Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
15/11.3JALRA-B.E1
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
IDENTIFICAÇÃO DE UTILIZADORES
LOCALIZAÇÃO CELULAR
Data do Acordão: 02/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: INDEFERIDO
Sumário: I. Para a investigação e repressão dos crimes elencados no artº 187º, nº 1 do CPP e não previstos na al. g) do nº 1 do artº 2º da Lei 32/2008 não é possível lançar mão dos ficheiros criados ao abrigo deste último diploma legal, conservados durante 1 ano após o termo da comunicação.

II. Para tal investigação é apenas possível (posto que verificado o condicionalismo previsto nos artºs 189º, nº 2 e 187º, nº 1 do Cod. Proc. Penal) recorrer à base de dados da empresa prestadora dos serviços (a que se refere o artº 6º da Lei 41/2004); tal possibilidade, porém, só é efectiva nos 6 meses subsequentes ao termo da comunicação em causa, porquanto findo tal prazo os referidos dados de tráfego são eliminados.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. Nos autos de Inquérito que, com o nº 15/11.3JALRA, corre termos nos Serviços do Ministério Público da comarca do Entroncamento, investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de incêndio, p.p. pelo artº 272º, nº 1, al. a) do Cod. Penal, um crime de furto qualificado, p.p. pelo artº 203º, nº 1 e 204º, nº 1, als. a) e f) do Cod. Penal e um crime de burla relativa a seguros, p.p. pelo artº 219º, nºs 1, al. a) e 4, al. a), do Cod. Penal.

Com efeito, na sequência de um fogo que deflagrou nas instalações de uma determinada sociedade comercial, eventualmente provocado por acção dolosa, resultaram alguns indícios de que objectos aí existentes antes do incêndio terão sido previamente retirados, contra a vontade do respectivo proprietário.

Na sequência das investigações levadas a cabo, terão surgido alguns indícios da prática de um crime de burla relativa a seguros, eventualmente perpetrado pelo suposto lesado nos crimes de incêndio e furto qualificado.

Subsequentemente, o Magistrado do Ministério Público promoveu – e o Mº juiz deferiu – que se oficiasse à Vodafone, “para informar sobre os dados de comunicação relativos à identificação dos seus utilizadores, às listagens de comunicações efectuadas/recebidas e à sua localização celular efectuadas nos dias 14 e 15 de Janeiro de 2011” por dois telemóveis cujos números identificou.

Respondeu a Vodafone, informando que conserva os dados de tráfego apenas por 6 meses, já decorridos (a resposta foi fornecida em 31/10/2011); bem assim, que em cumprimento do disposto na Lei 32/2008, de 17/7, conserva os dados de tráfego durante 1 ano, “com a finalidade exclusiva de transmitir essa informação às autoridades competentes para a investigação, detecção e repressão dos crimes graves, elencados no artº 2º, nº 1, alínea g)”; e conclui pedindo confirmação, nos termos do artº 9º, nº 1 da citada Lei, “de que nos presentes autos está em causa a investigação do(s) crime(s) previsto(s) no aludido normativo legal”.

Na sequência de promoção do Ministério Público, o Mº juiz despachou, invocando um aresto do Tribunal da Relação de Coimbra e sustentando que a Lei 32/2008 não revogou, explícita ou implicitamente, o regime previsto no Código de Processo Penal, maxime nos artºs 187º, nº 1, al. a) e 189º, determinando a prestação da informação anteriormente solicitada.

Mais uma vez, a Vodafone recusou a pretensão, informando que já não dispõe, nas bases de dados de facturação, dos registos referentes ao mês de Janeiro de 2011, que os registos são conservados por um ano com a finalidade exclusiva de transmitir essa informação às autoridades competentes para a investigação dos crimes qualificados como graves no artº 2º, nº 1, al. g) da Lei 32/2008 e invocando, em abono do seu entendimento, uma deliberação da Comissão Nacional de Protecção de Dados (Deliberação nº 1158/2011).

É na sequência desta segunda recusa que o Magistrado do MºPº requereu ao Mº juiz de instrução que suscitasse o presente incidente de quebra de segredo profissional, ao que este acedeu.

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que deve ser concedida a quebra do sigilo das comunicações, sustentando que “a obrigação de fornecimento de dados prevista nas referidas normas do CPP continua a ter aplicação mesmo após a entrada em vigor da Lei nº 32/2008, que as não revogou, nem expressa nem implicitamente.

II: Decidindo:

Salvo o devido e merecido respeito, a situação dos autos não justifica a dedução do presente incidente.

Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 135º e 183º do CPP, o incidente ora deduzido tem como pressuposto a recusa, fundada em segredo profissional, de fornecimento de documentos ou informações solicitados por autoridade judiciária.

Ora, analisada a resposta da Vodafone ao pedido formulado pelo Mº juiz de instrução, a conclusão a retirar é que em parte alguma aquela entidade invocou sigilo das comunicações para recusar a entrega das informações solicitadas. Bem mais simplesmente, aquilo que a Vodafone afirma é que os elementos pretendidos pelo Mº juiz de instrução já não estão nas suas bases de dados de facturação, porquanto terão sido apagados 6 meses decorridos sobre os mesmos; de outro lado, que existe efectivamente registo desses dados, em base de dados autónoma, disponível apenas para a investigação dos crimes elencados no artº 2º, nº 1, al. g) da Lei 32/2008, entre os quais se não integram os crimes investigados nos presentes autos.

E daí que, mais uma vez ressalvado o devido respeito, nos pareça que este incidente assenta em dois equívocos:

- o primeiro, como se disse, é que a recusa de fornecimento de dados não foi fundamentada em qualquer segredo profissional;

- o segundo é que, para o caso, é totalmente irrelevante saber se a Lei 32/2008 revogou, ou não, o regime previsto nos artºs 187º e 189º do CPP.

Abordemos com mais pormenor este segundo equívoco, dado que o primeiro nos parece manifesto.

Dispõe-se no artº 189º, nº 2 do CPP que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artº 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo. O suspeito é uma das pessoas referidas no nº 4 do artº 187º do CPP. De outro lado, os crimes previstos com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos (como é o caso dos crimes dos autos) têm assento na al. a) do nº 1 do artº 187º.

A Lei 32/2008, de 17/7, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/3, e tem como objecto a regulamentação da conservação e transmissão de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves (artº 1º desse diploma), como tal se considerando os crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima [artº 2º, nº 1, al. g), idem].

Nos termos do disposto no artº 6º da citada Lei, os dados previstos no artº 4º, nº 1, devem ser conservados pelo período de 1 ano a contar da data da conclusão da comunicação.

E são-no em ficheiros próprios, autónomos, separados de quaisquer outros ficheiros para outros fins – artº 3º, nº 3 da mesma Lei – sendo certo que a conservação e transmissão desses dados têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão dos crimes elencados como graves nesse diploma – artº 3º, nº 1.

São, por fim, dados que ficam bloqueados, só sendo alvo de desbloqueio “para efeitos de transmissão, nos termos da presente lei, às autoridades competentes” – artº 7º, nº 2 da referida Lei 32/2008.

Ora, que os crimes dos autos não se incluem na noção de “crime grave” enunciada na al. g) do nº 1 do artº 2º da Lei 32/2008, é algo que nos parece inquestionável.

Pergunta-se então: com que fundamento legal se pretende o acesso ao ficheiro criado para armazenamento de dados, ao abrigo da Lei 32/2008?

É que a questão, salvo o devido respeito por melhor opinião, não está em saber se a Lei 32/2008 revogou, ou não, o regime previsto no Cod. Proc. Penal, particularmente nos seus artºs 187º, nº 1 e 189º, nº 2 (questão tratada nos acórdãos da Relação de Coimbra citados no despacho de fls. 19/20 e no parecer de fls. 35/36). Mesmo a conceder-se que tal revogação não teve lugar (no que estamos em absoluto acordo com a jurisprudência aludida), nem por isso é possível concluir que para a investigação e repressão dos crimes elencados no artº 187º, nº 1 e não previstos na al. g) do nº 1 do artº 2º da Lei 32/2008 se pode lançar mão dos ficheiros criados ao abrigo deste último diploma legal.

Nos termos do disposto no artº 6º, nº 1, da Lei 41/2004, de 18/8, os dados de tráfego relativos aos assinantes e utilizadores tratados e armazenados pelas empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem ser eliminados ou tornados anónimos logo que deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação. Isto “sem prejuízo do disposto nos números seguintes”. E, face ao estatuído no nº 2 desse artigo, é permitido o tratamento de dados de tráfego relativos ao “tipo, hora de início e duração das chamadas efectuadas ou o volume de dados transmitidos” [al. b)], bem como a “data da chamada ou serviço e número chamado” [al. c)], sendo que tal tratamento somente é lícito até final do período durante o qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado (nº 3 do citado artº 6º). Tal período é de 6 meses, por força do artº 10º, nº 1 da Lei 23/96, de 26/7, na redacção que lhe foi dada pelo artº 1º da Lei 12/2008, de 26/2.

Quer isto dizer que para a investigação dos crimes não considerados como graves pela Lei 32/2008, de 17/7 é possível (posto que verificado o condicionalismo previsto nos artºs 189º, nº 2 e 187º, nº 1 do Cod. Proc. Penal) recorrer à base de dados da empresa prestadora dos serviços (a que se refere o artº 6º da Lei 41/2004) para obter os elementos relativos aos dados de tráfego. Tal possibilidade, porém, só é efectiva nos 6 meses subsequentes ao termo da comunicação em causa, porquanto findo tal prazo os referidos dados de tráfego devem ser eliminados (como o terão sido no caso em apreço).

Em suma: a Vodafone não recusou as informações solicitadas pelo Mº juiz a quo, invocando segredo profissional; de igual modo, não o fez com invocação de que os artºs 189º, nº 2 e 187º, nº 1 do CPP estavam revogados. Recusou o fornecimento dos pretendidos dados de tráfego porque, mais simplesmente, já os não possui na sua base de dados própria, criada para tratamento de dados nos termos previstos no artº 6º da Lei 41/2004. É certo que tais dados existirão ainda, numa outra base de dados, que com aquela se não confunde, criada com a finalidade exclusiva de investigar, detectar e reprimir os crimes considerados como graves pela Lei 32/2008 (e onde os crimes dos autos manifestamente não têm assento). E a criação de uma distinta base de dados nada tem de estranho: para além de ser exigida pela própria Lei 32/2008 (artº 3º, nº 3), a recolha de dados “para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo posteriormente ser tratados de forma incompatível com essas finalidades” é exigida igualmente pelo artº 5º, nº 1, al. b) da Lei 67/98, de 26/10 (Lei da Protecção de Dados Pessoais).

É, pois, de concluir como começámos: a situação dos autos não justificava a dedução do presente incidente

III. Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o presente incidente de quebra de sigilo de comunicações, por falta de fundamento e pressuposto legal.

Sem custas.

Évora, 28 de Fevereiro de 2012

(processado e revisto pelo relator)

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Sénio Manuel dos reis Alves

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João Martinho de Sousa Cardoso