Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | FRACÇÃO AUTÓNOMA PROPRIEDADE DE IMÓVEL DIREITO DE RETENÇÃO EXECUÇÃO TRÂNSITO EM JULGADO TERCEIRO LEGITIMIDADE | ||
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Data do Acordão: | 07/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I – Não é suficiente invocar, no requerimento executivo fundado em sentença, o direito de retenção para que este seja oponível a um terceiro estranho à relação que lhe dá origem e que não foi convencido na competente ação declarativa da existência daquele direito. II - Nesse caso, a instauração da ação executiva contra o proprietário que sobre o seu bem viu reconhecido, por sentença, o direito de retenção, pressupõe que contra ele tenha sido também proposta a ação de condenação e que nesta tenha sido declarada a existência daquela garantia. III - Não obstante a lei processual consagrar o chamado princípio da eficácia relativa do caso julgado, isto é, de que a sentença só tem força de caso julgado entre as partes, deve entender-se que a sentença se impõe aos terceiros juridicamente indiferentes, pessoas a quem não causa qualquer prejuízo jurídico, por não bulir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afetar a sua consistência prática ou económica. IV - Não é terceiro juridicamente indiferente - não sendo abrangido pelo caso julgado - o executado, proprietário de uma fração autónoma em relação à qual foi declarado judicialmente, em ação em que não interveio, o direito de retenção a favor do exequente. IV - Deve, porém, considerar-se aquele terceiro parte legítima na execução, se o mesmo instaurou ação de reivindicação contra o titular do direito de retenção, tendo visto recusada a entrega do imóvel com fundamento na existência daquele direito, sendo irrelevante que esse reconhecimento tenha operado por via de exceção e não de reconvenção. (sumário do relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO S… instaurou a presente ação executiva, com processo sumário, contra Aymana Holdings Limited e Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda., para haver delas o pagamento da quantia de € 960.000,00, acrescida de juros vencidos no montante de € 53.970,41 e vincendos, dando à execução as sentenças proferidas nos processos nºs 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2 e 2380/16.7T8FAR do Juízo Central Cível de Faro- J3. Por despacho proferido em 25.10.2020 foi oficiosamente suscitada a questão da ilegitimidade da executada Urbaniágara, Lda. Cumprido o contraditório, a exequente pronunciou-se no sentido de que foi judicialmente reconhecido o direito de retenção da exequente, estando vedado ao Tribunal o conhecimento oficioso de tal questão, por se mostrar assente a existência daquele direito, acrescendo que o crédito garantido pelo direito de retenção corresponde ao crédito exequendo. Subsequentemente foi proferida decisão, que, com fundamento na ilegitimidade da executada Urbaniágara, Lda., por não estar demonstrado o invocado direito real de garantia oponível a essa executada, rejeitou a execução quanto à mesma. Inconformada, a exequente apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem: «48. O argumento da Apelante é, em suma, o seguinte: a. A sentença do Proc. 499/14.8TBLLE foi proferida entre as mesmas partes desta execução, ou seja, a Exequente e a Executada Urbaniágara. b. Nessa sentença foi reconhecido, em decisão de mérito, o direito de retenção da Exequente sobre o imóvel da Executada Urbaniágara que foi penhorado nestes autos, para garantia do crédito exequendo sobre a também Executada Aymana. c. O reconhecimento do direito de retenção foi o antecedente lógico necessário da decisão de indeferir o pedido de entrega do referido imóvel, que a Executada Urbaniágara formulou no Proc. 499/14.8TBLLE. d. Assim sendo, essa decisão de reconhecimento do direito de retenção faz caso julgado entre as partes - isto é, entre a Exequente e a Executada Urbaniágara - não podendo a questão voltar a ser discutida entre ambas. e. Está, pois, vedado à Executada Urbaniágara opor-se ao exercício do direito de retenção por parte da Exequente, e a Exequente não precisa de mais nenhuma decisão judicial para obrigar a Executada Urbaniágara a respeitar o seu exercício do direito de retenção. f. Este efeito de caso julgado, relativamente à imposição de reconhecimento do direito de retenção, faz com que essa sentença seja título executivo, nos termos do art. 703º, n.º 1, al. a) do Cód. Proc. Civil, para que a Exequente possa aqui exercer aquele direito, em face da Executada Urbaniágara. g. Esse exercício engloba de forma indissociável não só a retenção, propriamente dita, do imóvel, cuja manifestação típica é a recusa da sua entrega à Executada Urbaniágara enquanto o crédito que detém sobre a Executada Aymana não for pago, mas também a sua execução para satisfação desse mesmo crédito. h. Esta dupla funcionalidade do direito de retenção resulta expressamente da lei. [art. 759, n.º 1 do Cód. Civil] i. Ao fazer penhorar o imóvel objeto do direito de retenção, a Exequente mais não faz do que exercer o direito que lhe foi reconhecido judicialmente, e ao qual a Executada Urbaniágara está definitivamente obrigada. j. A douta sentença recorrida, ao negar este direito, e ao pretender que a Exequente demande novamente a Executada Urbaniágara sobre a mesma questão, está a negar aplicação à sentença do Proc. 499/14.8TBLLE, o que lhe está vedado pelas regras do art. 619º, n.º 1 e do art. 625º do Cód. Proc. Civil. 49. No entender da Apelante, a douta decisão violou as regras legais mencionadas no corpo das presentes alegações, nomeadamente os arts. 54º, n.º 2, 91º, n.º 2, 619°, n.° 1 e 625º do Cód. Proc. Civil, e 759º, n.º 1 do Cód. Civil. 50. Por tudo o exposto, requer-se a V. Exas. reformem a douta decisão recorrida, aceitando que a Apelante dispõe de título executivo sobre a Apelada Urbaniágara, mandando prosseguir a execução.» Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda é a de saber se a executada Urbaniágara é ou não parte legítima na execução. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Na decisão recorrida foi dada como provada a seguinte factualidade: 1 -A exequente apresenta como títulos executivos nesta ação duas sentenças: a proferida no processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2 e a proferida no processo n.º 2380/16.7T8FAR do Juízo Central Cível de Faro- J3. 2 - No referido processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2, em que foi Autora Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. e Ré Sabina Margaret Kerr, foi proferida a sentença datada de 7/10/2015 onde foi decidido julgar parcialmente procedente a ação e, em consequência: -“Reconhecer a Autora Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. como proprietária da fração autônoma designada pela letra E, correspondente ao rés-do-chão e 1° andar (Duplex), destinado a habitação, tipo Ti com um estacionamento e arrumo ao nível da cave e logradouro, sita na …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número … e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Almancil; -Absolver a Ré S… do demais peticionado.” (cfr. sentença junta com o requerimento executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzida). 3 - Consta no relatório da sentença acima referida: «Regularmente cilada, a Ré deduziu contestação e reconvenção, invocando que é, na qualidade de única herdeira do seu pai, promitente-compradora com traditio do imóvel em causa nos autos, já tendo sido pago 80% do valor acordado, ou seja, € 480.000,00, tendo celebrado contrato com a anterior proprietária da fração, não sabendo se a Autora assumiu a sua posição contratual. Contudo, quer pela venda do imóvel à Autora, quer pela interpelação admonitória que fez à Autora, o contrato-promessa encontra-se definitivamente incumprido, sendo devido o sinal em dobro, no valor de € 960.000,00, pelo que goza do direito de retenção sobre o imóvel em causa. Relativamente ao pedido reconvencional, a Ré requereu a intervenção principal provocada de terceiros (Banif - Banco internacional do Funchal SA, Aymana Holdings Liinlted, Pine Estates-Gestão c Administração de Imóveis, Lda., P… e Pe…), pretendendo que o Tribunal reconheça o incumprimento definitivo de um contrato-promessa de compra e venda do imóvel em causa nos autos alegadamente celebrado pelo seu falecido pai, de quem é a única herdeira, na qualidade de promitente-comprador e de Aymana Holdings Limited, na qualidade de promitente vendedor, por causa imputável à ora Autora ou à promitente-vendedora consoante se venha a apurar que o contrato foi incumprido por uma ou por outra e que uma das 2 seja condenada a pagar o dobro do sinal prestado pelo seu pai e que se reconheça o seu direito de retenção sobre o imóvel em causa nos autos, o qual deverá prevalecer sobre as hipotecas registadas sobre o prédio.» 4 - Consta ainda no relatório da sentença acima referida: «Foi proferido despacho saneador que não admitiu o pedido reconvencional, por entender que o mesmo não configura qualquer causa prejudicial nos termos legais no presente momento, uma vez que, havendo direito de retenção oponível à Autora, o mesmo poderá ser apreciado nos autos em sede de exceção que obsta ao efeito Jurídico pretendido pela Autora, para além de que, estando em causa uma situação de litisconsórcio voluntário, onde era necessária a intervenção principal provocada de 5 intervenientes, sendo um deles uma sociedade com sede em Gibraltar, haveria grave inconveniente na instrução, discussão e julgamento conjunto das 2 ações e sempre levaria à absolvição da instância, nos termos do disposto do n.º 5 do supra referido artigo 266° do Código de Processo Civil de 2013.» 5 - Consta na fundamentação de direito da sentença acima referida: «Nestes termos, é com base neste incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado com a Aymana Holdings Limited que lhe confere um direito de crédito relativo ao sinal em dobro que a Ré invoca um direito de retenção sobre o imóvel que foi objeto de tradição na sequência do contrato-promessa, estando reunidos todos os pressupostos exigidos nos termos dos artigos 754° e 755°, n.º 1, al. f) do Código Civil, nos termos acima descritos. (…) Conclui-se, deste modo, que a presente ação é parcialmente procedente, na medida em que se reconhece o direito de propriedade da Autora sobre o imóvel em causa nos autos nos termos peticionados, sendo improcedente o pedido de entrega do imóvel por a Ré beneficiar do direito de retenção sobre o mesmo, na sequência de um crédito que detém sobre a Aymana Holdings Limited, por incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda em vigor e entre si e a esta última, sendo, no âmbito de uma ação de reivindicação, legítima a recusa do beneficiário do direito de retenção da entrega ao terceiro adquirente do imóvel (sendo no âmbito do processo executivo relativo à cobrança de valores relativos à fração autónoma garantidos por hipoteca que se tem que discutir a questão da concerta concretização desse direito de retenção, designadamente em relação à penhora). Conclui-se, deste modo, que a presente ação é parcialmente procedente, na medida em que apenas é procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre o imóvel, sendo a Ré absolvida do demais peticionado.» 6 - Inconformada “com a omissão das condenações pedidas em reconvenção interpôs a ré, recurso de apelação, que no fundo circunscreveu à impugnação da não admissão do pedido reconvencional com as consequências daí advenientes” (como se escreve no relatório do acórdão de seguida referido), a Ré S… interpôs recurso da sentença acima referida, tendo sido proferido pelo Tribunal da Relação de Évora o acórdão datado de 16/6/2016 que confirmou a decisão recorrida. (cfr. acórdão junto com o requerimento executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzido). 7 - No acima referido processo n.º 2380/16.7T8FAR do Juízo Central Cível de Faro- J3, em que foi Autora S… e Ré Aymana Holdings Limited, foi proferida a sentença datada de 9/2/2017 onde foi decidido julgar a ação procedente em consequência: «A) declaro que a ré incumpriu definitivamente o contrato-promessa de compra e venda celebrado tendo por objeto a fração autónoma designada pela letra “E” do prédio urbano descrito sob o n.º …, da freguesia de Almancil, concelho de Loulé; B) condeno a ré a pagar à autora uma indemnização pelo incumprimento no valor de € 960.000,00, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento; C) reconheço à autora o direito de retenção sobre a referida fração autónoma para garantia e até integral pagamento da quantia referida em B).» (cfr. sentença junta com o requerimento executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzida). 8 - A fração autónoma referida no facto provado 2 encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número …, onde consta: - sob a ap. 3913 de 2011/06/09 a aquisição do direito de propriedade a favor de Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. por compra a Aymana Holdings Limited; - sob a ap. 47 de 2014/03/12 o registo da ação referida no facto provado 2º, instaurada por Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. contra S…; (cfr. certidões prediais juntas aos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas). 9 - Na descrição predial acima referida não consta a inscrição no registo de qualquer outra ação/reconvenção para além da acima indicada em 8º. O DIREITO Concluiu-se na decisão recorrida ser a executada Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. Parte ilegítima, por não estar demonstrado o direito real de garantia oponível a si, argumentando-se do seguinte modo: «No que respeita à sentença proferida no processo n.º 2380/16.7T8FAR do Juízo Central Cível de Faro- J3 (facto provado 7º) é evidente que a executada Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. não é parte, nem aí foi condenada ao pagamento da quantia à ora exequente (a condenada foi a aqui também executada Aymana Holdings Limited). No entanto, a exequente vem demandar ainda a executada Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. alegando que dispõe de um direito real de garantia sobre o prédio de que aquela executada é proprietária e para prova desse direito apresenta a sentença proferida no processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2. Como é evidente, nos casos de execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, o exequente poderá executar este terceiro quando pretenda fazer valer a garantia (cfr. n.º 2 do art.º 54º do Código de Processo Civil), sendo este o caso de que aqui se trata. Sucede que ainda que a exequente invoque o direito de retenção sobre a fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número 4575/19910122-E, o certo é que tal invocado direito não foi demonstrado. Na medida em que o direito de retenção não está sujeito a registo predial, importava que a exequente demonstrasse que beneficiava do mesmo, o que teria de fazer por via de acção ou reconvenção instaurada contra o terceiro proprietário do bem e onde lhe fosse reconhecido esse direito. Assinala-se que o reconhecimento desse direito terá de ser conseguido por via da referida acção ou reconvenção, a ser demonstrado logo aquando da instauração da execução (onde se aferirá da legitimidade das partes) ou porventura quando não seja demandado ab initio, por via da intervenção provocada passiva (a ser admitida), mas nunca se obtendo o reconhecimento de tal direito no âmbito da própria execução, seja incidentalmente na execução seja em sede dos embargos de executado. Por isso é de todo irrelevante a ausência de oposição à execução, nem o direito de retenção será reconhecido por via dos “factos assentes” em resultado da falta de oposição, como sustenta a exequente. Refira-se também que a oposição à execução deduzida pela executada Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. foi liminarmente indeferida (com fundamento na sua extemporaneidade) pelo que nunca foi proferida uma decisão de mérito sobre a questão aqui em apreciação. Voltando à sentença proferida no processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2, dir-se-á, mais uma vez que da mesma não resulta o reconhecimento do direito de retenção. Aliás, nessa acção, a Ré, aqui exequente, decidiu reconvenção, que a ser admitida e procedente, permitiria o reconhecimento do direito de retenção, porém, essa reconvenção não foi admitida e ainda que a aqui exequente tivesse recorrido para o Tribunal da Relação de Évora, foi mantida a decisão de não admissão da reconvenção. É certo que na sentença proferida no processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2 foi apreciado o invocado direito de retenção, contudo, apenas enquanto excepção peremptória. Note-se que a excepção peremptória consiste na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, tendo como efeito a absolvição total ou parcial do pedido. Dai que no caso da sentença do processo n.º 499/14.8TBLLE, a procedência da excepção (direito de retenção) tenha conduzido à absolvição da ai Ré quanto ao pedido de entrega do prédio. Porém, dai nunca resultando o reconhecimento do direito de retenção, pedido a ser deduzido sempre por via de acção ou reconvenção (o que nunca aconteceu, pois a aqui exequente terá optado por não instaurar essa acção). Refira-se também que em qual caso a sentença proferida no processo n.º 2380/16.7T8FAR do Juízo Central Cível de Faro- J3, em que é reconhecido o direito de retenção, para além de não ter como parte a aqui executada Urbaniágara – Investimentos Imobiliários, Lda., data de 2017, quando essa executada adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel em data muito anterior, pelo menos em 2011 (quando não estava sequer reconhecido esse direito de retenção perante a executada Aymana Holdings Limited). Já a exequente/recorrente defende que dispõe de título executivo contra a executada Urbaniágara, devendo a execução prosseguir também contra esta. Vejamos, pois, de que lado está a razão. Estabelece o artigo 755º, nº 1, al. f), do Código Civil, que goza do direito de retenção «o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º». Por sua vez, dispõe o artigo 759º, nº 1, do mesmo Código, que «recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor». Inscreve-se o direito de retenção na categoria dos direitos reais de garantia, tendentes a proporcionar «ao respectivo titular o aproveitamento, não do valor do uso da coisa, mas do seu valor de troca. Aproveitamento, por isso, não directo, mas indirecto (...) porque, sendo acessórios de uma relação creditória, têm por função assegurar ao credor, em termos reais, o pagamento preferencial do seu crédito pelo valor da coisa sobre que recaem»[1]. Gozando, como é sabido, de oponibilidade erga omnes, porquanto «o titular pode invocar eficazmente o seu direito real, em termos de o fazer prevalecer contra seja quem for que tenha ou se arrogue uma posição incompatível, de direito ou de facto, posteriormente constituída»[2]. E um dos seus principais atributos é o denominado direito de sequela que «traduz o poder do titular do direito real de actuar sobre a coisa que lhe foi afecta, na medida necessária ao exercício dos poderes que sobre ela lhe são conferidos. Para isso, não precisa de impugnar qualquer acto jurídico de disposição indevidamente praticado em relação à coisa, bastando-lhe invocar o seu próprio direito»[3]. Acresce que o direito de retenção «não se encontra sujeito a registo, produzindo efeitos em relação às partes e a terceiros independentemente dele. (...) É que o direito de retenção resulta directamente da lei e não de um negócio jurídico ou de outro acto de conteúdo singular (assim, de um acto administrativo ou de uma sentença). A sua publicidade encontra-se assegurada pelo próprio texto legal que admite o instituto e pelas situações materiais objectivas ou ostensivas a que se aplica, facilmente reconhecíveis para qualquer terceiro»[4]. Justificar-se-ia, desta forma, em princípio (face ao que consta da sentença proferida no proc. 2380/16.7T8FAR) a instauração da execução contra a executada Urbaniágara, que adquiriu o imóvel objeto da retenção em 8 de junho de 2011 (registando a respetiva aquisição em 9 de junho de 2011) porquanto o direito de retenção da exequente, reconhecido embora apenas na sentença proferida em 9 de fevereiro de 2017 (na ação por ela intentada contra a executada Aymana, Lda.) nasceu com o incumprimento do contrato promessa de compra e venda que ocorreu, precisamente, em 8 de junho de 2011, data em que a executada Aymana alienou o imóvel à executada Urbaniágara (esta alienação foi o ato que constituiu o incumprimento). Contudo, não basta esta constatação fáctica para que se conclua pela legitimidade desta última executada. Com efeito, «não é suficiente invocar o direito de retenção para que este seja oponível a um terceiro estranho à relação que lhe dá origem e que não foi convencido na competente acção declarativa da existência daquele direito: o direito de retenção é oponível erga omnes, mas é necessário que a sua existência seja reconhecida por decisão que se imponha ao terceiro contra quem é invocado»[5]. No caso em apreço, é facto incontroverso que a executada Urbaniágara não foi demandada, nem condenada na ação cuja sentença aqui constitui o título executivo (a sentença proferida no proc. 2380/16.7T8FAR). E também não é caso de aplicação do disposto no artigo 55º do CPC, o qual prescreve que «a execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida, não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado». É princípio fundamental neste domínio a eficácia relativa do caso julgado: «[a] sentença só tem força de caso entre as partes (inter partes); só vincula o juiz num novo processo em que as partes sejam as mesmas que no anterior»[6]. Todavia, vem-se defendendo que a sentença se impõe às pessoas a quem podemos chamar terceiros juridicamente indiferentes: «as pessoas a quem a sentença não causa qualquer prejuízo jurídico, por não bulir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afectar a sua consistência prática ou económica». Em contrapartida, às pessoas que se arrogam a titularidade de uma relação ou posição incompatível com a reconhecida na sentença «nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada»[7]. No caso em apreço, não pode a executada Urbaniágara ser tida por terceiro juridicamente indiferente, porquanto a sentença proferida na ação intentada pela exequente contra a executada Aymana, que reconheceu àquela o direito de retenção sobre a fração autónoma a que se alude nos autos (de que a executada Urbaniágara é proprietária), afeta o respetivo direito de propriedade, impondo-lhe um ónus que o limita, situação que se traduz num prejuízo jurídico e não apenas num prejuízo económico. Afastada, pois, a aplicação do artigo 55º do CPC ao caso dos autos, resta-nos apreciar se assume ou não relevância para determinação da legitimidade da executada Urbaniágara, a sentença proferida em 07.10.2015, na ação de reivindicação n.º 499/14.8TBLLE, que aquela executada instaurou contra a exequente, na qual foi reconhecido o direito de propriedade da executada sobre a fração dos autos, mas foi negado o pedido de condenação da executada a restituir à exequente aquela fração. A esta questão respondeu negativamente a decisão recorrida onde se escreveu: «(…), nos casos de execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, o exequente poderá executar este terceiro quando pretenda fazer valer a garantia (cfr. n.º 2 do art.º 54º do Código de Processo Civil), sendo este o caso de que aqui se trata. Sucede que ainda que a exequente invoque o direito de retenção sobre a fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número …, o certo é que tal invocado direito não foi demonstrado. Na medida em que o direito de retenção não está sujeito a registo predial, importava que a exequente demonstrasse que beneficiava do mesmo, o que teria de fazer por via de acção ou reconvenção instaurada contra o terceiro proprietário do bem e onde lhe fosse reconhecido esse direito. Assinala-se que o reconhecimento desse direito terá de ser conseguido por via da referida acção ou reconvenção, a ser demonstrado logo aquando da instauração da execução (onde se aferirá da legitimidade das partes) ou porventura quando não seja demandado ab initio, por via da intervenção provocada passiva (a ser admitida), mas nunca se obtendo o reconhecimento de tal direito no âmbito da própria execução, seja incidentalmente na execução seja em sede dos embargos de executado. Por isso é de todo irrelevante a ausência de oposição à execução, nem o direito de retenção será reconhecido por via dos “factos assentes” em resultado da falta de oposição, como sustenta a exequente. Refira-se também que a oposição à execução deduzida pela executada Urbaniágara - Investimentos Imobiliários, Lda. foi liminarmente indeferida (com fundamento na sua extemporaneidade) pelo que nunca foi proferida uma decisão de mérito sobre a questão aqui em apreciação. Voltando à sentença proferida no processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2, dir-se-á, mais uma vez que da mesma não resulta o reconhecimento do direito de retenção. Aliás, nessa acção, a Ré, aqui exequente, decidiu reconvenção, que a ser admitida e procedente, permitiria o reconhecimento do direito de retenção, porém, essa reconvenção não foi admitida e ainda que a aqui exequente tivesse recorrido para o Tribunal da Relação de Évora, foi mantida a decisão de não admissão da reconvenção. É certo que na sentença proferida no processo n.º 499/14.8TBLLE do Juízo Central Cível de Faro-J2 foi apreciado o invocado direito de retenção, contudo, apenas enquanto excepção peremptória. Note-se que a excepção peremptória consiste na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, tendo como efeito a absolvição total ou parcial do pedido. Dai que no caso da sentença do processo n.º 499/14.8TBLLE, a procedência da excepção (direito de retenção) tenha conduzido à absolvição da ai Ré quanto ao pedido de entrega do prédio. Porém, dai nunca resultando o reconhecimento do direito de retenção, pedido a ser deduzido sempre por via de acção ou reconvenção (o que nunca aconteceu, pois a aqui exequente terá optado por não instaurar essa acção).» Sendo certo que a questão da legitimidade se afere em face do título executivo (art. 53º, nº 1, do CPC), entendemos que a sentença proferida na ação de reivindicação n.º 499/14.8TBLLE se integra, de forma complementar, na sentença dada à execução (a proferida no proc. 2380/16.7T8FAR ). Senão vejamos. Como se disse supra, não é suficiente invocar o direito de retenção para que este seja oponível a um terceiro estranho à relação que lhe dá origem e que não foi convencido na competente ação declarativa da existência daquele direito. Contudo, no caso concreto, a executada foi convencida na ação de reivindicação que instaurou contra a exequente da existência do direito do direito desta última, só assim se compreendendo a decisão de absolver esta última, ali ré, do pedido de restituição da fração em causa, sendo certo que a executada não recorreu daquela decisão. Não é, pois, correta a afirmação feita na decisão recorrida de que na sentença proferida na dita ação de reivindicação não resultou o reconhecimento do direito de retenção, bastando, aliás, atentar no excerto daquela sentença, reproduzido no ponto 5 dos factos provados: «(…). Conclui-se, deste modo, que a presente ação é parcialmente procedente, na medida em que se reconhece o direito de propriedade da Autora sobre o imóvel em causa nos autos nos termos peticionados, sendo improcedente o pedido de entrega do imóvel por a Ré beneficiar do direito de retenção sobre o mesmo, na sequência de um crédito que detém sobre a Aymana Holdings Limited, por incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda em vigor e entre si e a esta última, sendo, no âmbito de uma ação de reivindicação, legítima a recusa do beneficiário do direito de retenção da entrega ao terceiro adquirente do imóvel (sendo no âmbito do processo executivo relativo à cobrança de valores relativos à fração autónoma garantidos por hipoteca que se tem que discutir a questão da concerta concretização desse direito de retenção, designadamente em relação à penhora).» É certo que nesta ação a ré, ora exequente, deduziu reconvenção, a qual não foi admitida por se entender que o pedido reconvencional não configurava «qualquer causa prejudicial nos termos legais, uma vez que, havendo direito de retenção oponível à Autora, o mesmo poderá ser apreciado nos autos em sede de excepção que obsta ao efeito Jurídico pretendido pela Autora, (…)»[8]. E foi justamente o que sucedeu na discussão jurídica da causa, aí se reconhecendo o direito de retenção da ora exequente e, em consequência, absolveu-se a mesma do pedido de condenação da entrega da fração à aqui executada Urbaniágara, não tendo esta interposto recurso da sentença. Significa isto que o reconhecimento do direito de retenção da exequente, nos termos em que o foi na aludida ação de reivindicação, não deixaria de se impor numa nova ação que a exequente viesse a instaurar contra aquela executada, como efeito substantivo impeditivo de nova decisão sobre tal questão, por verificação da exceção da autoridade do caso julgado, pelo que não faz qualquer sentido “obrigar” a exequente a instaurar tal ação. É certo que no acórdão do STJ de 16.12.2004 a que vimos aludindo, numa situação com algumas semelhanças com a dos presentes autos, entendeu-se não poder invocar, «com relevância para a determinação da legitimidade passiva, (…), a sentença proferida, em 15 de Julho de 2002, na acção de reivindicação de propriedade nº 692/00, que os embargantes intentaram contra o embargado, na qual, além do mais foi reconhecido o direito de propriedade dos ora embargantes sobre a fracção autónoma designada pela letra "G", garagem, condenando-se o ora embargado a restituir essa fracção "livre e devoluta de pessoas e bens aos autores, assim que se encontre ressarcido do pagamento do crédito que tem sobre o promitente vendedor"». Sucede que existe uma diferença fundamental entre ambas as situações, pois ao passo que naquela ação não foi reconhecido qualquer direito de retenção ao “embargado”, sendo o mesmo condenado a restituir a fração em causa, na ação aqui em discussão tal direito foi reconhecido e, por virtude desse reconhecimento, a ação improcedeu quanto ao pedido de restituição do imóvel. Procedem, por conseguinte, as razões aduzidas pela recorrente, impondo-se a procedência do recurso. Vencida no recurso, suportará a executada Urbaniágara as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinado o prosseguimento da execução contra ambas as executadas. Custas pela recorrida/executada. * _______________________________________________
Évora, 14 de julho de 2021 (Acórdão assinado digitalmente no Citius) Manuel Bargado (relator) Francisco Xavier (1º adjunto) Maria João Sousa e Faro (2º adjunto) [1] Augusto da Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 1ª edição, Lisboa, 1992, pp. 170-171, citado no acórdão do STJ de 16.12.2004, proc. 04B3313, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto. [2] Augusto da Penha Gonçalves, ob. cit., pp. 85-86. [3] José de Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Lisboa, 1978, p. 95. [4] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2011, p. 981. [5] Cfr. o citado acórdão do STJ de 16.12.2004 (nota 1 supra), também citado na decisão recorrida. [6] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 309. [7] Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 726 e 727. Neste sentido, inter alia, o acórdão do STJ de 08.01.2019, proc. 5992/13.7TBMAI.P2.S1, in www.dgsi.pt. [8] Cfr. relatório da sentença. |