Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
170/22.7PATVR.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: REINCIDÊNCIA
ROUBO
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
PERDÃO DE PENA
EXCLUSÃO
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A agravativa da reincidência não opera de modo automático, ou seja, não opera pelo mero cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de o agente ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso. Esses são apenas os pressupostos formais.
Há ainda um pressuposto material, já que se exige que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

É que, o requisito material da agravante da reincidência (art.º 75 nº 1 parte final do CP), que acresce aos requisitos formais, deve ser preenchido com matéria de facto concreta.

Com efeito, exige-se expressamente para que a reincidência funcione (tal como já sucedia no Código Penal na versão aprovada pelo DL nº 400/82 de 23/9), a verificação de que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente advertência contra o crime, tratando-se manifestamente de uma prevenção especial, pois que, operando a reincidência ope judicis há que distinguir o verdadeiro reincidente do pluriocasional, já que uma nova condenação pode não ter força indiciadora de desrespeito, podendo antes acontecer que a reiteração na prática do crime seja devida a causas fortuitas ou exógenas que excluam a conexão entre os crimes reiterados por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores.

II - É de ponderar que o art.º 7º, nº1, al. g), na Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto, focalizado nas vítimas dos crimes (e já não no concreto tipo de crime), exclui do perdão e da amnistia previstos na presente lei “os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do art.º 67º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de fevereiro”.

III - Na medida em que a vítima do crime de roubo previsto e punido pelo art.º 210º, nº 1 do C.Penal é considerada uma vítima especialmente vulnerável, o seu agente não poderá beneficiar do perdão da pena aplicada por tal crime, por força da al. g) do nº 1 do art.º 7º da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Competência Genérica de …, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum, perante o tribunal singular, (no âmbito da faculdade conferida pelo art.º 16º, nº 3, do Cód. P. Penal), com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, e no que ora releva, o Arguido a seguir identificado:

AA, nascido em …/…/1992, natural da freguesia da …, concelho de …, filho de BB e de CC, titular do C.C. n.º … e residente na Avenida …, em ….

A final, foi decidido julgar a acusação parcialmente procedente, e, em consequência:

- Absolver o arguido AA quanto à prática como reincidente, nos termos dos artºs 75º e 76º, do Código Penal, e em co-autoria material, de um crime de roubo, p. e p. pelos artºs 26º e 210.º, nº 1, do Cód. Penal;

- Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, nº 1, do Código Penal, em conjugação com o art.º 26º, do mesmo diploma, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;

- Declarar perdoado 1 (um) ano de prisão à pena de prisão em que o arguido AA foi condenado nos presentes autos, sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023.

Inconformado, o Ministério Público, interpôs recurso da referida decisão, formulando as seguintes conclusões:

“1. Por sentença datada de 6 de dezembro de 2023, o Tribunal a quo decidiu, entre o mais:

- Absolver “o arguido AA quanto à prática como reincidente, nos termos dos artºs 75º e 76º, do Código Penal, e em co-autoria material, de um crime de roubo, p. e p. pelos artºs 26º e 210.º, nº 1, do Cód. Penal;”

- Declarar “perdoado 1 (um) ano de prisão à pena de prisão em que o arguido AA é condenado nos presentes autos, sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023.”

2. Sucede que, no caso ora em apreço, entendemos estarem verificados os pressupostos formais e material da reincidência, uma vez que se verifica: a prática, pelo arguido AA, de crimes de roubo; punidos com pena efetiva superior a seis meses; a condenação anterior em pena de prisão efetiva superior a seis meses; a condenação em penas de prisão efetiva por ambos os crimes; o trânsito em julgado das condenações prévias; o não decurso de mais de cinco anos entre a prática de crime anterior e a prática do novo crime, ressalvado o tempo durante o qual aquele cumpriu pena privativa da liberdade, e a existência de uma íntima conexão entre os crimes pelos quais o arguido foi anteriormente condenado e o apreciado nos autos.

3. Pelo exposto, deveria o Tribunal a quo ter procedido à agravação do limite mínimo da pena, nos termos do artigo 76.º, n.º 1 do Código Penal, passando a moldura penal abstrata a ser de um ano e quatro meses de prisão.

4. Acresce que, ao declarar perdoado um ano de prisão à pena de prisão em que o arguido AA foi condenado nos presentes autos, nos termos da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.2023,o Tribunal a quo incorreu um erro de julgamento quanto à matéria de direito, nos termos do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), da citada Lei, uma vez que, apesar de o crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado, não constar elencado no n.º 1, alínea b), i), da Lei em análise, onde apenas se faz referência, na parte que agora interessa, ao roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 2, do Código Penal, o certo é que a vítima daquele será sempre uma vítima especialmente vulnerável, pelo que o arguido também não poderia beneficiar do perdão da pena aplicada por tal crime por força do n.º 1, alínea g), do preceito em análise.

Termos em que, e nos mais que V. Excelências doutamente suprirão, dever-se-á:

i. Condenar o arguido AA quanto à prática como reincidente, nos termos dos artigos 75.º e 76.º, do Código Penal, e em coautoria material, de um crime de roubo, previsto e punido pelos artigos 26.º e 210.º, nº 1, do Cód. Penal, em pena de prisão;

ii. Revogar a declaração de perdão de um ano de prisão à pena de prisão em que o arguido AA foi condenado, assim se fazendo a devida JUSTIÇA!”

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do provimento do recurso.

O Recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA

São os seguintes os factos que o acórdão recorrido indica como estando provado:

“1. No dia 01 de março de 2022, pelas 07 horas, no início do tabuleiro da Ponte …, sita na Avenida …, em …, os arguidos AA e DD caminhavam na direção de EE.

2. No momento em que se cruzaram com EE, o arguido AA, com um gesto brusco, desferiu um puxão no saco plástico que EE trazia numa das mãos.

3. Acto seguido, o arguido DD desferiu socos na cabeça e pontapés ao longo do corpo de EE.

4. O arguido AA conseguiu, pelo puxão do mesmo, retirar o saco do EE e ficar com ele consigo, segurando-o.

5. Seguidamente, o arguido AA desferiu uma pancada com a mão aberta na cabeça de EE.

6. Depois, na posse do aludido saco, os arguidos começaram-se a afastar do local, tendo o arguido DD ainda dirigido a EE as seguintes palavras “Se fazes queixa à polícia, tás fodido”.

7. Após o que, os arguidos ausentaram-se do local, levando o aludido saco.

8. O saco plástico continha um cinto de cabedal, de cor preta, e um par de sapatos de trabalho, pertença de EE.

9. Como consequência direta da conduta dos arguidos, EE sofreu dores nas zonas atingidas, tonturas e hiperemia na região malar direita.

10. Os arguidos AA e DD previram e quiseram agir da forma descrita, tendo actuado de forma concertada e em comunhão de esforços e vontades, mediante acordo prévio ao qual aderiram.

11. Os arguidos AA e DD fizeram-no com o propósito de, através de força e violência física sobre EE, como lograram, fazer seu o saco deste último e os objetos que no seu interior se encontrassem, bem sabendo que tais bens não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade e sem a autorização do seu dono, o que efetivamente conseguiram.

12. Agiram os arguidos de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

13. Instantes após o EE veio a recuperar o referido saco, com o cinto e o par de sapatos que nele se encontravam, que lhe foi entregue por raparigas que se encontravam nas imediações.

A respeito dos antecedentes e condições pessoais do arguido AA

14. No âmbito do processo nº 226/08.9…, do tribunal judicial de …, por acórdão de 28/01/2009, transitado a 18/02/2009, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de roubo, cometido a 11/07/2008, p. e p. pelos arts. 75º e 210º, nºs 1 e 2, al. b), com referência à al. f) e ao nº 4 do art. 204º, do Cód. Penal, e ao art. 4º, do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova e obrigação de depósito de quantia pecuniária à ordem dos autos, destinada a indemnizar o ofendido, a qual veio a ser revogada por despacho de 06/12/2014, transitado a 27/11/2015.

15. No âmbito do processo nº 456/10.3…, do tribunal judicial de …, por sentença de 06/01/2012, transitada a 06/01/2012, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de dano simples, p. e p. pelo art. 212º, do Cód. Penal, cometido a 28/11/2010, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, perfazendo o total de € 400,00 (quatrocentos euros), a qual, por despacho de 19/03/2012, transitado a 21/05/2012, veio a ser substituída por 80 horas de trabalho, tendo esta pena se extinguido pelo cumprimento.

16. No âmbito do processo nº 153/12.5…, do círculo judicial de … (actualmente no juízo central criminal de … - J…), por acórdão, transitado em julgado em 23 de maio de 2014, o arguido AA foi condenado:

a) pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203°, n° 1, e 204°, n° 1, als. g) e f), do Cód. Penal, cometido a 09 de Maio de 2012, na pena de 1 (um) ano e 9 (meses) meses de prisão;

b) pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143°, n° 1, do Cód. Penal, cometido a 25 de Abril de 2012, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

c) pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n° 1, do Cód. Penal, cometido a 06 de Maio de 2012, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

d) pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143° n° 1, 145°, n° 1, al. a), e n° 2, e 132° nº 2, al. h), do Cód. Penal, cometido a 17 de Setembro de 2011, na pena de 13 (treze) meses de prisão;

e) pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n° 1, e 204°, n° 1, al. b), do Cód. Penal, cometido a 05 de Abril de 2012, na pena de 10 (dez) meses de prisão;

f) pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348°, n.° 1, al. b), do Cód. Penal, cometido a 31 de Outubro de 2012, na pena de 5 (cinco) meses de prisão;

g) e, em cúmulo jurídico dessas penas, o arguido AA foi condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.

17. No âmbito do processo n.º 153/12.5…, o arguido AA esteve preso preventivamente desde 12 de julho de 2012 e, em consequência da referida condenação, cumpriu parte da pena de prisão até de 27 de novembro de 2015.

18. Por decisão proferida no processo n.º 226/08.9…, do Juízo Central Criminal de …, determinou-se o cumprimento pelo arguido AA da pena de três anos de prisão em que fora condenado, pela prática do crime de roubo, cometido no dia 11 de julho de 2008, iniciando-se o cumprimento dessa pena em 27 de novembro de 2015, com o seu termo previsto em 26 de novembro de 2018.

19.Por força das suprarreferidas condenações, o arguido AA esteve privado da liberdade entre 12 de julho de 2012 e 19 de abril de 2018, data em que lhe foi concedida liberdade condicional.

20. O arguido AA tem um filho com quatro anos de idade que vive com a progenitora, tem residência, com a sua companheira, em casa arrendada, e encontra-se actualmente recluso, em prisão preventiva, à ordem do processo nº 637/22…., do Juízo central criminal de … - J….

21. Em Março de 2022 o arguido AA vivia sozinho, mantendo, no entanto, uma relação de namoro. O arguido AA tem um filho com quatro anos de idade, fruto de um anterior relacionamento, contraiu casamento no início de 2019 e veio a separar-se posteriormente. Esse relacionamento coincidiu com a sua autonomização da família de origem, aonde não regressou. O arguido AA planeia viver de futuro com a atual namorada, que o tem visitado durante a sua reclusão no EP de ….

22. O arguido AA frequentou a escola na idade própria, tendo completado o 9º ano em meio institucional durante anterior cumprimento de pena de prisão. Neste momento está a concluir o 12.º ano através de RVCC.

23. O arguido AA tem um percurso profissional contínuo, sobretudo na área da …, como indiferenciado. Em Março de 2022 e até ser recluso, mantinha ocupação, recebendo cerca de 50 Euros ao dia.

24. O arguido AA não tem problemas de saúde relevantes ou comportamentos aditivos.

25. A situação económica do arguido AA apresentava-se adequada à satisfação das necessidades básicas.

26.O arguido AA já cumpriu pena de prisão. Concedida a liberdade condicional a AA, foi a pena julgada extinta com efeitos a partir de 10/09/2020. O relatório final de acompanhamento, a 21/03/21, referia que “AA protagonizou durante a medida em apreço um comportamento responsável e ativo no seu processo de reinserção social, constituindo a sua integração laboral e familiar como significativo fator de proteção comportamental.”.

27. Encontra-se atualmente em prisão preventiva à ordem do Processo 637/22…. do tribunal de … – JC Criminal de … – Juiz ….

28. O arguido AA revela algum sentido crítico, fazendo uma correta apreciação do seu comportamento, ainda que apresente alguma dificuldade em explicá-lo, contextualizando a sua prática criminal na sua vulnerabilidade à influência de terceiros. Verbalizou junto do técnico da DGRS compreender e aceitar a intervenção do sistema de justiça e a vontade em manter de futuro um comportamento adequado.

29. O arguido AA foi punido recentemente com cela disciplinar de oito dias, no estabelecimento prisional em que se encontra.

30. A partir de 2020, não obstante manter uma ocupação laboral continuada, o arguido AA passou por uma situação de maior instabilidade, com a separação da mãe do seu filho e passando a viver sozinho.

MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

“Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:

1. Era na mão direita que o EE trazia o saco, quando lhe foi retirado pelo arguido AA.

2. O EE resistiu ao puxão do referido saco, agarrando-o.

3. Para evitar novas agressões o EE largou o saco de plástico.

Da discussão da causa não resultaram provados, nem deixaram de se provar, quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa.”

A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO PROFERIDA PELO TRIBUNAL “A QUO”

O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua convicção quanto aos factos que considerou provados:

“A convicção positiva do tribunal quanto à realidade dos factos enunciados nos pontos 1 a 13, dos factos provados, alicerçou-se no depoimento prestado em audiência pela testemunha EE, o ofendido, que depôs de forma que se afigurou honesta e sincera, e por isso inteiramente credível, sem que se evidenciassem na prova quaisquer razões que justificassem a mínima dúvida acerca da sua credibilidade, da qual, por isso, foi merecedor. Alicerçou-se de igual modo, quanto ao ponto 9 dos factos provados, na ponderação articulada do testemunho do ofendido com a informação do Centro de Saúde de …, a fls. 28. E alicerçou-se, ainda, nas regras de experiência comum e da normalidade da vida, no que tange ao conhecimento e ao propósito da actuação dos arguidos, a que se alude nos pontos 10 a 12 dos factos provados.

A testemunha EE, confrontado com os arguidos, esclareceu que à data dos factos de que foi vítima já conhecia o arguido DD havia alguns anos, da escola, e já conhecia de vista (de o ver na cidade de …) o arguido AA (pese embora não soubesse o seu nome), e nenhuma dúvida teve em identificar ambos os arguidos como aqueles de cujo comportamento foi vítima.

A testemunha EE localizou os factos no dia 01/03/2022, cerca das 07h da manhã, no início do tabuleiro da ponte …, em …, nas imediações da discoteca …, narrou que ia para o trabalho (e era o seu terceiro dia de trabalho) no hotel …, viu um grupo de indivíduos embriagados (entre eles os arguidos), o arguido DD passou por si, e o outro arguido agarrou o saco de plástico que o ofendido trazia - o qual tinha um par de sapatos e um cinto, para o trabalho -, puxou-o e tirou-lhe o saco, e, de imediato, o arguido DD deu-lhe socos e pontapés, o arguido AA ainda lhe deu uma chapada na cabeça, o ofendido caiu no chão, e o arguido DD ainda lhe afirmou que se fizesse queixa à polícia estava “fodido”.

Esclareceu que foram outros elementos do grupo - um grupo de 6 ou 7 indivíduos, que acompanhava os arguidos - que puxaram os arguidos e os retiraram dali, e duas raparigas ajudaram o ofendido a levantar-se e disseram-lhe para se ir embora, e devolveram-lhe o saco. Confirmou que naquela altura pensou que ia morrer, teve tonturas, e acabou por ir ao Centro de Saúde, e, depois, à Esquadra da Polícia.

O arguido DD não prestou declarações relativamente aos factos que lhe vinham imputados.

O arguido AA prestou declarações relativamente a esses factos, tendo declarado que esteve nesse dia (01/03/2022) na discoteca … (que admitiu situar-se nas proximidades da ponte …, o que aliás é do conhecimento do tribunal), até às 06h e tal ou 07h, ainda foi ao bar da … com o arguido DD e outros indivíduos, onde esteve até cerca das 09h e pouco, e depois foi para casa, não tendo andado na ponte …, e não conhecendo o ofendido. As declarações do arguido AA - que não é propriamente um desinteressado no desfecho deste processo - não denotaram qualquer credibilidade, em face e no confronto com o depoimento do ofendido.

Quanto aos factos enunciados nos pontos 14 a 19 dos factos provados, atendeu-se ao último CRC do arguido AA, junto aos autos, e bem assim à certidão extraída do aludido processo 153/12.5….

Quanto aos factos vertidos no ponto 20 dos factos provados, atendeu-se às declarações prestadas pelo arguido AA a respeito da sua condição pessoal, e quanto aos factos enunciados nos pontos 21 a 30 dos factos provados, atendeu-se ao relatório social elaborado pela DGRS, acerca deste arguido.

Quanto aos factos enunciados no ponto 31 dos factos provados, atendeu-se ao último CRC do arguido DD, junto aos autos,

Quanto aos factos vertidos no ponto 32 dos factos provados, atendeu-se às declarações prestadas pelo arguido DD a respeito da sua condição pessoal, e quanto aos factos enunciados nos pontos 33 a 49 dos factos provados, atendeu-se ao relatório social elaborado pela DGRS, acerca deste arguido.

A prova produzida não logrou demonstrar a matéria vazada nos factos não provados, inexistindo prova que a corroborasse.”

O OBJECTO DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal “ad quem” tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

As questões essenciais suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são as seguintes:

1) Eventual aplicação do instituto da reincidência à situação concreta dos autos.

2) Da indevida aplicação do perdão concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.2023.

O MÉRITO DO RECURSO

1) Da eventual aplicação do instituto da reincidência à situação concreta dos autos.

Entende o Recorrente que se mostram verificados os pressupostos da punição da reincidência previstos no artigo 75º do Código Penal.

O tribunal “a quo” fundamentou do seguinte modo a não condenação do arguido AA, como reincidente:

«Acerca da agravativa por reincidência, dispõe o artº75º, do Cód. Penal (reincidência) o seguinte:

“1 - É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

2 - O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

(…)”.

Ora, no que toca ao arguido AA, não se afigura que a factualidade apurada permita a agravação por reincidência, prevista nos artºs. 75º, e 76º, do Cód. Penal, desde logo pela seguinte ordem de razões.

Ora, a agravativa da reincidência não opera de modo automático, ou seja, não opera pelo mero cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso. Esses são apenas os pressupostos formais.

Há ainda um pressuposto material, já que se exige que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

A acusação não enunciou as penas parcelares dos crimes antecedentes objecto da condenação do arguido no processo nº 153/12.5…, e a acusação também não indicou as datas da prática de cada um dos crimes antecedentes objecto da condenação do arguido no processo nº 153/12.5… limitando-se a referenciar genericamente datas, mas sem as relacionar com cada crime.

Mais relevante, a acusação não descreveu os factos que sustentaram as condenações antecedentes, ou seja, que factos praticou o arguido como sustentáculo dessas condenações, o que evidencia a insuficiência da acusação para uma condenação do arguido como reincidente. Na verdade, a descrição desses factos na acusação seria indispensável para que este tribunal pudesse aferir se, de acordo com as circunstâncias do caso, o arguido é de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. Não sendo legítimo a este tribunal suprir a insuficiência da factualidade imputada na acusação para sustentar a condenação como reincidente.

E, sobretudo, a acusação omite a descrição de factos concretos que preencham o pressuposto material da reincidência, nos termos do qual ela apenas opera se “de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”. Com efeito, nada diz a acusação acerca de qual o circunstancialismo atinente ao próprio arguido que o envolveu antes na prática de crimes e o envolve de novo na prática de novos crimes, e que justifica um juízo de culpa agravado em que tem que se fundar a condenação como reincidente. Também não sendo legítimo a este tribunal suprir aqui a insuficiência da factualidade imputada na acusação para sustentar a condenação como reincidente.

Mostra-se irrelevante, por em bom rigor não constituir factos concretos, a referência genérica e meramente conclusiva, que a acusação fez constar: “Não obstante as referidas condenações e a subsequente estadia na prisão, o arguido AA voltou a cometer novo ilícito criminal doloso contra o património, não lhe tendo tal condenação por crime da mesma natureza aproveitado como suficiente advertência para a afastar da prática de atos criminosos por parte do arguido.”.

Como tal, deverá o arguido ser absolvido quanto ao cometimento como reincidente do crime de roubo, com recurso aos termos dos arts. 75º e 76º, do Cód. Penal.»

Os argumentos aduzidos pelo tribunal “a quo” para fundamentar a não condenação do arguido AA, como reincidente, são irrefutáveis.

Esta Relação não pode senão subscrever as razões doutamente aduzidas na sentença recorrida em desabono da tese perfilhada pelo Recorrente.

É que, o «requisito material da agravante da reincidência (21) (art.º 75 nº 1 parte final do CP), que acresce aos requisitos formais, deve ser preenchido com matéria de facto concreta.

Com efeito, exige-se expressamente para que a reincidência funcione (tal como já sucedia no Código Penal na versão aprovada pelo DL nº 400/82 de 23/9), a verificação de que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente advertência contra o crime, tratando-se manifestamente de uma prevenção especial.

É que, operando a reincidência ope judicis há que distinguir o verdadeiro reincidente do pluriocasional, pois uma nova condenação pode não ter força indiciadora de desrespeito, podendo antes acontecer que a reiteração na prática do crime seja devida a causas fortuitas ou exógenas que excluam a conexão entre os crimes reiterados por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores.

Esta exigência veio alterar a concepção do instituto da reincidência existente no Código Penal de 1886, deixando de o fazer depender apenas da verificação automática da condenação ou condenações anteriores, mas antes exigindo a demonstração de factualidade concreta que cria uma relação entre a falta de efeito da condenação anterior e a prática de novo crime(22).

Não funcionando a reincidência de forma automática, isso «significa que, se não constarem da acusação os referidos pressupostos, ela não pode ser considerada na decisão» (23).

O que se compreende visto que, sendo a acusação peça fundamental, nuclear, que delimita o objecto da acção penal, deverá ser cuidadosamente elaborada e articulada com os pertinentes factos a esse respeito, assim se assegurando eficazmente o princípio do contraditório e as garantias de defesa do arguido.

(…)

Na peça acusatória aqui em apreço foi alegada matéria de facto relativa à imputada agravante da reincidência, mas, a nível do seu requisito material, foi articulado um juízo conclusivo (quase parafraseando os termos legais), o qual carece de ser concretizado.

Por isso se tem entendido que «para a verificação do aludido requisito material da reincidência é essencial que se indague o modo de ser do arguido, a sua personalidade e o seu posicionamento quanto aos ilícitos cometidos, de modo a poder decidir-se se a condenação ou condenações anteriores lhe serviram de suficiente advertência contra o crime»(26).» (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2007, no site htpp//www.dgsi.pt)

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, mais nada nos resta senão concluir que bem andou o Tribunal recorrido ao não punir o arguido AA, como reincidente.

Eis por que o presente recurso improcede, fatalmente, quanto a esta 1ª questão.

2) Da indevida aplicação do perdão concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.2023.

Nos presentes autos o arguido AA foi condenado pela prática, em co-autoria material, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, nº 1, do Código Penal, em conjugação com o art.º 26º, do mesmo diploma, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, da qual foi declarado perdoado 1 (um) ano de prisão, sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023.

Na tese do Recorrente, atenta a natureza do ilícito pelo qual o arguido foi condenado, está excluído do benefício do perdão previsto na Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto.

Já tivemos oportunidade de nos debruçarmos sobre esta mesma questão em um outro recurso de idêntico teor.

Por isso, a decisão a proferir nestes autos não pode deixar de ser no mesmo sentido da que já proferimos no recurso do Proc. nº 299/17.3GBASL-I. E1, remetendo-se para a fundamentação do respectivo acórdão, que reproduzimos de seguida:

«… tal como se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/11/2023, relatado pela Senhora Juíza Desembargadora Luísa Alvoeiro, proferido no processo n.º 7102/18.5P8LSB (inédito, com um voto de vencido), o artigo 7.º daquele diploma legal, o seu n.º 1, alínea b), i) exclui do perdão e da amnistia previstos na referida Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, no âmbito dos crimes contra o património, os condenados por roubo previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal.

Da análise dos trabalhos prévios à aprovação do citado diploma legal, consta-se que a proposta inicial do Governo excluía do perdão e da amnistia o crime de roubo “em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artigo 210.º do Código Penal”.

A proposta de alteração apresentada em 10 de Julho de 2023, pelo Grupo Parlamentar do PSD, excluía do perdão e da amnistia os condenados por crime de roubo previsto no artigo 210.º do Código Penal, tendo a proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS, em 14 de Julho de 2023 – que apenas excluía do perdão e da amnistia os condenados pela prática do crime de roubo agravado, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal -, acabado por ficar consagrada no texto final do artigo 7.º, alínea b), i), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.

Contudo, “o facto de um crime não constar no elenco daqueles que, por si só, determinam a exclusão das medidas estabelecidas na Lei em análise, não impede que o respetivo agente possa, ainda assim, não beneficiar destas por força das demais exceções igualmente previstas” (Pedro Brito, obra citada, pág. 30.)

Citando o aresto invocado, “é de ponderar que o art.º 7º, al. g), focalizado nas vítimas dos crimes (e já não no concreto tipo de crime), exclui do perdão e da amnistia previstos na presente lei “os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do art.º 67º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de fevereiro”.

Da análise dos trabalhos parlamentares prévios à aprovação do referido diploma legal, constata-se que também esta alínea g) acabou por ter uma redação distinta da inicialmente contante da proposta de lei apresentada pelo Governo, que inicialmente excluía do perdão e da amnistia “g) Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes”.

A redacção final resultou de uma proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS, que excluía do perdão e da amnistia “g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal”.

Tendo ambas as referidas alterações resultado da mesma proposta de alteração do mesmo grupo parlamentar, não poderá argumentar-se que se pretendeu incluir o crime de roubo na sua forma simples de consumação no âmbito das situações passíveis de beneficiar do perdão, antes haverá que presumir a congruência de tais propostas e consequentemente considerar que visaram conferir maior rigor jurídico ao texto da lei (não obstante, ainda assim, não constituir um texto legislativo exemplar) com vista à definição o mais precisa possível das várias situações em que se exclui a aplicação do perdão e da amnistia.

Por conseguinte, não obstante a situação em apreço não se mostrar incluída no art.º 7º, nº 1, al. b), subalínea i). é forçoso concluir que a mesma encontra acolhimento na alínea g) do nº 1 do art.º 7º, na medida em que a vítima do crime de roubo previsto e punido pelo art.º 210º, nº 1 do C.Penal é considerada uma vítima especialmente vulnerável, pelo que o seu agente não poderá beneficiar do perdão da pena aplicada por tal crime, por força da mencionada al. g) do nº 1 do preceito em análise.

Efetivamente, nos termos do disposto no art.º 67º-A, nº 1, al. b) do C. P. Penal considera-se “Vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social” e prevê o nº 3 que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1”.

O mencionado preceito legal remete-nos, por conseguinte, para o disposto no art.º 1º, als. j) e l) do C.P. Penal que consideram como “Criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos” e como “Criminalidade especialmente violenta as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos”.

Ora, sendo o crime de roubo previsto no art.º 210º, nº 1 do C. Penal punido com uma pena de prisão igual ou superior a 5 anos (mais concretamente até 8 anos), o mesmo integra indubitavelmente o conceito de criminalidade especialmente violenta, como resulta expressamente do disposto no art.º 1.º, al. l), do C. P. Penal, e vem sendo defendido na jurisprudência.

(…)

Nessa medida, mesmo na sua forma de consumação simples, tipificada pelo art.º 210º, nº 1 do C.Penal, o crime de roubo, por se integrar no círculo de crimes cujas vítimas são, sempre e independentemente da respetiva condição, idade ou proveniência, “especialmente vulneráveis”, está excluído do benefício do perdão previsto na Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto.

(…)”

Também é esta a posição assumida por Pedro Esteves de Brito, na obra citada em nota de rodapé, a fls. 31 e 32, mencionando algumas decisões dos Tribunais superiores em abono da sua posição.

Ainda no sentido de que o roubo simples não beneficia do perdão previsto no diploma legal a que vimos referindo, encontrámos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/12/2023, relatado pela Senhora Desembargadora Sandra Ferreira e proferido no processo n.º 27/22.1PJLRS, que refere: (Também inédito, tendo a decisão sido proferida por unanimidade.)

“O art.º 7º da referida Lei 38-A/2023 de 02 de agosto, exceciona da aplicação do perdão várias hipóteses.

Assim, entre outros, exceciona-se:

- na al. b) ponto i) (a par com outros crimes ali especificados) os condenados pela prática de crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210º, nº 2 do Código Penal e;

- na al g) os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do art.º 67º A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 78/87 de 17 de fevereiro.

O crime de roubo previsto e punível no art.º 210º, nº 1 do Código Penal, é punível com uma pena de 1 a 8 anos de prisão.

O crime de roubo é um delito complexo protegendo simultaneamente a liberdade individual, o direito de propriedade e a detenção das coisas que podem ser subtraídas, contando-se assim entre os bens jurídicos a liberdade pessoal e a integridade física. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.06.2022 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.09.2021, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.)

O art.1º al. j) do Código de Processo Penal define como “Criminalidade violenta”, as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

E a alínea l) do mesmo artigo define “Criminalidade especialmente violenta” como as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos; No art.º 67º- A, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, define-se “´Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”;

Acrescentando o nº 3 do mesmo dispositivo legal que “As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b)

Resulta do art.º 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).

(…)

Ora, cremos que o legislador no art.º 7º nº 1 da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, foi estabelecendo, em concreto, a inaplicabilidade do perdão e da amnistia para certos tipos de crime, vindo depois a estabelecer na al. g) do citado nº 1, uma cláusula mais abrangente, no sentido de excecionar a aplicação da amnistia e do perdão aos condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis nos termos do art.º 67º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-lei nº 78/87 de17 de fevereiro (isto, é centrando agora o foco especificamente na vítima do crime e não no concreto tipo de crime cometido).

Partindo do texto da lei vemos que o legislador não excluiu qualquer vítima especialmente vulnerável. E, de facto, se o legislador quisesse limitar a exceção à definição de vítima especialmente vulnerável, prevenida no art.º 67º-A, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, tê-lo-ia seguramente feito.

Na verdade, da Exposição de Motivos (…), fez-se constar o seguinte: (…) Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.

Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação (…)” e, como vimos, o crime de roubo, previsto no nº 1 do art.º 210º do Código Penal, nos termos do disposto no art.º 1º al. l) do Código de Processo Penal é qualificado como criminalidade especialmente violenta.

(…)

Para quem defenda que por o crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210º, nº 1 do Código Penal não estar previsto expressamente no ponto i) da alínea b) do art.º 7º da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto não está excecionada a aplicação do perdão, torna-se difícil perceber como admitirão excecionar do perdão todas aquelas situações em que, sendo cometido um crime de roubo, previsto e punível pelo art.º 210º, nº 1 do Código Penal, as vítimas sejam pessoas cuja especial fragilidade decorra, por hipótese, da sua idade ou estado de saúde, pois que claramente estas vítimas estariam abrangidas pela al. g) do referido art.º 7º da lei 38-A/2023 de 2 de agosto, como o legislador quis e previu, e consequentemente o perdão não teria aplicação - embora o art.º 210º, nº 1 do Código Penal, continue a não constar da referida alínea b).

Assim, presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º, nº 3 do Código Civil) a conclusão a retirar é que estarão também abrangidas as vítimas cuja especial vulnerabilidade decorre da classificação legal dos crimes praticados, como integrando “criminalidade violenta” ou “criminalidade especialmente violenta”, nos termos do art.º 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, mesmo que esse crime seja o de roubo previsto e punível pelo art.º 210º, nº 1 do Código Penal.»

Nestes termos, não restam dúvidas de que face à Lei n.º38-A/2023, de 02/08, o arguido AA não reunia as condições para aplicação do perdão aí previsto, uma vez que a situação em apreço integra a assinalada exceção ao artigo 7.º, § 1.º, al. g) ao perdão previsto no artigo 3.º, § 1.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto. Isto é, estão excluídos desse perdão «os condenados por crimes praticados contra (…) vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.

Eis por que, e sem necessidade de mais considerações haverá que concluir que neste item a decisão recorrida não pode subsistir.

DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, determina-se a revogação da sentença recorrida, no segmento em que declara perdoado 1 (um) ano de prisão à pena de prisão em que o arguido AA foi condenado nos presentes autos, sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023.

No mais mantém-se a sentença recorrida.

Sem tributação.

Évora, 04 / 06 / 2024