Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO ASSISTENTE REQUISITOS CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DENÚNCIA CALUNIOSA | ||
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Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. O requerimento de abertura de instrução (RAI) não está sujeito a formalidades especiais (artigo 287.º, § 2.º CPP), mas quando é formulado pelo assistente (por discordar da decisão que encerrou o inquérito), a mais da fixação do objeto da instrução (das razões de discordância com a decisão do Ministério Público), o RAI deverá equivaler a uma «acusação alternativa», id est, deverá conter uma verdadeira acusação.
II. Mas a alegação do conhecimento da proibição só é indispensável no âmbito do direito contraordenacional ou do direito penal secundário, relativamente a incriminações de menor carga axiológica ou de carga axiológica neutra.
III. No respeitante aos demais crimes - relativamente aos quais a ilicitude é de todos conhecida -, na medida em que isso integra o conhecimento normalmente exigível do homem comum, não é necessário alegar a consciência da ilicitude, por ela estar pressuposta.
IV. Nestes casos o que deveras releva, para que o agente se livre de punição, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do CP, é a prova do facto que integre a inconsciência dessa realidade jurídica. | ||
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Decisão Texto Integral: | I - Relatório a. No termo do inquérito o Ministério Público considerou não estarem reunidos indícios suficientes da prática pelo arguido AA, relativamente à assistente BB, dos crimes de violência doméstica, previsto no artigo 152.º do Código Penal (CP) e de denúncia caluniosa, previsto no artigo 365.º, § 1.º CP, determinando o respetivo arquivamento. Considerando que os autos continham indícios suficientes da prática dos aludidos ilícitos, dos quais se considera vítima, a assistente requereu a abertura da instrução, visando a pronúncia do arguido pela prática dos mesmos. Recebidos os autos no 2.º Juízo (1) de Instrução Criminal de Santarém, a Mm.a Juíza não admitiu a abertura da fase de instrução, por considerar que o requerimento não reunia os requisitos necessários. b. Inconformada com tal decisão a assistente interpôs o presente recurso, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição) (2) : «A) Contém o RAI os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícito e de culpa do crime de violência doméstico, previstos no artigo 152.º, n.º 1, proémio e alínea b), do Código Penal; B) Quanto ao tipo-de-ilícito, no RAI da Assistente descreve-se, no tempo e no espaço, a especificação das idades de Assistente e Arguido, o tipo de relação – desde o namoro, passando pela coabitação com indicação das sucessivas moradas do casal e até à separação – e, bem assim, também com indicação espácio - temporal, os maus tratos de que foi vítima a Assistente - artigos 1.º a 10.º, 16.º a 25.º e 29.º, todos do RAI; além de que realizou, em determinadas datas que indica, atos de encenação da sua vitimização – Artigos 12.º a 15.º e 25.º a 28.º, todos do RAI; E) Por conseguinte, mais que caracterizados se encontram os maus tratos psíquicos pelos quais forçou o Arguido a Assistente a pôr termo ao seu contrato de trabalho, devassando, intercetando e gravando contactos telefónicos, privando-a, por ocultação, do livre uso do seu telemóvel, limitando aquela na sua liberdade de movimentos, e colocando-a, finalmente, em situação de total dependência económica, residencial e de sustento do filho do casal; F) Por último, foi descrito o elemento subjetivo do crime de violência doméstica, indicando-se que o Arguido, com as descritas condutas, agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as mesmas lhe eram proibidas por lei, e que assim incorreria na prática do crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º, do Código Penal – Artigo 30.º do RAI; (…) H) Contém o RAI os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícito e de culpa do crime de denúncia caluniosa, previstos no artigo 365º do Código Penal; I) Tal como decorre dos aludidos factos constantes do RAI, o Arguido foi mais além que simplesmente participar um facto que sabia ser falso para que fosse instaurado procedimento contra a Assistente, já que encenou e construiu a falsidade, tendo em consideração o processo de regulação de responsabilidades parentais que havia já instaurado em 8 de Novembro de 2022, uma semana antes de se dirigir às autoridades policiais e forenses, e levou a efeito tal conduta para lograr procedimento criminal contra a recorrente por violência doméstica, o que efetivamente veio a ocorrer com relação aos presentes autos onde a recorrente é também arguida – Artigos 27.º e 28.º, do RAI; J) Foi descrito o elemento subjetivo do crime de denúncia caluniosa, indicando-se que o Arguido, com as descritas condutas, agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as mesmas lhe eram proibidas por lei, e que assim incorreria na prática do crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365.º do Código Penal – Artigo 30.º do RAI; L) Assim, os elementos objetivos e subjetivos do ilícito criminal de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365.º, do Código Penal, encontram-se, atento o exposto, perfeitamente caracterizados no RAI – (1) a instauração pelo de procedimento criminal por violência doméstica - consubstanciado, aliás, nos presentes autos; (2) o dolo específico traduzido na encenação de um facto para o participar às autoridades; (3) o ter agido bem sabendo que tal lhe é proibido por lei – artigos 27.º a 30.º, todos do RAI; (…) N) A Assistente, quando refere que «Agiu o arguido, na forma descrita no presente requerimento, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei, incorrendo na prática dos crimes de violência doméstica e de denúncia caluniosa (…)», descreve os factos respeitantes ao preenchimento dos elementos subjectivos do crime. O) No RAI descreve-se que o arguido sabia que tinha praticado os factos aí descritos - elemento intelectual do dolo – mas que ainda assim os praticou da forma ali descrita- elemento volitivo do dolo – Cfr. artigo 30º do RAI. (…) Q) O despacho recorrido violou o artigo 287.º, números 1, alínea b), 2 e 3, do CPP. Nestes termos e nos melhores de direito, com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs deverá ser dado provimento ao recurso, e o despacho recorrido ser substituído por outro que admita o RAI apresentado pela assistente quanto aos crimes nele imputados ao arguido.» c. Admitido o recurso, o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese, que: «(…) 2. Segundo a recorrente os artºs 12º a 15º e 25º a 28º do RAI contêm a narração factual dos maus tratos e os artºs 27º a 28º contém a narração factual do crime de denúncia caluniosa, descrevendo o artº 30º do RAI o elemento subjetivo dos referidos ilícitos, uma vez que aí se refere que “o arguido, com as descritas condutas, agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as mesmas lhe eram proibidas por lei.”. 3. Na senda da decisão proferida no AUJ nº 1/ 2015, tem vindo a ser estendido que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos (e objetivos, acrescentamos nós),(…) não pode ser integrada, em julgamento (ou em Instrução – acrescentamos nós), por recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do Código de Processo Penal.” (cf. citado AUJ, publicado in DR nº 18/2015, seria I, de 27.01.2015). 4. Dito de outro modo, a falta de narração factual, na acusação, de elementos subjetivos e/ou objetivos do tipo de crime não pode ser complementada pelo Juiz (seja o de julgamento ou de Instrução) sob pena de tal decisão estar ferida de nulidade por violação do disposto no artº 309º, nº 1 do CPPenal. 5. Segundo a mais recente jurisprudência dos Tribunais Superiores, na que se incluiu a posição maioritária do Tribunal da Relação de Évora, a acusação deverá conter, para além de todos os elementos factuais constitutivos do tipo de ilícito, todos os elementos em que assenta o dolo nos termos consignados no artº 14º do CPenal, fazendo uma distinção entre dolo do tipo e dolo da culpa (consciência da ilicitude) e concluindo pela desnecessidade de alegar esta última por estar pressuposta, nomeadamente, nos ilícitos com “proeminente carga axiológica”, como é o caso do designado direito penal clássico. 6. No caso do RAI cuja rejeição é contestada no presente recurso, a descrição do elemento subjetivo dos ilícitos imputados ao arguido, contido no artº 30º, é efetuada mediante a utilização do jargão “Agiu o arguido, na forma descrita no presente requerimento, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei (…)”. 7. Julgamos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que tal alegação apenas reflete alegação da consciência da ilicitude e não o dolo dos tipos de ilícitos imputados ao arguido. 8. Com efeito, no que tange ao crime de violência doméstica, para além da narração factual relativa ao tipo objetivo não ser suficiente para preencher tal ilícito, a recorrente não alega qualquer facto atinente ao dolo do tipo. 9. É consabido que o crime de violência doméstica pressupõe, segundo a ratio da alteração deste artigo, uma certa reiteração das condutas levadas a cabo pelo agressor, de modo a que, a sua atuação apresente um carácter de habitualidade, admitindo, contudo, a punição quando a gravidade inerente das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus-tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afetação da sua saúde (física ou psíquica); 10. O dolo requerido pelo tipo de ilícito de violência doméstica deve refletir o saber (elemento cognitivo) e querer (elemento volitivo) do agente por referência às diversas condutas e à aptidão das mesmas para atingir a ofendida na sua dignidade enquanto pessoa humana e com afetação da sua saúde física ou psíquica; 11. Percorrido todo o RAI não se constata a narração de qualquer facto de onde se possa extrair o referido dolo do tipo de crime de violência doméstica; 12. Acresce que o preenchimento do elemento objetivo do tipo também padece de inúmeras deficiências, nomeadamente por omissão ou insuficiente narração das concretas condutas maltratantes; 13. Atente-se que, por exemplo, na narrativa constante dos artºs 19º, a 21º, onde a assistente no artº 19º, a recorrente não descreve qualquer conduta adotada pelo arguido apta a privá-la do convívio com os seus familiares; não estabelece o necessário nexo causal entre os epítetos utilizados e a alegada privação de contactos; ou, ainda, o concreto circunstancialismo em que ocorreu o dano do telemóvel, sendo totalmente omissa quanto às concretas circunstâncias de tempo, lugar e modo; 14. Quanto ao crime de denúncia caluniosa que, igualmente, imputa, ao arguido, a descrição dos factos relativos a tal ilícito está contida no artº 29º do RAI, nomeadamente quando refere “No dia 14 de novembro de 2022, encenou ter sido agredido ao murro, pontapé, unhadas e arranhões por parte da assistente, o que levou a efeito por participação policial de violência doméstica, deslocação a consulta hospitalar e a ulterior submissão a exame forense.”. 15. Ora, o crime de denúncia caluniosa exige, ao nível do tipo subjetivo, que o agente atue com consciência da falsidade e com intenção de que seja instaurado procedimento, sendo que, percorrido todo o RAI não vislumbramos qualquer narração relativa ao dolo do tipo de denúncia caluniosa. 16. Nos termos do disposto no nº 3 do artº 287º do CPPenal, o RAI apenas pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução; 17. Conforme se decidiu no Ac. que temos vindo a citar “Nesta última causa de rejeição pode integrar-se uma variedade de situações, (…) sendo também considerado unanimemente pela jurisprudência que na mesma cláusula geral se deve incluir a situação em que a instrução é requerida pelo assistente, (…), quando o RAI não contém a narração dos factos atribuídos ao arguido e respetiva incriminação (…)”; 18. Assim, não estando o RAI da ora recorrente estruturado de acordo com as exigências legais aplicáveis à acusação, em obediência ao disposto no n.º 2, do artigo 287.º, do Código Processo Penal, nomeadamente por não conter os elementos subjetivos dos tipos de ilícitos imputados ao arguido, só poderia (tal como o foi) ser rejeitado.» d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, emitiu parecer nos termos seguintes: «Concordamos e damos por reproduzidos os argumentos aduzidos na decisão impugnada, bem como na Resposta à Motivação de Recurso apresentada pela nossa Exma. Colega junto do Tribunal de 1.ª instância, entendendo que o Recurso não merece provimento, devendo ser confirmada a decisão impugnada.» e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º CPP, visando contrariar o parecer referido, a assistente veio (no fundo – em boa verdade) reiterar a posição que já sustenta no recurso. f. Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência, importando conhecer e decidir. II – Fundamentação A.Delimitação do objeto do recurso A motivação enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º CPP), desse modo delimitando o âmbito do recurso. De acordo com as conclusões da recorrente, verificamos haver apenas uma questão aportada ao conhecimento desta instância: - saber se o requerimento de abertura de instrução integra «a acusação alternativa» que é pressuposta. Isto é, a acusação que deveria ter sido formulada pelo Ministério Público; e que deverá integrar a pronúncia que se requer. B. O despacho recorrido, na parte para aqui relevante, mostra-se elaborado nos seguintes termos: «Veio a assistente requerer a abertura de instrução, insurgindo-se contra o despacho de arquivamento proferido nestes autos, pelo M.P., concluindo pela pronúncia do arguido da prática de um crime de violência doméstica e denúncia caluniosa. Conforme dispõe o Artigo 287º, nº 2 do C.P.P. “ o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e se espera provar (…)”. Conforme o Artigo 286º, nº 1 do C.P.P. “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Num processo penal de estrutura acusatória e em que vigora o principio da vinculação temática, se o M.P. arquivar, é ao assistente que incumbe fixar o objeto do processo, no requerimento de abertura de instrução, elencando os factos que, a serem imputados ao arguido, fundados nos elementos probatórios recolhidos ou no inquérito ou na instrução, suficientemente indiciados, permitindo, assim, a imputação ao arguido de um qualquer ilícito criminal. O RAI tem como função, então, de algum modo, substituir-se a uma acusação do M.P. (que não existiu, in casu), por forma a permitir o prosseguimento dos autos. Claramente neste sentido, vai o artigo 287º, nº 2 do C.P.P. quando remete para as alíneas do Artigo 283º, nº 3 do mesmo diploma legal, mormente a al. b) – narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada -. A função do RAI tem que ser, assim, perspetivada atendendo-se ao que é a finalidade da instrução. Ora, a jurisprudência tem considerado que no âmbito do conceito de inadmissibilidade legal do RAI a que alude o Artigo 287º, nº 3 do C.P.P. se enquadra a situação presente, em que, arquivados os autos pelo M.P., o RAI não contém a elencação dos factos a imputar ao arguido que preencham todos os elementos, objetivo e subjetivo do tipo de ilícito imputado, porquanto tal situação redonda numa impossibilidade de pronúncia do arguido. Neste sentido, entre muitos outros, o Ac. do TRG de 11/07/2017, no processo nº 649/16.0TBRG.G1, relatado por Jorge Bispo ou Ac. do TRL de 12/03/2019, relatado por Artur Varges no processo 5257/16.2T9SNTL1-5, em ambos se referindo que a jurisprudência maioritária dos nossos tribunais vai em tal sentido. Tais omissões ou patologias do RAI não são suscetíveis de despacho de aperfeiçoamento, conforme Ac. do STJ nº 7/2005, publicado no DR nº 212/2005, I-S de 04/11/2005 (Armindo dos Santos Monteiro), frisando-se que, de modo algum, a omissão de factos que integrem o elemento subjetivo (dolo, quer na sua vertente volitiva, quer na sua vertente intelectual), vontade consciente ou a consciência da ilicitude são passiveis de serem sanadas com a figura da alteração de factos, também conforme o Ac. do STJ nº 1/2015, publicado no DR nº 18/2015, I-S de 27/01/2015 (Rodrigues da Costa). Ora, o que ocorre no caso presente? O requerimento de abertura de instrução é perfeitamente omisso quanto aos factos relativos ao dolo quer atinente ao crime de violência doméstica, quer atinente ao crime de denuncia caluniosa. Na verdade, é manifestamente insuficiente o teor do Artigo 30º, o único em que está plasmado o elemento subjetivo de ambos os ilícitos. Não se alega que o arguido sabia serem os factos imputados à ofendida falsos. Não se alega que o mesmo pretendeu a instauração de procedimento criminal contra a ofendida, ao imputar-lhe tais factos falsos. Não se invoca que o arguido pretendeu atingir a ofendida na sua dignidade enquanto pessoa humana e a pretendia subjugar e humilhar, sendo que a violência doméstica tutela bem jurídico diverso do tutelado pelo crime de injuria, ameaça ou ofensas. Não alude a datas nem situações concretas de controlo, manipulação ou menosprezo, conforme resulta da alegação dos factos ínsitos nos artigos 19º e seguintes do RAI, que traduzem meros factos conclusivos, não concretizados e que não permitem a cabal defesa do arguido e tem que se dar como não escritos. Assim, a assistente alude às razões da sua discordância com a acusação, mas não deduz nenhuma acusação autónoma, com as formalidades elencados no Artigo 283º do C.P.P., a qual possibilite a prossecução dos autos, fixando o objeto dos mesmos, permitindo a cabal defesa e contraditório por parte do arguido e um eventual despacho de pronúncia. Assim sendo, há que não admitir o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3 do C.P.P. DECISÃO: Termos em que, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3 do C.P.P.., por inadmissibilidade legal da instrução.» C. Por seu turno o requerimento rejeitado tem o seguinte teor: «1. Após relação de namoro iniciada em outubro de 2020, a assistente, BB, e o arguido, AA, começaram a coabitar em comunhão de mesa, leito e habitação, como se de mulher e marido se tratassem, desde 8 Agosto de 2021, ela estando, à data do início de tal coabitação, ainda com … anos de idade, e ele com … anos de idade. 2. Ao início do namoro, a assistente era trabalhadora por conta de outrem, desempenhando, desde o ano de 2011, as funções de .. ao serviço da empresa "….", pessoa coletiva com o n.º …, com sede na Rua do …, em …, no concelho de …. 3. De resto, também ainda no decurso da aludida relação de namoro, a assistente encontrava-se separada de facto e ainda no estado de casada, residindo, de igual modo, no concelho de … na Avenida …, …, …. 4. Veio a assistente a divorciar-se em …de 2021, por decisão proferida e transitada nessa mesma data, encontrando-se a mesma em plena coabitação com o arguido. 5. A habitação onde inicialmente passaram conjuntamente a residir era a correspondente à morada da mãe do arguido, à Rua de …………….., em …. 6. o arguido, com efeito, tinha residência e sua habitação própria na Praça …, …, mas sucedeu que o seu pai e marido da mãe havia falecido no dia … de 2021, assim tendo aquele passado a fazer-lhe companhia desde essa data e, por conseguinte, ainda durante o namoro com a assistente. 7. Entretanto, nessa mesma data de inicio da coabitação e união de facto do casal, a assistente encontrava-se já grávida da sua relação de namoro com o arguido, e passou a situação de baixa médica profissional, desde … de 2021, em razão de complicações de saúde surgidas com a gestação, passando a auferir, com tal situação, menos de 300€ (trezentos) euros mensais. 8. O arguido, por sua vez, ao momento do início da sua relação com a assistente era …, situação que ainda manterá, e em razão dos seus compromissos profissionais e das limitações impostas pela pandemia de COVID - 19, havia passado a trabalhar predominantemente em regime de teletrabalho, passando longos períodos de tempo em casa. 9. Em fevereiro de 2022, tomou o arguido a decisão de que o casa1 se mudasse para a casa própria daquele, sita à Praça …, …, onde passaram a residir até à sua separação. 10. No mês seguinte, em … de 2022, nasceu o filho do casal. o CC, o qual, à data da apresentação do presente requerimento de abertura de instrução, tem ….de idade. 11. Anteriormente à sua relação, a assistente e o arguido nunca tinham sido progenitores em razão de anteriores relações que tivessem tido. 12. A situação de baixa médica da assistente terminou em …de 2022, ou seja, 12 dias depois do nascimento do filho CCs, passando, então, apenas a auferir subsídio de maternidade, até … de 2022, e a ser total a dependência da assistente relativamente ao arguido, ao nível dos rendimentos, da habitação e, desde então, com relação ao sustento do filho. 13. Efetivamente, e não obstante a fragilidade própria de mãe que havia acabado de dar à luz, pressionou o arguido a assistente a por termo ao contrato de trabalho desta para com a sua entidade patronal, já identificada, a "…", pessoa coletiva com o n." …, iniciativa esta que levou a efeito por email de … de 2022. 14. Para o efeito, criou o próprio arguido um endereço de correio eletrónico … , do qual o mesmo ficou detentor da respetiva palavra-passe, e do qual foi remetida a mensagem de rescisão contratual da assistente à sua entidade patronal, a "…", pessoa coletiva com o n.º …. 15. Por conseguinte, consumada a situação, já descrita, de total dependência da assistente com o nascimento do filho e com o terno da sua situação profissional que durava há mais de uma década, 16. Em … de 2022, o qual, recorde-se, havia sido o do nascimento do filho do casal, a relação começou a experimentar uma degradação progressiva e cada vez mais profunda, o que acabou por culminar com a sua separação, em … de 2022. 17. Com efeito, a partir do já citado mês de … de 2022, começou o arguido a assumir comportamentos controladores, manipuladores, de ciúmes, menosprezo e de menorização para com a assistente. 18. Tais comportamentos e atitudes de manipulação, controlo, devassa da privacidade da assistente e menorização assistente, assumiram as formas seguintes: 19. (I) privação de convívio e contactos da assistente com a sua própria família mais próxima - pai, mãe e tios - o que por diversas vezes evidenciou, mesmo perante familiares daquela, denominando-os de "(...) javardos (…)" e "(... ) reles (…) ", sempre que com aqueles tentou aquela estabelecer contactos telefónicos, chegando ao ponto de destruir o telemóvel da ofendida l- Artigo 152.º, n.º 1, proémio, do Código Penal; 20. (II) tomada de fotografias e gravações áudio de conversas da assistente com o próprio arguido e de interceção e gravação de contactos telefónicos com familiares e pessoas das suas relações, sendo que nunca tais registos visuais e fonográficos foram levados a efeito pelo arguido com o consentimento da assistente, e que posteriormente divulgou nos presentes autos - Artigo 152.º, n.º 1, proémio, e alínea d), do Código Penal; 21. (III) entradas e saídas da assistente da casa onde passou a residir o casal, mas apenas com controlo e permissão do arguido, porque nunca este facultou àquela as chaves do apartamento, o que necessária e forçosamente a compelia a ter de informar onde pretendia deslocar-se e o que iria fazer no exterior - Artigo 152.º, n.º 1, proémio, e alínea d), do Código Penal; 22. (IV) tal privação da autodeterminação de movimentos da assistente, começou a assumir a forma de imposição da presença do arguido na companhia daquela em todas e quaisquer saídas de casa que a mesma esboçasse a tentativa de levar a efeito ou que viesse a concretizar – Artigo 152.º, n.º 1, proémio, e alínea d), do Código Penal; 23. (v) exemplo do comportamento ora descrito, foi a circunstância do arguido impor a sua presença física em consultas de psicologia que a assistente havia já decidido iniciar no início do ano de 2021, na iminência da rutura do seu casamento; tendo tido de ser a psicóloga consultada a vedar e proibir a presença daquele para que fosse restabelecida a privacidade com a sua consulente - Artigo 152.º, n.º 1, proémio, e alínea d), do Código Penal; 24. (VI) começaram a tornar-se repetidos e reiterados os atos do arguido de ocultar o telemóvel da assistente, impedindo-a do livre e espontâneo uso do mesmo equipamento e de contactos com o exterior - Artigo 152.º, n.º 1, proémio, e alínea d), do Código Penal; 25. (VII) assim, cerca das 20h00m de data concretamente não apurada, mas sempre posterior a 1 de outubro de 2022 e anterior a 14 de Novembro de 2022, ocorreu que tendo a assistente saído para o exterior do apartamento para depositar lixo; foi vigiada pelo arguido através da varanda da habitação, e tendo este avistado que aquela havia iniciado uma ligação telefónica, o arguido, desabridamente e a gesticular, lhe dirigiu, aos gritos, as seguintes expressões: "o que estás a fazer ao telemóvel... ?! não podes telefonar em casa…?!, vais telefonar às escondidas..!" - Artigo 152.º, n.º 1, proémio, e alínea d), do Código Penal; 26. De igual modo. começou o arguido a encenar ser agredido fisicamente pela assistente. para vitimização perante terceiros nas várias discussões entre o casal. 27. (VIII.I) deste modo, no decurso do mês de outubro de 2022, perante uma prima da assistente que naquele mesmo período de tempo residiu com o casal, o arguido queixou-se de ter sido vítima de uma agressão física, apresentando a zona do pescoço e face do mesmo, onde aquela não conseguiu visualizar qualquer marca (escoriações ou hematomas). 28. (VIII.II) Teve a prima da assistente, inclusive, de socorrer-se da lanterna/luz do telemóvel para conseguir visualizar melhor a pretensa e encenada lesão, mas inutilmente já que nenhuma marca era realmente visível. 29. Em encenação permanente, e bem sabendo que a assistente se viria a separar do arguido, o que era do conhecimento deste e que o mesmo estava a prever ocorrer em 20 de novembro de 2022, procedeu o arguido nos termos seguintes: a) Instaurou processo de regulação das responsabilidades parentais com relação ao menor CC, o que fez no dia … de 2022; b) No dia … de 2022, encenou ter sido agredido ao murro, pontapé, unhadas e arranhões por parte da assistente, o que levou a efeito por participação policial de violência doméstica, deslocação a consulta hospitalar e a ulterior submissão a exame forense; c) Nos termos que acabam de descrever-se, terminou o arguido por apresentar denúncia, absolutamente caluniosa, contra a assistente - artigo 365.º, do Código Penal. 30. Agiu o arguido, na forma descrita no presente requerimento, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei, incorrendo na prática dos crimes de violência doméstica e de denúncia caluniosa, previstos e punidos, respetivamente, nos artigos 152.º e 365.º, ambos do Código Penal. ORA, 31. No decurso do inquérito, todas as declarações prestadas pela assistente, arguido e testemunhas, foram prestadas perante autoridades policiais, ou seja, não ocorreu qualquer imediação entre a Exma. Magistrada do Ministério Público com os meios de obtenção da prova e a prova produzida. 32. Por conseguinte, e face ao teor das declarações prestadas, não se afigura razoável, muito menos admissível, que se parta do mero principio de que, face a versões antagónicas e sem especificar em que reside uma tal contradição, "in limine" se considere que nenhuma das versões se afigure credível, como, indevidamente, se assumiu no despacho de arquivamento. 33. Há, com efeito, pelo menos que ter em consideração aquilo de que a prova testemunhal produzida em sede de inquérito tem evidência de ter sido declarado por conhecimento direto e próximo dos factos e que afastar tudo o que serão depoimentos por "ouvir dizer" da parte de qualquer uma das vítimas/agressores ou por rumores, isto é, o que nem sequer será conhecimento indireto por parte de qualquer um dos meios de prova indiciária já existente nos autos - cfr. artigos 118.º, n.º 1 e 130.º, n.s 1 e 2, proémio, ambos do CPP. 34. Ao exposto acresce o dever do Ministério Público de praticar todos os atos necessários que visam a investigação de um crime, concluindo pela sua verificação e autores, ou pela conclusão de que, de facto e/ou de direito, o mesmo ocorreu ou não – cfr. artigo 262.º, n.º 1, do CPP. 35. Em conclusão, a mera análise acrítica de depoimentos prestados, é claramente incongruente e inconcludente com as decisões de arquivamento/acusação – artigos 276.º e 277.º, ambos do CPP. Nestes termos e nos melhores de Direito deverá, por provado, o presente requerimento de abertura de instrução ser julgado procedente e, em consequência: A) Ser o arguido pronunciado pelo crime de violência doméstica, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152..º e 152.º-A, ambos do Código Penal; B) Seja admitida a constituição da ora requerente como assistente, nos termos e para todos os efeitos Iegais. PROVA: (…)» D. Apreciando Assinalemos de introito e em traços gerais, em que consiste a fase processual de instrução. A instrução constitui uma fase processual não obrigatória, sendo, essencialmente, caracterizada por um controlo externo (jurisdicional) da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito. (3) Controlo esse que é levado a efeito pelo poder judicial, mas cujo objeto não abrange toda a atividade do Ministério Público na fase de inquérito, cingindo-se à decisão que se impugna, questionando-se o juízo que nela se encerra (arrigo 286.º, § 1.º CPP), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, aferindo nomeadamente se se ficou aquém ou se foi além dos indícios constantes dos autos da prática de crime. (4) Para lembrar o que representa, na estrutura do Estado de Direito, a fase de instrução no processo penal, para a tutela integral dos direitos fundamentais dos cidadãos, servimo-nos das proficientes (e mui recentes) palavras de André Lamas Leite (5): «A instrução – designação atribuída a esta segunda e eventual fase – tem por escopo o controlo da decisão da primeira fase processual por uma diferente magistratura, analisando a sua correção fáctico-jurídica. Se o despacho for de arquivamento, nas várias modalidades do art. 277.º (porque não se conseguiu identificar o agente do crime, porque há pressupostos negativos da punição que impedem a ação penal, porque não foi possível reunir indícios suficientes da prática de qualquer crime ou daquele que serviu como notitia criminis contra o suspeito(s) ou arguido(s), conseguindo-se ou não reunir tais indícios quanto a outro(s) agente(s)), logo de acordo com os pressupostos processuais da legitimidade e do interesse em agir, apenas o ofendido, constituído assistente (art. 69.º), o pode requerer. Eliminar neste caso a instrução significaria sempre que a resposta definitiva do ordenamento jurídico quanto a uma decisão de não prosseguir criminalmente não tinha forma de reação por parte de quem é titular dos interesses que a lei criminal quis especialmente proteger (art. 68.º, n.º 1), o que podia tornar-se numa verdadeira injustiça e numa falha de tutela desses mesmos interesses, sem esquecer que a Lei Fundamental obriga o legislador a conceder a tutela e os direitos necessários ao ofendido (art. 32.º, n.º 7). Num Estado de Direito democrático, em especial num como o português em que a tutela jurisdicional efetiva é alçada em princípio estruturante de todo o ordenamento (art. 20.º da CRP), não é possível que uma decisão, seja ela de que tipo for, não conheça a hipótese de ser reavaliada. Só assim se cumpre aquele preceito e a verificação humana de que o falhanço integra a nossa condição.» Isto não significa, como é óbvio, que não deva (não tenha, mesmo) de fazer-se um escrutínio fino do requerimento de abertura de instrução (RAI). Tanto que a doutrina e (sobretudo) a jurisprudência, na exegese dos artigos 286.º, 287.º - mas também 283.º, ex vi artigo 308.º, § 2.º - todos do CPP, concatenados com a garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva, vêm traçando o que essencialmente tem de conter o requerimento de abertura de instrução, sob pena de rejeição. E isto em ordem a estabilizar outros valores coevos (desde a paz do arguido à economia de meios que são escassos). Concretamente preceitua a lei que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, «mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação». Isto é, não estando embora sujeito a formalidades especiais, não deixam, porém, de se indicar requisitos estruturais. Quando o RAI é da autoria do assistente, como é aqui o caso, a mais da fixação do objeto da instrução (das razões de discordância com o juízo feito pelo Ministério Público); ele (o RAI) carece também da definição do objeto da fase de julgamento, id est da indicação dos factos e crimes imputado(s) aos(s) arguido(s) – artigo 287.º, § 2.º CPP. É este o exato sentido do artigo 308.º, § 2.º CPP quando enuncia que o despacho de pronúncia deve conter os elementos exigidos pelo § 3.º do artigo 283.º, i. e., a narração dos factos, tal como é exigida para uma acusação do Ministério Público. (6) A narração factológica poderá ser mais ou menos sintética, mas terá de ser suficiente para albergar o esteio em que se fundará a aplicação de uma pena. Tal suficiência há de medir-se naturalmente pela referência factológica que faça emergir todos os elementos objetivos, mas também os subjetivos dos ilícitos imputados, como ainda o de constituir peça processual com suficiente autonomia, para dispensar que para definição daqueles elementos constitutivos dos ilícitos, seja necessário recorrer a outras peças do processo. Isto é, o libelo tem de ser preciso. E assim tem mesmo de ser, por um lado, em razão da preconizada comprovação judicial da indiciação esgrimida; e, por outro, da delimitação do objeto do processo (e logo do julgamento), por força da estrutura acusatória daquele, constituindo aquela suficiência uma garantia de defesa do(s) arguido(s), na medida em que só desse modo se lhes possibilita a preparação e exercício dos direitos de defesa.(7) Estamos, pois, alinhados com o essencial do introito de considerações feitas no despacho recorrido. Debruçando-nos, detidamente, sobre o RAI da assistente (ora recorrente) - como as circunstâncias impõem -, deparamo-nos com um escrito longo de mais e algo desordenado. O que quase sempre é sinal de falta do essencial… Mas não vem a ser o caso. E quod abundat non nocet! Refere o despacho recorrido que, contrariamente ao que seria devido, o RAI não contém: - as datas dos acontecimentos imputados ao arguido; - os factos constitutivos do dolo de ambos os ilícitos imputados (violência doméstica e denuncia caluniosa); - não contendo, enfim, a «acusação autónoma». É no essencial nesta mesma linha que opina o Ministério Público na sua resposta. Mas não é isso que realmente sucede. Vejamos. Em primeiro lugar a circunscrição temporal feita no RAI relativamente aos factos imputados ao arguido é a seguinte: - Inicio da coabitação da assistente com o arguido foi a …2021 (facto 2.º); - Mudaram de casa em …2022 (facto 9.º); - Nasceu o filho do casal a …2022 (facto 10.º); - A relação do casal começou a degradar-se em … 2022 (facto 16.º); - Em … de 2022 o arguido, sem conhecimento e contra a vontade da assistente, criou um endereço email em nome desta, e através dele enviou mensagem de despedimento à entidade patronal dela (facto 13.º); - Entre… de 2022 ocorrem comportamentos do arguido de controlo da assistente (factos 19.º a 25.º), como telefonemas, designadamente nas relações dela com terceiros; incluindo fotografias e gravações áudio de conversas da assistente com o próprio arguido e interceção e gravação de contactos telefónicos daquela com familiares e pessoas das suas relações, sem o consentimento dela; e impondo a presença física dele nas consultas de psicologia dela (os factos 16.º e 17.º identificam o intervalo temporal em que os mesmos ocorreram). - Estando alguns deles especialmente balizados entre … e … de 2022 (facto 25.º); - e outros no mês de… de 2022 (factos 27.º e 28.º). Portanto, o quadro factológico traçado (imputado ao arguido) encontra no RAI uma localização temporal que não sendo precisa no dia e hora, situa-os num intervalo temporal relativamente curto, que a mais de contextualmente compreensível (a vida das pessoas é mesmo assim - em geral não se anda com um caderninho a anotar o dia e a hora em que o seu companheiro ou companheira fizeram ou disseram isto ou aquilo), não compromete as garantias de defesa do arguido. Em segundo lugar a decisão judicial recorrida aponta existir no RAI uma deficiente invocação dos factos constitutivos do dolo de ambos os ilícitos imputados. Dizendo-se concretamente que: - não se alega que o arguido sabia serem os factos imputados à ofendida falsos; - não se alega que o mesmo pretendeu a instauração de procedimento criminal contra a ofendida, ao imputar-lhe tais factos falsos; - não se invoca que o arguido pretendeu atingir a ofendida na sua dignidade enquanto pessoa humana. Vejamos. O conhecimento da falsidade dos factos imputados pelo arguido à ofendida está perfeitamente identificado na referência à «encenação» preparada pelo arguido, que se alega em 26. e 29.do RAI. Encenar significa «fazer parecer que», ou «iludir». Sendo que o arguido, após tal «encenação» fez denúncia criminal contra a assistente (facto 29. al. c)! E no concernente ao elemento subjetivo do crime de violência doméstica, este é composto pelo dolo genérico, i. e. (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual). Não exigindo a lei nenhum dolo específico, designadamente «que o arguido pretendeu atingir a ofendida na sua dignidade enquanto pessoa humana»! «O dolo implicará o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica, assim como o conhecimento e vontade da conduta e do resultado, consoante os comportamentos em causa configurem tipos formais ou materiais». (8) Por seu turno o tipo objetivo de violência doméstica tem por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual e privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal. E na avaliação das circunstâncias e comportamentos do agressor importará sempre atentar na «respetiva situação ambiente e da imagem global do facto». (9) Verificamos que os comportamentos imputados ao arguido, consistiram em maus tratos psicológicos (traduzidos no controlo da sua companheira, em termos de considerar que ela, de certa forma, estava à sua mercê e que não tinha como obstar a esse exercício malévolo da sua vontade – sendo neste contexto paradigmático o despedimento dela através de artifício engendrado por ele, à margem do conhecimento e vontade dela). As circunstâncias narradas no RAI dão-nos uma imagem global dos factos imputados ao arguido, que os remete – indubitavelmente - para o perímetro da tutela conferida pelo crime de violência doméstica, incluindo naturalmente a dimensão subjetiva, recortada como já referido no ponto 30.º do RAI. Não deixaremos de acrescentar - em breve anotação clarificadora -, que é dogmaticamente incontroverso que os elementos objetivos de um tipo de ilícito constituem a materialidade do crime, os quais emergem da descrição da ação empreendida (ou omitida) e produtora de uma modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. Ao passo que as dimensões do elemento subjetivo traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. No respeitante ao elemento subjetivo do tipo doloso, o Código Penal não o define, fazendo-o apenas relativamente a cada uma das formas em que ele se analisa (artigo 14.º CP). Mas a doutrina conceptualiza-o, sintetizando que corresponde ao conhecimento (elemento intelectual) e à vontade de realização do tipo objetivo de ilícito (elemento volitivo). Consiste, assim, no conhecimento e vontade de praticar o facto ilícito com consciência da sua censurabilidade. Traduzindo o seu elemento intelectual a representação da realização do facto ilícito (a consciência psicológica, ou consciência intencional), id est a representação das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo. Visa que «o agente conheça tudo quanto é necessário para uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada». (10) Por seu turno o elemento volitivo, conexo com o elemento intelectual, serve para indicar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento. Supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma ação (ou omissão do comportamento devido), sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo. Mas consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece. Os problemas em redor do elemento intelectual do dolo, tal como evidenciados no despacho recorrido, não são novos na jurisprudência dos tribunais criminais. Justificando isso as considerações seguintes. Releva sobremaneira que o tipo de ilícito de violência doméstica, bem assim como o de denúncia caluniosa, encerram uma carga axiológica, que inexoravelmente determina que a falta de consciência da ilicitude sempre seria censurável ao agente, razão por que ele não deixaria de ser responsabilizado, mesmo se a afirmação daquele facto se não viesse a provar. Para bem se compreender esta afirmação, importará ter presente o disposto no artigo 17.º CP, que se reporta justamente aos crimes mala in se, quer-se dizer, aos crimes cuja ilicitude se presume conhecida de todos os cidadãos, sendo-lhes exigível tal conhecimento. Neste contexto, conforme ensina Jorge de Figueiredo Dias (11), «o conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […])» A exigência do conhecimento da proibição ocorre, sobretudo, ao nível do direito contraordenacional ou do direito penal secundário, relativamente a incriminações de menor carga axiológica ou de carga axiológica neutra. Equacionando-se que possa cogitar-se também ao nível de algumas incriminações do direito penal primário, relativamente a ilícitos típicos virados para a tutela de bens jurídicos cuja consciência ainda se não encontra suficientemente interiorizada na comunidade. (12) Nesses casos (mas só nesses, caracterizando-os) fará todo o sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo. Mas em geral – como sucede nos crimes de violência doméstica e de denúncia caluniosa, a que reporta o caso presente - o sentido da ilicitude dos factos respetivos ressalta da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelos dois tipos de ilícito. Et pour cause, nestes casos carecerá de sentido questionar se o agente atuou conscientemente, se tinha pleno conhecimento da proibição, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo mesmo assim realizá-lo. Porque se não tinha essa consciência e esse conhecimento, isso terá necessariamente de lhe ser censurável. Dito de modo diverso: no respeitante aos crimes relativamente aos quais a ilicitude é de todos conhecida, por integrar o conhecimento normalmente exigível do homem comum – como já referimos ser aqui manifestamente o caso -, não é necessário alegar a consciência da ilicitude, por ela estar pressuposta. Nestes casos o que deveras releva para que o agente se livre de punição, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do CP, é a prova do facto que integre a inconsciência dessa realidade jurídica. Assim, mesmo que não estivesse alegada a consciência da ilicitude - ou alegando-se, ela se não provasse, essa falta não relevaria, pois, como referido, poderia ocorrer condenação na mesma, em decorrência do que se dispõe no § 2.º do artigo 17.º CP. Este Tribunal da Relação de Évora vem reafirmando (13) esta mesma ideia - de que não é (sequer) necessário utilizar uma «fórmula» genérica e abstrata do dolo -, uma vez que o conhecimento da ilicitude, no contexto de crimes de proeminente carga axiológica é a inconsciência da ilicitude (ou seja, a afirmação de facto negativo relativamente à consciência da ilicitude). Isto é, as circunstâncias que possam revelar que a falta de consciência não pode ser censurada ao agente é que relevará, na medida em que tal excluirá a sua culpa e, por essa via, a respetiva responsabilidade criminal (artigo 17.º, § 1.º CP). Em abono da tese que se sustenta, a decisão recorrida cita a dado passo o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 1/2015, no qual se refere que: «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.» Mas dizer só isso, desgarrado do seu contexto, serve de pouco. Será preciso atentar que a interpretação normativa que se afirma no citado acórdão uniformizador da jurisprudência, não resolve a questão aqui em equação. Para bem se compreender a conclusão tirada nesse aresto uniformizador deverá atentar-se na globalidade da sua - aliás proficiente - fundamentação. Mormente no concernente ao § 6.º do seu ponto 10.2.3.1, sobre a consciência da ilicitude, ali se afirmando que ela se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Acrescentando-se que, não se tratando de caso em que se possa afastar a censurabilidade do ato, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência. Volvendo ao caso presente. Não sendo o RAI uma peça perfeita (é apenas perfeitamente normal), seguro parece ser que não padece das máculas que o despacho recorrido lhe assacou, sendo a descrição das condutas ilícitas nele imputadas ao arguido suficiente para integrar o elemento subjetivo de ambos os ilícitos ali em referência. Pelo que se terá de proceder-se à instrução requerida. Em suma: o recurso é merecedor de provimento, impondo-se a revogação do despacho impugnado e a determinação da abertura da instrução, devendo a Mm.a Juíza proceder às diligências instrutórias subsequentes. III – Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: a) Revogar a decisão recorrida; b) Declarar aberta a instrução, com o objeto traçado no RAI da assistente, procedendo o tribunal recorrido às diligências subsequentes. c) Sem custas (artigo 515.º CPP a contrario). Évora, 18 de junho de 2024 J. F. Moreira das Neves (relator) Maria Margarida Bacelar Anabela Cardoso
---------------------------------------------------------------------------------------- 1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ). 2 Apenas das «conclusões», sendo estas: o «resumo das questões discutidas na motivação» (por todos cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, p. 1136, nota 14). 3 Jorge de Figueiredo Dias: «Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais», in: AA. VV., Para uma Nova Justiça Penal, Almedina, 1983, p. 225 e ss.; «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in: AA. VV., Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988 (reimp. 1993), p. 16; e «Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal», RPCC, 1998, Fasc. n.º 2, pp. 207 e 211. Cf. ainda Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, 1990, p. 241 e ss. e passim, Anabela Miranda Rodrigues, «A fase preparatória do processo penal – tendências na Europa. O caso português», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, BFDUC, 2001, p. 961, António Rodrigues Maximiano «Âmbito da instrução no novo Código de Processo Penal», RMP, n.º 50, 1992, p. 137, e Maria João Antunes, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção», in: Manuel da Costa Andrade et. al. (org.), Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1247 e s. (cit, por Nuno Brandão, RPCC, 2 e 3/2008, p. 227-255). 4 Neste sentido cf. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo penal, tomo III, 2.º ed., 2022, pp. 1241/1242. 5 André Lamas leite, Requiem pela fase de instrução no processo penal português?, JULGAR Online, março 2024. 6 No sentido que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, a uma verdadeira acusação, cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, pp. 139. 7 Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional, através do acórdão 258/2004, de 14abr2004, pela pena da Cons. Maria Fernanda Palma. E no mesmo registo o acórdão uniformizador da jurisprudência n.º 7/2005, de 12mai2005, sendo relator o Cons. Armindo dos Santos Monteiro, publicado no DR, I-A, de 4nov2005. 8 Maria Elisabete Ferreira, O Crime de Violência Doméstica na Jurisprudência Portuguesa (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 2017, Instituto Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra – Studia Iuridica, 1008, p. 583, BFDUC). 9 Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, revista JULGAR, n.º 12, 2010, p. 19. 10 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 410. 11 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., 2019, pp. 409/410. 12 Neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., p. 426. 13 Por exemplo nos acórdãos de 10jan2017, proc. 20/16.3PTFAR.El, Desemb. Sérgio Corvacho; de 26jun2018, proc. 80001/15.8TDLSB.E1, Desemb. Sérgio Corvacho; de 19dez2018, proc. 219/18.8GCSLV.E1, Desemb. Renato Barroso; de 12mar2019, proc. 251/15.3GESTB.E1, Desemb. António João Latas; de 26out2021, proc. 89/98.0TBELV.E1, Desemb. Beatriz Marques Borges; de 24mai2022, proc. 1194/20.4T9STR.E1, Desemb. Maria Margarida Bacelar; de 11out2022, proc. 431/18.0PBRLV.E1, Desemb. João Carrola; e acórdãos de 10jan2023 e de 2dez2023, respetivamente nos proc. 49/21.0GTEVR-C.E1 e 155/22.3GESLV.E1, dos quais foi relator o que aqui é também. Também no Tribunal da Relação do Porto cf. acórdão de 12jul2017, proc. 833/15.3SMPRT.P1, Desemb. Maria Dolores da Silva e Sousa; de 13jun2019, proc. 333/16.4T9VFR.P2, Desemb. Maria Dolores da Silva e Sousa; de 26mai2021, proc. 46/19.5PEMTS.P1, Desemb. José Carreto. |