Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
| Descritores: | TESTAMENTO LEGADO PARCELA URBANA NULIDADE FIM PROIBIDO POR LEI | ||
| Data do Acordão: | 03/27/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
| Sumário: | Sumário: I. São nulas, por serem determinadas por um fim contrário à lei, as deixas testamentárias que instituem legados dos quais decorre a autonomização de parcelas urbanas de um imóvel misto, dando origem a prédios distintos (rústico e urbanos), sem que tivesse sido dado cumprimento às regras imperativas sobre o fracionamento e desanexação de imóveis. II. O ato de registo lavrado com base num título nulo, também sofre do mesmo vício (nulidade). | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1484/20.6T8EVR.E2 (Apelação)
Tribunal recorrido: Juízo Central Cível e Criminal de Évora – J4 Apelante: AA Apelados: BB, CC e Conservatória do Registo Predial de ...
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA I – RELATÓRIO Ação Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum. Autor AA Réus BB (1.º Reu) CC (2.ª Ré) CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE ... (3.ª Ré) Pedido Que a sentença a proferir: a) Reconheça o direito de propriedade da falecida DD sobre o prédio denominado “Herdade 1...”, com o artigo matricial n.º 2332 da freguesia de ..., à data do seu falecimento em ...-...-2017; b) Declare a nulidade das doações constantes das disposições testamentárias de 02.12.2016 referentes à “Herdade 1...”, e subsequente inexistência e nulidade dos legados atribuídos, por o ato dispositivo da falecida ser contrário à Lei e ter visado a divisão do prédio misto indiviso e/ou ser impossível, à data, por motivo das instalações urbanas não serem passíveis do fracionamento referido e pretendido pela testadora e, em qualquer caso, por ofensa dos artigos 2163.º e 2186.º, 1, do Código Civil, o primeiro face à não aceitação do autor e ineficácia da pretendida doação ao autor; c) Ordene junto da Conservatória competente o cancelamento do registo, por ser nulo, a favor de BB, realizado por este em 03.03.2017 – Apresentação nº 1925 -, de metade da referida “Herdade 1...” descrita na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º 781 do Livro n.º 2, na sequência do pedido anterior e também por aplicação dos artigos 16.º, b), e 43.º, 1, do Código do Registo Predial, bem como seja ordenada a extinção das inscrições e descrições respetivas; Subsidiariamente d) Proceda ao registo complementar, com referência ao solicitado com a Apresentação n.º 1925 de 13-03-2017, do ónus de eventual redução das doações sujeitas a colação nos termos da alínea r) do n.º 1 do artigo 2.º do Código de Registo Predial e do artigo 2118.º, 1, do Código Civil, o qual devia ter sido realizado, simultaneamente, com a referida Apresentação n.º 1925 ou, em alternativa, a sua inscrição como novo registo. Causa de pedir DD, mãe do Autor, do 1.º Réu e 2.ª Ré faleceu no dia ...-...-2017, no estado de viúva, tendo deixado como únicos herdeiros os três filhos. O acervo hereditário é composto por vários imóveis rústicos e urbanos. Por testamento público realizado no Notário, em 02-12-2016, a falecida instituiu legados aos três filhos por conta da quota disponível e da legítima. Entre eles (no que ora releva para o presente recurso), instituiu por conta da legítima do Autor (entre outros) metade indivisa do prédio misto denominado Herdade 1..., bem como a sua casa de habitação sita na mesma herdade, instalações anexas a esta, constituídas por celeiro, garagem, cozinha e escritório, e a favor do 1.º Réu, também por conta da legítima (entre outros) metade indivisa do prédio misto denominado Herdade 1..., bem como as construções neste existentes, designadas por ... e Monte 1.... Nada deixou por conta da quota disponível do Autor, por em vida lhe ter doado a Herdade 2..., prédio composto por parte urbana e rústica. A falecida não dispensou de colação as disposições testamentárias, nem estipulou qualquer direito de acrescer entre os herdeiros. O Autor não aceitou o legado referente à Herdade 1..., por não pretender ser comproprietário (forçado) com o seu irmão daquele imóvel, o que, no seu entender, se traduziria num ónus pelas dificuldades de administração e alienação daquele bem. Os legados relativos à Herdade 1... são nulos, por realizados com um fim contrário à lei (divisão de um prédio misto, torneando a falecida a impossibilidade legal de o fazer em relação aos prédios urbanos que o integram sem autonomia e sem qualquer autorização para o efeito), por imporem condições impossíveis (atribuição de prédios urbanos que fazem parte da descrição predial relativa à Herdade 1..., uns ao Autor e outros ao 1.º Réu), pelo que o imóvel deve integrar o acervo hereditário na sua totalidade e ser objeto de partilha, encontrando-se por preencher a quota legítima do Autor. O 1.º Réu, em 13-03-2017, procedeu ao registo a seu favor (também) da metade indivisa do prédio Herdade 1..., sem que o registo seja totalmente coincidente com o teor do testamento, pelo que o registo é nulo, inexato e ineficaz, devendo ser cancelado. De qualquer modo, não foi registado o ónus da eventual redução das doações sujeitas a colação, pelo que esse registo deveria ter acontecido em simultâneo com o ato registado ou, em alternativa, deve ser realizado um novo registo. Contestações Do 1.º Réu: alegou que o pedido formulado sob a alínea a), é inútil por indiscutível o direito de propriedade da falecida e os restantes pedidos devem improceder, porquanto não se verifica a nulidade invocada pelo Autor; os legados não fazem parte da herança, mas são encargos; todos os legados já se encontravam cumpridos por estarem desde a formalização do testamento na posse dos respetivos herdeiros; o legado em relação à Herdade 1... carece apenas de ser objeto de divisão em ação própria (já instaurada e onde será discutida a (im)possibilidade de divisão), razão pela qual procedeu ao registo do legado, não existindo qualquer vício no registo. Subsidiariamente, excecionou a prescrição do direito do Autor quanto à anulabilidade de qualquer disposição testamentária/legado ou testamento. Da 2.ª Ré: excecionou a legitimidade da 3.ª Ré, impugnou parte da factualidade, concluindo pela improcedência dos pedidos (exceto quanto ao da alínea a) que também tem por inútil), alegando, em suma, que inexiste qualquer nulidade ou anulabilidade das disposições testamentárias em causa, que, de qualquer modo, se verifica caducidade da arguição, e que o registo também não enferma de qualquer vício. Resposta O Autor respondeu às exceções deduzidas. Audiência Prévia Frustrou-se a tentativa de conciliação. O Tribunal a quo consignou por despacho: «Considerando o estado dos autos o Tribunal entende que os mesmos já contêm todos os elementos necessários para que as questões de mérito sejam conhecidas sem que se produza mais prova, nomeadamente prova testemunhal. Assim sendo, dá-se a palavra às partes para, querendo, digam ou requeiram o que tiverem por conveniente quanto a tal possibilidade.» Os I. Mandatários das partes nada opuseram e fizeram alegações orais. Saneador-Sentença Proferido em 22-05-2022, julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva da 3.ª Ré. Julgou improcedente a exceção perentória de caducidade. Quanto ao mérito, julgou a ação totalmente improcedente e absolveu os Réus do pedido. 1.º Recurso Inconformado, apelou o Autor pugnando pela revogação da sentença. A sentença veio a ser anulada por acórdão desta Relação de Évora de 15-12-2022, que ordenou o prosseguimento da normal tramitação dos autos ao abrigo dos artigos 595.º e seguintes do CPC, mantendo-se decidido em relação às questões prévias julgadas improcedentes (ilegitimidade passiva da Ré Conservatória do Registo Predial de ... e caducidade/prescrição do prazo de arguição da nulidade/anulabilidade da disposição testamentária). Audiência de discussão e julgamento Foi produzida prova e proferida sentença em 20-05-2024, que julgou a ação totalmente improcedente absolvendo os Réus do pedido. 2.º Recurso Mais uma vez, inconformado o Autor interpôs recurso, pugnando pela revogação da sentença e pela prolação de outra que julgue a ação procedente. Resposta ao recurso O 1.º Réu defendeu a improcedência da apelação e a confirmação da sentença. Suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso por o mesmo não conter verdadeiras Conclusões. Admissão do 2.º Recurso Por despacho proferido em 25-09-2024. Despacho de aperfeiçoamento das Conclusões Já nesta Relação, a ora Relatora convidou o Apelante a aperfeiçoar as Conclusões apresentadas. O Apelante respondeu ao convite em 09-01-2025. Por ter sido revogado o mandato conferido ao I.M. do 1.º Réu, foi o novo mandatário notificado para se pronunciar em relação ao aperfeiçoamento das Conclusões. O Apelado pronunciou-se no sentido do não conhecimento do recurso por as novas Conclusões continuarem a ser deficientes. Conclusões aperfeiçoadas «1. O A., ora Apelante, não concorda com a decisão recorrida que não considera juridicamente correcta, não respeitando o Direito, 2. Nem corresponde à redacção concreta do texto dos dois legados testamentários, por conta das legítimas, respeitantes à Herdade 1..." que se transcrevem: a. Por conta da legítima LEGA a seu filho AA, (...) a) metade indivisa do seu prédio misto denominado Herdade 1..., sito em ..., na freguesia de ..., concelho de ...; descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número dois mil trezentos e trinta e dois da freguesia de ...; bem como a sua casa de habitação sita na “Herdade 1...”, instalações anexas a esta constituídas pelo celeiro, garagem, cozinha e escritório; b. <<8. Por conta da legítima LEGA a seu filho BB, (...) metade indivisa do seu prédio misto denominado Herdade 1..., sito em ..., na freguesia de ..., Concelho de ..., sob o número dois mil trezentos e trinta e dois da freguesia de ...; bem como as construções neste existentes designadas vulgarmente por “...” e “Monte 1...”; 3. A Meritíssima Juíza a quo valorizou erradamente os depoimentos dos profissionais que elaboraram a versão irregular e ilegal da 2 a parte da redacção dos referidos legados, em inequívoca contradição com o próprio teor do testamento e o manifesto interesse próprio dos mesmos técnicos em não terem de reconhecer a sua própria falha e incapacidade profissional; 4. Os prédios urbanos integrados na “Herdade 1...” constituem no testamento uma disposição testamentária inequívoca da transmissão da propriedade total e plena dos mesmos pela testadora, a cada um dos legatários, e não uma mera meação indivisa, não sendo verdade que tais legados «representam uma mera declaração de vontade da autora do testamento quanto à utilização e futura divisão do imóvel”, 5. E que “tal declaração não tem quaisquer efeitos jurídicos”; 6. Também não é verdade que tal declaração seja semelhante à vontade da testadora quando deseja que os legatários ponham termo aos contratos de arrendamento celebrados em 28.02.06 respeitantes à Herdade 1..., situações manifestamente diferentes até juridicamente; 7. O Douto Tribunal a quo não teve em consideração o ponto e vírgula existente nas redacções dos legados antes de ... “bem como”... que é fundamental e altera o sentido da redacção influenciando a sua interpretação; 8. O A., ora Apelante, não aceitou o legado da metade indivisa da “Herdade 1...”, nem aceitou a cessação dos contratos de arrendamento realizados por sua falecida Mãe, a testadora, com todos os filhos legatários; 9. À data do testamento, o A. e 0 1 0 Réu BB não se relacionavam devido a conflitos existentes entre ambos, apesar de em 02.04.2006 terem acordado a permuta de exploração entre as áreas da Herdade 1..." e da "Herdade 3..."; 10. Através da instituição dos legados descritos no anterior n o 2 a testadora pretendeu deixar a Herdade 1..." ao A. e ao 1 0 Réu BB, na proporção de metade indivisa para cada um, e ainda definior a sua vontade quanto à divisão física do prédio no respeitante às edificações urbanas existentes, nos precisos termos descriminados por si nas referidas deixas testamentárias, o que não era possível à data, porquanto 11. A autonomização dos prédios urbanos integrantes do prédio misto “Herdade 1...” carecia de autorização prévia das entidades administrativas competentes e estava-se perante imóveis que eram em si um conjunto funcional e integrado na “Herdade 1...” e sua exploração agrícola; 12. Os prédios urbanos da “Herdade 1...” não são autónomos e independentes juridicamente, apesar de possuírem cadernetas prediais; 13. A testadora sempre quis dividir a “Herdade 1...” entre os dois filhos BB e AA, ora legatários, para evitar mais conflitos entre eles, que existiam como resultado da partilha de outra herança e eram do conhecimento da testadora; 14. O Facto Provado n.º 14 deve ser alterado terminando a sua redacção “na proporção de metade indivisa para cada um”, dado que a 2.ª parte do referido Facto Provado nada tem a ver com a solicitação da testadora no sentido de terminarem os contratos de arrendamento; 15. O Facto Provado no 15 deve ser aditado com o facto de, à data do testamento e também da sua morte, não existir qualquer processo administrativo para divisão da “Herdade 1...” ou autonomização dos prédios urbanos desta, quando tal processo administrativo é demorado; 16. O Facto Provado no 17 deve ser aditado com o facto de existirem na “Herdade 1...” outros prédios urbanos não atribuídos nos legados da testadora, como é o caso do Monte 2...; 17. Deve ser aditado um novo Facto Provado com o n.º 19 com o facto de a testadora ter legado metade indivisa da “Herdade 1...” a cada filho, querendo referir-se à parte rústica e aos prédios urbanos descriminados por si, atribuindo estes em propriedade total e plena a cada um; 1 8. Também deve ser aditado um novo Facto Provado com o n.º 20 identificando os contratos de arrendamento da “Herdade 1...# celebrados em 28.02.2006 em que são arrendatários os legatários AA e BB, indicando-se as áreas de arrendamento de cada um deles, respectivamente, de 575,629 hectares para o AA e de 192,971 hectares para o BB; 19. O Facto Não Provado constante da alínea A) deve ser dado como Provado, por ter sido confessado nos depoimentos de parte de CC e de BB; 20. A divisão pretendida pela testadora para a “Herdade 1...” procurava manter as áreas arrendadas por cada legatário para o mesmo e 21. As residências da “Herdade 1...” utilizadas por cada um deles na sequência dos referidos contratos de arrendamento também ficariam para cada um dos legatários em propriedade total; 22. As disposições testamentárias devem ser interpretadas nos termos do art.º 2187.º do Código Civil, tendo em consideração a vontade real do testador; 23. A vontade da testadora apurada na decisão recorrida não tem no texto dos legados em causa qualquer correspondência, mesmo considerando mínimos ou imperfeição está em manifesta contradição com o preceituado no art.º 2187.º n.º 2 do Código Civil; 24. O texto dos legados é inequívoco e atribui um verdadeiro legado também ao dispor dos prédios urbanos que identifica como se fossem imóveis autónomos e independentes juridicamente, quando não o são; 25. A testadora integrou nos legados inequivocamente os prédios urbanos que descriminou e identificou, depois, inclusive, de inserir um ponto e vírgula, continuando com o termo “bem como a sua casa de habitação” por exemplo; 26. O que foi ignorado pelo Douto Tribunal a quo, apesar de reconhecido nos depoimentos, quer de parte, quer de testemunhas, o que determina que deva ser dado como Facto Provado. 27. Todos os depoimentos de parte e depoimentos de testemunhas foram unânimes em tal vontade real da testadora, nomeadamente, quanto aos factos das anteriores conclusões n.ºs 17 e 21; 28. Os litígios existentes entre os legatários BB e AA e os litígios futuros se permanecesse a compropriedade entre ambos, a diferença de áreas dos arrendamentos e a natureza e estado das propriedades de cada uma das áreas em poder dos legatários, tornaram impossível a aceitação pelo A., ora Apelante, do legado de metade indivisa da “Herdade 1...” que lhe havia sido atribuído pela testadora; 29. Não é verdade que a declaração de vontade da testadora em relação aos prédios urbanos constantes dos legados seja uma declaração semelhante à declaração constante do testamento realizada pela testadora a respeito dos contratos de arrendamento da “Herdade 1...”, faculdade que dependeria da vontade dos legatários e não foi aceite por estes; 30. Na situação dos contratos de arrendamento, a testadora solicitou um desejo sobre o património da herança, enquanto na anterior — legado dos prédios - dispôs dos bens urbanos atribuindo pretensos legados, 31. Legados esses, na parte dos prédios urbanos ilegais e, como tal, nulos; 32. O não registo pela Conservatória do Registo Predial de ... dos prédios urbanos descriminados pela falecida quando do registo do legado atribuído a BB por este e pretensamente registados por este é elucidativo da ilegalidade constante dos legados e do testamento quanto a estes; 33. O que foi reconhecido pelo depoimento de parte da respectiva Conservadora do Registo Predial de ..., Dra. EE, ao considerar que não havia alternativa registral; 34. A falecida testadora pretendeu a divisão da “Herdade 1...” em partes iguais entre os legatários, mas segundo a sua vontade consignada expressamente no texto do testamento e não uma simples divisão em duas partes iguais, caso em que bastaria ter atribuído em cada legado a metade indivisa do prédio misto em causa; 35. A falecida quis mais, como determinada que era atribuindo em propriedade total e plena os prédios urbanos que indicou em cada legado e determinando uma linha divisória imaginativa da “Herdade 1...” que englobasse em cada meação os referidos prédios urbanos que indicou, o que 36. Não é juridicamente possível, sem um processo judicial de divisão de coisa comum ou uma escritura notarial que só é possível por acordo, situação que, sendo o legado por conta da quota legítima, determina um encargo para o herdeiro legitimário que este não aceitou e ofende o preceituado no art.º 2163.º do Código Civil; 37. Os legados em causa na forma pretendida pela testadora e nos termos e redacção realizados determinam um fim contrário à lei, violando o art.º 2186.º do Código Civil; 38. Como tal, devem ser considerados nulos na totalidade ou parcialmente, tendo em consideração os termos concretos em que foram elaborados e o seu texto concretamente, 39. Sendo sempre ilegais na redacção constante do testamento, o que tem efeitos jurídicos em situações de futura alienação do imóvel; 40. É impossível um legado incidir sobre uma parte especifica não autonomizado de um prédio; 41. A douta sentença a quo devia ter reconhecido que a ideia da falecida era dividir, em partes iguais, a “Herdade 1...” entre os filhos AA e BB e na prática “a parte urbana dividiu-a. Mas a parte rústica está indivisa”, não respeitando o Direito; 42. A sentença recorrida não apreciou a questão subjacente aos legados, nos termos do texto existente e respectivo teor constante do testamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de Direito; 43. Um legado não pode deixar de incidir sobre um bem determinado e autónomo e, se o fizer, não conduz à transmissão da titularidade do direito da testadora sobre qualquer bem concreto 44. O objecto dos legados em causa não foi devidamente identificado nos termos da lei; 45.O entendimento da douta sentença ora recorrida não tem fundamento ou suporte legal, 46. Tendo também implicações jurídicas se os titulares da propriedade da “Herdade 1...” quiserem proceder à sua divisão, que é possível ao contrário do que consta da douta sentença recorrida; 47. Além de um erro na apreciação da prova, também há um manifesto erro de julgamento; 48. A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 292.º, 2254 n.º 1 do Código Civil e nos arts. 607º n.º 5, 2163.º, 2186.º e 2187.º n.º 2 do C.P.C.; 49. Tal sentença deve ser revista, revogada e substituída por Venerando Acórdão, dando provimento ao recurso e fixando o âmbito dos respectivos legados.» II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto (com a introdução das alterações decorrentes da apreciação da impugnação da decisão de facto, que infra se identificam): FACTOS PROVADOS 1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...332/03012003, da freguesia de ..., o prédio misto denominado “Herdade 1...”, sito em ..., concelho de ..., composto por: terreno estéril, dependências agrícolas, montado de sobro, cultura arvense, figueiras, oliveiras, pomar de citrinos e horta; casa de habitação de um só pavimento; s.c. 136 m2; casa de habitação de um só pavimento, s.c. 140 m2; Casa de habitação de um só pavimento; s.c. 108 m2; casa de habitação de um só pavimento, s.c. 73 m2; casa de habitação de um só pavimento; s.c. 63 m2; um agregado de sete casas de rés-do-chão, destinadas a habitação, s.c. 244 m2; com a área total 868,6000 hectares; confrontações a Norte, ..., Sul e Poente, Herdade 4..., Nascente, Herdade 3...; integrado pelos prédios com a matriz predial 2, secção QQ1Q2 (de natureza rústica) e 517, 518, 519, 520, 521 e 805 (de natureza urbana). 2. A aquisição do prédio descrito em 1 mostra-se registada, através da Ap. 10/03012003, a favor de DD, viúva. 3. DD faleceu no dia ...-...-2017, no estado de viúva, deixando três filhos, o Autor, o 1.º Réu e a 2.ª Ré. 4. CC, AA e BB são os únicos herdeiros legitimários de DD. 5. Em 02-12-2016, DD outorgou testamento através do qual, além do mais: a. «7. Por conta da legítima LEGA a seu filho AA, (…) a) metade indivisa do seu prédio misto denominado Herdade 1..., sito em ..., na freguesia de ..., Concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número dois mil trezentos e trinta e dois da freguesia de ...; bem como a sua casa de habitação sita na “Herdade 1...”, instalações anexas a esta, constituídas pelo celeiro, garagem, cozinha e escritório; (…)». b. «8. Por conta da legítima LEGA a seu filho BB, (…) metade indivisa do seu prédio misto denominado Herdade 1..., sito em ..., na freguesia de ..., Concelho de..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número dois mil trezentos e trinta e dois da freguesia de ...; bem como as construções neste existentes designadas vulgarmente por ...” e “Monte 1...”; (…)» 6. DD declarou no testamento não fazer qualquer deixa por conta da sua quota disponível a seu filho AA, uma vez que em vida lhe fez uma doação por conta da sua Herdade 2..., sita em ..., concelho de ..., composta por parte urbana (artigo 781) e parte rústica (artigo 1 seção P). 7. DD declarou no testamento ser sua vontade que, se possível, os contratos de arrendamento que celebrou com o Autor e o 1.º Réu cessem com a sua morte. 8. O Autor não deu a sua anuência à eventual situação de compropriedade da Herdade 1... emergente dos legados acima identificados. 9. O Autor não aceitou a cessação dos contratos de arrendamento. 10. À data do testamento referido, o Autor e o 1.º Réu não se relacionavam devido a conflitos existentes entre ambos. 11. O Autor, AA não aceitou o legado referente à Herdade 1.... 12. Encontra-se registada a aquisição, por legado, por BB, de ½ do prédio descrito em 1., pela apresentação 1925, de 13/03/2017. 13. As habitações que integram a parte urbana do imóvel descrito em 1. possuem cadernetas prediais autónomas.
Por procedência da impugnação da decisão de facto, a redação do ponto 14., passa a ser o seguinte: 14. Através da instituição dos legados descritos em 5., a testadora DD, deixou, com referência à parte rústica do prédio, e a cada um dos legatários, metade indivisa do prédio misto “Herdade 1...” e, em relação à sua casa de habitação sita na “Herdade 1...”, instalações anexas a esta, constituídas pelo celeiro, garagem, cozinha e escritório, deixou a propriedade total e plena a seu filho AA, e em relação às construções também ali existentes designadas vulgarmente por ...” e “Monte 1..., deixou a propriedade total e plena a seu filho BB.
Por procedência parcial da impugnação, a redação do ponto 15 passa a ser a seguinte: 15. A autonomização dos prédios urbanos, integrantes do prédio misto identificado em 1., carece de autorização prévia das entidades administrativas competentes, através de processo administrativo que inexistia à data do testamento. 16. A casa de habitação, instalações anexas a esta, constituídas pelo celeiro, garagem, cozinhas e escritório aludidas em 5./a. correspondem aos artigos urbanos 517, 518, 519, 520, 521 e 805 e referem-se a construções existentes perto da casa principal do monte da Herdade 1..., e que são em si um conjunto funcional e integrado. 17. O ...” e o “Monte 3...” correspondem aos artigos 1160 e 1161, e referem-se a construções existentes, situadas longe da referida casa principal do monte da Herdade 1.... 18. Em ........2006, o Autor e o 1.º Réu acordaram na permuta de exploração entre as áreas da “Herdade 1...” e da “Herdade 3...”.» Aditamento à decisão de facto por procedência, nessa parte, da impugnação da decisão de facto: 19. Os contratos de arrendamento respeitantes à Herdade 1... têm como arrendatários o legatário AA com a área de 575,629 hectares e o legatário BB com a área de 192,971 hectares, segundo contratos celebrados em ........2006. FACTOS NÃO PROVADOS A. A. Através da instituição dos legados descritos em 5. DD prendeu dividir o prédio misto denominado Herdade 1.... B. À data do testamento supra referido, era impossível proceder à divisão da Herdade 1.... B. C. Os prédios urbanos integrantes do imóvel descrito em 1., não podem ser desanexados da parte rústica. III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões, a apreciar sucessivamente: - Questão prévia: do (in)cumprimento do convite ao aperfeiçoamento das Conclusões do recurso; - Impugnação da decisão de facto; - Do mérito da sentença: - Nulidade dos legados referentes à Herdade 1...; - Nulidade do registo a favor do 1.º Réu, ou, subsidiariamente, que se complemente ou elabore novo registo. 2. Questão prévia: do (in)cumprimento do convite ao aperfeiçoamento das Conclusões do recurso Vem o 1.º Réu, ora Apelado, defender que o recurso não deve ser admitido porquanto, apesar do convite ao aperfeiçoamento das Conclusões do recurso, as novas Conclusões violam o disposto nos artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, do CPC. Analisadas as Conclusões aperfeiçoadas, entendemos que não assiste razão ao Apelado. Comparativamente com as Conclusões inicialmente apresentadas (97), as aperfeiçoadas, que já não são uma mera repetição ad nauseam da motivação, revelam-se mais concisas e sintéticas (49), pelo que se tem por cumprido o disposto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC. Em relação ao disposto no n.º 4 do artigo 635.º do CPC, não se percebe o alcance da sua invocação, por o preceito se reportar à faculdade do recorrente delimitar objeto inicial do recurso. Sendo que o Apelado não concretiza mais nada sobre a invocação deste normativo. Em suma, não subsiste razão para se rejeitar o recurso por violação do convite ao aperfeiçoamento das Conclusões (artigo 639.º, n.º 3, do CPC, a contrario). 3. Impugnação da decisão de facto O Apelante impugna a decisão de facto em relação aos factos provados 14, 15, 17 pretendendo que a sua redação seja alterada; defende o aditamento de mais dois pontos a numerar como factos provados 19 e 20; e, finalmente, que a factualidade da alínea A. dos factos não provados seja dada como provada. Desde que preenchidos os requisitos do artigo 640.º do CPC, compete à Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, reapreciar a decisão de facto, em ordem a formar uma convicção própria com base na análise global e crítica da prova carreada para os autos, aferindo da correta valoração dos meios de prova produzidos e dos respetivos ónus de prova, sem descurar que falece nessa apreciação os contributos essenciais do princípio da imediação, tendo em conta a fundamentação da decisão de facto, bem como as razões da discordância invocadas pelo impugnante. No caso, o Recorrente cumpriu minimamente os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, pelo que se passa à reapreciação da decisão de facto impugnada. Facto provado 14: «Através da instituição dos legados descritos em 5. DD prendeu deixar o prédio misto denominado Herdade 1... ao Autor e ao 1.º Réu, na proporção de metade indivisa para cada um, e ainda, expressar a sua vontade quanto à futura divisão física do prédio no que respeita às edificações existentes, nos termos discriminados na deixa testamentária supra mencionada.» (sublinhado nosso) Defende o Recorrente que a redação deste ponto deve ser alterada eliminando-se o segmento ora sublinhado, porquanto o mesmo não assenta na prova produzida, nem do teor literal da deixa testamentária, para além de tal asserção ter sido contrariada pelos testemunhos de FF, GG, depoimento de parte da Ré CC e depoimento de parte do Réu BB e depoimento da testemunha Dr. HH, donde decorre, no entender do impugnante, que a ideia da testadora era manter a parte rústica da Herdade 1... indivisa e dividir a parte urbana. Nesse entendimento, defende o impugnante que deve ser aditado um novo ponto à matéria de facto provada (o facto provado 19), com o seguinte teor: «19. A testadora legou a cada um dos legatários metade indivisa do prédio misto “Herdade 1...” referindo-se à parte rústica e os prédios urbanos identificados por esta em cada legado, em propriedade total e plena, a cada um dos legatários.» Na fundamentação da decisão de facto quanto ao facto provado 14, consta o seguinte. «Facto 14: emerge, em especial do depoimento das testemunhas II (Notária) e HH (Advogado), de onde resultou que também estas se aperceberam das limitações da segunda parte dos legados identificados em 5., razão pela qual, afirmam ter advertido e explicado à testadora a impossibilidade de efetiva concretização dos mesmos, nesta parte, representando tal discriminação uma mera vontade cuja efetivação dependia da ulterior divisão física do prédio. Mais compreendemos que esta vontade assim manifestada é coerente com as declarações da 2.ª Ré, segundo a qual era necessário proceder à divisão da Herdade 1... para equilibrar as deixas testamentárias, considerando a dimensão e o valor da mesma e a inexistência de outros bens idênticos. Consequentemente, entendemos que a testadora não pretendeu, com a simples outorga do testamento, proceder à divisão física do imóvel, pois possuiria, à data, consciente da inviabilidade da sua formalização através da simples outorga do testamento (donde o facto não provado A.)» Analisemos, então, os meios de prova convocados pelo impugnante e pelo tribunal recorrido, sem descurar os demais não expressamente mencionados, pois o que está em causa é uma análise global e concatenada da prova e não a apreciação isolada do valor probatório de algum ou alguns meios de prova. Relembrando que o que está em apuramento, tal como se tinha já deixado clarificado no anterior acórdão proferido nos autos em 15-12-2022, é «apenas a vontade da testadora vertida no testamento público que deixou como correspondendo à sua última vontade, ou seja, a interpretação de um documento, no caso, autêntico (artigo 377.º do CC), sendo que não está colocada em dúvida a autenticidade de tal documento (…)», o que exige que, para além da análise do contexto do testamento (n.º 1, do artigo 2187.º do CC), ou seja, da literalidade do que ali ficou escrito, mas também das circunstâncias que rodearam a celebração do testamento, seja tida em conta a «prova complementar» (sem exclusão de qualquer meio de prova), mas com a advertência do n.º 2 do artigo 2187.º do CC, isto é, embora seja admitida a prova complementar, «não surtirá efeito qualquer vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.» Assim, se da prova complementar resultar que a vontade do testador não tem qualquer sentido ou cabimento em relação ao que ficou escrito no testamento, tal prova é ineficaz para interpretar e apurar a vontade real do testador. O tribunal a quo ficou convencido que a vontade da testadora era legar a metade indivisa do prédio misto Herdade 1... a cada um dos filhões varões (Autor e Réu) e expressar o desejo de futuramente, aquando da divisão física do prédio, no que respeita às edificações existentes, fosse acolhida a sua vontade nos termos exarados nas deixas testamentárias quanto à atribuição das casas de habitação. Analisada toda a prova, nos termos acima referidos, não podemos, de todo, formar convicção semelhante. Desde logo, porque atenta de forma clara e patente contra o teor das deixas testamentárias, quer no que concerne à literalidade do que ficou consignado, quer no que diz respeito ao contexto apurado em relação à celebração do testamento. Começando pela literalidade, afigura-se-nos inequívoco que as deixas testamentárias podem ser divididas em duas partes (sendo que a redação das mesmas é igual), ou seja, em duas orações, separadas entre si por um ponto e vírgula.1 Na primeira oração, a testadora lega por conta da legítima, a cada um dos filhos varões «metade indivisa do seu prédio misto denominado Herdade 1...», expressão que, em princípio abrangeria todas as componentes do imóvel, que sabemos ser composto por «terreno estéril, dependências agrícolas, montado de sobro, cultura arvense, figueiras, oliveiras, pomar de citrinos e horta», mas também por «casa de habitação de um só pavimento; s.c. 136 m2; casa de habitação de um só pavimento, s.c. 140 m2; Casa de habitação de um só pavimento; s.c. 108 m2; casa de habitação de um só pavimento, s.c. 73 m2; casa de habitação de um só pavimento; s.c. 63 m2; um agregado de sete casas de rés-do-chão, destinadas a habitação, s.c. 244 m2; com a área total 868,6000 hectares; confrontações a Norte, ..., Sul e Poente, Herdade 4..., Nascente,Herdade 3...; integrado pelos prédios com a matriz predial 2, secção QQ1Q2 (de natureza rústica) e 517, 518, 519, 520, 521 e 805 (de natureza urbana).» (Facto provado 1). Porem, na segunda oração, que começa após o ponto e vírgula, ficou escrito, «bem como» as casas que discrimina em relação a cada um dos legatários. A expressão «bem como» é uma alocução conjuntiva que expressa adição e um ligeiro valor comparativo e usa-se para «indicar que algo se faz ou acontece da mesma forma ou à semelhança de», podendo ter o sentido de «também» ou «assim como».2 No caso, a alocução «bem como» significa que a testadora também lega a cada um dos filhos as casas de habitação que discrimina. Não se pode inferir da leitura do que ficou escrito que o legado não abranja as casas de habitação exatamente porque existe uma intrínseca ligação entre as duas orações que ficou expressa na referida alocução «bem como». Deste modo, os legados abrangem, na literalidade do que ficou escrito, duas realidades distintas: por um lado, o terreno e, por outro lado, as casas. Falta, contudo, apurar se em relação às casas a vontade da testadora foi a de fazer um legado nos termos que deixou consignado em relação ao terreno (ou seja, ½ indivisa para cada filho) ou se, ao invés, não teve em mente a indivisão, mas a propriedade plena de cada uma das casas. É sobre esta específica dúvida que incide a necessidade de interpretação da vontade da testadora. Nesta ótica, a contextualização da feitura do testamento (que revogou um anterior, cujo teor se desconhece) ganha relevo por já pré-existirem contratos de arrendamentos celebrados com os filhos que tinham permitido, nomeadamente, após a permuta referida no facto provado 18 (não impugnado) que os filhos utilizassem a Herdade 1..., aparentemente, em moldes semelhantes àquelas que decorrem do teor das deixas testamentárias, o que vai de encontro à prova produzida em audiência de discussão e julgamento. Por outro lado, tendo ficado provado que à data do testamento, os irmãos não se relacionavam devido a conflitos existentes entre ambos (facto provado 10, não impugnado), e disso sabendo a mãe (como decorre de forma inquestionável dos depoimentos prestados por quem bem os conhecia, desde logo, a irmã), o que sai evidenciado é que a testadora quis perpetuar a utilização que os filhos já faziam da Herdade 1... por via dos contratos de arrendamento, agora, como comproprietários/proprietários da Herdade 1..., manifestando, aliás, o desejo de ver cessados os ditos contratos de arrendamento. Ora, se os filhos não partilhavam de forma indistinta as casas existentes na Herdade 1..., mas antes cada um deles usava casas determinadas, não se pode inferir que a vontade da testadora fosse outra que não a de legar a cada um dos filhos a propriedade plena das casas que discrimina nas deixas testamentárias. Cabe, agora, questionar se a prova complementar produzida em julgamento vem ao encontro do que resulta da análise do teor e contexto do testamento. E parece-nos, sem dívida, que a resposta é positiva. Da análise das declarações de parte da Ré, ressalta que nunca falou com a mãe sobre o assunto e, portanto, as declarações de parte da Ré não assentem em conhecimento real e efetivo do que fosse o pensamento (vontade) da mãe. São declarações interpretativas da realidade que observava. Não podem ser tidas como decisivas na análise em curso. As declarações de parte do Réu sofrem da mesma pecha, pois declarou que nunca falou com a mãe sobre a questão da divisão do prédio. Em relação ao testemunho da conservadora que lavrou o registo referido no ponto 12 dos factos provados (EE), também nada se colhe em termos probatórios por ter declarado nada saber sobre essa matéria. O mesmo se diga do depoimento da testemunha FF que assumiu basear o seu depoimento na sua própria opinião e não na vontade da testadora que confessa não ter apurado junto da mesma. Os testemunhos de JJ e de GG também são meramente opinativos já que não decorrem de conversas que tenham tido com a testadora. Os depoimentos das testemunhas KK e LL centram-se na questão da divisibilidade da Herdade 1..., o que algo é diverso do que estava em causa apurar, ou seja, a vontade da testadora. Do mesmo modo, os testemunhos de MM, NN e OO também são imprestáveis para o que estamos a analisar por as testemunhas nada de concreto saberem sobre a matéria. Finalmente, restam os depoimentos testemunhais de PP, notária perante a qual foi outorgado o testamento, e de HH, advogado, que participou nos trâmites relacionados com a elaboração do testamento. São testemunhos essenciais por assentarem no conhecimento direto da vontade da testadora dada a participação que tiveram na outorga do testamento. Ora, destes depoimentos sai evidenciado que a testadora quis de livre vontade e de forma esclarecida, porque lhe foi dito quais as dificuldades legais que existiam em relação ao modo como quis delinear os legados, atenta a natureza do prédio Herdade 1... (prédio misto composto por terreno e com casas inscritas em matrizes urbanas, incorporados no mesmo), deixar (legar) em compropriedade, na percentagem de 50% para cada um dos irmãos, a parte rústica da Herdade 1... e, simultaneamente, deixar (legar) a totalidade dos prédios que discriminou a cada um dos mesmos filhos. Tendo a testemunha HH confirmado que a vontade da testadora foi a de formalizar no testamento o que já vinha sucedendo na prática, ou seja, ambos os filhos exploravam a parte rústica do imóvel e cada um deles utilizava em exclusivo as construções discriminadas nas deixas testamentárias, em conformidade com o que ocorria por via dos contratos de arrendamentos celebrados. Estes depoimentos vêm, no fim de contas, a corroborar o que já decorrida da análise da literalidade e do contexto relativo à elaboração do testamento, nos termos que acima deixámos refletidos. O facto da testadora ter sido avisada das dificuldades legais que existiam com a forma como quis fazer os legados, não altera em nada a conclusão alcançada, porque se a vontade de legar naqueles termos se tivesse transformado por via das referidas dificuldades, num mero desejo de futuramente a partilha ser feita daquele modo, a redação das deixas testamentárias teriam de algum modo evidenciar isso, tal como expressou, aliás, em relação à cessação dos contratos de arrendamento – cfr. ponto 7 dos factos provados. Ora, um legado tem um determinado conteúdo e implicações jurídicas, pois é uma forma de atribuir na sucessão mortis causa a uma pessoa bens ou valores determinados (artigo 2030.º, n.º 2, do CC). Os legados são instituídos em testamento, permitindo a lei que o autor da herança deixe um legado a um herdeiro legitimário em substituição da legítima, ou um legado por conta da legítima (artigos 2249.º e ss do CC). Deste modo, os legados não são apenas ou só a expressão de um desejo do testador em que a partilha se faça de determinada forma no futuro em relação a certos e determinados bens, pois os legados condicionam e conformam o modo como determinados bens serão partilhados. Por essa razão, não se pode acompanhar o entendimento do tribunal a quo quando justifica a redação do ponto 14 dos factos provados dizendo que a discriminação das casas mencionadas nas deixas testamentárias, não são legados, mas apenas a expressão «de uma mera vontade cuja efetivação dependia da ulterior divisão física do prédio». Não se afigura que assim seja. A testadora, apesar de ter sido elucidada sobre a impossibilidade de efetiva concretização da deixa testamentária no que diz respeito às habitações (sendo que os esclarecimentos foram dados por pessoas com conhecimento jurídicos sobre aquele tipo de matérias) decidiu que os legados eram feitos daquele modo, expressando, assim, a sua vontade de legar, na totalidade e não em compropriedade a cada um dos filhos, as habitações que menciona nas deixas testamentárias, fosse ou não possível proceder daquele modo, o que na altura do testamento até sabia que nem sequer era. Em face do exposto, impõe-se a procedência da impugnação do facto provado 14, eliminando-se o segmento impugnado, e aditando-se o que a prova ditou sobre a interpretação das deixas testamentárias em causa sobre os legados referentes às casas de habitação, que corrobora a procedência do aditamento pedido como correspondendo ao facto provado 19, incluindo a nova redação do ponto 14 toda a factualidade provada. Nestes termos, a redação do ponto 14 dos factos provados passa a ser a seguinte: 14. Através da instituição dos legados descritos em 5., a testadora DD, deixou, com referência à parte rústica do prédio, e a cada um dos legatários, metade indivisa do prédio misto “Herdade 1...” e, em relação à sua casa de habitação sita na “Herdade 1...”, instalações anexas a esta, constituídas pelo celeiro, garagem, cozinha e escritório, deixou a propriedade total e plena a seu filho AA, e em relação às construções também ali existentes designadas vulgarmente por ...” e “Monte 1..., deixou a propriedade total e plena a seu filho BB. Em relação à alínea A. dos factos não provados, a impugnação improcede, porquanto o que se apurou em termos de vontade da testadora foi de atribuir a propriedade indivisa da parte rústica a cada um dos legatários e a propriedade plena, a cada um deles, em relação às casas e construções referidas nas disposições testamentárias, e não propriamente a de dividir o prédio. Ademais, o termo dividir no contexto da controvérsia trazida aos autos quanto à nulidade das deixas testamentárias, sempre teria natureza jurídico-conclusiva, logo insuscetível de constar da factualidade dada como provada. Tudo sem embargo de em sede própria, ou seja, em termos de análise de mérito, se analisar quais as consequências jurídicas do modo como a testadora expressou a sua vontade através das deixas testamentárias em causa. Deste modo, improcede a impugnação da decisão de facto em relação à alínea A. dos factos não provados. Facto provado 15 («A autonomização dos prédios urbanos, integrantes do prédio misto identificado em 1., carece de autorização prévia das entidades administrativas competentes.») Pretende o impugnante que a redação deste ponto seja alterada e que passe a ser: «A autonomização dos prédios urbanos, integrantes do prédio misto identificado em 1., carece de autorização prévia das entidades administrativas competentes, através de processo administrativo que é demorado e inexistia à data do testamento.» (sublinhado o trecho pretendido aditar). Embora o segmento pretendido aditar conste da alegação vertida na p.i. (cfr. artigos 42.º, 57.º, 62.º e 73.º da p.i.), em relação à demora do procedimento administrativo não se justifica o aditamento porque encerra um juízo conclusivo. Mas já não assim em relação à inexistência de processo administrativo com vista à autonomização dos prédios urbanos, porquanto tal matéria nem sequer se encontra impugnada. Nestes termos, procede parcialmente a impugnação em relação ao ponto 15 dos factos provados, pelo que a redação do facto provado 15 passa a ser a seguinte: 15. A autonomização dos prédios urbanos, integrantes do prédio misto identificado em 1., carece de autorização prévia das entidades administrativas competentes, através de processo administrativo que inexistia à data do testamento. Facto provado 17 («O ...” e o “Monte 3...” correspondem aos artigos 1160 e 1161, e referem-se a construções existentes, situadas longe da referida casa principal do monte da Herdade 1....») Pretende o Recorrente que a redação deste ponto de facto seja alterada para: «O ...” e o “Monte 3...” correspondem aos artigos 1160 e 1161, e referem-se a construções existentes, situadas longe da referida casa principal do monte da Herdade 1..., existindo ainda outras construções não constantes dos legados atribuídos, como o Monte 2....» (sublinhada a parte pretendida aditar) A impugnação improcede, porquanto é perfeitamente irrelevante para o que está em apuramento, uma vez que os legados não se reportam às construções referidas pelo impugnante, nem se vê de que modo a referência às mesmas possa ter qualquer influência no descortinar da vontade da testadora. Nesses termos, e em face do artigo 130.º do CPC, o aditamento é inútil e, por isso, improcede. Em relação ao aditamento de novos factos, resulta do acima referido que o pretendido aditamento de um ponto 19, ficou absorvido pela alteração da redação do facto provado 14. Em relação ao aditamento de um novo ponto com o número 20 com a seguinte redação: «Os contratos de arrendamento respeitantes à Herdade 1... têm como arrendatários o legatário AA com a área de 575,629 hectares e o legatário BB com a área de 192,971 hectares, segundo contratos celebrados em 19.04.2006», procede o pedido de aditamento considerando a junção aos autos dos referidos contratos de arrendamento (Requerimento do Autor de 28-02-202), que não foram impugnados. Nestes termos, procede o pedido de aditamento da decisão de facto, aditando-se à decisão de facto o ponto 19 com o seguinte teor: 19. Os contratos de arrendamento respeitantes à Herdade 1... têm como arrendatários o legatário AA com a área de 575,629 hectares e o legatário BB com a área de 192,971 hectares, segundo contratos celebrados em 19.04.2006. 4. Do mérito da sentença 1. Nulidade das deixas testamentárias referentes aos legados da Herdade 1... em causa nos autos Por via do pedido formulado sob a alínea b) do petitório, o Autor pretende que se declare a «nulidade das doações constantes das disposições testamentárias de 02.12.2016 referentes à “Herdade 1...”, e subsequente inexistência e nulidade dos legados atribuídos, por o ato dispositivo da falecida ser contrário à Lei e ter visado a divisão do prédio misto indiviso e/ou ser impossível, à data, por motivo das instalações urbanas não serem passíveis do fracionamento referido e pretendido pela testadora e, em qualquer caso, por ofensa dos artigos 2163.º e 2186.º, 1, do Código Civil, o primeiro face à não aceitação do autor e ineficácia da pretendida doação ao autor.» Encontra-se agora factualmente estabilizada o teor, o sentido e a abrangência dos legados instituídos como decorre do facto provado 14. Ou seja, «Através da instituição dos legados descritos em 5., a testadora DD, deixou, com referência à parte rústica do prédio, e a cada um dos legatários, metade indivisa do prédio misto “Herdade 1...” e, em relação à sua casa de habitação sita na “Herdade 1...”, instalações anexas a esta, constituídas pelo celeiro, garagem, cozinha e escritório, deixou a propriedade total e plena a seu filho AA, e em relação às construções também ali existentes designadas vulgarmente por ...” e “Monte 1..., deixou a propriedade total e plena a seu filho BB.» A primeira questão a clarificar é que «legados» não são «doações». O legado encontra-se tratado nos artigos 2249.º a 2280.º do CC, na Secção III (Legados) do Título IV (Da sucessão testamentária), Capítulo VI (Conteúdo do testamento), ou seja, os referidos normativos fazem parte do Livro V do Código Civil dedicado ao Direito das Sucessões. Como já acima referido, o legado corresponde a uma forma de atribuir na sucessão mortis causa a uma pessoa bens ou valores determinados (artigo 2030.º, n.º 2, do CC). Os legados são instituídos em testamento, permitindo a lei que o autor da herança deixe um legado a um herdeiro legitimário em substituição da legítima, ou um legado por conta da legítima (artigos 2249.º e ss do CC). O legado apenas produz apenas efeitos após a morte do testador. E são-lhe aplicáveis as regras sobre a aceitação e repúdio da herança (artigo 2249.º do CC). O legatário não pode aceitar um legado em parte, repudiando-o noutra parte, mas pode aceitar um legado e repudiar outro ou, caso seja simultaneamente herdeiro e legatário, pode aceitar a herança e repudiar o legado e você-versa (artigo 2250.º do CC). Já a doação é um contrato definido no artigo 940.º do CC por via do qual uma pessoa (o doador), por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente (o donatário). Assim, a doação é um contrato bilateral, gratuito, de natureza real quod effectum, mas, simultaneamente, obrigacional, e tem como efeito essencial a transmissão da titularidade do bem do doador para o donatário nos mesmos termos em que existia na esfera jurídica do doador (artigos 930.º, 940.º e 954.º, alíneas a) a c), do CC). A doação produz efeitos em vida do doador e, em regra salvo nos casos previstos na lei, é proibida a doação por morte (artigo 946.º, n.º 1, do CC). Todavia, pode ser tida como disposição testamentária a doação que houver de produzir efeitos por morte do doador, se observadas as formas as formalidades dos testamento (artigo 946.º, n.º2, do CC); mas estando em causa bens imóveis, a doação só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado. No caso em apreço, atento o teor e a forma das deixas testamentárias em apreciação, incluindo a menção a legados e não a doações por morte, não nos suscita qualquer dúvida interpretativa, em face da norma específica do artigo 2187.º do CC, que a vontade real da testadora foi a de instituir legados e não doações. Consequentemente, o pedido referente à declaração de «nulidade das doações constantes das disposições testamentárias de 02.12.2016 referentes à “Herdade 1...”» não pode deixar de improceder. Resta, contudo, aferir se as referidas deixas testamentárias que instituíram os legados nos termos apurados nestes autos, são nulas. Para o efeito importa lançar mão do disposto no artigo 2186.º do CC, que prescreve: «É nula a disposição testamentária, quando da interpretação do testamento resulte que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.» Previsão que tem como paralelo, nos negócios inter vivos, a previsão do artigo 281.º do CC, embora a lei exige, nesse caso, que o fim seja comum a ambas as partes, o que obviamente não sucede na disposição testamentária dada a sua natureza unilateral. Basta que a motivação resida na vontade do testador e que a motivação global do fim que a determina seja censurável ou reprovável nos termos previstos no artigo 2186.º do CC, sendo esta a razão da ratio legis da norma ao decretar a nulidade total da deixa testamentária.3 Apesar da ampla liberdade que a lei concede ao testador de expressar a sua última vontade por via testamentária, estabelece limites que decorrem, por um lado, da nulidade do testamento no seu todo (cfr. artigos 2180.º, 2181.º e 2190.º do CC), mas também, e por outro lado, da nulidade de disposições (deixas) do testamento, avultando no que ora releva, o referido artigo 2186.º do CC, sublinhando-se que a nulidades de uma ou algumas das disposições testamentárias não prejudica as restantes.4 Em termos gerais, a deixa testamentária é nula se tiver sido, essencialmente, determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública ou é ofensiva dos bons costumes, como enuncia o referido artigo 2186.º do CC. No caso sub judice, a alegação do Autor situa-se no primeiro dos motivos da tríade prevista no preceito, ou seja, no fim contrário à lei. Sendo que, de um modo geral, até por recurso à interpretação que é feita da norma geral prevista no artigo 281.º do CC, é contrária à lei a disposição que viole norma imperativa ou proibitiva, ou seja, quando a disposição visa um objeto ou um resultado que a lei não permite ou quis evitar (negócios contra legem e em fraude à lei). Na alegação do Recorrente, no caso das deixas testamentárias em apreciação, o fim contrário à lei consiste em dividir um prédio misto indiviso, o que impossibilita a concretização dos legados, para além do regime de compropriedade impor um ónus sobre o prédio e um encargo com a divisão da coisa comum. Centremo-nos, por ora, na questão da instituição de legados sobre um prédio misto constituindo sobre a parte rústica uma situação de compropriedade (o que resulta de ter sido legado a cada um dos legatários ½ da parte rústica) e, também a cada um dos legatários, a totalidade do direito de propriedade sobre as casas e construções mencionadas nas deixas testamentárias. A qualificação jurídica do imóvel (Herdade 1...) como prédio misto é de natureza meramente fiscal e tributária (cfr. artigo 82.º, n.º 1, alínea b), do Código de Registo Predial), porquanto nos termos do artigo 204.º, n.º 2, do CC, os prédios são classificados como rústicos ou urbanos segundo um critério funcional ou económico, o que decorre da respetiva previsão do preceito ao estipular: « Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.» No caso, atento o referido critério funcional e económico, em termos civilísticos, a classificação da Herdade 1... corresponde à prevista na norma para os prédios rústicos. O que não invalida que nele estejam incorporadas componentes urbanas que correspondem às edificações incorporados no solo rústico. Porém, não são dotadas de autonomia jurídica; e tanto assim é que não se encontram descritas de forma autónoma na respetiva conservatória do registo predial, existindo apenas a sua inscrição matricial, a qual serve fins essencialmente tributários. Na verdade, os factos jurídicos sujeitos a registo constam das inscrições, lendo-se no artigo 91.º, n.º 1, do Código de Registo Predial, que «As inscrições visam definir a situação jurídica dos prédios, mediante extrato dos factos a eles referentes.» A finalidade última é a publicitação dos correspondentes direitos. A relação jurídica registral é, assim, publicitada em função dos seus elementos: os sujeitos (ativos e passivos), o objeto (prédio) e o facto que se inscreve.5 As operações de loteamento (aqui usada a expressão em sentido amplo, significando divisão do prédio mediante determinadas condições) por implicarem uma autonomização jurídica e material, também estão sujeitas a autonomização tabular por as mesmas interferirem com a identidade do imóvel (cfr. artigo 80.º, n.º 3, do Código de Registo Predial). A inexistência dessa autonomização tabular determina a conclusão que a parte urbana de um determinado imóvel rústico, ainda que esteja descrito em termos registrais como misto, não tem autonomia jurídica.6 Sendo assim, e estando em causa a transmissão do direito real de propriedade sobre certa coisa (imóvel) por via da instituição dos legados, o legado teria de ser instituído de forma uniforme sobre toda coisa legada por a mesma, em termos jurídicos, ser apenas uma, não podendo ser decomposta numa parte rústica e outra(s) urbana(s) sem qualquer correspondência com a realidade jurídica do imóvel, apenas por vontade da testadora. Efetivamente, a tal se opõe a natureza imperativa das normas que regem o urbanismo e fracionamento ou loteamento de imóveis que exigem, em defesa do interesse público subjacente a esses regimes, procedimentos próprios para se efetuar a desanexação e destacamento de parcelas, e cuja infração gera a nulidade desses atos de fracionamento (cfr. artigos 1376.º a 1379.º do CC, e, v.g., artigos 3.º a 6.º, Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12 – Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE, para além das condicionantes que decorram do PDM em vigor naquela região). Efetivamente, a vingarem as deixas testamentárias em causa, verificar-se-ia um fracionamento do imóvel Herdade 1... por via da autonomização da(s) parcela(s) urbana(s), dando origem a prédios distintos (rústico e urbanos), antecedido, aliás, de um ato de transferência do direito de propriedade plena das partes urbanas para os legatários com efeitos à data da abertura da sucessão (artigo 2031.º do CC), sem que tivesse sido dado cumprimento às regras imperativas sobre o fracionamento e desanexação de imóveis. Não se quer com isto dizer que o prédio não tenha condições para juridicamente poderem ocorrer essas desanexações e destacamentos porque, na verdade, não existindo sequer qualquer procedimento nesse sentido à data do testamento, nem se pode, em consciência, formular qualquer juízo positivo ou negativo sobre essa questão. Porém, o que se apurou foi que, quer à data da outorga do testamento, quer à data da morte da testadora, não existia destacamento/desanexação da parte urbana. Por conseguinte, estamos perante um único imóvel rústico sobre o qual foram instituídos legados comos se estivéssemos perante um prédio rústico e vários prédios urbanos, o que não corresponde à realidade jurídica e tabular do imóvel. E sendo assim, como se concluiu no Acórdão desta Relação de Évora de 07-12-2023, «Consistindo o legado na atribuição de bens ou valores determinados, afastada se encontra a possibilidade de incidir sobre uma parte específica não autonomizada de um prédio urbano».7 A constituição de um legado nesses termos, evidencia que as disposições testamentárias referidas nos factos provados 5, nos termos apurados no ponto 14 dos factos provados (redação dada neste acórdão) na sequência do apuramento da real vontade da testadora, foi determinada, essencialmente, por um fim contrário à lei, pelo que são nulas como previsto no artigo 2186.º do CC. O que, por sua vez, implica que fiquem prejudicadas as demais questões suscitadas na apelação referentes ao alegado ónus decorrente do regime de compropriedade e encargo com a respetiva divisão (artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Nestes termos, alcança-se a conclusão que a sentença recorrida não pode subsistir e deve ser julgado procedente o pedido da alínea b) do petitório (com exceção da parte referente à parte da nulidade das alegadas doações pelas razões supra expostas). 2. Nulidade do registo a favor do 1.º Réu, ou, subsidiariamente, que se complemente ou elabore novo registo O Autor formulou o pedido de declaração da nulidade do registo a favor do Réu BB, realizado por este em 03-03-2017 – Apresentação nº 1925 -, de metade da referida Herdade 1..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º 781 do Livro n.º 2, por aplicação dos artigos 16.º, b), e 43.º, 1, do Código do Registo Predial, e ainda que seja ordenada a extinção das inscrições e descrições respetivas. Subsidiariamente, que se proceda ao registo complementar, com referência ao solicitado com a Apresentação n.º 1925 de 13-03-2017, do ónus de eventual redução das doações sujeitas a colação nos termos da alínea r) do n.º 1 do artigo 2.º do Código de Registo Predial e do artigo 2118.º, 1, do Código Civil, o qual devia ter sido realizado, simultaneamente, com a referida Apresentação n.º 1925 ou, em alternativa, a sua inscrição como novo registo. Vejamos. Como ficou provado no ponto 12 dos factos provados, «Encontra-se registada a aquisição, por legado, por BB, de ½ do prédio descrito em 1., pela apresentação 1925, de 13/03/2017.» Consta da respetiva certidão predial (cfr. fls. 34v a 35v) que a causa do registo é um legado e que a quota adquirida sobre o imóvel com a inscrição 2332/20030103, denominado Herdade 1..., é de ½. De acordo com o artigo 1.º do Código do Registo Predial, «O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário». Não tendo o registo no nosso sistema, em regra, natureza constitutiva do direito, decorre do artigo 7.º a presunção de que o «direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.» Todavia, a prevalência da realidade substantiva sobre a realidade registal constitui fundamento que permite elidir a referida presunção ditada pelo registo definitivo. A elisão da presunção tabular pode resultar de vícios que afetam o registo e que podem ser a inexistência, a nulidade e a inexatidão. A inexistência jurídica determina que se ignore o registo, tal como se ele não tivesse sido efetuado. Atualmente, a inexistência jurídica do registo está confinada às situações em que é insuprível a falta de assinatura do registo (artigo 14.º do Código de Registo Predial), ou seja, fora das situações previstas no artigo 78.º do mesmo Código onde consta o suprimento da falta de assinatura. A inexatidão do registo verifica-se quando o registo se mostra lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enfermar de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade, e pode ser retificada por averbamento (artigos 18.º, n.º 2, e 120.º e ss do Código de Registo Predial), passando o registo a considerar-se perfeito e inatacável. Já a nulidade do registo encontra-se prevista no artigo 16.º do Código de Registo Predial. Uma das causa de nulidade – que é a invocada pelo ora Apelante – encontra-se prevista na alínea b) do referido artigo 16.º, ou seja, o registo é nulo «Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova do facto registado.» Como adverte Joaquim de Seabra Lopes8, para além das causas de nulidade do registo prevista neste normativo, «Deve ter-se ainda presente que, como resulta do disposto nos art.ºs 294.º e 295.º do CC, são nulos os atos jurídicos praticados contra disposição legal de carácter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei»; acrescentado de seguida: «Por consequências, a nulidade do título, situação não prevista na enumeração do art.º 16.º, terá necessariamente de acarretar, quando declarada, a nulidade do registo.» No mesmo sentido se pronúncia Isabel Pereira Mendes, em anotação ao artigo 16.º, alínea b), do Código de Registo Predial, reportando-se ao âmbito das alíneas a) e b) do referido preceito, quando escreve: «(…) o mesmo artigo é manifestamente incompleto na enumeração dos casos de registo nulo», acrescentado «Não pode deixar de ser considerado como tal um registo lavrado com base em título ferido de nulidade que serviu de base ao registo (…).»9 O raciocínio supra mencionado igualmente se aplica quando está em causa um ato testamentário praticado contra normas de caráter imperativo por tal decorrer do artigo 2186.º do CC, como supra analisado. Não está em causa que o testamento que institui um legado constitua título bastante para o registo da aquisição por parte do legatário desde que seja certa e determinada a identificação do mesmo, como sucede no caso em apreço.10 A questão radica na nulidade da deixa testamentária. Sendo o título que serviu de base ao registo nulo, também é nulo o registo por ter sido lavrado com base em título, que na terminologia do artigo 16.º, alínea b), do Código de Registo Predial, é insuficiente para prova legal do facto registado. Por outro lado, e como se concluiu no Acórdão desta Relação de Évora de 28-03-201911, a declaração de nulidade de um registo pode ser objeto de ação judicial onde é formulado tal pedido. No caso, não suscitando dúvidas a identidade do legatário, a verdade é que o registo de ½ do imóvel Herdade 1... tendo como causa o legado não tem correspondência exatamente igual ao teor da deixa testamentária, porquanto a mesma também se reportava à partes urbanas do imóvel, realidade que foi ignorada ao ser lavrado o referido registo. Deste modo, existe uma desconformidade entre o título e o registo apresentando-se aquele como insuficiente para determinar o registo do legado nos termos em que foi realizado. O que viola o princípio da legalidade previsto no artigo 68.º do Código de Registo Predial e deveria ter determinado a apreciação da viabilidade do pedido de registo no que concerne à validade substantiva dos ato dispositivo titulado no testamento (legado) e a consequente recusa do registo12 por estar em causa um legado que também abrangia partes não autónomas do imóvel Herdade 1.... Não tendo tal ocorrido, o que se verifica é a nulidade do registo por via do artigo 16.º, alínea b), do Código de Registo Predial. E sempre tal conclusão sai reforçada em face da declaração judicial de nulidade do legado por via do presente acórdão. Nestes termos, procede o pedido de declaração de nulidade do registo, ficando, desse modo, prejudicada a apreciação do pedido subsidiário (artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelados, porquanto o decaimento do Apelante é meramente qualitativo (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP. IV- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença na parte recorrida, condenando os Réus nos pedidos objeto deste recurso, e, nessa conformidade, declaram a nulidade das deixas testamentárias de 02-12-2016, que instituíram os legados referidos no ponto 5 dos factos provados, declarando igualmente a nulidade do registo a que se refere o ponto 12 dos factos provados, julgando, ademais, prejudicadas as demais questões colocadas no recurso. Custas pelos Apelados. Évora, 27-03-2025 Maria Adelaide Domingos (Relatora) António Fernando Marques da Silva (1.º Adjunto) Manuel Bargado (2.º Adjunto)
_________________________________________________________ 1. Em termos de ortografia, o ponto e vírgula é um «Sinal ortográfico de pontuação (;) que se utiliza para separar partes de uma lista ou partes de uma frase que se podem entender separadamente e que pode corresponder na leitura oral a uma pausa superior à da vírgula, mas inferior à do ponto final (Cfr. "ponto e vírgula", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/ponto%20e%20v%C3%ADrgula).↩︎ 2. Cfr. in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/bem%20como.↩︎ 3. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 301 e 366.↩︎ 4. Neste sentido, cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, Coimbra Editora, p. 86.↩︎ 5. MOUTEIRA GUERREIRO, Temas de Registos e de Notariado,“Notas de Direito Registral: O Pedido, o Processo e os Actos de Registo”, Almedina, Janeiro 2010, p. 87.↩︎ 6. Cfr., neste sentido, Ac. RE, de 07-12- 2023, proc. n.º 682/20.7T8TMR.E1, em www.dgsi.pt↩︎ 7. Proferido no proc. n.º 5882/21.0T8STB.E1, em www.dgsi.pt↩︎ 8. Direito dos Registos e do Notariado, Almedina, 10.ª ed., p. 392.↩︎ 9. Código do Registo Predial, Anotado e Comentado, Almedina, 17.ª ed., p. 222.↩︎ 10. Cfr. Rui Januário e António Gameiro, Direito Registral Predial, QJ, 2016, p. 310.↩︎ 11. Proferido no proc. n.º 1769/17.9T8STR.E1, em www.dgsi.pt↩︎ 12. Cfr. Mouta Guerreiro, Temas de Registos e de Notariado, Almedina, 2010, pp. 53-60.↩︎ |