de tais factos não serem presenciados por terceiros, que sobre eles poderiam depor.
Assim, assumem especial relevância neste tipo de processos as declarações da vítima e do arguido, que não raras vezes são os únicos elementos probatórios que se encontram ao dispor do Tribunal. Nessa apreciação, haverá que analisar a coerência, verosimilhança e consistência de tais depoimentos, conjugando-os entre si e com outros meios de prova que eventualmente existam nos autos, tendo sempre presente a situação de especial fragilidade e vulnerabilidade em que habitualmente se encontra a vítima.
Tal é particularmente importante nas situações em que esta ainda evidencia uma dependência económica ou emocional do arguido – que, naturalmente, compromete as suas declarações –, mas também naquelas outras em que, por força de factos especialmente graves ou prolongados no tempo, se encontra perturbada e afetada do ponto de vista psíquico e emocional.
Deste modo, caberá ao julgador a tarefa de destrinçar aquilo que efetivamente constitui a realidade dos factos, tantas vezes desvalorizada pela própria vítima em consequência da exposição prolongada a um quadro de humilhação e maus tratos.
Descendo ao caso destes autos, foram decisivas para a formação da convicção do Tribunal as declarações para memória futura da assistente, prestadas de forma genuína e credível, considerando a espontaneidade e comoção com que relatou os vários episódios ocorridos durante o namoro e casamento com o arguido.
Este, por sua vez, confrontado com os factos constantes da acusação, negou a sua generalidade, apenas confirmando que, efetivamente, tinha por hábito frequentar bares de alterne e, bem assim, que na sequência de discussões provocadas por esse facto, enquanto residiam no Monte da Amendoeira, apelidou a assistente de “torta”, “bruta”, “estúpida”, malcriada” e “porca”, mais lhe dizendo “Pareces uma cabra a gritar”.
Contudo, assumindo uma postura de vitimização e total desresponsabilização, procurou justificar essa sua conduta, referindo que aquela também o injuriava, designadamente dizendo-lhe que ele era estúpido, malcriado e porco.
De igual modo, também confirmou que, na sequência de ter levado a assistente a uma consulta médica em Évora, que acabou por se atrasar, lhe disse que ela tinha que se ir embora, o que veio a suceder. Também aqui, porém, justificou tal comportamento com o facto de ter que ir almoçar e, posteriormente, trabalhar, acrescentando que, após tal situação, a assistente se passou a deslocar às consultas em transporte público ou com recurso aos Bombeiros, por sua própria iniciativa.
Já no que concerne ao episódio ocorrido no dia 29 de janeiro de 2022, apresentou uma versão distinta, segundo a qual terá entrado em casa para ir à cozinha e, como a assistente se dirigiu a ele a gritar, colocando-se à sua frente no hall de entrada, este lhe terá tocado no ombro exercendo a força estritamente necessária para a afastar do seu caminho, sem que alguma vez a tenha empurrado, nomeadamente em direção à parede da cozinha.
Foi notório ao Tribunal que, com o seu discurso, procurou denegrir a imagem da assistente, muito provavelmente com o objetivo de abalar a credibilidade do seu depoimento, tendo inclusivamente referido que a única justificação que encontra para o presente processo é o facto de a assistente se querer vingar dele, por aquele ter frequentado bares de alterne.
Contudo, não logrou alcançar tal objetivo.
Efetivamente, a postura da assistente em sede de declarações para memória futura foi absolutamente contrária àquela referida pelo arguido, não se afigurando que a movesse qualquer especial inimizade ou intuito persecutório quanto a este, nem tão pouco a referida vontade de vingança a que aludiu o arguido.
O seu relato, ainda que com imprecisões que o decurso do tempo justifica plenamente, evidenciou uma vida sofrida e à qual se resignou, sem realização pessoal e emocional, assim descrevendo a dinâmica da relação desde o início do namoro, bem como os episódios que ainda permanecem nítidos na sua memória.
Não se inibiu, porém, de espontaneamente referir que não se lembra dos pormenores de alguns deles, não referindo outros que constavam da acusação, assim resultando evidente que não procurou empolar ou falsear a realidade dos factos, tanto mais que ficou patente ao Tribunal que os mesmos se iam reavivando na sua memória à medida que relatava outros, denotando a inexistência de um discurso previamente preparado ou ensaiado.
A explicação quanto aos motivos que a levaram a apresentar queixa, por sua vez, afigura-se-nos perfeitamente compreensível e compatível com as regras da experiência, tendo por referência, em particular, a dinâmica própria do crime de violência doméstica e as alterações sociais e culturais das últimas décadas.
Com efeito, se outrora prevalecia na sociedade o ingénuo brocardo “Entre marido e mulher não se mete a colher”, é hoje incontestável a gravidade deste flagelo, bem como o impacto que o mesmo tem nas suas vítimas, sendo inúmeras as campanhas de sensibilização para a violência doméstica que dão voz e coragem a quem nunca ousou, anteriormente, denunciá-la.
A postura que hoje observamos na assistente é um reflexo dessa mudança de paradigma e surge na sequência de uma série de problemas de saúde, que a levaram a tomar consciência da fragilidade da sua condição e constituíram um ponto de viragem na sua vida, que culminou com a apresentação de queixa e o divórcio do arguido, após 49 anos de casamento.
Não obstante as dificuldades de memória, designadamente ao nível da concretização temporal dos mesmos, a assistente foi conseguindo, ao longo das suas declarações, situar, por referência à idade dos filhos ou dos locais onde o agregado familiar residiu, a altura em que os mesmos aconteceram.
Assim, os períodos temporais indicados nos factos provados 5., 10., 11., 13., 17., 18., 22., 23., 25., 27. resultaram precisamente dessas mesmas referências, procedendo o Tribunal ao respetivo cálculo, atenta a data de nascimento dos filhos do casal, documentada nos assentos de nascimento juntos aos autos, e, bem assim, o número de anos que o agregado familiar residiu nos três montes e, posteriormente, nas residências sitas na vila de Redondo.
Deste modo, foi possível concretizar suficientemente, quer temporal como espacialmente, os factos mais antigos que se vieram a dar como provados, entendendo o Tribunal que as imprecisões que permaneceram, nomeadamente quanto à exata data em que ocorreram, não beliscam os direitos de defesa do arguido.
As regras da experiência e a psicologia do testemunho ensinam-nos que há factos especialmente relevantes que permanecem indeléveis na memória, mas relativamente aos quais muitos pormenores, como a data da sua ocorrência, se apagam. Assim, é de admitir imputações não concretizadas, desde que as mesmas possam ser localizadas no tempo e no espaço com alguma precisão, tudo com vista a acautelar o direito ao contraditório do arguido, como entendemos suceder no presente caso.
Nesta sequência, cumpre referir que, muito embora a assistente tenha inicialmente mencionado que as deslocações do arguido a bares de alterne se verificaram durante todo o relacionamento, veio posteriormente a concretizar, no decurso do seu depoimento, que estas aconteciam sobretudo enquanto estavam no (…..) e os filhos eram pequenos, tendo sido categórica ao afirmar que eram semanais, bem como as discussões que se lhes seguiam.
Tal concretização, por sua vez, mostra-se consentânea com o facto de ter apresentado outras razões, que não as deslocações a bares de alterne, para a verificação dos episódios ocorridos no (…..), (…..) e Zona Industrial do Redondo, nomeadamente ciúmes e relacionamentos extraconjugais do arguido.
Deste modo, somos levados a concluir que a generalização realizada pela assistente inicialmente, mais não é que do que um reflexo da sua perceção subjetiva quanto aos comportamentos reiterados do arguido durante determinada fase do relacionamento entre ambos, motivada pela exposição prolongada, e repetida, a situações em tudo similares, no que à causa e dinâmica dizem respeito.
Consequentemente, e pese embora o arguido tenha admitido que frequentou bares de alterne até à altura da pandemia, deram-se como não provados os factos 11. a 15., uma vez que não encontram sustentação na prova produzida.
No que concerne à concreta dinâmica dos episódios ocorridos no (…..), vertida nos factos provados 5. a 8., a mesma resultou provada do depoimento da assistente, que isso mesmo descreveu de forma segura, precisa, espontânea e coerente, sendo corroborada parcialmente, na parte relativa às expressões que lhe eram dirigidas, pelo próprio arguido.
Das declarações da assistente também resultou provada a dinâmica dos demais episódios elencados na factualidade provada, descrita com segurança e exatidão, bem como as demais expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido.
Note-se que a circunstância de não ter sido inquirida nenhuma testemunha com conhecimento direto dos factos – porquanto o filho do casal, R, se recusou validamente a depor –, em nada abala a credibilidade do seu relato, que, por si só, e pelas razões já referidas, se afigurou suficientemente sólido para formar a nossa convicção quanto à realidade dos factos.
Por outro lado, não é de estranhar que as testemunhas L e G, amigos do arguido, nunca tenham presenciado qualquer discussão entre o casal ou visualizado qualquer marca no corpo da assistente.
Efetivamente, foi notório ao Tribunal que o seu contacto com o casal, e em particular com a assistente, não era regular, relevando também nesta sede o facto de uma das características da violência doméstica ser precisamente o facto de as vítimas ocultarem os episódios e consequências de violência física e psicológica de terceiros, por vergonha e medo de represálias. E se isso, infelizmente, é ainda uma realidade nos dias de hoje, mais seria no Portugal rural de há umas décadas atrás.
Por fim, e no que diz respeito ao facto provado 12., é de realçar que, muito embora a assistente não tenha concretizado o modo como foi atingida no nariz, a espontaneidade com que se referiu a tal situação e os detalhes mencionados quanto à idade do seu filho R, à presença da cunhada M e ao local onde foi lavar a hemorragia, não nos fazem duvidar que o mesmo efetivamente sucedeu.
Esta é uma daquelas situações em que o decurso do tempo apagou determinados detalhes, mas deixou inócuos outros tantos, não sendo de estranhar, como já se referiu, que tal fenómeno suceda, nomeadamente em virtude da ocorrência de outros eventos traumáticos.
Nesta parte, porém, não se provou que em tal situação o arguido tenha desferido um murro e, bem assim, a mesma tenha ocorrido na presença do filho R.
Os problemas de saúde e intervenções cirúrgicas a que foi submetida a assistente resultaram igualmente provados das suas declarações, as quais foram corroboradas pelas informações médicas juntas aos autos e pelo depoimento da testemunha I, sua médica de família, que não tem qualquer interesse no desfecho destes autos e se nos afigurou absolutamente credível.
A impossibilidade de manter contactos de natureza sexual após uma cirurgia para remoção de pólipo endometrial deu-se como provada por apelo às regras da experiência comum, uma vez que é de conhecimento generalizado que se trata de uma intervenção cirúrgica a um órgão do aparelho reprodutor feminino, cuja recuperação plena exige um período de abstinência sexual.
Assim, em face de tudo o que se deixou exposto, e tendo presente a particular importância das declarações da vítima no âmbito do crime aqui em análise, o Tribunal não teve dúvidas que o arguido efetivamente praticou os factos descritos na factualidade provada.
Acrescente-se, ainda, que a sua postura para isso também contribuiu, uma vez que, ao imputar a responsabilidade dos seus comportamentos à assistente, vitimizando-se e procurando justificar a sua conduta, numa atitude de superioridade para com esta, tornou evidente o pouco respeito que lhe vota, reduzindo-a a alguém que não tem igual dignidade à sua.
Para prova das datas indicadas nos factos provados 30., 35., 41. e 42., o Tribunal atendeu às já referidas informações médicas e ao auto de notícia de fls. 2 a 6.
Os factos provados 9. e 49., por sua vez, resultaram dos assentos de nascimento de R, A e P (fls. 197 a 202) e das certidões de nascimento do arguido e assistente, e respetivos averbamentos, resultando o ano de nascimento da assistente também desse documento.
A prova dos factos atinentes ao elemento subjetivo e à culpa fez-se por inferência dos factos demonstrados quanto ao elemento objetivo.
Efetivamente, o arguido não ignorava, porque tal resulta das mais elementares regras da experiência comum e de convivência em sociedade, que ao apodar a assistente de “torta”, “bruta”, “estúpida”, malcriada”, “porca”, mais lhe dizendo “Pareces uma cabra a gritar”, “Eu é que mando”, “Já te mandei daqui embora, vai-te embora” e “Não estás aqui a fazer nada”, a ofendia e humilhava, diminuindo-a no respeito que lhe era devido enquanto ser humano.
Por outro lado, este estava ciente que, no contexto em que foram proferidas, as expressões “Levas um murro nos cornos” e “Olha, até te mato. Até sou capaz de te matar” eram adequadas a causar medo e receio à assistente pela sua vida e integridade física, mais abalando a sua segurança pessoal, como se veio a verificar.
O arguido também não poderia desconhecer que, ao desferir palmadas de mão aberta na cabeça da assistente, bem como uma pancada na zona da nuca e uma palmada de mão aberta na face, ao empurrá-la e apertar-lhe o pescoço e ao apertar-lhe o ombro empurrando-a em direção à parede da cozinha, a atingia no seu corpo, causando-lhe dores e vermelhidão na face, porque tal é do conhecimento de qualquer pessoa e decorre, desde logo, das mais elementares regras de experiência comum.
De igual modo, não poderia o arguido ignorar que a sua conduta era proibida e punida por lei, porque tal é do conhecimento de qualquer cidadão medianamente formado e diligente, sobretudo numa época em que a proibição e punibilidade de tais condutas é amplamente divulgada nos meios de comunicação social.
Assim, as suas ações apenas poderão ser compreendidas como uma manifestação de vontade finalisticamente dirigida à produção dos resultados desvaliosos, que se vieram a verificar.
Acresce que o arguido sabia que se dirigia à sua namorada, posteriormente companheira e esposa, mãe dos seus filhos, e que, por esse motivo, lhe devia um especial dever de cuidado, respeito e proteção, sabendo igualmente que esta estava particularmente vulnerável por se encontrar no interior da residência que partilhavam.
Por outro lado, também tinha pleno conhecimento que, nas situações descritas nos factos provados 14. e 18.a 20., praticava tais factos na presença dos filhos R e A, à data menores de idade.
Nada nos autos nos permite concluir que o arguido não tinha a capacidade ou a liberdade para assumir comportamento diverso, pelo que se impõe a conclusão de que, ao adotar tal conduta, mesmo estando ciente da sua censurabilidade jurídico-penal, o fez de forma voluntária e consciente.
Para prova da ausência de antecedentes criminais do arguido, o Tribunal socorreu-se do Certificado de Registo Criminal junto aos autos, tendo os factos relativos à sua condição pessoal e económica resultado das declarações por si prestadas em audiência de julgamento, que nessa parte se afiguraram credíveis.
Por fim, a inexistência de arrependimento resultou provada por via da postura assumida pelo arguido em audiência, pautada por um discurso vitimizador, deixando evidente que não interiorizou minimamente o desvalor da sua conduta e revelando total ausência de empatia pelo sofrimento que causou à assistente.
No que diz respeito aos factos não provados a que ainda não nos referimos supra, estes assim se consideraram quer por falta de prova, quer em virtude das declarações da assistente.
Com efeito, ao relatar os episódios constantes da factualidade provada, esta não fez referência ao descrito nos factos não provados 1. a 10., 16. a 20. e 22. a 24., não tendo sido produzida qualquer prova quanto à ausência de habilitação legal para a condução pela assistente

Do enquadramento jurídico:
Uma vez fixados os factos, cumpre agora proceder à sua subsunção jurídica e aplicar o Direito.
Apreciando.
O arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2, alínea a) do Código Penal.
Dispõe o art. 152º, nº 1, alíneas a) e c) do CP que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns ao cônjuge e a progenitor de descendente comum em 1º grau é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Por sua vez, o nº 2, alínea a) do mesmo artigo estabelece uma agravação do crime de violência doméstica sempre que o agente praticar o facto no domicílio comum ou no domicílio da vítima, bem como na presença de menor, situação essa em que será punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
O crime de violência doméstica tem a sua génese no art. 153º do Código Penal de 1982, o qual previa o crime de maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges, punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias.
A partir de 1995, a natureza pública deste crime foi alterada relativamente aos cônjuges, estendendo-se também a quem vivesse em condições análogas a estes. Posteriormente, com a Lei nº 7/2000, de 27 de maio, o legislador consolidou a sua natureza de crime público, alargando o âmbito da incriminação ao progenitor de descendente em 1º grau.
Com a reforma de 2007, por sua vez, o crime de violência doméstica foi autonomizado dos crimes de maus tratos e violação das regras de segurança, tendo o legislador esclarecido que os factos típicos que o integram podem ocorrer de modo reiterado ou não. Condição essencial é que se enquadrem no conceito de “maus tratos físicos ou psíquicos”, aí se incluindo condutas que constituam castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedimento ao acesso ou fruição dos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns do agressor e da vítima.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora do art. 152º do CP tem vindo a ser discutido pela doutrina, aí se perfilando diversos entendimentos.
Sobre esta matéria, defende Américo Taipa de Carvalho que a incriminação visa a proteção da saúde, aqui entendida como um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, passível de ser ofendida por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge.
“Paulo Pinto de Albuquerque, por sua vez, refere que a norma visa tutelar vários bens jurídicos, nomeadamente “a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.”
Por seu turno, André Lamas Leite considera que “o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo”.
Por fim, para Teresa Morais, “mais do que a vida, a saúde, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade pessoal, a liberdade de reação ou de locomoção e a liberdade ou autodeterminação sexual, protege-se aqui a confiança legítima de que – nesse projeto relacional (presente ou passado) – não ocorrerão acções ou omissões que atentem contra estes bens, num interesse jurídico que os pressupõe, mas que os transcende.”
Tomando posição sobre tal diferendo, somos do entendimento que o bem jurídico aqui tutelado se reconduz à dignidade da pessoa humana, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico, aqui enquadrado no âmbito de uma relação interpessoal de confiança, no seio da qual é legítima a expectativa da existência de um comportamento especialmente protetor, respeitoso e condigno.
Com efeito, é nesta expectativa de confiança, por parte da vítima, que assenta a autonomização do crime de violência doméstica de outros crimes com os quais este estabelece uma relação de especialidade (tais como ofensa à integridade física, injúrias, ameaça, coação sexual, entre outros), sendo igualmente esse o fundamento que conduz a um juízo de maior censurabilidade do agente.
Por outro lado, consideramos que a análise do bem jurídico aqui tutelado não poderá ser desligada da evolução legislativa do crime de violência doméstica, à qual nos referimos brevemente, uma vez que é aí patente a intenção do legislador de atribuir tutela penal à confiança desenvolvida nas relações interpessoais, nomeadamente, e no que aqui nos interessa, naquelas entre cônjuges ou pessoas que vivam em condições análogas a estes.
Assim, os maus tratos, neste contexto, reconduzem-se a todos os comportamentos do agente que são suscetíveis de violar essa expectativa de confiança, atingindo simultaneamente a esfera de dignidade da vítima. Neste sentido, incluem-se aqui todos os comportamentos, reiterados ou não, que sejam de molde a evidenciar, por parte do agente, desprezo, humilhação ou desconsideração pela vítima, degradando-a e desumanizando-a.
Como se lê no Ac. do TRP, de 19-09-2012, “não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime (...); o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.
Acresce que tais condutas, tendo em conta a dinâmica própria do crime de violência doméstica, encontram-se habitualmente associadas a uma posição de domínio ou controlo, pelo agente, da vítima, quer do ponto de vista económico, como emocional. Deste modo, não raras vezes se assiste a um efeito “bola de neve”, em que a vítima vê destruída a sua autoestima e capacidade de reação, conformando-se com tais tratamentos degradantes, num escalar de maus tratos físicos e psíquicos que ainda acentuam mais essa dependência e vulnerabilidade face ao agressor.
Por outro lado, trata-se de um crime específico, na medida em que se exige que o agente se encontre numa determinada relação para com a vítima, a qual pode ser de conjugalidade (casamento ou condições análogas à dos cônjuges), parentalidade, namoro, entre outras. De igual modo, é um crime de resultado e de dano, uma vez que pressupõe a efetiva lesão do bem jurídico tutelado.
A tudo acresce que o legislador estabeleceu, na alínea a) do nº 2 do art. 152º do CP, uma agravação que pretende demonstrar a censura acrescida nos casos de violência doméstica velada, na qual a conduta do agressor é favorecida pelo facto de a vítima se encontrar no domicílio, local onde se deveria sentir segura e no qual, na grande maioria das vezes, não existem testemunhas.
No que diz respeito ao elemento subjetivo, trata-se de um crime necessariamente doloso (art. 14º do CP) – podendo tal dolo abranger apenas a conduta do agente ou estender-se também ao resultado –, sendo certo que, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “o conhecimento correto da identidade e das características da vítima é aqui fundamental para a conformação do dolo do agente.”
No caso sub judice, cotejada a factualidade provada, resulta que o arguido e a ofendida mantiveram uma relação de namoro, de convivência análoga à dos cônjuges e, posteriormente, de casamento, tendo três filhos em comum. Assim, encontra-se desde logo preenchida a especial relação entre agente e vítima prevista nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 152º do CP, mas também aquela prevista na alínea b) desse normativo legal, que fundamentou a comunicação de alteração da qualificação jurídica por parte do Tribunal.
Com efeito, dispõe tal alínea que o previsto no nº 1 do art. 152º é também aplicável quando esteja em causa aprática dos atos aí referidos contra pessoa de outro sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, como sucede no presente caso.
Ora, foi no período do namoro entre assistente e arguido que este desferiu uma palmada de mão aberta na face daquela, tendo posteriormente, enquanto unidos de factos e cônjuges, desferido um número não concretamente apurado de palmadas de mão aberta no topo da cabeça da assistente, o que ocorria com uma frequência semanal durante o período temporal em que residiram no (…..).
No mais, resultou igualmente provado que, exercendo força muscular, o arguido desferiu uma pancada vulgarmente conhecida como “golpe do coelho” na nuca da assistente, deixando-a inconsciente por alguns segundos, mais a atingindo, de modo não concretamente apurado, no nariz, provocando-lhe uma hemorragia.
Foi também durante o período de casamento que o arguido a empurrou e lhe apertou o pescoço com uma mão, e que, exercendo força com a mão, apertou o seu ombro esquerdo e a empurrou, fazendo com que viesse a embater na parede da cozinha, junto à chaminé, três dias depois de ter sido submetida a uma intervenção cirúrgica.
Ao adotar tais comportamentos não poderia o arguido desconhecer que, com as mesmas, atingia o corpo de Joana Santos, molestando a sua saúde física e causando-lhe dores, uma vez que tal decorre das mais elementares regras da experiência e é de conhecimento generalizado.
Para além disto, da factualidade provada também resulta que o arguido, durante o período em que viviam em condições análogas às dos cônjuges e durante o casamento, apodava a assistente de “torta”, “bruta”, “estúpida”, malcriada” e “porca”, mais lhe dizendo “Pareces uma cabra a gritar”, “Eu é que mando”, “Já te mandei calar”, “Quem manda aqui sou eu”, “Não sei para que tenho uma mulher. Eu tenho uma mulher para quê?”, “Eu quero uma mulher para tudo em casa”, “Já te mandei daqui embora, vai-te embora” e “Não estás aqui a fazer nada”.
Ora, o arguido não desconhecia que tais epítetos e expressões, perante qualquer pessoa medianamente formada, assumem caráter objetivamente ofensivo e depreciativo, sabendo igualmente que, ao proferi-los à assistente, a atingia na sua honra, a humilhava, magoava e desconsiderava, afetando a sua dignidade enquanto pessoa e mulher.
Com efeito, com todas as condutas acima referidas, praticadas no decurso de 50 anos, o arguido atingiu a autoestima e amor próprio da assistente, rebaixando-a de forma sistemática, afetando igualmente a sua saúde psíquica e bem-estar emocional.
A tudo acresce que, ao dizer-lhe, nas circunstâncias em que o fez, “Levas um murro nos cornos” e “Olha, até te mato. Até sou capaz de te matar”, o arguido sabia, porque tal é do conhecimento da generalidade das pessoas, que tais expressões eram aptas a causar-lhe receio pela sua vida e integridade física, colocando em causa a sua segurança pessoal.
Assim, com a conduta acima descrita, o arguido quis e conseguiu molestar a saúde da assistente, o seu corpo, o seu bem-estar psíquico e emocional, a sua honra e consideração, submetendo-a a um tratamento humanamente degradante, com total desrespeito pelos seus direitos, personalidade e dignidade intrínseca.
O seu comportamento é ainda mais grave porque inserido no âmbito de uma relação afetiva e num contexto de coabitação, onde a assistente tinha a expectativa e, realce-se, o direito de se sentir acarinhada, respeitada, amada e protegida, tendi sido, ao invés, sujeita por aquele a um tratamento que a diminuía nas múltiplas dimensões da sua personalidade.
Isso mesmo é patente no modo como a tratou quando esta se encontrava particularmente vulnerável em virtude dos problemas de saúde e das cirurgias a que havia sido submetida, sem respeito pelos cuidados de saúde e períodos de convalescença de que aquela necessitava, antes a humilhando e rebaixando, como se de um objeto se tratasse, designadamente quando lhe disse “Não sei para que tenho uma mulher” e “ Eu quero uma mulher para tudo”.
Haverá ainda que referir que o arguido sabia que praticava tais factos na residência comum, assim se aproveitando da circunstância de a assistente aí se encontrar, grande parte das vezes, sozinha ou com os filhos menores, a salvo de terceiros que pudessem testemunhar os seus comportamentos ou vir em seu auxílio.
Deste modo, é forçoso concluir que a conduta do arguido, tendo em conta a sua reiteração e gravidade inerente, teve como propósito atingir a honra e consideração da assistente, bem como o seu corpo e bem-estar psíquico e emocional, desrespeitando a sua dignidade pessoal.
Além disto, e pese embora estejamos perante alguns factos antigos, a verdade é que o comportamento abusivo do arguido não se modificou ao longo dos vários anos em que tiveram um relacionamento afetivo, antes persistindo, de forma ininterrupta, desde o namoro até ao dia 29 de janeiro de 2022, como resulta da factualidade provada e dos episódios aí descritos.
Não estamos, portanto, diante de meras desavenças conjugais, mas sim de factos graves e duradouros que, analisados na globalidade, são suficientemente graves para integrar o conceito de maus tratos previsto no art. 152º do CP.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, porque tal é do conhecimento generalizado da população, em virtude do amplo debate social sobre esta matéria ocorrido nos últimos anos.
Contudo, não se absteve de agir do modo descrito, apenas se compreendendo a sua atuação como a exteriorização de uma vontade dirigida à prossecução dos consequentes resultados desvaliosos. Conclui-se, portanto, que agiu sempre com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do CP).
Acresce que o arguido podia e devia ter agido de modo diverso, não o tendo feito apenas porque não quis, residindo a sua culpa nessa escolha livre, voluntária e consciente.
Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude e da culpa.
Assim, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e nº 2 do CP.
(…)

Do arbitramento oficioso de indemnização civil:
De acordo com o disposto no art. 21º, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, conjugado com o art. 16º, nº 2 da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, e com o art. 82º-A do CPP, a ofendida tem direito ao arbitramento oficioso de uma indemnização a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
Conforme decidido no Ac. do STJ, de 02-05-2018, “a reparação a que se refere o artigo 82º-A do CPP não tem natureza estritamente civil, de “indemnização”, comportando uma dimensão penal, de efeito penal de condenação, apesar de convocar elementos de caracterização provenientes do direito civil.”
Assim, e não se confundindo com a indemnização civil, a reparação de natureza pecuniária do arbitramento não tem que coincidir com a indemnização civil a que eventualmente poderia haver lugar, não obstante existir uma remissão para os conceitos civis de “prejuízo” e “dano”.
Com efeito, esta reparação deve reger-se por juízos de equidade, levando em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, bem como as condições pessoais do agente e a sua situação económica, ponderados conjuntamente à luz dos critérios dos art. s 494º e 496º do Código Civil (CC) e das alíneas a) e d) do nº 2 do art. 71º do CP.
Ora, da matéria de facto provada resulta que a assistente sofreu dores, chegando a ficar inconsciente em consequência da conduta do arguido, mais vivendo durante 50 anos com medo, vergonha e receio pela sua vida e integridade física. Acresce que se sentiu humilhada e viu a sua dignidade pessoal atingida em virtude do comportamento daquele ao longo de todo esse período.
Assim, dúvidas não existem que se encontram, in casu, preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos previstos no art. 483º, nº 1 do CC. Com efeito, tais danos provieram de um facto ilícito e culposo, voluntariamente praticado pelo arguido, cuja conduta violou direitos de personalidade da ofendida, assim se verificando o competente nexo de causalidade entre esta e aqueles.
Consequentemente, tendo presentes as condições económicas do arguido consignadas no facto provado 51., bem como a extensão dos danos provocados, o longo período temporal em causa (50 anos) e o considerável grau de ilicitude da sua conduta, considera-se ajustado e proporcional arbitrar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, a quantia de €3.000,00 (três mil euros) a favor da assistente J, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 483º, nº 1 e 496º, ambos do CC, art. 21º, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, art. 16º, nº 2 da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, e art. 82º-A do CPP.
O pagamento da indemnização deverá ocorrer nos termos suprarreferidos, uma vez que suspensão da execução da pena de prisão se encontra subordinada a tal obrigação.
(…)


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes:

- Nulidade da sentença proferida por operar uma alteração substancial dos factos.
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os factos provados sob os pontos 5, 9 a 14, 17 a 20, 22, 23, 25, 27, 30, 35, 41, 42 e 49, serem considerados como não provados.
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, quanto à subsunção jurídica dos factos provados ao tipo legal de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas b) e c) e nº 2, alínea a), do Código Penal.
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à condenação no pagamento de quantia à vítima a título de reparação – artigo 82º-A, do Código de Processo Penal.

- Da nulidade da sentença proferida por ter operado a uma alteração substancial dos factos e da qualificação jurídica.
O conceito subjacente à alteração substancial dos factos ou não, encontra-se definida no artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, de onde resulta que: «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
No caso concreto não resulta qualquer imputação ao arguido de crime diverso, pois mostra-se acusado e condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 e nº 2, do Código Penal.
Nem da alteração factual operada e comunicada ao arguido nos termos do disposto no artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, não resulta qualquer agravação dos limites máximos da sanção aplicável, pena de prisão de 2 a 5 anos.
Ou seja, o que nos autos se configura e foi comunicado ao arguido nos termos do artigo 358º, nº 1 e nº 3, do Código de Processo Penal, foi uma simples alteração de factos resultante da audiência de julgamento, em que o tribunal investiga e integra no processo factos que não constam da acusação mas têm relevo para a decisão, mas não determinam uma alteração do objeto do processo.
Assim, tal alteração de factos não determina uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa, isto é, a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, nos termos do artigo 359º, do Código de Processo Penal.
Da confrontação da acusação deduzida e do conjunto de factos provados constantes da sentença prolatada, resulta evidente que as alterações da segunda constituem meras precisões dos factos integrantes da primeira, não existindo qualquer facto novo e por tal, insusceptível de por qualquer forma alterar o objecto do processo.
Na verdade, resulta evidente que tal precisão factual não insere qualquer novidade ou elemento desconhecido relativamente ao crime praticado e por tal, a modificação dos factos constantes da acusação integra o conceito normativo da alteração não substancial de factos, por não revestir relevo para a decisão da causa e não implicar qualquer limitação dos direitos de defesa do arguido.
Neste caso de alteração não substancial, parece que apenas impende sobre o juiz, o dever de comunicar ao arguido e ao defensor os factos que representam alteração relativamente aos que conformam a acusação e conceder o tempo necessário para preparação da defesa, se requerido, conforme resulta da acta de audiência de julgamento de 29-11-2023, ref. (33553700).
Igualmente a alteração da qualificação jurídica constante da sentença prolatada, com o acrescento da imputação do crime de violência doméstica pela alínea b), do nº 1, do artigo 152º, do Código Penal, resulta de um conjunto de factos provados, abranger um período anterior ao casamento em que o arguido e a vítima tinham uma relação de namoro e viveram em situação análoga à dos cônjuges, não consubstanciando qualquer relevante alteração da qualificação jurídica ou agravamento da medida da sanção a aplicar.
Por fim, resulta insofismável, que no presente caso não existe qualquer alteração substancial dos factos ou da qualificação jurídica, nos termos do disposto no artigo 359º, do Código de Processo Penal, com a consequente nulidade da sentença proferida, improcedendo por tal, nesta parte o recurso interposto pelo arguido F.


- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os factos provados sob os pontos 5, 9 a 14, 17 a 20, 22, 23, 25, 27, 30 35, 41, 42 e 49, serem considerados como não provados.
É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Apreciada a peça recursiva apresentada pelo arguido, constata-se que a mesma não faz referência expressa ao artigo 412º, do Código de Processo Penal, visando a apreciação de eventuais erros de julgamento da matéria de facto.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo nº 3 e, nº 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros “in judicando” (violação de normas de direito substantivo) ou “in procedendo” (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-03-2012, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18-04-2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Cabe aqui evidenciar, um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lança luz sobre a questão em apreço.
Como, de forma impressiva, refere o Conselheiro Carmona da Mota no acórdão do STJ de 27-02-2003, Proc. 140/03, “ii. O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido depende fundamentalmente da sua credibilidade: ou seja, a sua idoneidade e autenticidade. iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".
Ou seja, e como assinala Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 204 e sgs., a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis - v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova, e mesmo puramente emocionais. Em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável.
E, nesta matéria assume-se, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só a oralidade e imediação, com efeito, permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, decorre da peça recursiva apresentada pelo recorrente que pretende impugnar a matéria de facto considerada como provada nos pontos 5, 9 a 14, 17 a 20, 22, 23, 25, 27, 30 35, 41, 42 e 49, para serem considerados como não provados.
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-06-2002, proferido no processo nº 0210320, disponível em www.dgsi.pt, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. (…). Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.”.
Assim, no âmbito do referido erro de julgamento em matéria de facto, há-de conceder-se que, revista a prova produzida na audiência de julgamento levada na instância, particularmente no cotejo das declarações ali produzidas pelo arguido e pela assistente e do auto de notícia, dos assentos de nascimento dos filhos do casal e da documentação médica junta aos autos, dado o carácter pessoal e reservado dos factos, que a ponderação das declarações para memória futura da assistente e das declarações do arguido, coadjuvados com a demais prova documental, descritos e sopesados na sentença pela M. Juiz do Tribunal “a quo”, com adequado critério obviamente, permitem concluir, que as declarações da assistente fazem prova das agressões físicas e psicológicas do arguido, confirmadas, pontualmente, pela prova documental junta aos autos, sendo a tese sustentada, fundamentadamente, na sentença, nos termos e âmbito do disposto nos artigos 374º nº 2 e 127º, do Código de Processo Penal e mesmo que se não possa ter como imperativa, tem de ter-se por consentida pela prova na audiência levada em primeira instância.
Com efeito, sob análise e valoração, neste Tribunal “ad quem”, das provas produzidas no Tribunal recorrido, a convicção ora formada sobre os factos sob julgamento (seja quanto aos que devem considerar-se como provados, seja no que respeita aos que devem ter-se como não provados) não diverge daquela que a M. Juiz do Tribunal “a quo” alcançou e exprimiu na decisão recorrida.
Pois as declarações do arguido, na parte em que são credíveis sustentam na integra a versão dos factos resultante das declarações para memória futura da assistente e pela restante prova documental.
E assim, procedendo a ponderação e convicção autónomas e autonomamente formuladas, nesta instância recursória, e tudo sem embargo dos inultrapassáveis limites de apreciação nesta instância, ditados pela natureza (de remédio), pelo momento de apreciação (de segunda linha e em suporte estático, não sendo caso de renovação de provas), e mesmo pelos termos, modelo e modo de impugnação, inerentes ao recurso, temos de concordar com o juízo formulado pela 1ª instância, improcedendo pois nesta parte o recurso interposto.
Quanto aos aspectos de ordem subjectiva, constantes os factos provados, é sabido que são apurados em função dos factos objectivos que indiciam a atitude psicológica do agente para com o facto.
Com efeito, as intenções, as vontades, os conhecimentos, as representações mentais, porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente perceptíveis, hipostasiáveis.
Desse modo, a inerente percepção, nomeadamente para efeitos judiciais, só pode ser alcançada por via da ponderação dos comportamentos exteriorizados que, de um modo mais ou menos conclusivo, demonstrem esses estados psicológicos (nas palavras de Germano Marques da Silva, e na linha de pensamento de Cavaleiro de Ferreira, “a maior parte das vezes os actos interiores não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores.”, Curso de Processo Penal, II, 1999, p. 101).
Pretender o contrário, conduziria a apenas ser possível demonstrar a atitude psicológica do agente para com o facto no caso de confissão. Tal perspectiva afigura-se manifestamente improcedente.
Assim, quanto a estes aspectos de ordem subjectiva, socorreu-se o Tribunal dos elementos objectivos disponíveis, chamando ainda à colação a doutrina do Acórdão da Relação do Porto de 23-02-83 quanto à intencionalidade, pertencendo o dolo “à vida interior de cada um”, sendo “portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, como maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”. - Cfr. BMJ nº 324, p. 620.
Assim, face a este acervo de prova, apenas permite concluir nos termos feitos pelo Tribunal “a quo”, pois nenhuma outra prova directa ou indirecta existe sobre a ocorrência de tais factos, já que a versão apresentada pelo arguido não é corroborada por qualquer outra prova, pelo contrário, é afastada pelas declarações da assistente e prova documental.
A prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada.
O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Ademais, ressalvado sempre o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, o mesmo olvida o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
O princípio “in dubio pro reo”, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão
Não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e, em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.
Posto isto, surge como evidente que a não-aceitação, que o recorrente manifesta relativamente ao modo como o Tribunal “a quo” decidiu a matéria de facto, não radica na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, mas tão só na sua análise pessoal da prova e da sua vontade de a sobrepor à análise levada a cabo por quem tem o poder/dever de a fazer.
O que não viola qualquer garantia de defesa do arguido, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente.

Cumpre por obediência à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, deixar exarado que a sentença recorrida, por si ou com recurso às regras da experiência, não revela qualquer dos vícios prevenidos no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ocorrer pela verificação de algum destes vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local supra, mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e nos pedidos civis e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi toda a materialidade sob julgamento, nomeadamente foram ponderadas as declarações do arguido, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada e não provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário, nomeadamente na ponderação da prova testemunhal.
De igual modo, conforme supra, referido, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do “favor rei”, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Por tal, não resulta existir qualquer dos vícios constantes do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) ou, c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedentes as invocadas impugnações da matéria de facto por parte do recorrente F.

- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, quanto à subsunção jurídica dos factos provados ao tipo legal de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) b) e c) e nº 2, alínea a), do Código Penal.
Assim, não se verificando qualquer vício de procedimento, cumpre apreciar a impugnação do arguido relativamente à impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente ao enquadramento jurídico dos factos provados.
Decorre do disposto, no artigo 152º, do Código Penal:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) (…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1 grau;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
(…)
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.
(…)
Assim, o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação conjugal ou análoga e, mesmo após cessar essa relação.
Trata-se de um crime específico impróprio ou impuro e de perigo abstracto e, pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143º, nº 1, do Código Penal), as injúrias (artigo 181º), a difamação (artigo 180º, nº 1), a coacção (artigo 154º), o sequestro simples (artigo 158º, nº 1), a devassa da vida privada (artigo 192º, nº 1, al. b)), as gravações e fotografias ilícitas (artigo 199º, nº 2, al b)).
Assim, este tipo legal de crime abrange as situações de violência familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, degradante para a integridade pessoal da vítima.
Tutela-se a integridade da pessoa numa determinada relação afectiva ou, na sequência da ruptura da mesma.
Esta necessidade de protecção perdura e intensifica-se mesmo, nas situações de ruptura do casamento ou da relação.
A “ratio” do tipo não reside, porém, na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual que a integra, na tutela da sua dignidade humana.
Protege-se o bem jurídico “saúde”, e não apenas a integridade física.
O bem jurídico (saúde) abrange a saúde física, psíquica e mental (assim, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512).
De acordo com os factos provados, o arguido e a ofendida, tiveram uma relação de namoro, viveram uma relação análoga à dos cônjuges e contraíram casamento, tendo 3 filhos em comum, conforme resulta dos factos provados, o arguido praticou os factos provados, como sejam agressões físicas e psicológicas relevantes na pessoa da assistente, causando-lhe sofrimento físico e psicológico, humilhando-a, vexando-a e amedrontando-a, pela inferioridade física e na presença dos filhos menores no interior da residência, com a ausência de qualquer causa que justificasse tal conduta ou excluísse a sua culpa, actuando de modo livre, voluntário e consciente com intenção concretizada de modo a ofender fisicamente, vexar, inquietar, amedrontar, ofender a saúde psíquica da ofendida, na a presença dos filhos menores, o que logrou.
Sendo que o crime de violência doméstica não exige uma reiteração de condutas, (quem de modo reiterado ou não), mas sim uma sujeição a um vexame e uma humilhação especialmente censurável e danosa para a integridade da vítima, nomeadamente pela violência da agressão, pela prática na presença de descendentes, desde que se mostrem suficientes para lesar o bem jurídico protegido, a ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
O crime de violência doméstica distingue-se, neste caso concreto, dos crimes de injúria, de ameaça e de ofensa à integridade física, individualmente considerados, por envolver uma ilicitude mais densa e danosa, tratando-se de um tipo qualificado relativamente a tais crimes parcelares.
No caso concreto, pela intensidade das agressões comprovadas e pelas circunstâncias das mesmas, no interior da residência comum, com a presença dos filhos menores a conseguirem aperceber-se do que concretamente estava a acontecer e com consequências colaterais na mesma, tal determina na vítima necessariamente, um vexame e uma humilhação, incompatíveis com a sua dignidade como pessoa humana e uma ofensa na sua saúde psíquica, emocional ou moral, que traduz uma ilicitude especialmente mais danosa.
Por tudo se conclui que os factos provados são suficientes para a realização do tipo de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a), b) e c), nº 2, alínea a), do Código Penal.
Por isso, se mantém a sentença recorrida, improcedendo também nesta parte, o recurso interposto.
(…)

- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à fixação de um montante indemnizatório.
Resulta da sentença recorrida:
“De acordo com o disposto no art. 21º, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, conjugado com o art. 16º, nº 2 da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, e com o art. 82º-A do CPP, a ofendida tem direito ao arbitramento oficioso de uma indemnização a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
Conforme decidido no Ac. do STJ, de 02-05-2018, “a reparação a que se refere o artigo 82º-A do CPP não tem natureza estritamente civil, de “indemnização”, comportando uma dimensão penal, de efeito penal de condenação, apesar de convocar elementos de caracterização provenientes do direito civil.”
Assim, e não se confundindo com a indemnização civil, a reparação de natureza pecuniária do arbitramento não tem que coincidir com a indemnização civil a que eventualmente poderia haver lugar, não obstante existir uma remissão para os conceitos civis de “prejuízo” e “dano”.
Com efeito, esta reparação deve reger-se por juízos de equidade, levando em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, bem como as condições pessoais do agente e a sua situação económica, ponderados conjuntamente à luz dos critérios dos art. s 494º e 496º do Código Civil (CC) e das alíneas a) e d) do nº 2 do art. 71º do CP.
Ora, da matéria de facto provada resulta que a assistente sofreu dores, chegando a ficar inconsciente em consequência da conduta do arguido, mais vivendo durante 50 anos com medo, vergonha e receio pela sua vida e integridade física. Acresce que se sentiu humilhada e viu a sua dignidade pessoal atingida em virtude do comportamento daquele ao longo de todo esse período.
Assim, dúvidas não existem que se encontram, in casu, preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos previstos no art. 483º, nº 1 do CC. Com efeito, tais danos provieram de um facto ilícito e culposo, voluntariamente praticado pelo arguido, cuja conduta violou direitos de personalidade da ofendida, assim se verificando o competente nexo de causalidade entre esta e aqueles.
Consequentemente, tendo presentes as condições económicas do arguido consignadas no facto provado 51., bem como a extensão dos danos provocados, o longo período temporal em causa (50 anos) e o considerável grau de ilicitude da sua conduta, considera-se ajustado e proporcional arbitrar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, a quantia de €3.000,00 (três mil euros) a favor da assistente J, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 483º, nº 1 e 496º, ambos do CC, art. 21º, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, art. 16º, nº 2 da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, e art. 82º-A do CPP.
O pagamento da indemnização deverá ocorrer nos termos suprarreferidos, uma vez que suspensão da execução da pena de prisão se encontra subordinada a tal obrigação.
Com efeito, a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, dispõe no seu artigo 21º que:
“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.
E é a seguinte a redação do artigo 82º-A do Código de Processo Penal que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais:
“1. Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
2. No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3. A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”
Refere Paulo Pinto de Albuquerque na anotação ao artigo 82º-A do seu Comentário ao Código de Processo Penal (4ª edição) que “O direito à indemnização previsto no artigo 21º, nº 2, da Lei 112/2009, de 16-09, prejudica as regras do artigo 82º-A do C.P.P., uma vez que consagra uma indemnização oficiosa “obrigatória”, mesmo no caso de não dedução do pedido de indemnização por culpa, negligência ou desinteresse da vítima ou de não existência das “particulares” exigências de protecção da vítima que imponham a reparação oficiosa. As únicas condições da reparação oficiosa da vítima são a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e a não oposição da vítima à reparação”.
Defende este autor e bem que o regime especial prevalece sobre o regime geral, o que de resto é também defendido pela jurisprudência.
No presente caso a Mmª Juiz a quo condenou o arguido pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, alíneas a), b) e c) e nº 2 do Código Penal.
A ofendida não deduziu pedido de indemnização civil.
Dos autos não consta declaração da ofendida, escrita ou oral, opondo-se ao arbitramento de indemnização decorrente da prática do crime pelo qual o arguido foi condenado e, a nosso ver, particulares exigências de proteção da vítima o impõe no caso concreto.
Assim, tendo ocorrido a condenação do F pela prática do crime de violência doméstica e não tendo havido oposição da vítima, está o tribunal “a quo” vinculado, por força do disposto no artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, a fixar uma indemnização a pagar pelo arguido à ofendida e isto, independentemente da situação económica do arguido, pois que, apenas releva para efeitos da quantificação da indemnização em causa, não podendo ser fundamento para o não arbitramento da indemnização à vítima, atenta a imposição legal em causa.
De acordo com o disposto no artigo 129º do Código Penal a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
O artigo 483º do Código Civil preceitua que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Resulta dos factos provados que em consequência da conduta do arguido a ofendida, pessoa doente, foi reiteradamente, ao longo de cerca de 50 anos, molestada física e psiquicamente, infligindo-lhe maus tratos físicos e psíquicos, humilhando-a, ofendendo-a na sua honra e considerações pessoais, condicionando a sua vida, liberdade e bem-estar psicossocial, ofendendo-lhe a respetiva dignidade humana, criando e potenciando na ofendida sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição e frustração, fazendo-o quer no interior da residência onde ambos viveram com os filhos desde o seu nascimento até à sua emancipação.
As diversas agressões cometidas pelo arguido, foram, quer no tempo quer no modo, inquestionavelmente, causa adequada de sofrimento físico e psíquico durante longo período, o arguido agiu sempre com a intenção de maltratar física e psicologicamente a assistente, tendo-a agredido, insultado ameaçado e intimidado para melhor assegurar o êxito das suas intenções atingindo-a na sua integridade física, na sua honra e dignidade.
Os danos não patrimoniais sofridos, pela sua gravidade, justificam uma compensação, com recurso à equidade e tendo em atenção o preceituado nos artigos 483º, 494º e 496º nº 1 e nº 3, do Código Civil.
É evidente que quando se recorre a critérios de equidade, como é o caso, há sempre uma certa margem de discricionariedade e subjetividade.
No entanto, “não poderá esquecer-se que a indemnização reveste, no caso de danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente" [Cf. A. Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 7.ª ed., p. 602].
Na fixação do "quantum" indemnizatório manda a nossa lei atender, através da remissão para o disposto no artigo 494º, ao grau de culpa do lesante, situação económica de lesante e lesado, flutuações do valor da moeda, etc., devendo ser proporcionada à gravidade do dano e tomando em conta, na sua fixação, "todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida" (vide A. Varela e Pires de Lima, CC anotado, 4º Ed., pág. 501).
Na determinação concreta do montante indemnizatório há que ter em conta, finalmente, por razões de igualdade e harmonia, e como forma de ultrapassar algum miserabilismo, a evolução dos quantitativos praticados pela nossa jurisprudência, nomeadamente a respeito do dano morte, considerado o dano não patrimonial máximo e que, portanto, não devem ser ultrapassados.
Afigura-se-nos in casu equitativo – porquanto não só ajustado, como plenamente justificado, à situação dos autos e tendo em consideração todos os critérios que presidem na fixação de tais danos e seu ressarcimento – fixar em € 3.000,00 (três mil euros), a indemnização devida pelo arguido à assistente, a título de danos não patrimoniais.
Por outro lado, resulta do nº 2, do artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, que é sempre assegurado o direito ao contraditório, ou seja, é dada a possibilidade ao arguido de se opor nos termos que tiver por convenientes à reparação da vítima do crime de violência doméstica.
Efectivamente o arguido, vem no seu recurso invocar tal irregularidade, ausência da notificação prescrita pelo nº 2, do artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, contudo vistos os autos nomeadamente o despacho de 14-09-2023, (ref. 33294792), que efectuou o recebimento da acusação para a realização de audiência de julgamento, expressamente refere:
“A assistente não deduziu pedido de indemnização civil.
Requer o MP que lhe seja arbitrada uma compensação ao abrigo do disposto nos artigos 82º-A do CPP e 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro.
Assim, e desde já, sem prejuízo da prova a produzir, notifique a assistente para, no prazo de 10 dias, informar se se opõe a tal arbitramento, entendendo-se o silêncio como não oposição.
Notifique-se igualmente o arguido para exercer o contraditório quanto ao requerido”.
Então resulta expressamente dos autos a notificação do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 82º-A, nº 2, do Código de Processo Penal, improcedendo também nesta parte o recurso interposto.

Nestes termos improcedem, portanto, todas as pretensões constantes da motivação e das conclusões do recurso interposto pelo arguido F, confirmando-se consequentemente integralmente a sentença recorrida.

Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido F, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido F, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.


Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 04-06-2024
Fernando Pina
Maria Perquilhas
Maria Filomena Soares