Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | CRISTINA DÁ MESQUITA | ||
| Descritores: | DIREITO INTERNACIONAL CESSÃO DE QUOTA INOFICIOSIDADE NACIONALIDADE NORMA DE CONFLITOS | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | 1 – No caso em que a situação em causa nos autos tem pontos de contacto com mais de um ordenamento jurídico, cumpre avaliar qual o ordenamento jurídico competente para regular a concreta questão jurídica suscitada pelos autores, in casu, a invalidade do contrato de cessão de quotas outorgada entre o pai e o irmão de ambos, por falta de consentimento dos autores para a outorga do contrato. 2 – O que implica determinar, dentro do regime de direito internacional privado contido no Código Civil, a regra de conflitos que “diga” qual das leis em contacto com a situação supra descrita é a lei aplicável ou a lei competente para decidir daquela concreta questão jurídica. 3 – Na estrutura da regra de conflitos entram dois elementos fundamentais, a saber, aquele que define o domínio ou a matéria jurídica em causa (conceito-quadro) e o elemento de conexão relevante dentro de tal domínio (elemento de conexão). 4 – A função normativa ou o fim social das normas materiais no contexto do ordenamento a que pertencem é que decidirá do seu enquadramento no conceito-quadro de determinada Regra de Conflitos. 5 – À luz da previsão do artigo 877.º/1, do CC, os pais e os avós não podem vender a filhos ou a netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda. Resulta deste dispositivo legal que o negócio de compra e venda é condicionado pela relação jurídico-familiar ali prevista na medida em que aquele só é válido se for consentido pelos demais descendentes (filhos ou netos, consoante o caso). 6 – Apesar da sua inserção sistemática no “Livro das Obrigações”, o artigo 877.º/1, do CC é uma norma criada pelo legislador para defender interesses ligados às relações familiares, concretamente evitar que ocorram vendas simuladas entre pais e filhos ou entre avós e netos. 7 – A ratio normativa do artigo 877.º do CC implica que a mesma seja qualificada como pertencente ao grupo de normas relativas às relações jurídico-familiares (artigo 15.º do CC). 8 – No caso da regra de conflitos prevista no artigo 57.º do Código Civil, o elemento de conexão previsto no artigo 57.º é a nacionalidade e, subsidiariamente, a residência habitual, e o conceito-quadro são as «relações entre pais e filhos». 9 – Donde, a norma de conflitos que deve ser chamada à colação no caso em apreço é o artigo 57.º do Código Civil. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 3128/18.7T8PTM.E1 (2.ª Secção) Relatora: Cristina Dá Mesquita 1.ª Adjunta: Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite 2.º Adjunto: Vítor Sequinho dos Santos Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIOI.1. (…), réu na ação declarativa que lhe foi movida por (…) e (…), todos melhor identificados nos autos, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Portimão, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual julgou a ação procedente e, em conformidade: 1) Declarou a anulação da cessão de quotas relativa à quota com o valor nominal de € 48.000,00 efetuada por contrato celebrado em 10 de novembro de 2017 entre (…) e o réu (…) e relativa à sociedade (…), Lda. com o NIPC (…); 2) Ordenou o cancelamento do registo da cessão de quotas efetuado em 14 de novembro de 2017 a favor de (…); 3) Condenou o réu a pagar aos herdeiros de (…) a quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença, que fixou em valor não inferior a € 400.000,00 a título de distribuição de lucros inerentes à propriedade da quota, objeto do processo, correspondentes ao exercício de 2017 e até à data do cancelamento do registo. Da sentença foi interposto recurso pelo réu. Os autores, na sua resposta às alegações, requereram a ampliação do recurso. I.2. As alegações do recorrente (…) culminam com as seguintes conclusões: «A) O presente recurso vem interposto da sentença final que, julgando totalmente procedente a ação, declarou a anulação do contrato de cessão de quotas entre o Réu / Recorrente e o pai, (…), celebrado no dia 10-11-2017. B) O tribunal a quo julgou erradamente ao entender que a norma de conflitos aplicável é a que consta do artigo 41.º do Código Civil (relativa às obrigações provenientes de negócios jurídicos). C) A norma de conflitos aplicável é a que consta do artigo 57.º do Código Civil, porquanto a questão subjacente ao artigo 877.º do mesmo diploma é relativa às relações entre pais e filhos. D) O contrato de cessão de quota objeto dos autos não cabe na previsão do Regulamento CE 593/2008, pelo que o mesmo não lhe é aplicável. E) A norma de conflitos que consta do artigo 41.º do Código Civil, ou qualquer outra, não pode ser mobilizada, sem que esteja preenchida a sua previsão, com o objetivo de obstar à aplicação da lei estrangeira que poderá implicar a violação da reserva de ordem pública do Estado Português. F) O artigo 877.º do Código Civil não integra a reserva de ordem pública internacional do Estado Português, não estando em causa o princípio da intangibilidade da legítima. G) De acordo com as normas de direito internacional privado (artigo 57.º do CC), a lei aplicável à questão da exigência de consentimento dos Autores ao contrato de cessão de quota objeto dos autos é a lei italiana, porquanto é a que corresponde à lei pessoal comum dos pais e à lei pessoal dos filhos. H) O artigo 877.º do CC não se aplica ao contrato de cessão de quota objeto dos autos. I) A lei italiana não exige o consentimento ou autorização dos filhos à cessão de quota de pai para filho. J) O contrato de cessão de quota objeto dos autos não é qualificável como um pacto de família à luz da lei italiana. K) A lei italiana não prevê nenhum vício específico para a falta de participação de todos os herdeiros legitimários no pacto de família, pelo que tal falta de participação não gera a anulabilidade do negócio. L) À luz da lei italiana, o contrato de cessão de quota objeto dos autos apenas poderia ser anulado se os Autores alegassem e provassem que o mesmo foi simulado, o que não foi feito. M) O contrato de cessão de quota objeto dos autos não padece de vício de forma à luz da lei italiana. N) O ponto 25 do elenco de factos provados deverá ser reapreciado e passar a ter a seguinte redação: “25- O Autor (…), cedeu a sua quota ao ora Réu, seu irmão – (…), na sociedade (…), no dia 21 de março de 2017 (por contrato cuja cópia constitui o doc. n.º 3 da contestação), pelo valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), que recebeu, tendo por base o valor que as partes haviam negociado, pese embora tivesse sido escriturado apenas o valor nominal da quota.” O) O ponto 2 do elenco de factos provados deverá ser reapreciado e passar a ter a seguinte redação: “2- Os Autores, após a morte do seu pai, tomaram conhecimento, através do Réu, de que o falecido pai lhe teria cedido a quota, com o valor nominal de € 48.000,00, correspondente a 60% do capital social, que detinha na sociedade (…), Lda., NIPC (…), com sede na Av. (…) – Edifício (…), r/c – (…), 8500-802 Portimão, o que ocorrera pelo valor de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros), tendo por base o valor que havia sido apurado para a cessão da quota de (…).” P) (…) recebeu o valor acordado com o Réu pela cessão de quota. Q) O ponto xviii do elenco de factos não provados deverá ser reapreciado e julgado provado. R) O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento no que respeita à existência de abuso de representação por parte do Réu na outorga do contrato de cessão de quota. S) Os Autores não lograram provar que o pai, (…), conhecia ou devia conhecer o abuso de representação por parte do Réu. T) Os Autores não lograram provar que, outorgando o contrato de cessão de quota pelo preço que foi outorgado, o Réu estava conscientemente a utilizar os poderes que lhe haviam sido conferidos em sentido contrário ao seu fim ou às indicações de (…). U) Os Autores não lograram provar que o Réu agiu com qualquer intenção de prejudicar o seu pai, (…), ou sequer que tenha atuado contra a vontade dele. V) A alienação da quota pelo seu valor nominal não implica, por si só, que o Réu tenha atuado contra a vontade de (…). W) O tribunal não pode presumir que para o sr. (…) o interesse adequado seria o de alienar a quota pelo seu valor de mercado, tendo esse interesse de ser apurado em concreto. X) Não se verifica qualquer abuso de representação por parte do Réu na outorga do contrato de cessão de quota, pelo que o mesmo não padece da ineficácia apontada no artigo 268.º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 269.º do mesmo diploma. Y) O ponto 31 do elenco de factos provados deverá ser reapreciado e julgado não provado. Z) A decisão vertida na alínea d) do dispositivo, tendo por base o ponto 31 dos factos provados, permite que a herança aufira um rendimento que, na sua origem, poderá não ser lícito, porquanto o único rendimento que os sócios podem auferir licitamente é aquele que decorre do apuramento das contas oficiais da sociedade. AA) A decisão vertida na alínea d) do dispositivo é contrária à lei, devendo, por isso, ser revogada, independentemente do juízo que o Venerando Tribunal faça sobre as restantes matérias do recurso. Nestes termos e nos melhores de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá a presente apelação ser julgada totalmente procedente, por provada, revogando-se integralmente a sentença recorrida, e, nessa sequência, absolvendo-se o Recorrente de todos os pedidos formulados pelos Recorridos, Com o que este Venerando Tribunal certamente fará a almejada e devida JUSTIÇA!» I.3. A resposta às alegações dos recorridos culmina com as seguintes conclusões: «1 - A norma de conflitos aplicável à cessão de quotas em causa nos autos não é a do artigo 57.º do Código Civil Português, já que esta apenas respeita a relações de caráter pessoal entre pais e filhos. 2 - À situação dos autos deve ser aplicada norma de conflitos sobre contratos. 3 - No direito interno português seria a norma do artigo 41.º do Código Civil, à qual se sobrepõe o disposto no Regulamento CE 593/2008. 4 - Segundo este Regulamento, e por falta de escolha da lei aplicável pelas partes, serão aplicáveis as normas subsidiárias contantes do seu artigo 4.º. 5 - Poderia ser aplicável a regra do seu n.º 2 – a «lei do país em que o contraente que deve efectuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual» – o que redundaria na lei portuguesa, considerando a residência habitual em Portugal do ora apelante e como prestação característica do negócio o pagamento do respetivo preço. 6 - Como poderia ser aplicável, como decidiu a sentença recorrida, o seu n.º 4 – a «lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita». 7 - A qual continuaria a ser a portuguesa já que, apesar dos ‘outorgantes’ serem de nacionalidade italiana, o negócio foi efetuado em Portugal, tendo a empresa, cujas quotas foram transmitidas, sede em Portugal e um dos contraentes ser também residente em Portugal. 8 - Do que tudo resulta que, ao negócio em causa nos autos, sempre seria aplicável o artigo 877.º do Código Civil Português, com a sua consequente invalidade por falta de autorização dos aqui Autores quanto ao mesmo. 9 - De resto, tal também sempre resultaria da circunstância de que tal norma visa tutelar a legítima dos herdeiros legitimários, sendo, assim, uma norma inspirada por razões de interesse e ordem pública e, assim, não afastável por norma de ordem jurídica que pudesse prejudicar herdeiros legitimários e respetivas legítimas. 10 - Ainda que fosse aplicável a lei italiana, como sem fundamento pretende o ora apelante, também o negócio dos autos seria inválido por violação das três normas que regem na matéria: o negócio não foi feito através de um pacto de família, não foi feito através de um ato público nem nele participaram os demais herdeiros legitimários do cedente da quota (artigos 768.º-bis, 768.º-ter e 768.º-quater do Código Civil Italiano). 11 - Mesmo que não procedessem os anteriores argumentos, sempre o ora apelante teria agido com abuso de representação, já que, no uso da ‘procuração’, o ora apelante violou claramente os mais elementares interesses do cedente seu pai, ao realizar o negócio por € 48.000,00, quando a quota em causa valeria, pelo menos, € 2.400.000,00, utilizando o critério do ponto 31 dos factos provados. 12 - Os recorridos, pelas razões já aduzidas, entendem que inexiste fundamento para a procedência da pretensão recursória do Réu. 13 - Ainda assim, convocando o disposto no n.º 1 do artigo 636.º do CPC, vêm requerer, a título subsidiário, a ampliação do âmbito do presente recurso, prevenindo a sua eventual procedência. 14 - De facto, os Autores (e ora recorrentes) não se podem conformar com múltiplos pontos das decisões sobre a matéria de facto (nomeadamente, pontos i), ii), iii), xiv), viii), xiii), dos factos não provados e 26, 15, 21, 22, 42 e 40 dos factos provados), o que faz com que a aplicação do Direito a esses factos, ora, objeto de reapreciação, conduzam necessariamente à procedência da ação, mesmo que o recurso do R. merecesse – o que não se concede – provimento. 15 - Por outro lado, independentemente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ora, deduzida sempre a douta sentença a quo, comporta vícios processuais e erros de julgamento (omissão de pronúncia, alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e erro de julgamento da alínea d) da decisão a quo) que justificam a procedência do presente recurso; assim, 16 - In casu, a especificidade dos factos nucleares (para lá da ausência de consentimento, nos termos do artigo 877.º do CC, consensualmente aceite) a demonstrar, no âmbito dos presentes autos (maxime, os factos negativos, de que o Réu e a sua advogada não se deslocaram a Bergamo para outorgar a procuração e explicar a mesma ao falecido … e que, o mesmo, a ter assinado a procuração, não teve consciência clara e esclarecida do que assinou), que induzem, por parte dos Autores, uma impossibilidade, quase absoluta, de fazer, por si, tal demonstração, recomendaria, necessariamente, que a análise da prova produzida, fosse especialmente criteriosa, devidamente contextualizada e suportada nos instrumentos que a lei adjetiva faculta, como, por exemplo, a prova por presunção (cfr. artigo 349.º do CC) ou a inversão do ónus da prova (cfr. n.º 2 do artigo 344.º do CC). De facto, 17 - No âmbito de um processo, como o sub judice, em que os “factos negativos” assumem uma importância acrescida e que, dificilmente, podem ser provados através da prova direta, a prova por presunção deverá assumir um reforçado protagonismo. 18 - Acresce que, se inexiste, por um lado, prova direta que permita a conclusão inelutável acerca dos factos negativos enunciados, não é menos verdade que abundam factos que, por si, de acordo com as referidas máximas da experiência, nos permitem conduzir a uma conclusão firme acerca de tais factos “desconhecidos”. 19 - Infelizmente, a douta sentença a quo desvaloriza, em grande parte, o sentido inelutável da abundante prova produzida, preferindo escudar-se nas dúvidas – sempre possíveis de invocar – acerca da incerteza dos factos negativos. 20 - E assim, o Tribunal a quo, não retirou todas as conclusões que, s.m.o., se impunham quanto à decisão da matéria de facto. Desde logo, 21 - A douta sentença a quo considerou não provado que: «i) O pai dos Autores e Réu jamais pretendeu ceder a referida quota, nas condições em que a mesma se verificou (artigo 18º da p.i.). «ii) A quota era um património, que – à imagem dos seus atos, enquanto vivo, de inatacável retidão – sempre pretendeu dividir pelos 3 filhos (artigo 19º da p.i.). «iii) (…), manifestamente, não desejava e nem sequer toleraria provocar com o negócio uma ofensa da legítima dos filhos preteridos traduzida num prejuízo de largas centenas de milhares de euros (artigos 26º e 27º da p.i.). (…) «xiv) A vontade do pai era a de integrar a quota em questão, no património a partilhar (artigos 43º e 44º da p.i.)». 22 - Para o justificar, começa a decisão por referir que (…) poderá ter «querido proteger o filho», nomeadamente, por não ser «o mais competente dos irmãos no que à realização de negócios dizia respeito» e porque «ficaria suficientemente protegido com a transferência das participações sociais para si». 23 - Sucede que, se o pai quisesse proteger o filho, com menos capacidades, então, certamente, não lhe entregaria a gestão exclusiva de todo o património, antes procuraria uma solução que, salvaguardando o futuro do filho, preservasse o património. 24 - É que, como é fácil de concluir, o risco de uma gestão exclusiva de todo o património, de quem se considera incompetente, só faz antever o risco de dissipar esse património e assim, levar a que o filho fique sem qualquer proteção. 25 - Ou seja, não é de presumir, no pressuposto enunciado que o mesmo conduzisse, segundo uma experiência comum, à cessão da totalidade das quotas ou à intenção de não dividir as quotas pelos 3 irmãos. 26 - Pelo contrário, a melhor forma de proteger o filho, seria, objetivamente, integrar as quotas, no património a partilhar. 27 - Levanta o Tribunal outra possibilidade, que decorre do depoimento da testemunha (…), no sentido que era o Réu «quem tinha, ao longo do tempo, desenvolvido a atividade do mesmo e transformado o restaurante num negócio próspero». 28 - Sucede que, não só a hipótese de ter sido o Réu «quem tenha ao longo do tempo desenvolvido a actividade do mesmo e transformado o restaurante num negócio próspero» é desprovida de suporte, como, mesmo a ser verdade, nunca justificaria, por si, concatenada toda a prova, o negócio sub judice. 29 - Por fim e mais incompreensível, ainda, a decisão a quo invoca os “momentos de tensão na relação com o seu pai”, por parte do Réu que, por esse motivo, teria transmitido a possibilidade de ir constituir outra sociedade, o que poderia ter levado a que o falecido (…) “tenha cedido a essa eventual ameaça do Réu”. Contudo, 30 - Para lá de, também, não estar alegado este facto nos autos (ameaça de constituir outra sociedade) e, muito menos, demonstrado que seja verosímil, quando atentamos no valiosíssimo património e rendimento da (…), Lda. (cfr. Factos Provados 28 e 31), certo é que, não se alcança, como é que o pai, pessoa independente, assertiva e com conhecimento da boa capacidade de gestão, nomeadamente, do filho (…), perante uma situação limite, de agressões, com o filho mais incompetente, entenderia que a melhor forma de preservar esse património (ultrapassando, já, a questão pessoal…) e resolver a tensão criada, seria ceder, sob ameaça, todo o património ao filho… com que chegou a vias de facto e oferecia menos garantias de boa gestão. 31 - E assim, em face das regras de experiência comum, que os fundamentos apresentados na decisão a quo, levam, exatamente, às conclusões contrárias às que aí estão vertidas. 32 - Acresce, contudo, que outra prova produzida, impõe, ainda, considerarem-se provados tais factos. 33 - Desde logo, atente-se nos documentos juntos aos autos pelos Autores em 07/10/2019 (Ref.ª 33621701) que consubstanciam um acordo de princípio para a partilha da sociedade, que seria a vontade do falecido, que previa, por um lado, a gestão do negócio por parte do Réu, mas, por outro, a divisão dos imóveis, em partes iguais, pelos 3 irmãos. 34 - Por um lado, a gestão ficava atribuída, exclusivamente, a quem tinha, nos últimos anos, a direção do negócio. 35 - Mas, por outro lado, preservava-se o património da sociedade – reconhecendo, até, a, eventual, menor competência do Réu, mencionada na decisão a quo – e assegurava-se a divisão efetiva e equitativa do imobilizado. 36 - Por outro lado, que em relação à preocupação do pai, como pessoa justa, em tratar os filhos de igual modo, constam, também, inúmeras declarações nos autos (cfr., por exemplo, …, min. 02:20; …, min. 02:17; …, min. 16:58 e 17:35; …, min. 37:00 e …, min. 09:59). 37 - Qual, então, a justificação para alguém que se preocupava em igualizar todos os irmãos, aquando de qualquer doação a um, para os prejudicar, em sede de herança, em milhões de euros? 38 - Beneficiando, além do mais, aquele que mais auferira através do pai e com quem se envolvera, pelo menos, num confronto físico… 39 - E prejudicando, nomeadamente, quem criou a sociedade e inclusivamente a entregou ao pai (revalorizada significativamente), de forma gratuita. 40 - Nada nos autos nos permite encontrar uma razão válida para tanto, sendo que, pelo contrário, todos os factos conhecidos (e não especulados) indiciam que, de facto, o falecido (…) nunca quereria prejudicar nenhum dos filhos e, pelo contrário, sempre fez questão de os tratar, por igual. 41 - A estas razões deverá acrescer, aliás, uma pergunta, para a qual não se vislumbra qualquer resposta positiva lógica: qual a vantagem ou o racional de ceder, antecipadamente, uma quota, que, em vida, lhe assegurava a totalidade dos meios que necessitava para viver? Em resumo, 42 - Não só o suporte probatório invocado é desprovido de qualquer credibilidade, como os fundamentos aduzidos inculcam conclusões diferentes das tiradas em sede de decisão, como os factos conhecidos (documentados) e não ponderados, fazem presumir (com elevadíssimo grau de certeza) que tais factos correspondem à realidade. 43 - Impondo, assim, decisões sobre a matéria de facto, diferentes das propugnadas. 44 - Logo, sempre deverá ser considerado como provado, que: «i) O pai dos Autores e Réu jamais pretendeu ceder a referida quota, nas condições em que a mesma se verificou (artigo 18º da p.i.). «ii) A quota era um património, que – à imagem dos seus atos, enquanto vivo, de inatacável retidão – sempre pretendeu dividir pelos 3 filhos (artigo 19º da p.i.). «iii) (…), manifestamente, não desejava e nem sequer toleraria provocar com o negócio uma ofensa da legítima dos filhos preteridos traduzida num prejuízo de largas centenas de milhares de euros (artigos 26º e 27º da p.i.). (…) «xiv) A vontade do pai era a de integrar a quota em questão, no património a partilhar (artigos 43º e 44º da p.i.)». Por outro lado, 45 - A matéria constante dos factos, cuja matéria é, ora, impugnada, corresponde às alegações vertidas na p.i., nos artigos 33º, 38º e 39º, em que se refere que «a advogada (Dra. …) que subscreveu o Termo de Autenticação (atestando, necessariamente, a leitura em voz alta e a compreensão do presuntivo autor da procuração), nunca se deslocou a Itália, para se encontrar com o sr. (…)» e que o documento (procuração), alegadamente, subscrita pelo pai dos Autores e Réu, «… nunca lhe foi lido e explicado em voz alta, pela Dra. (…)», «ao contrário do que consta(rá) do Termo de Autenticação». 46 - Ora, salvo o devido respeito, entendem os Autores que, também nesta matéria, existe suporte probatório nos autos, que impõe a modificação de tais decisões de facto, que deverá levar a que se considerem tais factos provados. 47 - Em primeira linha, a douta decisão a quo, vem enunciar – num entendimento que os, ora, recorridos acompanham – que «sendo necessariamente mais facilitada a prova de um facto positivo (como: “ocorreu uma deslocação a Itália”) de que de um facto negativo (como: “não ocorreu uma deslocação a Itália”), entende- se que o réu deveria provar aquilo que alegou, sendo que a não prova de qualquer destas circunstâncias, acaba por redundar em prejuízo da posição do réu». 48 - Já quanto à demonstração probatória que levou à decisão de considerar não provado a ida a Bergamo, para outorga da procuração, começa a decisão a quo, por evidenciar a ilogicidade do alegado, quanto à necessidade de outorgar a procuração em Itália, em face da impossibilidade de se deslocar a Portugal. 49 - De facto, já que o cessionário e a advogada se deslocaram a Itália, então porque não outorgaram, pura e simplesmente, o negócio em Itália? 50 - E se a absoluta ilogicidade da invocação do Réu induz a sua manifesta inverosimilhança, é evidente que «as circunstâncias que rodeiam este processo negocial» só a reforçam e deixam poucas dúvidas em relação ao que se terá passado. 51 - Como fundamenta a decisão, ora, recorrida «recorde-se que nenhuma outra testemunha viu nesta ocasião, fosse o réu fosse a referida advogada, em Itália, assim como não há qualquer espécie de documentos comprovativos de viagem, como bilhetes de avião ou documentos que atestassem estadias em unidades hoteleiras ou de despesas, por exemplo, com refeições». 52 - E esta total ausência de suporte probatório, sublinhe-se, durante um período de 6 anos (!!!...), em que decorreu a tramitação processual e depois de múltiplas tentativas dos Autores para que fosse junto aos autos um qualquer documento comprovativo ou pelo menos indiciador da alegada deslocação. 53 - Como se não bastasse a incapacidade de apresentarem qualquer suporte probatório, durante 6 anos (!!!...) de uma deslocação efectuada em circunstâncias, absolutamente, inverosímeis, para um procedimento, alegadamente, efectuado em moldes, diametralmente, opostos, a outro similar (e, até, mais “compreensível”, atenta a ligação existente), também, emergem outras contradições que induzem, por si, a conclusão de que, de facto, a Dra. (…) não se deslocou a Itália para tal outorga. Desde logo, 54 - A Dra. (…), apesar de ir de propósito a Itália, num curtíssimo espaço de tempo, para presencialmente assistir à outorga de uma procuração e explicar o seu conteúdo, nada combinou, previamente, com a Dra. (…). 55 - Apesar de assumir que “levou a minuta”, “não sabia fazê-lo” (o Termo de Autenticação) e “não tinha o computador” (também, contrariamente, ao que a Dra. … referiu), o que, consabidamente, implicava que tal colaboração fosse indispensável. 56 - Sendo que, inclusive, nenhuma colaboradora se encontrava no escritório (cfr. min. 35:02 depoimento supra de Dra. …), onde teria o caderno com as passwords. 57 - É que, conforme enunciação efetuada na fundamentação, o “tudo visto” só inclui um suporte probatório para a ida a Itália, específica, naquela data, com aquela finalidade (não está em causa, a invocação de qualquer outro motivo, por parte do Réu): o testemunha da Dra. (…). 58 - E este, ao contrário do que é enunciado na sentença, está longe de merecer credibilidade, desde logo, pelos motivos óbvios, vertidos na decisão, mas, também, pela análise criteriosa de todo o depoimento que se revela, invariavelmente, vago, inconclusivo, contraditório, inverosímil. 59 - Ora, em face da inexistente prova da deslocação da Dra. (…) e do Réu a Itália, nos termos alegados e da impossibilidade (ou pelo menos, de extrema dificuldade) da prova negativa da “não ida”, cabe, s.m.o., privilegiar a prova por presunção, em face dos (muitos) factos que são conhecidos. E assim, 60 - É de presumir (face às regras da experiência comum) que alguém (Dra. … e/ou …) que se deslocou a Itália, aprox. 2 anos antes (*), durante um período de 5 dias, não conseguisse carrear, durante um período de 6 anos, qualquer meio de prova objetivo que o demonstrasse ou, pelo menos, indiciasse? 61 - É de presumir que quem adota determinado procedimento para a prática de um ato jurídico (no caso, o envio via mail de uma procuração com reconhecimento presencial, pela Dra. …), assente, em grande parte, na confiança existente entre as partes (mesmo que erradamente), o fizesse com quem não conhecia (cfr. ponto 27 dos factos provados), mas não o fizesse com quem tinha uma confiança estabelecida (cfr. 24 Factos provados)? 62 - É de presumir que quem se desloca a Itália, para praticar um ato jurídico, num curto lapso de tempo, para o qual, consabidamente, soubesse ser necessária a colaboração de uma colega, em Portugal, ou/e a presença de algum colaborador no escritório, o fizesse sem acautelar esses factos? 63 - É de presumir que quem se desloca a Itália, em virtude de dificuldades do outorgante para se deslocar a Portugal, para concluir um negócio, optasse por outorgar uma procuração com amplíssimos poderes, em detrimento de concluir, desde logo, o negócio, nos termos exatos pretendidos pelo Cliente, sem qualquer instrumento de representação (por desnecessário), para finalizar o negócio, longe do Cliente? 64 - É de presumir que a Dra. (…) combinasse uma ida a Itália, em circunstâncias tão difíceis e num prazo tão curto, quando, além do mais, tinha agendado para o próprio dia da alegada partida, 20/09/2017, uma audiência de discussão e julgamento, onde esteve presente (cfr. notificação 06/07/2023, Ref.ª 128998115)? 65 - É de presumir que quem necessitasse de se deslocar a Bergamo, Itália, num curto prazo de 5 dias, optasse por ir e regressar de veículo automóvel, quando tinha uma opção mais económica, (muito) mais rápida, mais segura e confortável, indo de avião (directamente de Faro)? 66 - É de presumir que caso a Dra. (…) se tivesse deslocado a Itália, nas especialíssimas circunstâncias descritas (48 horas de viagem, num espaço de 5 dias, com todo o incómodo e desgaste que daí decorreria), não se recordasse do meio de transporte utilizado em tal viagem, num depoimento prestado aprox. 2 anos depois da viagem? 67 - Ora, poucas dúvidas restam que, face às regras da experiência comum (critério decisivo para esta ponderação, em face da total ausência de demonstração probatória nos autos, que demonstrem o contrário), a resposta será negativa para todas estas questões. 68 - E sendo a resposta negativa, então devemos presumir que, de facto, o Réu e a Dra. (…), não se deslocaram a Itália, entre os dias 20 e 24 de Setembro de 2017, para que o falecido pai outorgasse a procuração nas circunstâncias descritas, ou seja, perante a advogada, que teria lido e explicado em voz alta, o sentido da procuração (FNP viii), xiii)). 69 - No ponto 26 dos Factos Provados, decidiu-se que o Autor … (cedeu a sua quota ao, ora, Réu, seu irmão) e utilizou para o efeito os serviços da Dra. (…). 70 - Como consta da fundamentação da sentença, o Autor (…) quando outorgou a procuração (em tudo similar à de seu pai … e para conclusão de negócio, absolutamente, igual), tratou-se de «documento cujo texto foi enviado por mail àquele e pelo seu irmão e aqui Réu, acompanhado de texto de um Termo de Autenticação, tudo foi assinado e devolvido pelo mesmo autor, e pela mesma via, tendo posteriormente sido elaborado o Termo de Autenticação pela Dra. …» (cfr. doc. junto com requerimento dos Autores de 30/03/2023, Ref.ª 45173906). 71 - Ou seja, conforme é reconhecido na sentença, nenhum contacto direto existiu entre o Autor (…) e a Dra. (…), no procedimento adotado para a outorga da procuração. 72 - Acresce que, o Autor (…) quando instado acerca do seu, eventual, relacionamento profissional (ou outro) com a Dra. (…), referiu o seguinte: «A primeira vez que vi a advogada foi aqui neste mesmo processo.» 73 - Logo, o Autor (…) jamais utilizou os serviços da Dra. … (tendo-o feito, sim, o seu irmão …), para a cedência de quotas. 74 - Logo, sempre esse facto (correspondente ao ponto 26 dos Factos Provados), deverá ser considerado um Facto Não Provado, substituindo o mesmo por outro, por relevante, que traduza a prova produzida: «O Autor (…) não conhecia a Dra. (…), tendo a intervenção desta no negócio de cessão de quotas, ocorrido, no âmbito do seu relacionamento profissional com o Réu (…)». 75 - A douta sentença a quo, considerou provado que: «15 - A cessão foi combinada entre o Réu e o seu pai quando ambos já eram os únicos sócios daquela sociedade (artigo 112º da contestação)», e que, «21 - O de cujus teve consciência do conteúdo e consequências da assinatura da procuração passada ao Réu (artigo 156º da contestação)», e que, «22 – (…) aceitou, de livre vontade, alienar a quota que detinha na sociedade ao Réu (artigo 119º da contestação)», e que, «42 – (…), ao ceder a quota ao Réu, sabia que este ficaria a deter o controlo total dessa sociedade (artigo 119º da contestação)». 76 - Ou seja, resulta demonstrado, no entender da decisão, ora, impugnada, que o falecido (…) teve total e esclarecida consciência do “conteúdo e consequências da assinatura da procuração passada ao Réu”, ou seja, que conferiu poderes ao seu filho (…), para vender a quem quisesse e pelo preço que entendesse, a quota de 60% que detinha na sociedade (…), Lda. (cfr. ponto 10 dos Factos Provados). Por outro lado, resulta demonstrado nos autos que o negócio em causa, concluiu-se pelo valor nominal de € 48.000,00, alegadamente, com a concordância de… (cfr. ponto 2 dos Factos Provados). 77 - Como é, aliás, confirmado na própria contestação (cfr. artigos 122º a 124º), quando se refere, expressamente, que o falecido (…) «exprimiu e manifestou a sua vontade quanto à celebração do negócio, nos precisos termos em que viesse a ser concretizada, quer na procuração, quer nos termos e cláusulas do contrato de cessão de quotas». Em resumo, 78 - Segundo a decisão a quo, o (…) quis vender a quota ao filho, teve plena consciência que a procuração que subscrevera, permitia e podia ter como consequência a venda a terceiros, pelo preço que quisesse, mas, de facto, a sua vontade passava por concretizar o negócio, pelo valor nominal (€ 48.000,00). Quanto ao fundamento de tal decisão, 79 - «No respeitante ao n.º 15 foram tidas em consideração essencialmente as declarações de parte do Réu, das quais decorre o aqui feito constar.» Ora, 80 - Se a valoração das declarações de parte – em regra, meramente confirmativas do vertido nos articulados –, deverá sempre ser objecto de uma especial cautela, o caso concreto sub judice, ilustra, à evidência, como umas declarações de parte podem ser contraditórias, vagas, inconclusivas, inverosímeis e por todas essas razões, especialmente adequadas a serem inócuas para a tese que se pretende fazer valer. 81 - E se esta caracterização das declarações de parte do Réu é transversal a toda a matéria nuclear, é especialmente bem ilustrada, no que tange ao negócio “combinado”, ao seu racional e aos exatos termos do mesmo. 82 - Aquando do seu depoimento, não só o Réu vai evoluindo, despudoradamente, no que tange ao valor do negócio (€ 48.000,00, € 1.000.000, € 2.000.000, € 4.000.000 …), em função das perguntas e sugestões que lhe eram feitas, sem que, mesmo assim, se entenda o que pretende alegar. 83 - Como refere, numa estória nunca alegada, que o pai lhe exigiu (?...) uma garantia de recebimento de € 150.000,00 (cfr. documento de “garantia”, sem data e com manifestos sinais de montagem, junto com requerimento de 17/02/2020), olvidando que o pai tinha direito, só pelos dividendos da quota a € 240.000,00/ano. 84 - Como, por outro lado, e ao contrário do que é alegado no artigo 112º da contestação e que corresponde ao ponto 15 dos Factos Provados, refere expressamente que a negociação viria de 2015 (cfr. …, min. 23:54). 85 - Tal como diria, posteriormente, que já viria de 2016… (cfr. …, min. 01:27:53). 86 - O que tudo só pode ter como reflexo, que não resultou demonstrada, a matéria constante do ponto 15, que circunscrevia a “combinação da cessão” ao período entre Março e Setembro de 2017 (período em que já eram os únicos sócios, em função da cessão do irmão, ora Autor, …). 87 - Acresce, ainda, que as declarações do R. e a restante prova produzida, tornam, também, absolutamente, inverosímeis as conclusões factuais, vertidas nos pontos 21, 22 e 42 de Factos Provados. 88 - A este propósito, a douta sentença a quo, começa por realçar dois aspetos que entende fundamentais para a sua conclusão: a) O facto de (…) estar mentalmente capacitado; b) A compreensão do português pelo falecido, logo, compreensão do negócio que estava a efetuar («(…) teria compreendido o negócio que estava a efetuar (tendo em conta que era cidadão italiano e a documentação se encontra redigida em português)») (in pág. 13 da decisão). Precise-se quanto a esta matéria, que, 89 - O que os Autores referiram é que «em virtude da doença oncológica que se agravou, seriamente, no último ano de vida, encontrava-se, recorrentemente, em condições de debilidade que não lhe permitiam ter consciência do que alguém lhe pedisse para assinar», «sendo que, certamente, se um dos filhos lhe pedisse tal, a confiança que neles depositava, nunca lhe levaria a escrutinar o que subscrevia» e que «a referida doença oncológica, levou-o a fazer repetidos e longos tratamentos no Hospital – nomeadamente, entre Agosto de 2017 e Abril de 2018 –, onde, regularmente, ficava internado» (cfr. artigos 28º e 30º da P.i.), matéria que viria a ser dada como provada e que, em face disso era possível, que na data de outorga, estivesse internado, com reduzido entendimento do que, eventualmente, lhe fosse solicitado e que «a procuração utilizada para concretização do negócio, não reflete a vontade do falecido (…)», «que a ter assinado o documento perante alguém – o que se duvida fundadamente –, foi, certamente, enganado, quanto ao seu conteúdo», «ou, pelo menos, do seu teor não teve capacidade de discernimento» (cfr. artigos 35º a 37º da P.i.). 90 - Até porque, o documento em causa «nunca lhe foi lido e explicado em voz alta, pela Dra. (…)» (cfr. artigo 38º da P.i.). 91 - Ou seja, as possibilidades da falta de entendimento do documento assentava, na tese dos Autores, na doença que sofria e que necessariamente o fragilizava (questão que para lá de estar provada é de perceção comum) no relacionamento com os filhos e no facto de que, além do mais, nunca tal documento lhe teria sido explicado pela advogada. 92 - Ora, da apreciação da matéria de facto resulta não só provado o quadro oncológico, com agravamento no último ano de vida (cfr. ponto 16 dos factos provados) e, consequentemente, a possibilidade de momentos de entendimento reduzido, como, também, ficou considerado não provado, que a Dra. (…) lhe tenha lido e explicado em voz alta o teor da procuração, em causa. 93 - Já quanto à compreensão do português, importa também precisar que o que está em causa, é a compreensão de um documento técnico, que até pela particularidade de prever a possibilidade de “negócio consigo mesmo”, encerra dificuldades de entendimento, mesmo para quem seja português. 94 - Ora, se podíamos, no âmbito da prova produzida, questionar o grau de entendimento de português do falecido (…), dúvidas não restam que o entendimento, eventualmente, existente, mesmo na tese do Réu, não permitiria apreender o real alcance da procuração em causa. 95 - A não ser, obviamente, que alguém (maxime, a advogada que efetuou o Termo de Autenticação) lhe tivesse explicado o mesmo. 96 - Sucede contudo que, quanto a isso, a sentença nega essa possibilidade («pode, em abstrato, admitir-se que o mesmo tenha sido integralmente explicado ao falecido, o que, como adiante com mais detalhe se referirá, não entendemos ter sido demonstrado», cfr. pág. 14 da decisão a quo), o que está traduzido no facto xx), considerado não provado «Todo o conteúdo e alcance da procuração foi lido e transmitido pela Dra. …, advogada, a … (artigo 157º da contestação)»). 97 - Perante estes factos, resulta como muito verosímil que o falecido (…), confrontado com documentação vária para assinar e confiando no seu filho, poderia, nesse momento, assinar a procuração, sem escrutinar o seu conteúdo (cfr. …, min. 30:17). 98 - Cotejados todos estes factos e de acordo com o raciocínio lógico que dos mesmos se infere, sempre seria de presumir que o falecido não assinaria tal procuração ou, se o fez, não tinha consciência do conteúdo e consequência da assinatura da procuração passada ao Réu, atentas tais especificas circunstâncias. 99 - Ainda, quanto a esta matéria, para lá da análise que se deverá fazer das declarações do Réu e da testemunha … (recorrentemente, vagas, contraditórias e imprecisas e muitas vezes, lamenta-se referi-lo, alteradas em função da intervenção do Exmo. Sr. Dr. Juiz) e da consequente credibilidade que as mesmas merecem, existe um trecho, correspondente a uma declaração do Réu, que por impressiva, merece reprodução: [01:13:33] Mandatário dos Autores (Dr. …): Pronto, mas exclusivamente a procuração podia vender a quota a mim, se foi isto que o senhor entendeu. Não podia, só podia vender a si? [01:13:45] Meritíssimo Juiz: O senhor lembra-se disso, ou está a dizer isso agora? [01:13:47] (…): Não vai fazer uma procuração para vender ao vizinho. 100 - Ou seja, o próprio Réu (para lá de nunca esclarecer se ele próprio, entendeu o sentido da procuração), quando questionado acerca desta matéria e de forma espontânea, referiu que o pai «não vai fazer uma procuração para vender ao vizinho». 101 - Que é, exatamente, o que foi feito e o que o próprio filho reconhece que não faria !!! 102 - Resultado a que, diga-se, também se chega, com mais um exercício presuntivo: se não podemos presumir, face às regras de experiência comum, que uma pessoa como o (…), íntegra, reta, amiga dos seus filhos, com as suas capacidades plenas, cederia a quota nas condições descritas: a) Desfazendo-se da sua única fonte de rendimentos, sem qualquer garantia de recebimento de valores, a posteriori, indispensáveis ao seu sustento, e b) Consubstanciadora de um tratamento manifestamente desigual dos filhos, a quem, nem sequer, contara, apesar da excelente relação, então, 103 - Devemos concluir que não o fez de forma esclarecida e/ou não teve consciência do alcance do que assinou, fosse em face de fragilidades próprias derivadas da doença, fosse em face das circunstâncias (confiança, indução em erro, etc.), fossem ambas. 104 - Assentes estes factos, também a matéria ínsita nos FP 42, não poderá ser considerada provada. 105 - Em resumo, sempre a matéria constante dos pontos 15, 21, 22 e 42 do Factos Provados, deverá ser considerada como Não Provada. 106 - A douta sentença a quo considerou provado que: «40 – O progenitor (…) ajudou os seus filhos, tendo auxiliado o Autor (…) na sua instalação em Portugal, no setor da gelataria e pizaria, o qual tinha como seu sócio o seu irmão (e igualmente aqui Autor) …, como o fez com o ora Réu, que, similarmente, tinha como seu sócio o seu irmão (…), que ficou a deter participações em duas sociedades e a receber proveitos, pelo menos, da … (artigos 186º a 190º da contestação).» Ora, 107 - O que está assente nos autos, de forma pacífica e consensual, é que o Autor (…) recebeu um empréstimo do pai, no valor de € 100.000,00 /€ 120.000,00 , para início da sua atividade em Portugal. 108 - Com esse valor, criou a sociedade (…), Lda. (em 1987) e, depois de ter oferecido ao irmão e, ora, Réu uma quota de 10%, acabou por dar ao pai a totalidade da sociedade (em 1993), sem qualquer contrapartida, quando a mesma, já possuía património imobiliário e valia, certamente, muitíssimo mais do que o valor, inicialmente, emprestado. 109 - Ou seja, em termos líquidos, o Autor (…) deu (muito) mais ao pai do que recebera no início, para lá da oferta que viria a fazer ao irmão (…), ora Réu. 110 - Por seu turno, na sequência da entrega da sociedade ao pai, as quotas foram redistribuídas, tendo o pai dado mais 20% ao Réu e 10% ao Autor (…). 111 - Tal significa que, em termos simplistas, o pai deu ao filho (…) uma quota que lhe assegurou, durante cerca de 20 anos, um rendimento de € 40.000,00/ano, a que acresceria o valor de venda da quota (€ 250.000,00 em Março de 2017). 112 - Por fim e em relação ao Réu, o pai disponibilizou-lhe, dessa maneira, uma quota de 20% (que atento o valor mínimo da sociedade, FP 28, ascende a € 900.000,00) e que lhe assegurou, durante mais de 20 anos, pelo menos (as referências múltiplas do Réu a pagamentos por fora, fazem crer, que os valores seriam superiores), um rendimento de € 2.400.000,00 (€ 120.000,00 x 20 anos), a que acresceu ainda, o generoso salário que auferia como gerente. 113 - E assim, sempre o facto provado com o n.º 40, não traduz a realidade (não existiram ajudas similares), pelo que, a considerar tal matéria relevante (o que, diga-se, é duvidoso) sempre deverá corresponder ao suporte probatório constante dos autos. 114 - Nestes termos, deverá ser considerado não provado tal facto e provado que: O progenitor (…) ajudou os seus 3 filhos, tendo emprestado ao Autor (…), o valor de € 100.000,00 / € 120.000,00 que lhe viria a ser devolvido poucos anos depois, através da entrega de património significativamente mais valioso; quanto ao filho (…), aquando da entrega da sociedade, pelo Autor (…), doou-lhe uma quota de 10% (vendida em 2017, por € 250.000,00 e que assegurou durante 20 anos, dividendos anuais de € 40.000,00); finalmente, quanto ao filho (…), doou-lhe uma quota de 20% da mesma sociedade (com os rendimentos, pelo menos, proporcionais, ao do irmão … e com um valor mínimo de € 900.000,00), a que acresceu o salário que auferia como gerente da (…), Lda.. 115 - Assentes estes factos, sempre (…) terá assinado o documento, sem que a sua vontade declarada correspondesse à vontade real, o que leva, também, com esse fundamento, à anulabilidade do negócio (cfr. artigo 247.º do CC), ou mesmo, à subsunção dos factos ao n.º 1 do artigo 253.º do CC (Dolo) ou, a considerarmos a possibilidade vertida na decisão a quo (pág. 19 da sentença), à mesma consequência, com base na coacção moral (cfr. artigo 255.º do CC). Certo é que, 116 - Com qualquer um desses fundamentos, sempre a consequência de tais factos será a mesma, a procedência do pedido dos Autores, em face da verificação de um vício da vontade que inquina a declaração do (…), levando assim à consequente anulação do negócio de cessão de quotas. 117 - Por outro lado, dado como provado que a Dra. (…) não se deslocou a Itália, nem leu e/ou explicou em voz alta, o conteúdo da procuração, também tais factos fulminam com a nulidade de tal instrumento e consequentemente, o negócio de cessão de quotas, concretizado posteriormente. 118 - De facto, a obrigatoriedade do reconhecimento da assinatura, na presença do outorgante e a explicação do documento, são requisitos essenciais para que dúvidas não restem sobre o efetivo entendimento do mesmo e consequente validade da procuração. 119 - Não respeitados os mesmos, não está assegurado o seu entendimento e, como tal, revela-se um documento inidóneo para concretizar qualquer negócio. 120 - Razão porque, também, com este fundamento, a ação terá que proceder. Acresce que, 121 - Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, é nula a sentença quando «o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». 122 - Tal comando deve ser articulado com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, onde se dispõe que «o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras». 123 - In casu, os Autores, em 08/01/2021, requereram a ampliação do pedido, no sentido de ser «declarada a nulidade da cessão de quotas efetuada, atento o facto da Procuração, que conferiu poderes ao Réu (…), para ceder a si mesmo a quota, com o valor nominal de € 48.000,00 (quarenta e oito mil euros), da sociedade (…), Lda., ser nula por violação do n.º 2 do artigo 116.º do Código do Notariado», atenta a violação do n.º 2 do artigo 116.º do Código do Notariado, que prescreve que «as procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial». 124 - Sucede que a procuração sub judice (cfr. pontos 5, 6, 7, 8 dos Factos Provados) foi formalizada por advogada. Pelo que, 125 - Subsidiariamente, no mesmo requerimento, os Autores requereram o seguinte: «(…) caso assim não se entenda (…)», «atento o princípio de economia processual que, ante a instrumentalidade do processo relativamente ao direito material, converge no sentido de que o resultado seja atingido com a maior economia de meios, dirimindo no processo o maior número de litígios e tendo em conta que estamos perante uma invalidade que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarado oficiosamente pelo Tribunal (cfr. artigo 286.º do CC), requer-se a V. Exa. que declare, ex officio, a referenciada nulidade, com o consequente cancelamento do negócio sub judice e demais consequências processuais». 126 - Em 18/05/2021, o requerido foi objeto de despacho judicial, em que, com os fundamentos aí aduzidos, não se admitiu a ampliação do pedido. 127 - Já em relação ao pedido subsidiário, determinou-se que «se vier a considerar-se que ocorre uma nulidade de que deva oficiosamente tomar-se conhecimento, tal será necessariamente feito em sede de sentença, não cabendo, nessa conformidade, decidir agora a esse respeito, em resultado do requerido pelos autores». 128 - Sucede que, percorrida a douta sentença a quo, inexiste qualquer pronúncia sobre o requerido. 129 - Ora, dúvidas não restam que a violação do normativo invocado (n.º 2 do artigo 116.º do Código do Notariado) é fulminada com a nulidade de tal ato e consequentemente tal é extensivo à cessão de quotas, viabilizadas com tal ato. 130 - Dúvidas, também, não se colocam, que estamos em face de uma nulidade, que é de conhecimento oficioso. 131 - De facto, nos termos do artigo 286.º do CC «a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal». 132 - Ora, a circunstância do Tribunal a quo não ter conhecido de uma causa de nulidade de conhecimento oficioso implica a nulidade da decisão por omissão de pronúncia (cfr. artigo 615.º, n.º 1, alínea d)). Por fim, 133 - Nos termos da alínea d) da Decisão, o Tribunal condenou «o Réu a pagar aos herdeiros de (…), a quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença, que se fixa em valor não inferior a € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), a título de distribuição de lucros, inerentes à propriedade da quota, objeto do presente processo, correspondentes ao exercício de 2017 e até à data de cancelamento do registo, supra peticionado. «A consequência desta decisão redunda também uma obrigação de restituição de valores, nos termos peticionados na petição inicial. «No entanto, logo ali se requeria que os mesmos fossem relegados para ulterior liquidação. «E o certo é que, embora se tenha demonstrado no decurso da causa a existência de alguns desses valores, possivelmente os mesmos estarão calculados por defeito e a posição assumida na petição inicial era a de não conhecimento integral desses valores e, como tal, não alegação dos mesmos. Nessa conformidade, entende-se que, na sequência do peticionado, deve a liquidação destes montantes ser relegada para posterior incidente (note-se que sendo indicado na p.i. um montante mínimo de € 5.000,00 para a distribuição de lucros, nada obsta a que se fixe no dispositivo da sentença outro montante mínimo, superior, não importando tal uma condenação em montante superior ao pedido, posto que se está perante montante a apurar em sede de incidente de liquidação de sentença)». 134 - Esta decisão tem como suporte fáctico, o ponto 31 dos Factos Provados que refere que «Tais restaurantes, em função da afluência que apresentam, durante o ano, têm um resultado anual líquido, de valor não inferior a € 400.000,00 (quatrocentos mil euros)». 135 - Na realidade, a quota de 60%, no pressuposto de um valor não inferior a € 400.000,00, ano, a título de distribuição de lucros, sempre teria direito ao valor anual de € 240.000,00. Ora, 136 - Se a sentença foi prolatada em dezembro de 2024 e a condenação, inclui o exercício de 2017 e anos subsequentes, significa que estamos perante 8 exercícios. 137 - Multiplicando o n.º de exercícios (8) pelo valor devido pela quota de 60% (240.000,00), atingimos um total mínimo de € 1.920.000,00 e não o montante de € 400.000,00, constante da decisão a quo. 138 - Razão porque, deverá ser revogado tal trecho condenatório, no que tange à condenação “em valor não inferior a € 400.000,00”, substituindo-se por: «d) Condena o Réu a pagar aos herdeiros de (…) a quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença, que se fixa em valor não inferior a € 1.920.000,00 (um milhão e novecentos e vinte mil euros), a título de distribuição de lucros, inerentes à propriedade da quota, objeto do presente processo, correspondentes ao exercício de 2017 e até à data de cancelamento do registo, supra peticionado». Termos em que, com os mais de Direito aplicáveis e sempre com o douto suprimento de V. Exa., deverá o recurso interposto pelo Réu ser considerado improcedente, por não provado, confirmando-se, assim, a sentença recorrida, in totum, ou, subsidiariamente, se assim não se entender, considerado procedente, por provada, a ampliação do objeto do recurso, ora deduzida pelos Autores e, consequentemente, os pedidos deduzidos pelos Autores. Desse modo, fará V. Exa., a costumada JUSTIÇA». I.4. O recurso e a ampliação de recurso foram recebidos pelo tribunal a quo. Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC). II.2. As questões que cumpre decidir são as seguintes: A. Recurso do Réu 1- Avaliar qual a norma de conflitos aplicável e o ordenamento jurídico competente para regular a questão de saber se o contrato de cessação de quota é anulável por falta de consentimento dos autores. 2 –Impugnação da decisão de facto. 3 – Reapreciação do mérito da decisão. B. Ampliação do recurso 4 – Nulidade da sentença. 5 – Impugnação da decisão de facto. 6 – Reapreciação do mérito da causa. II.3. FACTOS II.3.1. O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade: «1- Os Autores e o Réu (irmãos) são herdeiros de (…), falecido em 27/04/2018, em Itália, onde residia (artigo 1º da p.i.). 2- Os Autores, após a morte do seu pai, tomaram conhecimento, através do Réu, de que o falecido pai lhe teria cedido a quota, com o valor nominal de € 48.000,00, correspondente a 60% do capital social, que detinha na sociedade (…), Lda., NIPC (…), com sede na Av. (…) – Edifício (…), r/c – (…), Portimão, o que ocorrera por esse mesmo valor nominal de € 48.000,00 (artigos 2º, 16º e 20º da p.i.). 3- Com tal cedência, o Réu ficou titular da totalidade do capital social da sociedade e designado único gerente (artigo 3º da p.i.). 4- Consultadas, posteriormente, as inscrições tabulares, apurou-se que tal cessão foi registada na CRC, em Portimão, em 14 de novembro de 2017 (artigo 4º da p.i.). 5- Tendo como suporte documental, o contrato de cessão de quotas de 10 de novembro de 2017 (junto como doc. n.º 7 da p.i.), subscrito pelo Réu em nome próprio (como cessionário) e em representação de seu pai (como cedente), com base numa mencionada procuração subscrita pelo cedente, que não se encontrava anexa (artigos 5º e 6º da p.i.). 6- Consultado o termo de reconhecimento junto ao registo, constatou-se que a procuração teria sido outorgada em 22 de setembro de 2017 (artigo 7º da p.i.). 7- Com Termo de Autenticação de (…), advogada (artigo 8º da p.i.). 8- A referida procuração (que veio a ser junta aos autos com o requerimento de 25 de setembro de 2019), encontra-se registada no Portal da Ordem dos Advogados, sob o registo n.º … (artigo 9º da p.i.). 9- Sendo o seu conteúdo desconhecido dos Autores (artigo 10º da p.i.). 10- Através da procuração, o de cujus atribuiu poderes ao procurador, ora Réu, seu sócio e seu filho, para que este o representasse na celebração do negócio, pelo preço e condições que entendesse, podendo celebrar negócio consigo próprio (artigos 130º a 134º da contestação). 11- Não foi solicitado aos Autores o consentimento, sob qualquer forma, para a realização do negócio referido em 2 e 3 destes factos provados, o que jamais seria concedido pelos mesmos, por não ser sua intenção concedê-lo (artigos 13º a 15º da p.i.). 12- Após o conhecimento e apuramento de todos estes factos e ultrapassado o período subsequente ao falecimento do pai, os Autores contactaram o Réu no sentido de esclarecer toda a situação e repor o que consideravam ser a legalidade (artigo 41º da p.i.). 13- Apesar de várias insistências, o Réu recusou-se a “anular” o negócio efetuado (artigo 45º da p.i.). 14- Situação que foi considerada totalmente inaceitável pelos Autores (artigo 47º da p.i.). 15- A cessão foi combinada entre o Réu e o seu pai quando ambos já eram os únicos sócios daquela sociedade (artigo 112º da contestação). 16- (…) sofria de doença oncológica, que se agravou no último ano de vida, e o levou a fazer repetidos tratamentos no Hospital – nomeadamente, entre agosto de 2017 e abril de 2018 –, onde, regularmente, ficava internado (artigos 28º e 30º da p.i.). 17- Apesar de o de cujus padecer de uma doença oncológica na data do seu falecimento, tal doença não afetou as suas capacidades cognitivas, discernimento, plena vontade e livre consciência, e gozou das suas plenas capacidades, até ao fim dos seus dias (artigos 125º, 147º e 151º da contestação). 18- E renovou a carta de condução em 15 de fevereiro de 2017 (artigo 152º da contestação). 19- E possuía licença de porte de arma de caça desportiva com validade até 2021 (artigo 153º da contestação). 20- A sua habilitação mental era conhecida dos seus familiares, amigos e dos que com ele conviviam (artigos 154º e 155º da contestação). 21- O de cujus teve consciência do conteúdo e consequências da assinatura da procuração passada ao Réu (artigo 156º da contestação). 22- (…) aceitou, de livre vontade, alienar a quota que detinha na sociedade ao Réu (artigo 119º da contestação). 23- (…) já havia antes tratado com a Advogada Dra. (…) de outros assuntos seus (artigos 126º a 128º da contestação). 24- Existia há anos uma relação de confiança entre o de cujus e a Dra. (…), que se manteve até ao fim da vida do referido … (artigo 129º da contestação). 25- O Autor (…) cedeu a sua quota ao ora Réu, seu irmão – (…) –, na sociedade (…), no dia 21 de março de 2017 (por contrato cuja cópia constitui o doc. n.º 3 da contestação), pelo respetivo valor nominal (artigos 169º a 171º da contestação). 26- E utilizou para o efeito os serviços da Dra. … (artigo 182º da contestação). 27- A procuração outorgada, para o efeito, pelo autor (…) tratou-se de documento cujo texto foi enviado por e-mail àquele e pelo seu irmão e aqui réu acompanhado do texto de um termo de autenticação, tudo foi assinado e devolvido pelo mesmo autor, e pela mesma via, tendo posteriormente sido elaborado o termo de autenticação pela Dra. … (requerimento dos Autores de 29.03.2023). 28- A sociedade (…), Lda. tem no seu património imobiliário o seguinte: - Frações “A” a “H”, destinadas a comércio, do prédio urbano constituído e regime de propriedade horizontal, denominado “Edifício (…)”, sito na Av. (…), em Portimão, inscrito na respetiva matriz predial urbana, sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), freguesia de (…), concelho de Portimão; - Lote de terreno para construção urbana, sito na Zona Industrial de (…), Lote (…), Portimão, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), freguesia de (…), concelho de Portimão; - Fração autónoma “D”, destinada a comércio, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “Edifício (…)”, sito na R. (…), Bloco B, (…), Portimão, inscrito na respetiva matriz predial urbana, sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), freguesia de (…), concelho de Portimão, cujo valor não é inferior a € 4.500.000,00 (artigos 21º, 22º e 25º da p.i.). 29- Todo o património da sociedade (…), Lda. encontra-se em Portugal (artigo 38º da resposta). 30- A tal património, acrescem dois estabelecimentos comerciais de restauração, denominados Restaurante Pizzeria (…) e Buffet (…), sitos no Edifício (…), (…), na Av. (…), em Portimão, junto à praia (artigo 23º da p.i.). 31- Tais restaurantes, em função da afluência que apresentam, durante o ano, têm um resultado anual líquido, de valor não inferior a € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) (artigo 24º da p.i.). 32- Os Autores desconheciam o exato resultado anual da sociedade (…), Lda. em 2017, as suas regras societárias e, nomeadamente, a concreta política de distribuição de lucros, sabendo, contudo, porque tal lhes foi transmitido pelo Réu e pelo próprio pai, entretanto falecido, que todos os anos, era entregue ao pai determinado montante, a título de distribuição de lucros, atento o resultado líquido anual (artigos 54º e 55º da p.i.). 33- Desde a constituição da sociedade até ao seu decesso, (…) foi residente na Itália, mormente em (…), Via (…), n.º 2, Bergamo (artigo 115º da contestação). 34- A última deslocação do falecido pai a Portugal, remonta a julho de 2016 (artigo 32º da p.i.). 35- O Autor … é o único dos filhos de … que vive em Itália (artigo 181º da contestação). 36- O Autor (…) e o Réu (…) residem em Portugal (artigo 39º da resposta). 37- A sociedade (…), Lda. tem a sua sede em Portugal, onde opera exclusivamente (artigos 37º e 40º da resposta). 38- Há anos que era o ora Réu quem geria em exclusivo a sociedade por quotas (…), Lda., tendo-se o seu pai reconduzido a ser um gerente nominal (artigos 113º, 114º, 118º, 137º e 174º da contestação). 39- O Autor (…) era mero sócio sem acompanhamento ou participação nos assuntos da sociedade (artigo 173º da contestação). 40- O progenitor (…) ajudou os seus filhos, tendo auxiliado o Autor (…) na sua instalação em Portugal, no setor da gelataria e pizaria, o qual tinha como sócio o seu irmão (e igualmente aqui Autor) …, como o fez com o ora Réu, que, similarmente, tinha como sócio o seu irmão (…), que ficou a deter participações em duas sociedades e receber proveitos, pelo menos, da … (artigos 186º a 190º da contestação). 41- Posteriormente, enquanto o Réu se manteve no setor da restauração, o Autor (…), alienou a sua participação na sociedade que detinha, dedicando-se posteriormente ao ramo naval e o Autor (…) achou por bem alienar as suas participações em ambas as sociedades (artigos 191º e 192º da contestação). 42- (…), ao ceder a quota ao Réu, sabia que este ficaria a deter o controlo total dessa sociedade (artigo 119º da contestação). 43- (…) adquiriu a seu pai – (…) uma casa em Itália que este último possuía, sem qualquer consentimento dos demais irmãos e sem que qualquer dos irmãos tivesse causado qualquer tipo de problema (artigos 68º a 70º da contestação).» II.3.2. O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade: «i) O pai dos Autores e Réu jamais pretendeu ceder a referida quota, nas condições em que a mesma se verificou (artigo 18º da p.i.). ii) A quota era um património que – à imagem dos seus atos, enquanto vivo, de inatacável retidão – sempre pretendeu dividir pelos 3 filhos (artigo 19º da p.i.). iii) (…), manifestamente, não desejava e nem sequer toleraria, provocar com o negócio uma ofensa da legítima dos filhos preteridos traduzida num prejuízo de largas centenas de milhares de euros (artigos 26º e 27º da p.i.). iv) O cedente (…) jamais recebeu o valor nominal referenciado na cessão ao Réu (artigo 20º da p.i.). v) Em virtude da doença oncológica encontrava-se, recorrentemente, em condições de debilidade que não lhe permitiam ter consciência do que alguém lhe pedisse para assinar (artigo 28º da p.i.). vi) Sendo que, certamente, se um dos filhos lhe pedisse tal, a confiança que neles depositava, nunca lhe levaria a escrutinar o que subscrevia (artigo 29º da p.i.). vii) Sendo, pois, muito possível que se encontrasse no Hospital no referido dia 22 de setembro ou, se em casa, com reduzido entendimento do que, eventualmente, lhe fosse solicitado (artigo 31º da p.i.). viii) A advogada (Dra. …) que subscreveu o Termo de Autenticação (atestando, necessariamente, a leitura em voz alta e a compreensão do presuntivo autor da procuração), nunca se deslocou a Itália, para se encontrar com o sr. … (artigo 33º da p.i.). ix) (…) nem sequer dominava a língua portuguesa, de forma a entender, com facilidade, a explicação de um documento técnico, como é uma procuração (artigo 34º da p.i.). x) A procuração utilizada para concretização do negócio não reflete a vontade do falecido … (artigos 35º e 43º da p.i.). xi) (…), a ter assinado o documento perante alguém, foi enganado quanto ao seu conteúdo (artigo 36º da p.i.). xii) Ou, pelo menos, do seu teor não teve capacidade de discernimento (artigo 37º da p.i.). xiii) Que nunca lhe foi lido e explicado em voz alta pela Dra. (…), ao contrário do que consta do Termo de Autenticação (artigos 38º e 39º da p.i.). xiv) A vontade do pai era a de integrar a quota em questão no património a partilhar (artigos 43º e 44º da p.i.). xv) O Réu, quando confrontado pelos Autores quanto ao negócio realizado, propôs apenas a compensação com património existente em Itália, incluído nos bens a partilhar, de valor mais reduzido (artigo 46º da p.i.). xvi) Como o de cujus residia em Itália, foi necessário outorgar procuração a conferir os poderes necessários para o Réu registar o negócio celebrado junto da respetiva conservatória de registo comercial (artº 120º da contestação). xvii) Por este motivo, a pedido do de cujus a Dra. (…) deslocou-se a Itália para visitar o sr. (…), juntamente com o Réu, a qual traduziu o conteúdo da procuração e do respetivo termo de autenticação que foram lidos e devidamente explicados em voz alta pela ante mencionada Advogada (artigo 121º da contestação). xviii) Até à conclusão havida com a celebração do negócio jurídico em análise o de cujus, reuniu com a retro aludida Advogada no seu escritório em Portimão, seguramente, mais de uma vez, a quem exprimiu e manifestou a sua vontade, quanto à celebração do negócio, nos precisos termos em que vieram a ser concretizados, quer na procuração, quer nos termos e cláusulas do contrato de cessão de quotas (artigos 122º a 124º da contestação). xix) O de cujus sempre teria conhecimento da cessão de quotas havida e dos seus termos respetivos, porque adveio entre um ato (cessão de quotas) e o falecimento do progenitor um exercício fiscal, de 2017, e a entrada num outro subsequente, 2018 (artigos 135º, 136º e 138º da contestação) xx) Todo o conteúdo e alcance da procuração foi lido e transmitido pela Dra. (…), Advogada, a … (artigo 157º da contestação). xxi) Quando o Réu alienou as suas participações ao Autor (…), tal aquisição foi efetuada, após ter conferenciado com os irmãos e com integral respeito da vontade do pai, o que, neste caso, não se verificou (artigos 44º a 47º da resposta)». II.4. Apreciação do objeto do recurso II.4.1. Ordenamento jurídico competente Através da presente ação os autores impugnaram a validade do contrato de cessão de quotas outorgado entre o réu (…) e seu pai, (…), invocando, em primeira linha, que aquele negócio jurídico não foi por eles consentido, ou seja, que houve violação do regime previsto no artigo 877.º do Código Civil, o qual proíbe a venda a filhos ou netos sem o consentimento dos outros filhos ou netos. Não sendo controvertido que a situação em causa nos autos tem pontos de contacto com mais de um ordenamento jurídico, na medida em que o negócio jurídico impugnado (contrato de cessão de quota) foi celebrado em Portugal mas os respetivos outorgantes têm nacionalidade italiana e um deles vivia em Itália – colocou-se, desde logo, a questão de saber qual o ordenamento jurídico competente para regular aquela concreta questão jurídica suscitada pelos autores – a invalidade do contrato de cessão de quotas outorgada entre o pai e o irmão de ambos, por falta de consentimento dos autores para a outorga do contrato. Impunha-se, então, e como fez o julgador a quo, determinar, dentro do regime de direito internacional privado contido no Código Civil, a regra de conflitos que “diga” qual das leis em contacto com a situação supra descrita é a lei aplicável ou a lei competente para decidir daquela concreta questão jurídica. O tribunal de 1ª instância ponderou a possibilidade de aplicação das normas constantes dos artigos 41.º (relativa às obrigações provenientes de negócios jurídicos), 57.º (relativa às relações entre pais e filhos) e 62.º, 63.º e 64.º (relativas a questões em matéria sucessória), tendo considerado que no caso em apreço não é aplicável qualquer das normas de conflitos relativas à sucessão porque «o pai dos autores e do réu encontrava-se vivo à data do negócio e que este não constituiu uma verdadeira e própria disposição para efeitos sucessórios», nem o artigo 57.º porque a norma ali contida «tem em vista, apenas, matérias como a filiação, a adoção ou questões de reconhecimento de direitos emergentes da relação de filiação, mas não situações em que está em causa uma venda feita por um pai a um filho», concluindo que no caso concreto estamos perante obrigações contratuais pelo que a norma geral de direito internacional aplicável tem de se relacionar com a regulação dos contratos, ou seja, que a regra de conflitos a convocar é o artigo 41.º do CC, embora à mesma se sobreponha o que dispõe o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de junho de 2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Discorda o apelante, sustentando que a norma de conflitos aplicável ao caso é o artigo 57.º do Código Civil porque aquilo que está em causa é saber se o artigo 877.º do Código Civil, designadamente no que respeita à exigência de consentimento dos (outro) filhos, é, ou não, uma questão que se insere no âmbito das “relações entre pais e filhos”. Argumenta o recorrente que: «(…) o artigo 57.º do Código Civil tem um alcance mais vasto do que aquele que lhe reconhece o tribunal a quo, sendo que no conceito de “relações entre pais e filhos” não devem caber apenas as questões relativas à “tipologia” de relação propriamente dita (filiação, adoção, direitos emergentes da filiação, responsabilidades parentais) mas, no geral, as questões que apenas se colocam por causa e em função da relação de parentesco entre pais e filhos. Este deve ser o critério orientador, tendo até em conta que a lei portuguesa atribui primazia, por regra, à lei pessoal dos interessados, quer em matéria de família propriamente dia, quer em matéria de sucessão hereditária, em respeito à circunstância de as conceções sociológicas dos cidadãos terem por base, em princípio, o contexto dos seus países de origem» (negritos nossos). Esta é, pois, a primeira questão que importa avaliar no presente recurso, sendo que a mesma implica a interpretação da regra de conflitos prevista no artigo 57.º do Código Civil, concretamente, avaliar se a proibição da venda de pais a filhos prevista no artigo 877.º do Código Civil pretende regular as “relações entre pais e filhos”, como sustenta o apelante (apesar de estar sistematicamente inserida no Livro das Obrigações). Faz-se aqui um parêntesis para se dizer que na estrutura da regra de conflitos entram dois elementos fundamentais: i. aquele que define o domínio ou a matéria jurídica em causa (conceito-quadro); e ii. o elemento de conexão relevante dentro de tal domínio (elemento de conexão)[1]. O elemento de conexão consiste fundamentalmente na relação ou ligação existente entre as pessoas, os objetos e os factos, por um lado, e as ordens jurídicas estaduais, por outro lado, sendo através dele e com fundamento nele que se vai operar a individualização do ordenamento jurídico aplicável para regular a questão jurídica suscitada. O conceito-quadro delimita as matérias ou questões jurídicas que são adjudicadas à lei estadual que foi individualizada pelo elemento de conexão. Sob a epígrafe Relações entre pais e filhos, o artigo 57.º do Código Civil dispõe o seguinte: «1. As relações entre pais e filhos são reguladas pela lei nacional comum dos pais e, na falta desta, pela lei da sua residência habitual comum; se os pais residirem habitualmente em Estados diferentes, é aplicável a lei pessoal do filho. 2. Se a filiação se achar estabelecida relativamente a um dos progenitores, aplica-se a lei pessoal deste; se um dos progenitores tiver falecido, é competente a lei pessoal do sobrevivo». À luz desta regra de conflitos as «relações entre pais e filhos» são reguladas, em princípio, pela lei nacional comum dos pais e quando os pais tiverem nacionalidades diferentes, a lei competente será a da sua residência habitual; na ausência dela, a lei pessoal do filho. O elemento de conexão previsto no artigo 57.º é a nacionalidade e, subsidiariamente, a residência habitual. O conceito-quadro são as «relações entre pais e filhos». A propósito da interpretação do conceito-quadro, chamamos à colação, de novo, o ensinamento de Batista Machado[2]: «(…) a doutrina é hoje unânime em reconhecer que a interpretação dos conceitos-quadro das Regras de Conflito da lex fori se há-de fazer pela mesma lex fori (segundo a lei a que pertence). Nem doutra forma poderia ser, dado que, por força de um princípio absolutamente geral da hermenêutica jurídica, os conceitos e termos de qualquer fórmula legislativa têm de ser necessariamente interpretados no contexto do ordenamento a que pertencem (…) a doutrina hoje corrente insiste na ideia de que todavia essa interpretação deve ser autónoma, independente do sentido e alcance que o mesmo tenha no direito material do foro. É que (…) nos conceitos – quadro das Regras de Conflito hão-de caber os conteúdos jurídicos de quaisquer ordenamentos estrangeiros – todos aqueles conteúdos ou institutos que nos ordenamentos chamados por certa Regra de Conflitos do foro desempenham a mesma função social ou a mesma tarefa normativa que os conteúdos homólogos do direito material do foro. (…)». E acrescenta o mesmo autor que a função normativa ou o fim social das normas materiais no contexto do ordenamento a que pertencem é que decidirá do seu enquadramento no conceito-quadro de determinada Regra de Conflitos. Voltando ao artigo 877.º/1, do CC, à luz da sua previsão, os pais e os avós não podem vender a filhos ou a netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda. Resulta deste dispositivo legal que o negócio de compra e venda é condicionado pela relação jurídico-familiar ali prevista na medida em que aquele só é válido se for consentido pelos demais descendentes (filhos ou netos, consoante o caso). Apesar da sua inserção sistemática no “Livro das Obrigações”, trata-se de uma norma criada pelo legislador para defender interesses ligados às relações familiares, concretamente evitar que ocorram vendas simuladas entre pais e filhos ou entre avós e netos. A sua previsão acautela, por um lado, a intangibilidade da quota legítima de quem não consentiu no negócio e, noutro passo, obvia às dificuldades de prova inerentes a uma venda simulada para proteger um dos filhos contra o especto da inoficiosidade[3]. Trata-se de uma norma que se encontra em linha com as regras do direto das sucessões[4]. A ratio normativa do artigo 877.º do CC implica que a mesma seja qualificada como pertencente ao grupo de normas relativas às relações jurídico-familiares (artigo 15.º do CC). Donde, julgarmos que a norma de conflitos que deve ser chamada à colação no caso em apreço é o artigo 57.º do Código Civil, como defende o apelante, e não a regra de conflitos referente às obrigações provenientes de negócios jurídicos, o artigo 41.º do CC, ou o Regulamento CE n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de junho de 2008. Como se decidiu na sentença sob recurso. Neste sentido, chamamos, uma vez mais, à colação Batista Machado[5]: «(…) segundo o artigo 877.º, 1, do nosso Código Civil os pais ou avós não podem vender a filhos ou a netos, sem o consentimento dos outros filhos ou netos. A relação jurídico-familiar (relação condicionante) condiciona a validade (ou os requisitos de validade) da relação jurídica de venda (relação condicionada). É evidente que neste caso a apesar do referido preceito do nosso Código se situar, na sistemática deste, entre as normas reguladoras da compra e venda, a questão jurídica em análise é uma questão pertinente ao estatuto das relações familiares, e a qualificar como tal. Com efeito, é para defender interesses ligados às relações familiares que o legislador estatui aquela norma. E é esta conexão de política legislativa com o regime das relações familiares, é esta ratio legis da norma, que nos leva a qualifica-la ou a enquadrá-la no grupo de normas respeitantes às relações jurídico-familiares. Portanto, na hipótese de uma venda do pai a um filho estar sujeita à lei portuguesa, nem por isso se torna aplicável aquele preceito da nossa lei, desde que, no caso, não seja esta a lei reguladora das relações entre pais e filhos (cfr. artigo 57.º.)». De acordo com o disposto no artigo 57.º do CC o ordenamento jurídico à luz do qual deve ser aferido se o consentimento dos autores é requisito de validade do negócio jurídico de cessão de participação social em causa nos autos é, pois, o ordenamento jurídico italiano, atento o elemento de conexão previsto naquela regra de conflitos. Cumpre, então, aferir se aquele ordenamento jurídico contém alguma disposição legal que regule aquela concreta questão jurídica, isto é, saber se, para ser válido, aquele negócio jurídico oneroso do pai para o filho carece do consentimento dos restantes filhos. Existe no Código Civil Italiano um contrato denominado de “pacto de família” previsto nos artigos 768.º bis e ss. Consta da sentença recorrida o seguinte trecho: «Prosseguindo, e agora já no campo da expressa exigência de autorização dos herdeiros legitimários para a celebração de negócio entre pai e filho que envolva a transmissão de participação em sociedade familiar, dispõe o artigo 768-bis do Código Civil italiano que: (…) Que se traduz por: Constitui pacto de família o contrato pelo qual, em compatibilidade com as disposições em matéria de empresa familiar e no respeito das diferentes tipologias societárias, o empresário transfere, no todo ou em parte, a empresa, e o titular de participações sociais transfere, no todo ou em parte, as suas quotas a um ou mais descendentes. Segue-se que o artigo 768.º-ter do Código Civil italiano dispõe que: (..) Que se traduz por: Sob pena de nulidade, o contrato deve ser concluído por ato público. E, constituindo a disposição que, neste campo, se nos afigura fundamental, dispõe o artigo 768.º-quater do Código Civil italiano que: (…) Que se traduz por: No contrato devem participar tanto o cônjuge como todos os que seriam legitimários se naquele momento se abrisse a sucessão no património do empresário. Os cessionários da empresa ou das participações sociais devem liquidar aos outros participantes no contrato, se estes a tal não renunciarem no todo ou em parte, com o pagamento de uma soma correspondente ao valor das quotas previstas nos artigos 536º e seguintes; os contraentes podem acordar que a liquidação, no todo ou em parte, se faça em espécie. Os bens atribuídos com o mesmo contrato aos demais participantes não cessionários da empresa, segundo o valor atribuído no contrato, são imputados nas quotas da legítima que lhes respeitam; a atribuição também pode ser feita com um contrato posterior que seja expressamente declarado como vinculado ao primeiro e desde que nele intervenham os mesmos sujeitos que intervieram no primeiro contrato ou aqueles que os tenham substituído. O recebido dos contraentes não está sujeito a colação ou redução. Vistas estas disposições, diremos que, na prática, o “pacto de família” autoriza a antecipação da sucessão do empresário, permitindo a transição geracional no âmbito da empresa e subtraindo-a a futuras disputas hereditárias. Representa uma exceção à proibição de pacto sucessório. Com efeito, esta é também figura proibida no âmbito da lei italiana, devendo considerar-se, designadamente, o disposto no artigo 458.º do Código Civil italiano: (…) Que se traduz por: Ressalvado o disposto nos artigos 768.º-bis e seguintes, é nula qualquer convenção pela qual alguém dispõe da sua própria sucessão. É também nulo qualquer ato pelo qual alguém dispõe dos direitos que lhe possam caber numa sucessão ainda não aberta ou renuncia aos mesmos. Ou seja, e em suma, o negócio celebrado entre o Réu e (…) obrigaria, mesmo perante a lei italiana, à participação dos demais herdeiros. É certo que da dita previsão não decorre um vício específico do ponto de vista do seu desrespeito, mas tal sempre ocorreria, desde logo, por preterição da forma legalmente devida, o que explica que a norma em questão não preveja a invalidade, posto que, devendo o negócio ser efetuado em ato público, o oficial que o celebre deve assegurar-se de que está presente quem tem de estar. Não sendo celebrado por esse modo, então ocorrerá nulidade (…)». O Código Civil Italiano, no “Livro das Sucessões”, prevê nos artigos 768.º bis a 768.º octies a figura jurídica do “Pacto de Família”. Do cotejo das normas invocadas na sentença recorrida resulta que a cessão de quota de uma empresa familiar de pai para filho tem se ser realizada através de um contrato denominado “pacto de família”, estando expressamente previsto no artigo 768.º quarter que nesse contrato têm de participar todos os herdeiros legitimários do cedente, concretamente o cônjuge e todos aqueles que seriam herdeiros legitimários se nesse momento se abrisse a sucessão por morte do cedente. Com a consagração desta figura jurídica, o legislador italiano visou proporcionar a empresários um (novo) instrumento para assegurar a continuidade da empresa, isto é, que lhes permita escolher, de entre os seus descendentes, aquele que tem melhores condições para gerir a empresa de forma a assegurar a continuidade da mesma, sem, contudo, excluir a tutela sucessória dos herdeiros legitimários, na medida em que os beneficiários da transmissão têm de pagar aos outros participantes no pacto um valor correspondente ao da quota da legítima que respeite a cada um deles. Ou seja, as normas do ordenamento jurídico italiano que consagram aquele negócio jurídico (pacto de família) também cumprem uma função de tutela sucessória dos herdeiros legitimários daquele que transfere, no todo ou em parte, a empresa, ou do titular de participações sociais que transfere, no todo ou em parte, as suas quotas a um ou mais descendentes. E, assim sendo, julgamos que as supra referidas normas do ordenamento jurídico italiano relativas ao denominado “pacto de família” podem aplicar-se à concreta questão jurídica que nos ocupa e que concluímos estar abrangida pelo artigo 57.º do Código Civil. Em síntese, a lei aplicável à questão jurídica da alegada invalidade do contrato de cessão de quota por força da falta de consentimento dos demais filhos do cedente é a lei italiana, por via da regra de conflitos prevista no artigo 57.º do Código Civil. Aqui chegados, fez-se notar na sentença sob recurso, e bem, que apesar de o artigo 768.º quarter do Código Civil Italiano aludir expressamente à participação de todos os herdeiros legitimários na outorga do contrato, o certo é que da sua previsão não consta uma concreta consequência jurídica associada à falta de participação de algum ou de todos os demais herdeiros legitimários do cedente (para além, portanto, do herdeiro cessionário). Donde se poder questionar se a participação de todos os herdeiros legitimários é condição de validade do contrato, ou mera condição de eficácia do mesmo uma vez que o artigo 768.º sexies prevê a hipótese de o cônjuge e outros herdeiros legitimários que não hajam participado no pacto de família poderem exigir, no ato de abertura da sucessão, um tratamento análogo aos dos outros herdeiros legitimários que participaram no pacto de família. À luz deste normativo legal o consentimento dos demais filhos de (…) não será um requisito de validade do contrato. Independentemente da interpretação que se fizer sobre a necessidade de participação dos demais herdeiros legitimários no pacto de família como condição, ou não, de validade do contrato, o ordenamento jurídico italiano, concretamente o seu artigo 768.º ter sanciona com a nulidade o pacto de família que não for realizado através de ato público. Ou seja, o ato público (escritura pública) é exigido como formalidade ad substantiam e a omissão daquela formalidade gera a nulidade do negócio, a qual é de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Código Civil). No caso em apreço, o negócio jurídico em análise foi formalizado em (mero) documento particular. E, assim sendo, estamos perante um contrato nulo, à luz do ordenamento jurídico aplicável, que é o italiano. Concluindo, o contrato de cessão de quota objeto dos autos padece de vício de forma à luz da lei italiana, pelo que a apelação é improcedente no segmento em que defende a validade do mesmo. * Sendo o contrato de cessão de participação social em causa nos autos nulo, por força de um vício contemporâneo da sua formação (inobservância da forma legalmente imposta) a apreciação da questão do abuso de representação e a impugnação da decisão de facto relativa aos factos provados n.ºs 2 e 25 e ao facto não provado XVIII ficam prejudicados (artigo 608.º/2, do CPC). E bem assim o conhecimento da nulidade de sentença e da impugnação do julgamento de facto invocados no recurso ampliado, já que essa avaliação pressupunha que o consentimento dos autores não constituísse um requisito de validade do contrato em causa nos autos à luz da lei competente para aferir do relevo dessa falta de consentimento.* De acordo com o disposto no artigo 289.º/1, do Código Civil, a declaração de nulidade tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível o valor correspondente. O que implica, in casu, a (re)integração da participação social cedida na herança de (…).Na ação os autores peticionaram também «a condenação do autor a pagar aos herdeiros de (…), a quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença (artigo 359.º do CPC), mas que se estima em valor nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de distribuição de lucros, inerentes à propriedade da quota, objeto do presente processo, correspondentes ao exercício de 2017 e até à data de cancelamento do registo, supra peticionado». Na sentença recorrida condenou-se o autor/recorrente a pagar aos herdeiros de (…) os lucros distribuíveis inerentes à propriedade da quota do de cujus, correspondentes ao exercício de 2017 em diante, isto é, até à data de cancelamento do registo da cessão daquela quota, em valor a apurar em sede de liquidação de sentença, mas nunca inferior a € 400.000,00. No seu recurso o apelante insurge-se contra tal decisão, sustentando que «a decisão vertida na alínea d) do dispositivo, tendo por base o ponto 31 dos factos provados, permite que a herança aufira um rendimento que, na sua origem, poderá não ser lícito, porquanto o único rendimento que os sócios podem auferir licitamente é aquele que decorre do apuramento das contas oficiais da sociedade» e pede a revogação daquele segmento decisório “por ser contrário à lei”. Os recorridos, por sua vez, na ampliação do objeto de recurso, pedem também a revogação daquele trecho condenatório no que tange à condenação “em valor não inferior a € 400.000,00, substituindo-se por: «d) Condena o Réu a pagar aos herdeiros de (…), a quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença, que se fixa em valor não inferior a € 1.920.000,00 (um milhão e novecentos e vinte mil euros), a título de distribuição de lucros, inerentes à propriedade da quota, objeto do presente processo, correspondentes ao exercício de 2017 e até à data de cancelamento do registo, supra peticionado». O segmento decisório impugnado teve por base o julgamento empreendido relativamente ao ponto de facto provado n.º 31, o qual o apelante impugna, pelo que cumpre conhecer de tal impugnação. Aquele enunciado de facto tem a seguinte redação: «Tais restaurantes, em função da afluência que apresentam, durante o ano, têm um resultado anual líquido, de valor não inferior a € 400.000,00 (quatrocentos mil euros)». Resulta do ponto de facto antecedente (n.º 30) que os restaurantes em apreço são dois estabelecimentos comerciais denominados Restaurante Pizzeria (…) e Buffet (…), sitos no Edifício (…), em Portimão, na Av. (…), junto à praia. Extrai-se da sentença recorrida o seguinte trecho: «A respeito do facto n.º 31, embora se entenda que em momento algum da causa é verdadeiramente discutido que a sociedade (…) é uma sociedade lucrativa, diremos mesmo bastante lucrativa, não sendo possível estimar um valor concreto dos resultados de exercício do estabelecimento de restaurante pela mesma explorado, as declarações dos autores referem que o valor normalmente obtido de lucros líquidos em cada exercício, não será inferior a € 400.000,00 (e não tendo os mesmos atualmente relação próxima com os assuntos da sociedade, por um lado, é certo que assim não foi no passado e, por outro, sendo irmãos do Réu, e sendo o Autor (…) residente na zona e também comerciante, têm seguramente meio de se aperceber desta realidade, nem que seja pela perceção que é possível, de modo público, ter quanto à afluência de clientes ao estabelecimento). Dito isto, acrescentaremos ainda que das próprias declarações do réu se entende que tal corresponderá à verdade, podendo até o valor em causa ser mais elevado. Recorde-se que, como já se referiu, o réu, nas suas declarações, confirmou que costumava levar dinheiro, em numerário, para Itália, a fim de ser entregue ao pai e ao seu irmão, o autor (…). Este autor confirma também ter o réu feito tais viagens a Itália, transportando o dinheiro para o pai e para si. Declarou, a propósito, ter recebido, em mais de uma ocasião, um montante anual de € 40.000,00. Sendo a sua quota de 10% do capital, tal dado reforça a ideia de que, pelo menos, o lucro anual da empresa não seria inferior a € 400.000,00. Como tal, entende-se que pelo menos o montante feito constar deste ponto dos factos provados será seguramente gerado como proveito líquido da atividade do estabelecimento. Embora não esteja propriamente em causa, de modo direto, neste ponto da matéria de facto o valor do património da sociedade (antes mencionado no n.º 28 dos factos provados), o mesmo contribuirá, em nosso entender, também como um outro elemento adjuvante neste sentido. Não se ignora que o Réu, na contestação, se insurge contra a avaliação do património da sociedade constante do documento junto pelos Autores na p.i., que constituirá resultado da avaliação efetuada pela testemunha (…), mediador imobiliário. Porém, há que reconhecer que este sustentou, de modo claro e convicto, o valor por si apresentado em sede de audiência, o que, de resto, não se mostra sequer desconforme com as regras de experiência comum. Certo é, aliás, que o Réu não indica qualquer valor em substituição desse. E também não adianta qualquer valor referente aos lucros da empresa que possa tender a infirmar o sustentado pelos Autores, o qual aparenta conjugar-se com os demais dados que foram sendo recolhidos em matéria de prova, nomeadamente os ora referidos, no sentido de se concluir que a sociedade tem património valioso e lucros não despiciendos. É verdade, diga-se, que o Réu veio a juntar posteriormente à entrega da sua contestação, mais concretamente, em 2 de setembro de 2019 e 25 de setembro de 2019 documentação contabilística e fiscal (referente a declarações de rendimentos e relatórios de gestão) que tenderiam a demonstrar que o valor dos lucros da sociedade seria inferior ao alegado na p.i.. Todavia, foi o próprio Réu quem, em sede de declarações de parte, veio infirmar o aí constante, posto que transmitiu, com clareza e alguma leveza de espírito até, que os lucros seriam bem superiores aos declarados fiscalmente e constantes da pertinente documentação oficial e que transportava o quinhão dos proventos devido ao seu pai e ao seu irmão (…) para Itália, em numerário e escondido, o que, deixando indiciar, não só a infração das obrigações fiscais correspondentes, mas também provavelmente a subtração ilícita de tais montantes do país, no mínimo, afasta por completo a credibilidade que os documentos em questão normalmente deveriam merecer (o que, de resto, só não se comunicará às autoridades competentes por se antever que parte das eventuais infrações possa ter prescrito e que os indícios referidos seriam, em sede própria, de difícil comprovação…).» (negritos nossos). Defende o apelante/impugnante que o ponto de facto provado n.º 31 não poderia ser julgado provado porquanto «carece absolutamente de prova válida para o efeito (prova documental)» e que o tribunal desconsiderou a documentação contabilística e fiscal junta aos autos pelo réu, quando «apenas a documentação fornecida pelo réu poderia sustentar minimamente qualquer decisão sobre os dividendos da sociedade»; aduz que «o tribunal está a dizer que o lucro da sociedade a distribuir à herança deverá ter em vista, não só aquilo que possa derivar das suas contas oficiais, mas também daquilo que poderá não derivar das mesmas», quando «o único rendimento que os sócios podem auferir licitamente é aquele que decorre do apuramento das contas oficiais da sociedade». Quid juris? Na impugnação da decisão de facto visa-se obter uma reapreciação da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância de forma a apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, quer por terem sido considerados assentes quando deveriam julgar-se não provados, quer por terem sido considerados não provados quando deveriam ter sido julgados assentes, de forma a alterar o sentido da decisão de mérito. Na sua avaliação sobre o julgamento de facto empreendido pelo tribunal recorrido o tribunal de segunda instância deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, dentro dos seus poderes de livre apreciação da prova dos meios probatórios (artigo 607.º/5, do CPC), deve introduzir na decisão de facto concretamente impugnada as modificações que se imponham. Contudo, as modificações «que se imponham» não devem traduzir-se numa “substituição da convicção do julgador de cuja decisão se recorre pela convicção daqueles que recorrem”; com efeito, essa modificação só se imporá se na decisão sob recurso tiver ocorrido uma violação de qualquer dos passos para a formação da convicção do julgador, nomeadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção – neste sentido, acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 [in Diário da República n.º 129/2004, Série II de 2004-06-02]. No caso em apreço a crítica do apelante ao julgamento do ponto de facto em apreço começa pelo facto de o julgador ter preterido a prova documental existente nos autos (documentação contabilística e fiscal da sociedade …, Lda.), quando defende a prova dos dividendos que resultariam para a herança desde 2017 inerentes à quota de 60% que (…) detinha «faz-se exclusivamente através de documentos», concretamente através da documentação contabilística e fiscal da sociedade. Vejamos. Refere Tomé Gomes[6] que «a montante do processo de formação da convicção do julgador, impõe-se, como garantia de obtenção legítima desse resultado, o respeito pelos princípios fundamentais do processo e a observância da disciplina legal dos procedimentos probatórios». Um dos princípios que enforma a disciplina legal do direito probatório é o da livre admissibilidade dos meios de prova, segundo o qual, para a generalidade dos factos, as partes podem socorrer-se de todos os meios de prova admitidos por lei e o juiz os apreciará e graduará livremente de acordo com a sua convicção. Sendo certo que este princípio sofre relevantes exceções – por exemplo, em derrogação do princípio da consensualidade da forma consagrado no artigo 219.º do Código Civil a lei exige a redução a escrito (autêntico ou particular) de determinadas espécies de declarações negociais, como condição da respetiva validade e, nestes casos, o documento legalmente exigido não pode ser substituído por meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior (artigo 364.º/1, do CC) –, para a prova da factualidade em causa, que está relacionada com o valor dos dividendos da sociedade, a lei não proíbe a prova por declarações de parte, que foi aquela a que o julgador a quo recorreu para o julgamento da factualidade em causa. É certo que o artigo 44.º do Código Comercial confere uma força probatória especial à escrituração mercantil – que pode definir-se como o conjunto dos registos dos comerciantes e empresários relativos à sua atividade profissional – mas para além de aquele dispositivo legal não lhe conferir força probatória plena, faz depender o recurso aos parâmetros probatórios referidos naquele dispositivo legal da credibilidade da escrituração do comerciante. Quanto à prova por declarações de parte, ou melhor, da sua admissibilidade, diz-nos Filipe de Sousa[7]o seguinte: «Na parte em que as declarações de parte não integrem confissão, as mesmas – à semelhança do que ocorre com a prova testemunhal – são livremente valoráveis. Estando ambas no mesmo patamar probatório e abrangendo a ratio de tais exclusões também as declarações de parte (a segurança, fidelidade e credibilidade deste meio de prova são equiparáveis às ínsitas ao comum depoimento testemunhal), haverá que aplicar analogicamente os artigos 393.º a 395.º quanto à inadmissibilidade/exclusão das declarações de parte». Retornando ao caso em apreço, não se verifica qualquer uma das situações de inadmissibilidade da prova testemunhal previstas nos artigos 393.º a 295.º do Código Civil, pelo que sobre a factualidade em causa é admitida prova testemunhal, logo, também prova por declarações de parte. Se bem entendemos, aquilo que o apelante defende é que o julgador a quo ao desprezar a prova documental consistente nas declarações fiscais e de contabilidade da sociedade – que alegadamente revelam um lucro da sociedade inferior ao valor que ficou consignado no ponto de facto em apreço – e ao atender às declarações de parte dos autores e do réu as quais apontaram para lucros superiores àqueles que constam da referida documentação contabilística e fiscal, está a permitir que o valor que vier a ser alcançado a título de dividendos seja superior ao rendimento que os sócios podem auferir licitamente e que é aquele que decorre do apuramento das contas oficiais da sociedade. Ou seja, o que está em causa não é a utilização, pelo julgador, de um meio de prova que viole disposições de direito material e que, por essa razão, não é admissível no processo, mas sim a utilização de um meio de prova (declarações de parte) que revela a existência de uma discrepância entre o que está declarado na documentação contabilística e fiscal da sociedade e a realidade económico-financeira da sociedade. No caso concreto o tribunal a quo ponderou, ao abrigo do princípio da livre convicção plasmado no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, a documentação contabilística e fiscal junta pelo réu – que, como se disse, é desprovida de força probatória plena – e as declarações de parte dos autores e do réu; motivou, de forma compreensível, o seu juízo sobre a falta de idoneidade da prova documental supra referida e considerou plausível o valor (mínimo) indicado no enunciado em questão relativo aos lucros líquidos em cada exercício da sociedade (…), considerando a convergência dos autores e do réu quando àquele valor. Ora, o convencimento do julgador apenas tem de fundar-se numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida[8]. Atendendo a todo o exposto, não colhe a pretensão do apelante no sentido de julgar não provada a factualidade do ponto n.º 31. * Como se viu, o apelante faz depender a revogação do segmento da sentença que o condenou a pagar aos herdeiros de (…) um valor referente a dividendos inerentes à quota do de cujus e relativos aos exercícios de 2017 e até à data de cancelamento do registo da cessão da quota a apurar em liquidação de sentença mas em valor não inferior a € 400.000,00 de uma alteração do julgamento de facto quanto ao enunciado n.º 31. Atendendo à improcedência dessa impugnação e ao facto de o recorrente não ter invocado no seu recurso qualquer erro na determinação e na interpretação das normas que o julgador a quo aplicou ao caso concreto, há que julgar improcedente este segmento do seu recurso.* No recurso ampliado, os recorridos insurgem-se também contra aquele segmento decisório, defendendo que «deverá ser revogado tal trecho condenatório no que tange à condenação “em valor não inferior a € 400.000,00”, substituindo-se por: «d) Condena o Réu a pagar aos herdeiros de (…), a quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença, que se fixa em valor não inferior a 1.920.000,00€ (um milhão e novecentos e vinte mil euros), a título de distribuição de lucros, inerentes à propriedade da quota, objeto do presente processo, correspondentes ao exercício de 2017 e até à data de cancelamento do registo, supra peticionado». Para tal desiderato, alegam o seguinte: «(…) tendo como assente que o valor anual da distribuição de lucros era, no mínimo € 400.000,00, que a condenação reporta aos lucros vencidos, «correspondentes ao exercício de 2017 e até à data de cancelamento do registo, supra peticionado», que a quota a devolver à herança é de 60% e que a sentença foi prolatada em dezembro de 2024, fácil é de concluir que o montante mínimo apurado, apresenta-se errado e contraditório com o percurso argumentativo. Na realidade, a quota de 60%, no pressuposto de um valor não inferior a € 400.000,00 ano, a título de distribuição de lucros, sempre teria direito ao valor anual de € 240.000,00. Se a sentença foi prolatada em dezembro de 2024 e a condenação inclui o exercício de 2017 e anos subsequentes, significa que estamos perante 8 exercícios. Ora, multiplicando o n.º de exercícios (8) pelo valor devido pela quota de 60% (€ 240.000,00), atingimos um total mínimo de € 1.920.000,00 e não o montante de € 400.000,00, constante da decisão a quo» (negritos nossos). Quid juris? A questão suscitada pelos recorridos não se enquadra na previsão do artigo 636.º/1, do CPC. Com efeito, não estamos perante um fundamento de facto ou de direito que os recorridos / autores hajam invocado oportunamente e que haja sido objeto de uma resposta desfavorável pelo tribunal. Tão pouco integra uma situação de nulidade de sentença, que, tão pouco foi invocada a propósito deste segmento decisório pelos apelados, e que não é de conhecimento oficioso pelo tribunal. Atente-se, aliás, que este segmento decisório só difere do concreto pedido formulado pelos autores na sua petição inicial quanto ao valor (€ 5.000,00). Por conseguinte, não tem este tribunal de conhecer deste segmento da ampliação do recurso. * Atento o exposto, a apelação improcede, confirmando-se a sentença recorrida, embora com diversa fundamentação quanto à questão da invalidade do contrato de cessão de quotas.Sumário: (…) III. DECISÃO Em face do exposto, acordam em: 1 - Julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida, embora com diversa fundamentação quanto à invalidade do contrato de cessão de quotas. 2 - Não conhecer da ampliação do recurso suscitada pelos recorridos. As custas na presente instância são da responsabilidade do apelante, sendo que a esse título apenas é devido o pagamento de custas de parte pois que o apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não são devidos encargos. Notifique. DN. Évora, 30 de outubro de 2025 Cristina Dá Mesquita Ana Margarida Carvalho Pinto Leite Vítor Sequinho dos Santos ____________________________________________ [1] João Batista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª Edição Atualizada (Reimpressão), Almedina, págs. 16-17. [2] Ob. cit., págs. 112 e ss. [3] Nuno Filipe Coelho, Nótula sobre o artigo 877.º do Código Civil (proibição da venda a filhos ou a netos), Separata da Revista do Ministério Público, Ano 46, Jan-Mar 2025, pág. 105. [4] Jorge Morais de Carvalho, Código Civil Anotado, 2.ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, pág. 1128. [5] Ob. cit., págs. 1098-1099. [6] Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no Processo Civil, pág. 131. [7] Direito Probatório Material Comentado, 2020, Almedina, pág. 267. [8] Tomé Gomes, ob. cit., págs. 158-159. |