Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
116/21.0GAMAC.E2
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
REJEIÇÃO DOS RECURSOS
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I - O caso julgado é um efeito processual da decisão transitada em julgado, que tem na sua génese elementares razões de segurança jurídica e que, assegurando a estabilidade da decisão, visa impedir que o que se decidiu seja novamente apreciado e decidido, obviando ao risco da produção de decisões inúteis e/ou contraditórias, em nome dos princípios da certeza do direito, da segurança jurídica e da proteção da confiança.

II - Segundo o critério da eficácia, distinguem-se o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele. Nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do CPC, que dispõe precisamente sobre o caso julgado formal – e que se aplica ao processo penal por força do artigo 4.º do CPP –, “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.” Quanto ao alcance do caso julgado, estabelece o subsequente artigo 621.º do CPC – também aplicável ao processo penal ex vi do artigo 4º do CPP – que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

III - A consequência essencial a extrair do caso julgado formal é, pois, a de que uma pretensão já decidida definitivamente, em contexto meramente processual, não pode ser objeto de repetida decisão, ou seja, tal como se extrai da conjugação das normas acima referidas, o caso julgado formal, concernente a matérias de índole processual, que não são de mérito, tem força obrigatória dentro do processo, na exata dimensão e amplitude do conteúdo da decisão transitada.

Decisão Texto Integral: Decisão sumária
Constata-se, através da consulta dos autos, que as questões que constituem o objeto dos presentes recursos foram já decididas na decisão sumária desta Relação datada de 10.10.2024, devidamente transitada em julgado, pelo que, obstando tal circunstância ao conhecimento do mérito dos recursos, nos termos do disposto no artigo 417º, nº 6, alínea c) do CPP, encontra-se legitimada a prolação de decisão sumária.1

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I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 116/21.0GAMAC, foram os arguidos AA, nascido em ….1974, natural de …, …, filho de BB e de CC e residente na Rua …, …, … e DD, nascido em … 1971, natural de …, filho de EE e de FF e residente na Rua …, …, …, condenados pela prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade física simples, nas penas de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 1.000,00 € (mil Euros) cada um. Foram ainda os arguidos condenados, no âmbito do pedido de indemnização civil, a pagar ao demandante Centro Hospitalar do …, o montante de 87,17 € (oitenta e sete euros e dezassete cêntimos) acrescidos de juros de mora.

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A referida sentença condenatória foi proferida em cumprimento da decisão sumária deste Tribunal da Relação, datada de 10.10.2024, que conheceu dos recursos interpostos pelos arguidos da primitiva sentença da primeira instância. No objeto de tal recurso continham-se as questões relativas:

- À nulidade da sentença por falta de fundamentação;

- À impugnação da matéria de facto e violação do in dúbio pro reo e

- Ao vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, previsto no artigo 410º 2, a) CPP.

O tribunal de recurso, na mencionada decisão sumária, julgou os mesmos parcialmente procedentes, tendo julgado improcedentes as duas primeiras questões enunciadas – ou, seja, as relativas à nulidade da sentença por falta de fundamentação e à impugnação da matéria de facto e violação do princípio do in dúbio pro reo – e julgou procedente a questão relativa ao vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP – por ausência de referência às condições económicas e sociais dos arguidos, indispensáveis para a determinação da medida da pena – e, consequentemente, determinou a remessa do processo ao tribunal recorrido, para reabertura da audiência com vista a “apurar apenas dos factos em falta relativos às condições pessoais, de personalidade e situação económica dos arguidos e [para que], posteriormente, em face deles, seja proferida nova sentença que debele o vício supra-referido.”2

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Inconformados com a nova sentença, datada de 09.05.2025, que veio a ser proferida em cumprimento da mencionada decisão sumária, vieram os arguidos interpor recursos da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

Conclusões do recorrente DD

“1 -A matéria de facto provada assenta única e exclusivamente nas declarações do ofendido, não tendo sido corroborada pela única testemunha ouvida nos autos.

2 - Não estamos perante um daqueles tipos de crimes que se passam em “quatro paredes”, mas antes num estaleiro de obras onde se encontravam pelo menos mais de 10 funcionários, e o único que ficou como testemunha indicado pelo Ministério Público não comprovou as declarações do ofendido.

3 - Situação que, só por si, é susceptível de gerar dúvida insanável que devia ter levado à absolvição por força do princípio in dúbio pro reo.

4 -Aprova deve ser indicada por quem acusa e feita em sede de julgamento, não sendo admissível condenar cidadãos com base em meras declarações de ofendidos, porquanto basta que os mesmos apresentem uma boa capacidade discursiva e uma história bem trabalhada, abrindo-se a porta para que o processo penal sirva para condenar pessoas inocentes.

5 -Inexiste qualquer outra prova, seja pericial, seja documental, seja testemunhal, capaz de sustentar a condenação do arguido/recorrente.

6 - As declarações do ofendido não se encontram corroboradas por prova indiciária e o Tribunal a quo não descreve suficientemente porque motivo valorou apenas as declarações do ofendido.

7 – As declarações do Ofendido foram contraditórios, imprecisas e em grande parte influenciadas pelas perguntas formuladas pela Senhora Procurador da República, o que lhes retira a credibilidade;

7 - O segmento da motivação da sentença é maioritariamente conclusivo;

8 – A testemunha ouvida, que não é vítima nem ofendido, que não corroborou as declarações deste, foi desconsiderada por se entender que se preocupou em dizer que nada viu, parecendo ter medo.

9 - Ora, tal consideração, tal como referido, é conclusiva, não se descortinando na sentença porque motivo o Tribunal considerou que a testemunha revelava apresentar medo, nomeadamente, descrendo, qual a postura da testemunha, o que esta disse para que a Meritíssima Juíza chegasse a essa conclusão, factos esses omitidos na sentença proferida pelo Tribunal a quo.

10 -A condenação do arguido/recorrente pela prática dos crimes em causa, impõe tivesse sido produzida uma prova cabal, consistente, contundente, e, desde logo, suficiente, o que, não aconteceu.

11 – Verificando-se insuficiência para a decisão de matéria de facto dada como provada, na medida em que, os factos dados como provados, carecem de prova bastante.

12- E, a falta de prova bastante, impunha, como impõe, a absolvição do Recorrente, até mesmo por apelo ao princípio do in dubio pro reo, previsto no artº 32, 2 da C.R.P.

13–A sentença não revel ao mínimo exame de nenhuma das provas, nem cumpre o dever de exame crítico de forma suficiente;

14 -Também a respeito dos documentos existentes nos autos, exceptuando casos residuais em que a extrema simplicidade do tema probando ou a literalidade do próprio documento falem por si, “remeter para o valor probatório dos documentos juntos aos autos é o mesmo que nada dizer” (STJ 24.07.2003), nada se explicando como se comprovaram os factos;

15 - O exame da prova é a análise de todas as provas, mesmo daquelas de que nada de útil se retirará. Se determinada prova se apresenta como irrelevante, há que dizê-lo, pois só assim a sentença revela que o tribunal conheceu e apreciou todas as provas.

16 - No caso, a motivação de facto não se apresenta, nem “suficientemente clara para poder ser identificada e contestada em sede de recurso” (TC 258/2001); 19 - O tribunal motivou a decisão de facto de forma insuficiente e incompleta nos pontos acabados de assinalar, não explicitando a convicção de modo perceptível e objectivado no que respeita à prova dos factos que considerou como tal.

17 – A Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser declarada revogada, por falta de fundamentação e por insuficiência da matéria de facto, impondo-se a absolvição do Arguido Recorrente.

18 - A douta decisão recorrida violou o disposto nos artsº 32º, 2 da C.R.P; e artºs 70º, 40º, 1 e 50º do Cód.Penal, 374º, nº 2 do CPP e 410º, nº 2 do CPP.”

Termina pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra decisão que altere a matéria de facto provada e que decida pela consequente absolvição do arguido.

Conclusões do recorrente AA

“1.- Não resulta provada nos autos a factualidade vertida na sentença em 1., 2., 3., 4., 5., 6., nos precisos termos em que atrás vem referido e sublinhado, dada a falta dos fundamentos aí aduzidos, por apenas e tão só o Tribunal dispor do testemunho do ofendido GG ((cuja pouca credibilidade se pode até aferir pela tentativa de incriminar HH por ilícito de omissão de auxílio, que o Sr. Procurador do Mº Pº liminarmente afastou no Inquérito por manifesta falta de verdade (como atrás se deixou registado)), dos elementos documentais e periciais, os quais só permitem comprovar que o GG, conseguindo pelos seus próprios meios deslocar-se ao Hospital de …, foi aqui tratado a lesões que apresentava e não podendo comprovar-se com certeza e com segurança as circunstâncias concretas e objectivas em que tais lesões foram produzidas, mas sendo certo que o GG se encontrava alcoolizado por ter bebido várias cervejas (como declarou no decurso da audiência de julgamento), o que lhe turbaria a razão e até o equilíbrio! E as declarações da única testemunha inquirida nos autos não corrobora quaisquer desses factos

2.- Acresce ainda que, tratando-se de uma matéria ocorrida num estaleiro de obras, no qual se encontrariam no mínimo uma dezena de pessoas, a única que o Mº Pº indicou e foi inquirida na audiência de discussão e julgamento não comprovou as declarações do ofendido e nada trouxe aos autos que permita convalidar a acusação.

3.- Pelo que, subsistem fundadas dúvidas em relação ao concreto circunstancionalismo em que o GG se lesionou, não sendo seguro e certo afirmar que tal se deveu a comportamento ilícito do arguido, o qual sempre terá de beneficiar dessas dúvidas por aplicação do princípio “in dúbio pro reo”. Sublinhe-se que a prova tem que indicada pelo acusador e comprovada em sede de julgamento e é legalmente inadmissível condenar qualquer cidadão com base em meras declarações do ofendido, ainda para mais que se declara alcoolizado no momento do ocorrido, com desequilíbrio na actuação e na memória das coisas.

4.- Também não existe nos autos qualquer prova credível, seja pericial, documental, testemunhal que permita imputar o cometimento do ilícito pelo ora recorrente.

5.- Aliás a Mma Juíz “a quo” não descreve e não justifica qual o motivo pelo qual valorou apenas e só as declarações do ofendido., as quais – como atrás se deixou expresso na transcrição do seu depoimento – foram contraditórias, imprecisas e confusas, nitidamente influenciadas pela formulação das questões pela Srª Procuradora e perderam qualquer credibilidade.

6.- O que implica a atrás referida alteração da matéria fáctica, não podendo assim subsistir a condenação do recorrente pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, o que tal impõe a sua absolvição.

7.- No que se refere à motivação da sentença é ela maioritariamente conclusiva;

8.- A única testemunha inquirida, que não corroborou as declarações do ofendido, foi totalmente desconsiderada por se considerar que, parecendo ter medo (?) só se preocupou em dizer que nada viu.

9.- Este entendimento da Mmª Juiz “a quo”, tal como referido, é conclusivao, não se conseguindo enxergar na sentença qual motivo que determinou o Tribunal a considerar que a testemunha revelava apresentar medo, nomeadamente, descrendo, qual a postura da testemunha, e aquilo que a testemunha disse para que a Mmª Juíz chegasse a essa conclusão, factos esses omitidos na sentença proferida em apreço.

10.- A condenação do arguido/recorrente pela prática dos crimes em causa, impõe que tivesse sido produzida uma prova cabal, consistente, contundente, e, desde logo, suficiente, o que, manifestamente não aconteceu.

11.- Daqui advém a insuficiência para a decisão de matéria de facto dada como provada, na medida em que, os factos dados como provados, se encontram carentes de prova bastante.

12- E, tal ausência de prova bastante, impunha, como continua a impor, a absolvição do Recorrente, até mesmo por apelo ao princípo in dubio pro reo, ínsito no artº 32, 2 da C.R.P.

13.- A sentença em apreço não revela o mínimo exame de nenhuma das provas, nem cumpre o dever de exame crítico de forma suficiente;

14.- Também no que concerne aos documentos existentes nos autos, exceptuando casos residuais em que a extrema simplicidade do tema probando ou a literalidade do próprio documento falem por si, “remeter para o valor probatório dos documentos juntos aos autos é o mesmo que nada dizer” (Ac. Do STJ de 24.07.2003), nada se explicando como se comprovaram os factos;

15 - O exame da prova é a análise de todas as provas, mesmo daquelas de que nada de útil se retirará. Se uma determinada prova se apresenta como irrelevante, há que deixá-lo expresso, pois só assim a sentença revela que o tribunal conheceu e apreciou todas as provas.

16.- In casu, a motivação de facto não se apresenta, nem “suficientemente clara para poder ser identificada e contestada em sede de recurso” (Ac. TC 258/2001);

17.- O tribunal motivou a decisão de facto de forma insuficiente e incompleta nos pontos acabados de assinalar, não explicitando a convicção de modo perceptível e objectivado no que respeita à prova dos factos que considerou como tal.

18.- A douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo tem de ser declarada revogada, por falta de fundamentação e por insuficiência da matéria de facto, assim se impodno a absolvição do Arguido, ora recorrente.

19.- A douta decisão recorrida violou, além do mais, o disposto no artº 32 nº 2 da Constituição da República, o disposto nos artºs 40º, 1, nº 1, 50º e 70º, do Código Penal, nos artºs 374º, nº 2 e 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.”

Termina pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra decisão que altere a matéria de facto provada e que decida pela consequente absolvição do arguido.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela sua improcedência tendo apresentado, relativamente a ambos, as seguintes conclusões:

“Pelo exposto se conclui que:

- o determinado reenvio para reabertura da audiência não visava a repetição do julgamento, mas, tão só, a fixação de factos sobre as condições pessoais e económicas do arguido/recorrente para, depois, fixação da pena e sua fundamentação.

- a audiência foi reaberta e, após, foi proferida douta sentença da qual passaram a constar como factos provados, os atinentes às condições de vida do arguido, constando ainda uma exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, em vista ao suprimento do vício antes declarado.

- como não poderia deixar de ser, pois que nessa parte já fora confirmada por douta Decisão do Tribunal da Relação de Évora, transitada em julgado, esta nova sentença manteve os demais factos que já haviam sido dados como provados e sua fundamentação.

- mas o arguido apresenta novo recurso, pretendendo que a sentença enferma dos mesmos vícios e nulidades que já invocara no recurso anterior, ou seja: insuficiência da matéria de facto e falta de fundamentação, bem como violação do princípio in dúbio pro reo.

- porém, a matéria que impugna bem como a fundamentação são as que já constavam da primeira sentença, nessa parte transitada em julgado e que, naturalmente, a segunda sentença teve que manter pois que não foi para a alterar que foi determinado o reenvio.

- sendo certo que o recorrente não vem impugnar qualquer nova matéria que foi trazida à sentença na sequência do reenvio, nem tão pouco a medida da pena.

- por respeitar a matéria já transitada em julgado, o recurso deve ser rejeitado.”

*

O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da reiteração dos argumentos expostos nas respostas apresentadas pelo Ministério Público junto da primeira instância, que deu por integralmente reproduzidos.

Não tendo sido aduzidos novos argumentos no parecer do Ministério Público junto desta Relação, não houve lugar ao cumprimento do disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, importa apreciar e decidir:

A) Se as questões colocadas nos recursos – relativas aos vícios da sentença por insuficiência da matéria de facto e por falta de fundamentação, bem como a invocada violação do princípio in dúbio pro reo – podem ser conhecidas no presente recurso ou se a tal obsta a exceção de caso julgado.

B) Caso se conclua pela inexistência de caso julgado, apreciar e decidir se a sentença recorrida enferma dos vícios referidos no ponto anterior.

* II.II - A decisão recorrida.

Reaberta a audiência final, em cumprimento da decisão deste Tribunal da Relação proferida em anterior recurso interposto da primitiva sentença, foi proferida a sentença que deu por provados e não provados os seguintes factos:

“Factos provados:

1. No dia 30-9-2021, entre as 18h00 e as 19h00, na Rua da …, num Estaleiro de obras ali existente, em …, …, …, o arguido AA, com uma fita métrica na mão, chamou GG, seu colega de trabalho, e pediu para que este o acompanhasse, afirmando que era “para verem uma medida”,

2. De seguida, encaminhou GG para uma zona inferior do recinto, junto à parte de baixo de um palco para festas ali instalado, enquanto o arguido DD, colega de trabalho daqueles, seguia na retaguarda de ambos,

3. Ali, sem que nada o fizesse prever e por razões não concretamente apuradas, o arguido AA, com os braços, empurrou GG para o solo, derrubando-o,

4. Ato contínuo, o arguido AA e o arguido DD pontapearam, de forma consecutiva e indiscriminada, o corpo daquele, atingindo-o no peito e na cara, Com o que causaram dor e mal-estar físico em GG, bem como lhe provocaram as seguintes lesões: - na face- feridas na zona do nariz: - e no tórax: vestígios cicatriciais de escoriação linear transversal na face anterior do terço superior do hemotórax esquerdo e de outra com iguais características, longitudinal no terço médio da face posterior do hemotórax esquerdo com 10 centímetros de comprimento, Que foram, causa direta e necessária, para 7 dias para cura com 2 dias de incapacidade para o trabalho geral e profissional,

5. Os arguidos quiseram, sempre, em comunhão de esforços e intentos, molestar fisicamente GG, o que conseguiram

6. Agiram de forma, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas, acima discriminadas, eram proibidas e punidas por lei penal.

7. Os arguidos não têm antecedentes criminais. AA, de 48 anos de idade, divorciado, detentor do 6.º ano de escolaridade, desempregado, vive sozinho, numa barraca, inserida numa zona de características rurais. Segundo o arguido, o imóvel não apresenta as condições mínimas de habitabilidade. A moradia está inserida num terreno pertencente aos avós, num meio habitacional onde também está inserida a casa dos mesmos, já falecidos, onde reside um irmão. O arguido encontra-se desempregado e a sua subsistência é assegurada pelo valor que aufere, pelos biscates que realiza, valor que não soube quantificar, referindo apenas que é conforme os trabalhos que realiza. Não obstante apresentar um quadro bastante deficitário, refere que as necessidades básicas estão asseguradas. As despesas fixas que apresentou são as referentes ao carregamento do telemóvel, no valor de 10 euros, de três em três meses, e a ajuda ao irmão no pagamento da eletricidade que usa para carregar o telemóvel. Mencionou o pagamento de uma multa em prestações., por condução sob o efeito do álcool, que nem sempre consegue satisfazer economicamente. O seu quotidiano é estruturado pelo seu trabalho, por biscates, que é irregular, no tratamento de animais domésticos, cães, gatos e patos. Em termos de saúde, o arguido apresenta a problemática de consumos etílicos em excesso.

A imagem do arguido na comunidade surge associada a um relacionamento interpessoal ajustado, de comportamentos adequado, pacífico, bem aceite na sociedade. O arguido foi acompanhado pela Equipa da DGRSP, no âmbito do processo 1649/17.8…, numa PSIP, por crime de ofensa à integridade física. Ao nível da sua trajetória de vida, AA é o mais novo, num conjunto de três elementos de um casal de normal condição social e económica. Tem mais uma irmã mais nova, da parte do pai. O pai, reformado, foi militar de profissão. A mãe, faleceu quando o arguido tinha 10 meses de idade pelo que foi inicialmente criado pela tia, irmã da mãe, com quem o pai teve um segundo relacionamento amoroso, mas que também faleceu muito nova, tendo posteriormente, conjuntamente com o irmão ter sido entregue à avó materna, que o ajudou a criar. Recorda uma infância de maus tratos por parte do pai, com quem hoje pouco se relaciona e por quem nutre poucos sentimentos. Contraiu matrimónio com II, aos 25 / 26 anos, não tem bem memória da data, de quem tem um filho de 23 anos de idade que vive em … com a mãe. Verbaliza manter uma boa relação com ambos, referindo que o casamento apenas resistiu três anos por motivo do cônjuge ser toxicodependente, o que, em conjunto com o seu problema etílico, dificultou o convívio entre o casal. Após a sua separação, o filho ficou a viver com a avó materna e aos 16 anos, juntou-se à mãe que, entretanto, fez cura do seu problema aditivo. Não obstante residir em casa da mãe, já tem agregado familiar constituído. Posteriormente viveu maritalmente com JJ, relação de 9 anos, e de quem tem um filho com 14 anos de idade, que vive com a mãe. Diz que também mantém boa relação com os dois e que esta relação se desmoronou por motivo de dificuldades económicas. Mais tarde, voltou a relacionar-se amorosamente com outra pessoa que conheceu numa Associação onde esteve internado em tratamento, relação que apenas durou um ano. Contraiu matrimónio com KK, no período em que se encontrava emigrado na …, situação que durou muito pouco tempo, referindo que este casamento teve o propósito de regularizar a sua situação nesse país, o que não resultou, regressando ao nosso país, sozinho. O arguido iniciou a escolaridade em idade normativa, concluindo o 6º ano de escolaridade. Sofreu uma retenção no 4º ano. Transmite que o pai lhe dava maus tratos, o envergonhava em frente aos colegas, criando-lhe uma grande revolta, estando consciente que foi uma criança rebelde, com problemas comportamentais. Iniciou atividade profissional por volta dos 15 anos, inicialmente como padeiro, profissão que reconhece ter bons conhecimentos. Cumpriu o serviço militar obrigatório, na Marinha Mercante. Voltou ao mesmo ramo, mas depressa se cansou de trabalhar de noite e resolveu ir laborar na construção civil, executando tarefas como servente de pedreiro até conseguir progredir na carreira e exercer funções de pedreiro. Emigrou para a …, entre 2011 e 2013 e depois para a …, 6 meses, sempre numa procura de vida melhor. Regressou a Portugal, passou por várias empresas / firmas e desde 2017 que se encontra desempregado. Em termos de saúde, apresenta a problemática aditiva de produtos etílicos, situação de que tem consciência e que denota dificuldade em ultrapassar. Já passou por vários internamentos em instituições, como o …, …, … e outras. Refere ter estado cerca de 3 anos abstinente, voltando a recair e em 14 março de corrente ano, foi multado por condução sob o efeito do álcool, mencionando que, a partir dessa data, tem estado abstinente.

DD integra um agregado constituído pela companheira, LL de 49 anos, desempregada, formanda de um curso profissional e pela filha MM, de 5 anos, que frequenta o jardim infantil. O arguido encontra-se desempregado há pouco mais de um ano, fazendo biscates sempre que possível. O agregado ocupa um imóvel arrendado que se encontra bem inserido na estrutura socio-espacial envolvente e que na perspetiva do arguido reúne adequadas condições de habitabilidade. A nível da situação económica, o arguido aufere € 5,00 à hora quando faz biscates e a companheira beneficia de uma bolsa de formação que o arguido não soube quantificar. Como principal despesa do agregado surge a renda de casa de € 280,00. Apesar de considerar a situação económica como bastante fragilizada, o arguido considera que não se encontram em causa as necessidades básicas do agregado. DD cuida de uma pequena horta, de onde retira produtos que se tornam importantes para a dieta do agregado. A dinâmica familiar foi descrita como normativa, não se verificando problemas significativos. A nível de lazeres, DD não desenvolve qualquer atividade estruturada, dedicando os seus tempos livres ao convívio com a família e a frequentar cafés, espaços de convívio onde referiu arranjar muitos biscates. O arguido é natural de um agregado que vivia em …, em que o pai era segurança num banco e a mãe trabalhava como empregada de limpezas, assegurando com os respetivos vencimentos a subsistência do agregado. O seu processo de crescimento foi marcado pela separação dos pais quando tinha 2 anos, tendo DD ficado sob os cuidados de familiares do pai. Após um período inicial em que esteve a viver com o pai, DD foi entregue a uns tios que viviam em …, localidade onde iniciou o seu percurso escolar e concluiu o 4º ano de escolaridade. Alternando períodos em que se encontrava com o pai em … ou com os tios em …, o arguido começou a trabalhar aos onze anos a lavar pratos num restaurante de Lisboa. Os períodos que passava com o pai foram recordados como frequentemente violentos, pelo que, aos 12 anos foi viver com a mãe em …. Nesta altura, começou a trabalhar nas obras, tendo aprendido o ofício de ladrilhador.

Aos 17 anos, o arguido autonomizou-se tendo ido viver para …. Mais tarde, iniciou vida conjugal tendo o casal tido duas filhas, hoje adultas. Ao fim de dezassete anos o casal separou-se. Há cerca de seis anos DD estabeleceu uma nova relação afetiva da qual tem uma filha. O seu percurso profissional incidiu essencialmente na área da construção civil como ladrilhador, tendo há alguns anos sido colocado a trabalhar como manobrador de máquinas, atividade que manteve até há cerca de um ano, altura em que ficou desempregado. Ao longo do discurso, o arguido revelou competências pessoais e sociais. Demonstrou aquisição de competências a nível do pensamento consequencial, percebendo os efeitos que as suas ações podem provocar e assumindo as suas eventuais consequências. DD protagonizou um processo de desenvolvimento marcada pela separação dos pais quando tinha dois anos de idade. Iniciou a sua vida laboral na área da construção civil, tendo desenvolvido a atividade de ladrilhador e de manobrador de máquinas. Beneficia de um enquadramento familiar estável.

Factos não provados: Nenhuns.”

*** II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Da exceção de caso julgado.

Dispõe o artigo 417.º, nº 6, alínea a) do CPP, que, após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que “Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso”.

O princípio da proibição de “reviver processos já julgados com resolução executória”3 estabelecido pelo artigo 29.º, n.º 5 da CRP – “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” – encontra a sua materialização na exceção de caso julgado, exceção que, inquestionavelmente, se encontra verificada nos presentes autos. Com efeito, resulta evidente, da análise das motivações dos recursos, que os recorrentes pretendem discutir questões já anteriormente apreciadas e decididas nos autos, repetindo, em grande medida, os argumentários já apresentados aquando da interposição dos recursos da primitiva decisão do tribunal a quo, tendo omitido, porém, a circunstância simples de que a anterior decisão sumária deste Tribunal da Relação, proferida nos presentes autos, decidiu já, com caracter de definitividade, todas as questões agora novamente suscitadas.

Dito de outro modo, verificamos que toda a matéria que constitui o objeto dos recursos que temos em apreciação foi já objeto de uma pronúncia definitiva nos presentes autos, o que nos reconduz à exceção de caso julgado formal.

Como é sabido, o caso julgado é um efeito processual da decisão transitada em julgado, que tem na sua génese elementares razões de segurança jurídica e que, assegurando a estabilidade da decisão, visa impedir que o que se decidiu seja novamente apreciado e decidido, obviando ao risco da produção de decisões inúteis e/ou contraditórias, em nome dos princípios da certeza do direito, da segurança jurídica e da proteção da confiança.4

Segundo o critério da eficácia, distinguem-se o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele.

Nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do CPC, que dispõe precisamente sobre o caso julgado formal – e que se aplica ao processo penal por força do artigo 4.º do CPP –, “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”

Quanto ao alcance do caso julgado, estabelece o subsequente artigo 621.º do CPC – também aplicável ao processo penal ex vi do artigo 4º do CPP – que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

A consequência essencial a extrair do caso julgado formal, que temos presente na situação em análise, é, pois, a de que uma pretensão já decidida definitivamente, em contexto meramente processual, não pode ser objeto de repetida decisão, ou seja, tal como se extrai da conjugação das normas acima referidas, o caso julgado formal, concernente a matérias de índole processual, que não são de mérito, tem força obrigatória dentro do processo, na exata dimensão e amplitude do conteúdo da decisão transitada.

Nas palavras do Conselheiro Santos Cabral, “(…) Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï) - cfr. Acs. do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, Proc. 3924/01, e de 3 de Março de 2004, Proc. 215/04. O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.

Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo-, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão.

No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual (…)”5 6

Estas as razões pelas quais a decisão definitiva proferida nos autos sobre a nulidade da sentença por falta de fundamentação, sobre a impugnação da matéria de facto e sobre a violação do princípio do in dúbio pro reo, que consta da anterior decisão sumária deste Tribunal da Relação, formou caso julgado formal, nos termos sobreditos, impedindo qualquer nova apreciação e decisão sobre tais matérias, designadamente as solicitadas nos recursos em análise.

Tal como argutamente se consignou no acórdão do Tribunal Constitucional nº 520/2011, de 31.10.2011, proferido no processo n.º 422/11 e relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano, “(…) A autoridade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais, transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas na mesma instância, tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal, nomeadamente quando, pelos mais variados motivos, se verificasse uma alteração do juiz titular do processo.”7

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Nesta conformidade, considerando o iter processual acima relatado, do qual resulta que, nos recursos que agora são objeto da nossa análise, os recorrentes se limitam a invocar os vícios da sentença recorrida já apreciados e decididos na decisão sumária desta Tribunal da Relação, proferida nos presentes autos em 10.10.2024, sem que nenhum outro fundamento conste dos recursos – designadamente no que tange à matéria da escolha e determinação das medidas das penas – mais não haverá do que declarar verificada a exceção de caso julgado, nos termos propugnados pelo Ministério Público nas suas respostas, com a consequente rejeição dos recursos.

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III - Decisão

Pelo exposto, decide-se declarar verificada a exceção de caso julgado, rejeitando-se, consequentemente, ambos os recursos.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC para cada um (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

(Processado em computador e revisto integralmente pela relatora)

Évora, 29 de outubro de 2025.

Maria Clara Figueiredo

Sumário

I - O caso julgado é um efeito processual da decisão transitada em julgado, que tem na sua génese elementares razões de segurança jurídica e que, assegurando a estabilidade da decisão, visa impedir que o que se decidiu seja novamente apreciado e decidido, obviando ao risco da produção de decisões inúteis e/ou contraditórias, em nome dos princípios da certeza do direito, da segurança jurídica e da proteção da confiança.

II - Segundo o critério da eficácia, distinguem-se o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele. Nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do CPC, que dispõe precisamente sobre o caso julgado formal – e que se aplica ao processo penal por força do artigo 4.º do CPP –, “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.” Quanto ao alcance do caso julgado, estabelece o subsequente artigo 621.º do CPC – também aplicável ao processo penal ex vi do artigo 4º do CPP – que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

III - A consequência essencial a extrair do caso julgado formal é, pois, a de que uma pretensão já decidida definitivamente, em contexto meramente processual, não pode ser objeto de repetida decisão, ou seja, tal como se extrai da conjugação das normas acima referidas, o caso julgado formal, concernente a matérias de índole processual, que não são de mérito, tem força obrigatória dentro do processo, na exata dimensão e amplitude do conteúdo da decisão transitada.

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1 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, página 1156, anotação 13.

2 Transcrição da decisão sumária do TRE de 10.10.2024.

3 Acórdão da Relação de Lisboa de 13.04.2011, relatado pelo Desembargador Rui Gonçalves.

4 Cfr. a este propósito, entre outros, Acórdão da Relação de Guimarães, 26.02.2020, relatado pela Desembargadora Ausenda Gonçalves.

5 Acórdão do STJ, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, de 20.10.2010, disponível em www.dgsi.pt.

6 A respeito do caso julgado formal e material cfr. também, entre outros, os acórdãos do STJ de 08.03.2018, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos; de 10.04.2024, relatado pelo Conselheiro Nelson Borges Carneiro e de 19.12.2023, relatado pelo Conselheiro Ernesto Vaz Pereira, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

7 Disponível no site do Tribunal Constitucional (https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110520.html)