Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL PRESCRIÇÃO AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO DECLARAÇÕES DO REPRESENTANTE DA PESSOA COLETIVA DECLARAÇÕES DE ARGUIDO | ||
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Data do Acordão: | 12/18/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. O curso do tempo tem reflexos, nomeadamente, ao nível da prescrição do procedimento criminal, constituindo esta um pressuposto negativo da punição, a qual tem por efeito, justamente, a extinção do procedimento, em virtude do decurso de certo período de tempo. II. O crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime de omissão pura, consumando-se com a não entrega à Segurança Social, no prazo legal, das contribuições deduzidas dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais (artigo 107.º/1 RGIT), contando-se o prazo prescricional «a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º/2 do mesmo diploma legal», isto é, da data da consumação do crime (artigo 119.º/1 CP).
III. Ao contrário do que sucedia no passado, a lei estabelece hoje, equilibradamente, os casos em que a audiência pode realizar-se na ausência do arguido, deixando ao Tribunal a valoração os respetivos pressupostos (artigo 333.º/1, 2 e 3 CPP). Não sendo, por conseguinte, o arguido quem determina se a audiência pode realizar-se ou não na sua ausência.
IV. Tendo lugar a audiência na ausência do arguido a sentença ser-lhe-á notificada logo que seja detido ou se apresente voluntariamente, contando-se o prazo para recurso a partir da notificação da sentença (artigo 333.º/5 CPP).
V. As regras aplicáveis, na audiência, aos representantes das pessoas coletivas que são arguidas, são naturalmente as próprias dos arguidos, previstas no artigo 343.º CPP – e não as das testemunhas (128.º ss. CPP).
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Decisão Texto Integral: | – RELATÓRIO a. No 1.º Juízo (1) Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular, de AA, Lda.. (adiante apenas abreviadamente «AA, Lda.»), com sede na Rua …, Edifício …, n.º …, em …, e de BB, nascido a … de 1975, ambos com os demais sinais dos autos, aos quais – a cada um deles - foi imputada a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto nos artigos 6.º, § 1.º, 7.º, § 1.º e 3.º, 12.º, § 2.º, 107.º, § 1.º e 2.º e 105.º, § 1.º e 4.º, al. a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e artigo 30.º, § 2.º do Código Penal (CP). Contra ambos foi também deduzido um pedido de indemnização civil (PIC), pelo Instituto de Segurança Social, I.P., no valor de 27 770,57€ acrescido de juros moratórios vencido e vincendos, computando os primeiros em 8 347,59€. A arguida AA, Lda. apresentou contestação e arrolou testemunhas. A final o tribunal singular proferiu sentença, pela qual condenou ambos os arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, designadamente: - a arguida AA, Lda., nos termos dos artigos 7.º, § 1.º, 12.º, § 3.º, 107.º, § 1.º e 2.º, por referência ao artigo 105.º, § 1.º e 4.º, als. a) e b) do RGIT e artigo 30.º, § 2.º e 79.º, § 1.º CP, na pena de 250 dias de multa à razão diária de 5€; - e o arguido BB, nos termos dos artigos 6.º, § 1.º, 7.º, § 3.º, 107.º, § 1.º e 2.º, por referência ao artigo 105.º, § 1.º e 4.º, als. a) e b) do RGIT e 30.º, § 2.º e 79.º, § 1.º do CP, na pena de 160 dias de multa à razão diária de 6€. Mais condenou ambos os arguidos no pagamento ao Instituto de Segurança Social, I.P. a quantia de 27 770,57€, acrescida de 8 347,59€ de juros moratórios vencidos e nos vincendos, contados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento. b. Inconformado, recorre o arguido BB, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição): «a) No âmbito dos presentes autos o arguido/recorrente fora sujeito a Termo de Identidade e Residência em 19.08.2019, tendo indicado como sua residência a Travessa …, nº …, …, …. b) Por via de email datado de 2.04.2022, o aqui recorrente informou os autos de que se encontrava a residir e a trabalhar na …, atual …, dando conhecimento da sua residência e manifestado disponibilidade para estar presente em tribunal. c) Mais informou o ora Recorrente de que não consentia na realização da audiência de julgamento na sua ausência, uma vez que pretendia estar presente na mesma aquando da inquirição das testemunhas indicadas pelo Ministério Publico. d) Por via das mensagens de correio eletrónico remetidas aos autos, respetivamente em 28.09.2022 e 10.10.2022, o recorrente voltou a informar os autos de que se encontrava a residir e a trabalhar no estrangeiro e manifestou o seu não consentimento à realização do julgamento na sua ausência. e) Não obstante o requerido pelo recorrente e a informação da nova morada do mesmo, a Mma Juiz do Tribunal A Quo decidiu realizar as audiências de julgamento e de leitura de sentença, que ocorreram, respetivamente em 19.12.2022, 09.05.2023, 05.06.2023 e 23.06.2023, sem que o recorrente tenha sido regularmente notificado na sua nova morada, f) Bem sabendo a Mm.a. Juiz que o mesmo já havia manifestado a sua discordância na realização do julgamento na sua ausência, invocando fundamento para o efeito. g) Mais, a Mm.a. Juiz do Tribunal A Quo não se dignou, sequer, fundamentar as razões de facto e de direito que, no seu entender, justificariam a desnecessidade da presença do arguido desde o inicio do julgamento, h) Nem fundamentar a desnecessidade de prestação de declarações pelo mesmo, i) Factos que configuram a nulidade da sentença recorrida por violação do vertido na al. c) do nº 1 do artigo 379º do CPP, j) Mais, conforme resulta do documento identificado como Notificação Via Postal Simples, junto aos autos em 14.06.2023, cuja cópia aqui se junta como Documento nº 5, não fora possível ao distribuidor postal entregar a notificação do recorrente para estar presente na audiência de Leitura de Sentença, com o justificativo de, na morada constante do TIR, não existir recetáculo. k) No entanto, mesmo perante a ausência de Caixa de Correio/Recetáculo na morada do TIR e do conhecimento do Tribunal da nova morada do recorrente, a Mm.a. Juiz do Tribunal “A Quo” considerou que o recorrente estava regularmente notificado, vide despacho de 19.06.2023 com a referência …. l) Ao não apreciar a necessidade, ou não, de o recorrente ser ouvido, consideramos que a sentença recorrida também padece de nulidade por violação do disposto no já referido artigo 379º, nº 1, al. c) do CPP. m) Como tal, ao abrigo do vertido no artigo 122º do CPP, deverão ser declaradas como nulas, por inválidas, as audiências de Julgamento e de Leitura de Sentença, com a consequente necessidade de repetição das mesmas, n) Caso assim não se entenda, o que não se concede, devem os factos dados como provados da sentença recorrida ser considerados impugnados, uma vez que a Mm.a. Juiz do Tribunal a Quo não considerou a Prescrição do Procedimento Criminal sub judice, o) Salientando que o último tributo (Contribuição/Quotização) em mora, identificado na Acusação, reporta-se a fevereiro de 2015, p) Logo, atendendo à moldura penal em apreço (Artigos 105º e 107 do RGIT), o presente procedimento criminal extinguir-se-ia no prazo de cinco anos, q) Prescrição que verificar-se-ia em fevereiro de 2020, vide al. c) do nº 1 do artigo 118º do Código Penal, r) No entanto, atendendo aos períodos de suspensão e interrupção verificados nos autos, considera-se que o Procedimento Criminal em apreço encontra-se Prescrito desde agosto de 2022, s) Caso assim também não se entenda, sempre se dirá que a Mm.a. Juiz do Tribunal A Quo fundamentou a sentença recorrida e a sua convicção com base, entre outras, nas declarações da alegada representante da sociedade arguida. t) Acontece que a dita Representante, de nome CC, é a mãe do arguido, tal como resulta da sentença recorrida, vide penúltimo paragrafo da página 10 da sentença, u) Todavia, aquando do seu depoimento, a mesma não foi advertida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 134º do CPP, v) O que, smo, constitui a nulidade do depoimento da mesma, conforme resulta do nº 2 do referido artigo 134º do CPP, w) Face a todo o exposto, consideramos que a sentença recorrida padece de nulidades várias, que o presente Procedimento Criminal já se encontra prescrito, e que em resultado do supra exposto o Arguido deverá ser absolvido. Nestes termos e com o mui douto suprimento de V. exas., é nosso humilde entendimento que o presente recurso deve ser julgado procedente, por provado, para tanto, devem ser reconhecidas e declaradas as invocadas nulidades e consequentemente, ser ordenada a substituição da sentença recorrida e/ou a repetição do julgamento.» c. Recebido o recurso o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância respondeu, sintetizando a sua posição nos seguintes termos: «1. Não é nula a sentença proferida por violação do disposto no já referido artigo 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal, conquanto, conforme decorre das atas de audiência de julgamento datadas de 9.05.2023 e 5.06.2023, foi proferido despacho fundamentado pela Mm.a. Juiz a quo que decidiu não ser essencial a presença do arguido à descoberta da verdade e boa decisão da causa, razão pela qual teve lugar a audiência de julgamento na sua ausência, nos termos do preceituado no artigo 333º do Código de Processo Penal. 2. Não tendo o arguido comunicado qualquer alteração de morada ao Tribunal, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria, considera-se o mesmo válida e regularmente notificado de todos os despachos que procederam ao agendamento das sessões da audiência de julgamento por via postal simples com prova de depósito na morada por si indicada aquando da prestação de termo de identidade e residência, não se vislumbrando a existência de qualquer nulidade processual. 3. Não se mostra prescrito o procedimento criminal quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social imputado ao arguido, já que, além dos 5 anos previstos no artigo 118º, n.º1, alínea c) do Código Penal, contados desde 20 de Março de 2015, importa considerar a causa interruptiva de notificação da acusação ao arguido em 20.02.2021, o prazo máximo previsto no artigo 121º, n.º3 do Código Penal (que ocorreria em 20 de Setembro de 2022) e fazer acrescer, ao abrigo de tal normativo, a causa suspensiva prevista no artigo 120º, n.º1 b) e n.º2 da qual, considerando o seu limite de 3 anos, se conclui que o prazo de prescrição do procedimento criminal não decorrerá antes de 20 de Setembro de 2025. 4. A recusa de depoimento prevista no artigo 134º do Código de Processo Penal é apenas aplicável a quem assuma a qualidade de testemunha no processo penal, pelo que, intervindo a mãe do arguido na qualidade de representante legal da sociedade arguida e beneficiando a mesma do direito ao silêncio constitucionalmente previsto e do qual foi informada, não se verifica a nulidade prevista no artigo 134º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a douta sentença proferida nestes autos nos seus precisos termos, fazendo-se, assim, a acostumada JUSTIÇA!» d. Na vista prevista no § 1.º do artigo 416.º CPP, o Ministério Público junto deste órgão jurisdicional de recurso lavrou parecer, reiterando o já sustentado junto do Tribunal de 1.º instância, no sentido de o recurso não merecer provimento. e. Efetuou-se o exame preliminar e foram colhidos os vistos legais. Cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). Nessa sequência, suscita o recorrente as seguintes questões (que se alinham segundo a sua precedência lógica – artigo 368.º, § 1.º ex vi artigo 425.º, § 4.º CPP): - nulidade da sentença; - nulidade da prova; - prescrição do procedimento criminal. 1.1 Da nulidade da sentença Sustenta o recorrente que a audiência de julgamento decorreu na sua ausência, sem para ela ter sido notificado nem ter consentido em ser julgado na ausência. Na sua resposta o Ministério Público afirma a sem razão do recorrente, no essencial por o arguido, regularmente notificado, não ter comparecido à audiência e o Tribunal ter considerado que a sua presença não era essencial. Mostram os autos que o arguido foi regularmente notificado para as diversas ocasiões para as quais esteve marcada a audiência, incluindo para as datas das duas sessões em que decorreram os seus normais trabalhos (9mai2023, 5jun2023) e também na sessão em que lida publicamente a sentença (23jun2023). É certo que o arguido/recorrente foi dizendo (por e-mail que remetia a Juízo) que não compareceria e que não autorizava a realização da audiência na sua ausência… Sucede que não é o arguido quem determina se a audiência pode realizar-se ou não. Essa é prerrogativa do Tribunal, que deve evidentemente observar as prescrições legais que tal regulam - como efetivamente fez. Ao contrário do que sucedia no passado, a lei hoje, com equilíbrio, estabelece os casos em que a audiência pode realizar-se na ausência do arguido, deixando ao Tribunal a valoração os respetivos pressupostos (artigo 333.º, § 1.º a 3.º CPP) (3). Com efeito, a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência afirma-se sem prejuízo do disposto nos § 1.º e 2.º do artigo 333.º e § 1.º e 2.º do artigo 334.º CPP. Preceitua o primeiro dos referidos normativos (artigo 333.º CPP): «1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência. 2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessário efetuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º. 3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º.» Ora, o arguido foi regularmente convocado para a audiência, na qual tinha o dever de comparecer, sob pena de multa e até de detenção se o Tribunal considerasse a sua presença essencial à descoberta da verdade (artigos 333.º e 116.º CPP). Mas não compareceu. E o Tribunal não considerou a sua presença essencial, pelo que o julgamento se realizou, condenando o arguido faltoso na multa correspondente. A regularidade da notificação do arguido/recorrente para a audiência decorre da circunstância de o Tribunal ter remetido a competente convocatória, por via postal, para a morada que consta do Termo de Identidade e Residência (TIR) prestado pelo arguido nos autos. Como se afigura óbvio, as regras procedimentais a observar são as previstas na lei - e não as que o arguido elege a seu contento! E essencial é na circunstância a regra que decorre no previsto no artigo 196.º, § 3.º, al. d) CPP, da qual o arguido tomou conhecimento quando prestou o TIR (que subscreveu), e que dispõe do seguinte modo: «o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º.» E que obrigações são essas? São as seguintes: «a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado; b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado; c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no nº 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento; (…)» Congruente com estas regras está o disposto na al. c) do § 1.º do artigo 113.º CPP, que fixa o modo de efetuar as notificações, dizendo: «1 - As notificações efetuam-se mediante: a) Contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado; b) Via postal registada, por meio de carta ou aviso registados; c) Via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos.» É este, pois, o estribo normativo sustentador da decisão constante dos despachos judiciais proferidos a 9/5/2023 e a 5/6/2023, nas duas sessões da audiência às quais o arguido faltou -, nas quais foram produzidas as provas, transcrevendo-se o último deles para ilustrar o que se deixou dito: «Uma vez que o arguido BB se encontra válida e regularmente notificado, e que não compareceu, nem justificou a sua falta, condeno o mesmo em multa processual que se fixa em 2 UC, nos termos do art.º 116.º do C.P.P. Por a sua presença não se afigurar essencial, dar-se-á continuidade da presente audiência de julgamento, nos termos do art. 333º, do CPP, não se designando por ora outra data, uma vez já foi designada esta como segunda data para o seu interrogatório, não tendo comparecido.» Havendo lugar a audiência na ausência do arguido – como sucedeu - a sentença é-lhe notificada logo que seja detido ou se apresente voluntariamente, contando-se o prazo para recurso a partir da notificação da sentença (§ 5.º do artigo 333.º CPP). Em suma: O Tribunal tinha o dever de notificar o arguido exatamente pela forma como procedeu (via postal registada para a morada constante do TIR), porquanto este nunca indicou outra morada através do meio próprio, isto é, através do meio previsto na lei («através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento» - artigo 196.º, § 3.º al. c) CPP). E não tinha de o notificar por mensagem de correio eletrónico; nem, ademais, carecia da autorização do arguido para realizar a audiência de julgamento na sua ausência. Com o que improcede este fundamento do recurso. 1.2 Da nulidade da prova O recorrente alega que o julgamento feito na 1.º instância se mostra inquinado pelo facto de assentar (ou de assentar também) em prova «nula»! Porquanto, alega, não se fez à representante da arguida AA, Lda., CC, a advertência prevista no § 2.º do artigo 134.º CPP! Sobre este segmento recursivo pronunciou-se o Ministério Público na sua, aliás proficiente, resposta, dizendo, com total acerto, que: «A recusa de depoimento prevista no artigo 134.º do Código de Processo Penal é apenas aplicável a quem assuma a qualidade de testemunha no processo penal, pelo que, intervindo a mãe do arguido na qualidade de representante legal da sociedade arguida e beneficiando a mesma do direito ao silêncio constitucionalmente previsto e do qual foi informada, não se verifica a nulidade prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.» E assim é, efetivamente. Restando acrescentar uma breve nota. As regras aplicáveis aos representantes das pessoas coletivas que são arguidas, na audiência, são naturalmente as próprias dos arguidos, previstas no artigo 343.º CPP – e não as das testemunhas. Tais regras - decorrentes do modelo estruturalmente acusatório do processo penal que nos rege (artigo 32.º, § 5.º da Constituição) – afirmam o dever de respeito por banda do Estado perante a dignidade e integridade das pessoas acusadas, impondo-se-lhe o dever de ele próprio (o Estado) produzir a prova contra o arguido - e não obrigá-lo a confessar. Sendo essa a matriz do direito de não declarar (princípio nemo tenetur se ipusm accusare), a par naturalmente do direito de declarar (dimensão positiva do mesmo direito). Funda-se ainda esse direito – de o arguido apenas contribuir com prova se quiser fazê-lo - no princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição); no direito ao processo equitativo (artigo 20.º, § 4.º da Constituição); no direito de defesa (artigo 32.º, § 1.º da Constituição; e no princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, § 2.º da Constituição) (4). No caso de o arguido (ou o representante do arguido – no caso das pessoas coletivas) pretender declarar, o exercício desse direito, ao contrário daquela dimensão negativa, assume aqui a natureza de meio de defesa e, concomitantemente, de meio de prova, por isso sujeito à livre convicção do Tribunal (artigo 127.º CPP). Volvendo ao argumento do recurso, remetemos para o teor da ata da audiência, da qual consta que a representante da sociedade comercial arguida (CC), ali assistida pelo seu defensor, assumiu uma posição clara quanto ao direito ao silêncio (e ao direito a declarar): «A Mma. Juiz de Direito advertiu a legal represente da sociedade arguida de que é obrigada a responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade, sob pena de poder incorrer em responsabilidade criminal e informou-a de que tem o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência desde que elas se refiram ao objeto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio o possa desfavorecer – art.ºs 342.º e 343.º, n.º 1, ambos do C. P. Penal, passando de imediato à produção de prova: (…) Após a leitura da acusação, pela representante da sociedade arguida foi dito que desejava prestar declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal (…)» E tanto é o bastante para demonstrar a inconsistência do argumento recursivo, que assim se mostra improcedente. 1.3 Da prescrição do procedimento criminal Alega ainda o recorrente que reportando-se a mora da última Contribuição para a Segurança Social a fevereiro de 2015, tendo em conta a moldura abstrata da pena prevista nos artigos 107.º e 105.º do RGIT, o procedimento criminal extingue-se decorridos que sejam cinco anos. Atendendo aos períodos de suspensão e interrupção verificados nos autos, o procedimento terá prescrevido em agosto de 2022. Na resposta ao recurso sustenta o Ministério Público que: «Não se mostra prescrito o procedimento criminal quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social imputado ao arguido, já que, além dos 5 anos previstos no artigo 118º, n.º1, alínea c) do Código Penal, contados desde 20 de março de 2015, importa considerar a causa interruptiva de notificação da acusação ao arguido em 20.02.2021, o prazo máximo previsto no artigo 121º, n.º 3 do Código Penal (que ocorreria em 20 de setembro de 2022) e fazer acrescer, ao abrigo de tal normativo, a causa suspensiva prevista no artigo 120.º, n.º 1 b) e n.º 2 da qual, considerando o seu limite de 3 anos, se conclui que o prazo de prescrição do procedimento criminal não decorrerá antes de 20 de setembro de 2025.» Pois bem. O curso do tempo tem reflexos, nomeadamente, ao nível da prescrição do procedimento criminal, constituindo esta um pressuposto negativo da punição, a qual tem por efeito, justamente, a extinção do procedimento, em virtude do decurso de certo período de tempo. Refere Figueiredo Dias (5) que o decurso do tempo é, «sob certas condições, razão bastante para que o direito penal se abstenha de intervir ou de efetivar a sua reação», uma vez que «a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se se não chega mesmo a desaparecer», tendo ainda reflexo nas exigências de prevenção especial que se mostram muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, começando progressivamente a desvanecer-se com o decurso do tempo. Tendo em consideração o crime em referência (abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto nos artigos 6.º, § 1.º, 7.º, § 1.º e 3.º, 12.º, § 2.º, 107.º, § 1.º e 2.º e 105.º, § 1.º e 4.º, al. a) e b) RGIT), é punível com prisão até três anos ou multa até 360 dias, o prazo de prescrição do procedimento criminal, nos termos do preceituado no artigo 21.º, § 1.º do RGIT e no artigo 118.º, § 1.º, al. c) CP é de 5 anos. Como bem refere o Ministério Público, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime de omissão pura, consumando-se com a não entrega à Segurança Social, no prazo legal, das contribuições deduzidas dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais (artigo 107.º, § 1.º RGIT), contando-se o prazo prescricional «a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, § 2.º, do mesmo diploma legal» (6), isto é, da data da consumação do crime (artigo 119.º, § 1.º CP). Ora, respeitando a última contribuição retida ao mês de fevereiro de 2015, devendo a mesma ter sido entregue à Segurança Social até ao dia 20 de março de 2015 (20.º dia do mês seguinte àquele a que respeitam as cotizações), é nessa data que se inicia o prazo de prescrição do procedimento criminal. Dispõe o artigo 118.º CP sobre os prazos de prescrição, que: «1. O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (…) c) 5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos; (…) 2. Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes.» O prazo prescricional é, por isso, neste caso, de 5 anos. Mas suspende-se nos casos previstos no artigo 120.º: «1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: (…) b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo. (…) 6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.» E interrompe-se nas seguintes ocasiões (artigo 121.º CP): «a) Com a constituição de arguido; b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo; c) Com a declaração de contumácia; (…) 2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição. 3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.” 2.1 Marcos relevantes De acordo com o que se mostra documentado nos autos, os marcos relevantes para a questão a decidir são, então, os seguintes: - O prazo normal de prescrição é de 5 anos; - O prazo iniciou-se na data da consumação do ilícito a 20mar2015; - A constituição de arguido ocorreu a 19ago2019; - A acusação foi notificada ao arguido a 20fev2021 (7); - Notificação da sentença ao arguido a 13jul2023. Atentemos agora do que resulta da aplicação das regras, aos referidos marcos. Temos, portanto, que o prazo prescricional foi interrompido com a constituição de arguido; e depois, novamente com a notificação da acusação - recomeçando em cada um desses marcos a correr o prazo de 5 anos – artigo 121.º§ 2.º CP. Acresce que em conformidade com o previsto na al. b) do §1.º do artigo 120.º CP: «1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: (…) b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo.» Acrescentando o § 2.º dessa norma que: «No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.» Sendo que nos termos do § 3.º do artigo 121.º CP: «Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.» Como assim, mesmo sem levar em consideração eventual aplicação da legislação especial relativa à suspensão dos prazos no período crítico da Covid19, o prazo de prescrição do procedimento criminal não terminará antes de 20 de setembro de 2025. Termos em que, concluímos, não ser o recurso merecedor de provimento. III – DISPOSITIVO Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida. b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s. Évora, 18 de dezembro de 2023 J. F. Moreira das Neves (relator) Maria Clara Figueiredo Maria Filomena Soares
---------------------------------------------------------------------------------------- 1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ). 2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995. 3 Neste sentido cf. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, 2022, Almedina, p. 339; e a jurisprudência ali citada, designadamente do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Justiça da União Europeia. Tb. recente acórdão deste TRÉvora, de 5dez2023, proc. 16/19.3EASTR.E1, Desemb. Fernando Pina. 4 Sobre as os fundamentos jurídicos do nemo tenetur se ipum accusare cf. Sandra Oliveira e Silva, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, 2018, Almedina, pp. 153 ss. Numa dimensão mais prática cf. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, 2022, Almedina, pp. 442 ss. 5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pp. 704. 6 Cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2015, publicado no DR, I-A, de 19fev2015. 7 Desde15fev2021 devendo acrescer o prazo dilatório de 5 dias, previsto no artigo 113.º, § 3.º CPP. |