Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6264/21.9T8STB-A.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: DOCUMENTO EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
REQUERIMENTO DE PROVA
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Pretendendo fazer uso de documentos em poder da parte contrária, deve o interessado requerer que esta seja notificada para apresentar os documentos dentro de prazo a fixar, especificando, além do mais, os factos que com eles quer provar;
II – A omissão de tal especificação impede o juiz de verificar se a junção dos documentos se mostra pertinente e necessária, afastando a possibilidade de vir a considerar-se que os factos que a requerente pretende com eles provar têm interesse para a decisão da causa, impondo o indeferimento da pretendida notificação da parte contrária para juntar tais documentos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6264/21.9T8STB-A.E1
Juízo Central Cível de Setúbal
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Na ação declarativa, com processo comum, que constitui o processo principal, movida por (…) e (…) contra (…) Seguros, S.A. e (…) Seguros, Compañia de Seguros y (…), S.A. – Sucursal em Portugal, na contestação que apresentou, a 1.ª ré, invocando o disposto no artigo 429.º do Código de Processo Civil, requereu, além do mais, se ordene a notificação da autora para, em prazo a fixar, juntar aos autos as suas declarações de IRS de 2018 a 2020.
Os autores requereram o indeferimento do indicado segmento do requerimento probatório apresentado pela 1.ª ré, pelos motivos que expõem.
Por despacho proferido na audiência prévia, foi determinada a notificação da autora, para juntar aos autos as declarações de IRS dos anos de 2018 a 2020.

Inconformada, a autora interpôs recurso deste despacho, pugnando para que seja revogado e formulando as seguintes conclusões:
«A) Vem o presente recurso interposto do despacho que admitiu o meio de prova requerido pela Apelada (…), notificando assim a Apelante para proceder à junção aos autos cópias das suas declarações de IRS de 2018 a 2020.
B) A Apelante peticionou às Apeladas o pagamento de indemnização por dano biológico e por danos morais sofridos na sequência de um acidente de viação, ocorrido a 23.02.2020, nomeadamente: fractura cominutiva dos ramos isquiopúbico e iliopúbico direitos e fractura da vertente anterior da asa direita na bacia, queimaduras e escoriações extensas, com subsequentes consequências.
C) Existem questões prejudiciais ainda por dirimir e responsabilidades por apurar, não tendo a Apelante sido ainda ressarcida por quaisquer danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
D) Na sua contestação, a Apelada (…) requereu ao tribunal a quo que ordenasse à Apelante a junção das suas declarações de IRS referentes aos anos de 2018 a 2019,
E) A Apelante pronunciou-se, conforme transcrição:
“Surpreendentemente” (ou não, bem sabendo do peso que as Seguradoras e outras corporações com peso económico idêntico, têm na sociedade), vem a 1.ª R. requerer ao tribunal que ordene à Autora que venha juntar aos presentes autos cópia das declarações de IRS de 2018 a 2020, tendo este acedido prontamente.
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Caso não seja do conhecimento da 1.ª R., a sua pretensão viola o direito a sigilo fiscal da Autora, como se poderá extrair do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 5784/08.5TBCSC-A.L1-7, do Relator Luís Espírito Santo: «As declarações fiscais apresentadas junto da Administração Tributária pertencem ao foro da reserva da vida privada e familiar dos contribuintes, não podendo, em princípio e por via de regra, ser divulgadas a outrem, só sendo de afastar o sigilo fiscal se, porventura, o interesse prevalecente da administração da justiça, incidente sobre o caso concreto, assim o justificar».
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Uma vez que a 2.ª Autora não peticionou quaisquer quantias a título de perdas salariais, ou perda de rendimentos, afigura-se profundamente desnecessário devassar a reserva íntima daquela, a pedido da Seguradora.
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A 2.ª Autora peticiona uma indemnização pelo dano biológico e pelos danos morais. «A doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural e cívica) – o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida.»
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Partindo do entendimento do Supremo Tribunal de Justiça considera-se que a prova requerida pela 1.ª R. é irrelevante e totalmente desprovida de fundamento.”
F) Em audiência prévia realizada a 24.01.2024, o tribunal a quo admitiu prontamente o meio de prova requerido pela Apelada (…) e notificou a Apelante para proceder à junção das suas declarações de IRS de 2018 a 2020.
G) A Apelante não concorda porque não formulou qualquer pedido relativamente a perdas salariais, perdas de retribuição ou danos patrimoniais futuros, pelo que o elemento patrimonial do dano biológico não deve relevar no caso concreto, visto pelo prisma que em Portugal, o sistema não diferencia os direitos do cidadão ou o seu sofrimento em acidente, com base na sua riqueza. Salvo melhor opinião.
H) Ademais, concorda com o Acórdão do Proc.º 5784/08.5TBCSC-A.L1-7, no sentido em que as declarações de IRS pertencem ao foro da reserva da vida privada e familiar daquela.
I) E que a junção de declarações de IRS de anos anteriores ao dos factos em juízo é manifestamente excessiva e desproporcional, representando cada declaração uma agressão directa ao seu direito à reserva da vida íntima, mais gravosos conforme forem cronologicamente mais distantes dos factos que deram origem ao processo.
J) A junção da declaração de IRS relativa ao ano de 2020 revela-se totalmente irrelevante para o processo, dado que o sinistro ocorreu logo no início do ano, o que se reflectiu na obtenção de rendimentos pela Apelante e, ainda, será sempre de sublinhar que esse ano correspondeu ao primeiro ano de confinamento obrigatório por causa da pandemia Covid, com a subsequente e conhecida contracção da economia, pelo que também se afigura desajustada essa informação.
K) Ainda que se conceda que existe de divergência doutrinária e jurisprudencial quanto aos parâmetros para apuramento do dano biológico: quantum doloris, dano estético, prejuízo de afirmação social, entre outros, é certo que, in casu, em função dos pedidos formulados pela Apelante nos autos, a incapacidade permanente a determinar no âmbito da perícia médico-legal, a idade da Apelante, o impacto do dano de prejuízo sexual e o prejuízo de afirmação social, rejeita a Apelante que o elemento patrimonial seja indispensável para a determinação da indemnização que lhe é devida.
L) O recurso ao elemento patrimonial para apuramento do dano biológico, é feito na vertente lucros cessantes enquanto dano patrimonial futuro; ou seja, assenta numa óptica da diminuição da capacidade na vertente profissional, podendo não se refletir em perdas salariais imediatas, mas que visa compensar a acrescida penosidade e esforço no exercício da actividade profissional e a limitação da utilização do corpo enquanto força de trabalho produtor de rendimento, o que in casu não foi peticionado.
M) O dano biológico é o dano que, tendo origem numa lesão corporal, se traduz na afectação da capacidade funcional de uma pessoa declarada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.
N) À data dos factos, a Apelante tinha 44 (quarenta e quatro) anos, era saudável e social e profissionalmente activa.
O) Na sequência do sinistro, sofreu fracturas na bacia, queimaduras e escoriações, com sujeição a período de internamento, imobilização da bacia durante período de recuperação longo, impossibilidade de fazer a suas rotinas diárias de higiene e alimentação por si, necessidade de auxílio de terceiros, dano de prejuízo sexual temporário, impedimento de usufruir de vida social durante o período de recuperação, impedimento de usufruto dos hobbies que mantinha até à data do sinistro, ainda implicou acompanhamento clínico, fisioterapia, medicação, dores, e ainda considera que ficou com uma incapacidade permanente, a fixar em sede de perícia médica a realizar pelo INMLCF, já requerida.
P) No entendimento da Apelante, o dano físico, a incapacidade permanente e todas as consequências acima descritas são elementos mais que bastantes para determinação de indemnização equitativa (ressalvando a necessidade do relatório de perícia médica que o fixe definitivamente), nos moldes peticionados, aparentado total irrelevância o apuramento dos rendimentos auferidos pela Apelante à data do sinistro, especificamente porque não foram peticionadas perdas salariais, nem danos patrimoniais futuros.
Q) Jurisprudencialmente, há quem entenda que deve fixar-se uma indemnização autónoma para o dano biológico, sem recorrer ao binómio danos patrimoniais/não patrimoniais; alguns consideram que estes devem ser considerados apenas como danos patrimoniais; outros que podem ser considerados, conforme os casos, no âmbito de um destes dois critérios; outros, ainda, que este pode determinar simultaneamente consequências patrimoniais e não patrimoniais.
R) Mesmo admitindo que não o dano biológico não configura uma categoria autónoma independente do binómio patrimonial/não patrimonial, mas que o dano biológico pode sim assumir simultaneamente as vertentes patrimonial e não patrimonial, é certo que para efeitos de apuramento da indemnização pela diminuição da capacidade funcional da pessoa individualmente consagrada, nem a lei, nem a jurisprudência devem basear-se nos rendimentos da pessoa para efeitos de cálculo, sob pena de violação flagrante do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
S) Conforme já referido, a Apelante em momento algum peticionou perdas salariais ou de rendimentos, como não formulou pedido a título de danos patrimoniais futuros, somente não patrimoniais (perda de capacidade funcional, perda de mobilidade, perda de força, etc.), que podem ser objectivamente apurados sem ter por base os rendimentos auferidos pela Apelante.
T) O que está em causa é a quantificação, para efeitos indemnizatórios, da lesão ao direito à integridade física e moral da Apelante, direito constitucionalmente protegido, nos termos do artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que foi violado na sequência do acidente de viação de 23.02.2020.
U) O recurso aos rendimentos da Apelante para efeitos de quantificação indemnizatória por dano biológico representaria uma violação dos direitos constitucionalmente consagrados da Apelante, na medida em que configuraria um benefício ou um prejuízo em razão da situação económica, ao invés de encarar a violação do direito à integridade pessoal como o verdadeiro fundamento dos pedidos indemnizatórios e a diminuição da capacidade funcional como a efectiva origem de tutela jurisdicional, reduzindo a pó o conceito de dignidade da pessoa humana, posição que se rejeita veementemente.
V) Consequentemente, é imperativo que a situação financeira da Apelante seja considerada irrelevante, perante os elementos já carreados para os autos e, consequentemente, ser o despacho de admissão de meio de prova e consequente notificação para junção das declarações de IRS ser substituídos por um despacho de não admissão da prova requerida pela Apelada.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações e inexistindo questões de conhecimento oficioso a decidir, o objeto do recurso consiste em apreciar se deve ser deferido o pedido de notificação da autora para juntar as declarações de rendimentos que apresentou para efeitos de IRS relativamente aos anos de 2018 a 2020.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Relevam para a apreciação da questão suscitada na apelação, além dos elementos elencados no relatório supra, ainda os seguintes elementos constantes dos autos:
a) na petição inicial, os autores formulam o pedido seguinte:
«Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer a V. Exa. que julgue a presente acção procedente, por provada e, consequentemente, condene:
I) A 1.ª Ré ao pagamento de € 8.216,37 (oito mil, duzentos e dezasseis euros e trinta e sete cêntimos), ao 1.º Autor, a título de indemnização por danos patrimoniais;
II) A 1.ª Ré ao pagamento de € 9.270,00 (nove mil, duzentos e setenta euros) a título de indemnização pela privação de uso, à razão de € 90,00 (noventa euros) diários ao 1.º Autor;
III) A 1.ª Ré ao pagamento de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), à 2.ª Autora a título de indemnização por dano biológico;
IV) Subsidiariamente, e em função do apuramento de responsabilidades, condene a 2.ª Ré ao pagamento de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), à 2.ª Autora a título de indemnização por dano biológico;
V) A 1.ª Ré ao pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização por danos morais, ao 1.º Autor;
VI) A 1.ª Ré ao pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização por danos morais, à 2.ª Autora;
VII) Subsidiariamente, a 2.ª Ré ao pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos morais, à 2.ª Autora.
VIII) As RR. ao pagamento dos respectivos juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até ao integral pagamento da indemnização;
IX) As RR. ao pagamento de custas e o mais legal.»
b) os autores peticionam o pagamento pelas rés das indicadas quantias a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude acidente de viação que descrevem, ocorrido no dia 23-02-2020, pelas 13h20m, na Estrada Nacional (…), que causou, além do mais, lesões à autora, na ocasião transportada como passageira num dos veículos intervenientes no sinistro;
c) na contestação que apresentou, a 1.ª ré defende-se por exceção – invocando a ilegitimidade da autora e a invalidade do contrato de seguro – e por impugnação;
d) por despacho proferido na audiência prévia, procedeu-se, além do mais, à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova;
e) o objeto do litígio foi identificado nos termos seguintes:
- Da obrigação de os RR. procederem ao pagamento de indemnização dos danos sofridos pelos AA na sequência de acidente de viação
f) foram enunciados os temas da prova seguintes:
1 - da dinâmica do sinistro;
2 - dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos AA.
3 - Da contratação de seguro da viatura (…).

2.2. Apreciação do objeto do recurso
A autora põe em causa o despacho interlocutório que deferiu o requerimento probatório deduzido pela 1.ª ré na contestação, na parte em que requereu que a apelante fosse notificada para juntar aos autos, dentro do prazo que lhe fosse designado, as suas declarações de IRS de 2018 a 2020.
Discordando do deferimento do aludido requerimento probatório, defende a recorrente, em síntese, que a informação a que se pretende ter acesso não releva para a decisão do presente litígio e que as declarações fiscais que apresentou para efeitos de IRS pertencem ao foro da reserva da sua vida privada e familiar, não se justificando, no caso presente, a imposição da respetiva junção aos autos.
Vejamos se lhe assiste razão.
Sob a epígrafe Documentos em poder da parte contrária, o artigo 429.º do Código de Processo Civil dispõe o seguinte: 1 - Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar. 2 - Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.
O artigo 430.º do aludido Código, por seu turno, sob a epígrafe Não apresentação do documento, determina o seguinte: Se o notificado não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 417.º.
Ora, o n.º 2 do artigo 417.º do mesmo Código dispõe o seguinte: Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. Acrescenta o n.º 3 do preceito: A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
Permite o n.º 1 do artigo 429.º, à parte que pretenda fazer uso de documento em poder da contra parte, requerer que esta seja notificada para o apresentar dentro de prazo a fixar, devendo para o efeito, no requerimento, identificar quanto possível o documento e especificar os factos que com ele quer provar, sendo que a notificação só será ordenada se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa.
Em anotação ao citado artigo 429.º, explicam António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 505) o seguinte: «Tratando-se de documento pertinente (…), isto é, com interesse para a decisão da causa, mas que não esteja em poder de quem dele pretende uso, se acaso a sua disponibilização não ocorrer espontaneamente pela parte que o detém, ficará a mesma obrigada a proceder à sua junção quando tal lhe for determinado, mediante requerimento da parte interessada, a qual deve indicar os factos que pretende demonstrar por essa via probatória. A notificação à parte detentora do documento é feita sob a cominação constante do artigo 417.º».
Esclarecem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 247), em anotação ao mesmo artigo, o seguinte: «Manifestação do princípio geral da cooperação material no campo da instrução do processo (…), este artigo (…) tem em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento, que por isso é notificado, a requerimento da parte contrária, para o apresentar (…). Ao juiz cabe controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova, ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus (…), razão por que o requerente deve identificar, na medida do possível, o documento e especificar os factos que com ele quer provar».
A especificação, pelo requerente, dos factos que pretende demonstrar com os documentos em poder da parte contrária, constitui requisito imposto pelo n.º 1 do citado artigo 429.º, sendo certo que respetiva omissão impede a apreciação pelo tribunal da pertinência e da necessidade dos documentos, isto é, do respetivo interesse para a decisão da causa.
Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., págs. 511-512) o seguinte: «Documento impertinente é o que diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da ação. De um modo abrangente, pode afirmar-se que um meio de prova será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de um facto importante para apreciar a fiabilidade de outro meio de prova. (…) São desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, sejam insuscetíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou ainda por já constar no processo documento de igual ou superior relevo».
Analisando o requerimento apresentado pela 1.ª ré na contestação, verifica-se que não especificou os factos que pretende provar com os documentos cuja junção pela autora requer se determine, não indicando o uso que pretende fazer das declarações de rendimentos apresentadas pela autora para efeitos de IRS relativamente aos anos de 2018 a 2020.
A omissão de tal especificação configura incumprimento do aludido requisito estabelecido pelo artigo 429.º, n.º 1, impedindo o tribunal de aferir da pertinência e da necessidade dos documentos em causa; assim sendo, afastada se encontra a possibilidade de vir a considerar-se que os factos que a requerente pretende provar têm interesse para a decisão da causa, o que constitui pressuposto do deferimento da peticionada notificação, conforme decorre do estatuído no n.º 2 do citado preceito.
Assim sendo, impõe-se o indeferimento do requerimento apresentado, por injustificado.
Nesta conformidade, tendo-se concluído que é de rejeitar, por injustificada, a pretensão deduzida pela 1.ª ré, mostra-se prejudicada a apreciação do teor dos documentos de que a mesma pretende fazer uso e das consequências decorrentes da notificação da autora para proceder à respetiva junção aos autos.
Procede, assim, a apelação, impondo-se revogar a decisão recorrida e indeferir a pretensão deduzida pela 1.ª ré.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se decide:
i) indeferir a requerida notificação da autora para juntar aos autos as declarações de rendimentos indicadas pela 1.ª ré na respetiva contestação;
ii) revogar o despacho recorrido.

Custas pela apelada 1.ª ré.
Notifique.
Évora, 23-05-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Maria Domingas Simões (1.ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)