Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
310/22.6T8TNV-A.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
DECISÃO JUDICIAL
REQUISITOS
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Para que a propriedade horizontal possa ser constituída por decisão judicial impõe-se que, a par dos requisitos civis previstos no artigo 1415.º do Código Civil, se verifiquem os correspondentes requisitos administrativos, os quais terão de verificar-se no momento em que a divisão é requerida, seja pelo autor, seja pelo réu.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 310/22.6T8TNV-A.E1

Tribunal Judicial da Comarca ... Juízo Local Cível ...
Recorrente: AA e BB
Recorrido:CC
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I. RELATÓRIO
CC moveu a presente ação de divisão de coisa comum contra DD, EE... e HERANÇA INDIVISA DE FF..., encontrando-se os autos a prosseguir, desde o despacho de 16.12.2022 contra os respetivos herdeiros, AA e BB..., pedindo que “proferida decisão que, fixe as respetivas quotas e ponha termo à indivisão, com venda do imóvel a terceiros, com repartição do valor entre as partes.”
Alegou, em resumo, que Requerente e os Requeridos são comproprietários de um prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, duas dependências anexas, logradouro e pátio, sito em ..., Travessa ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...66 da União de freguesias de ... (..., ... e ...), descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia de ..., sob o n.º..., conforme certidão do registo predial e caderneta predial urbana que se juntam como Docs. ... e ... e cujo conteúdo se por inteiramente reproduzido para os devidos efeitos legais (“Imóvel”), sendo atualmente a propriedade do Imóvel repartida entre o Requerente e os Requeridos nas seguintes proporções, conforme resulta dos Docs. ... e ... cujo conteúdo se por inteiramente reproduzido para os devidos efeitos legais:
a. 1/3 do Imóvel pertence ao Requerente;
b. 1/6 do Imóvel pertence ao Primeiro Requerido;
c. 1/6 do Imóvel pertence à Segunda Requerida;
d. 1/3 do Imóvel pertence à herança indivisa de GG
Acrescentou que o imóvel é indivisível, e que não pretende manter a compropriedade do imóvel.
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Citados os Réus contestaram impugnando a alegada indivisibilidade do prédio, e deduziram pedido reconvencional, pedindo, além do mais, a declaração da constituição da propriedade horizontal do prédio em causa nos presentes autos com três frações autónomas e de aquisição pelos Requeridos da propriedade da fração que respetivamente vêm usando, por usucapião.
Alegaram, em suma, que o prédio em discussão encontra-se dividido mais de 70 anos e essa divisão originou três habitações distintas concretamente identificadas, com entradas próprias para a dita fração e ainda entrada para o “prédio mãe” e que assim, sendo as mesmas independentes, distintas e isoladas entre si, nada obsta à constituição da propriedade horizontal, que a partir de 1991, a fração ... passou a estar na posse da mãe dos Requeridos e mais tarde também na posse dos Requeridos DD e HH, que procederam ao aterro do logradouro, e que a fração ... foi ocupada por II... até ao seu óbito e desde então encontra-se na posse do Requerente e a fração ... por AA e BB
Concluíram que deste modo, cada comproprietário e respetivos herdeiros passaram a agir como proprietários exclusivos da fração que lhes coube aquando da divisão do imóvel e passou a gozar e usufruir da sua fração de forma ininterrupta há mais de 70 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pelo que ocorreu a aquisição por usucapião, relativamente à respetiva fração devidamente autonomizada e, designadamente, quanto aos Requeridos, as frações ... e ..., o que deverá ser determinado.
Em sede de réplica, veio o Requerente pugnar pela inadmissibilidade dos pedidos reconvencionais por a ação de divisão de coisa comum configurar um processo especial incompatível com a admissibilidade do pedido reconvencional e impugnando os factos alegados.
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Por despacho com a referência n.º ...39 foi proferido convite ao aperfeiçoamento, nos termos do qual se determinou a notificação dos reconvintes para, no prazo de 10 dias ”procederem ao aperfeiçoamento do pedido de constituição da propriedade horizontal, concretizando se os requisitos acima mencionados se encontram preenchidos e juntando certificado camarário que ateste que o edifício satisfaz os requisitos de constituição da propriedade horizontal à luz do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e ainda o projecto de constituição da propriedade horizontal.
Por requerimento com a referência n.º ...00, os Reconvintes solicitar um prazo de 60 dias para tramitação do processo para obtenção da certificação camarária dos requisitos para a constituição da propriedade horizontal.
Por despacho com a referência n.º ...83, em face dos argumentos aduzidos pelos Reconvintes foi deferida a requerida prorrogação do prazo anteriormente conferido.
Posteriormente, por despacho com a referência n.º ...93, foi determinada a notificação dos Reconvintes para, impreterivelmente, no prazo de 10 dias, procederem ao cumprimento do determinado.
Por requerimento com a referência n.º ...20 vieram os Reconvintes referir que se encontram a diligenciar pela obtenção da certificação da constituição da propriedade horizontal, junto da Câmara Municipal ... e que repararam a existência de uma discrepância da área constante da descrição predial e da caderneta, não podendo, sem a respetiva harmonização entregar a documentação exigida, pugnando pela concessão de um prazo de 90 dias.
Em sede de contraditório veio o Requerente/Reconvindo opor-se à concessão de novo prazo por, neste momento, o prédio não reunir objetivamente condições para constituição da propriedade horizontal e que, aquando da apresentação da contestação os Reconvintes deveriam estar munidos de todos os elementos necessários à constituição da propriedade horizontal e que, em face do exposto, deverá ser decidida a indivisibilidade do prédio e fixados os quinhões bem como designada data para realização da conferência de interessados (cf. referência n.º ...78).
Por despacho com a referência n.º ...54 foram os Reconvintes notificados para, em cinco dias, esclarecerem quais as diligências levadas a cabo junto da Câmara Municipal e certificação da suficiência do prazo peticionado para o efeito.
Em resposta, vieram as mesmas referir que ainda não procederam à entrega do expediente na Câmara Municipal em virtude da discrepância existente entre as áreas nos termos acima mencionados.
Por outro lado, referiram que o documento apenas se tornou necessário no decurso da ação e por via da apresentação da contestação, não sendo exigível que os Reconvintes estivessem na sua posse.
Terminaram, solicitando um prazo de 120 dias ou, subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, que os autos prossigam os seus termos habituais para apreciação da constituição da propriedade horizontal por usucapião.
Foi então em 22.05.2023, proferido despacho que indeferiu o requerido, nos seguintes termos:
“(…)Como ulteriormente referido, relativamente ao pedido de constituição da propriedade horizontal, o mesmo depende da verificação simultânea quer dos requisitos civis previstos no artigo 1417.º do Código Civil quer dos requisitos administrativos fixados no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
Nessa medida foi dirigido convite de aperfeiçoamento, de modo a que os Reconvintes alegassem o cumprimento e atestassem a verificação dos requisitos de índole administrativa, o que não veio a suceder, tendo sido referido que ainda não encetaram qualquer diligência junto da Câmara Municipal ... por se verificarem divergências na área constante da descrição predial e da respectiva caderneta.
Ora, a verificação dos requisitos supra, como factos essenciais à procedência do pedido de constituição da propriedade horizontal deverá verificar-se no momento em que a divisão é requerida e colocada a questão da respectiva divisibilidade ou indivisibilidade e, assim, em face da oposição do Ilustre Mandatário do Requerente à concessão de novo prazo e ao entendimento jurisprudencial de que os requisitos se deverão verificar no momento em que se coloca a questão da divisibilidade, não resta senão, indeferir a concessão de novo prazo (neste sentido, inter alia, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-03-2021, processo n.º 7489/20.0T8PRT.P1 (MANUEL DOMINGOS FERNANDES) e de 13-10-2022, processo n.º 17/18.9T8VLC.P1 (JUDITE PIRES), Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29-09-2022, processo n.º 367/21.7T8MNC.G1 (JOAQUIM BOAVIDA), todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Pelo exposto, indefiro o requerido, consignando-se que os Requeridos/Reconvintes não responderam ao convite formulado pelo tribunal.
Notifique.
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No despacho de 22.05.2023 foram ainda indeferidos os pedidos reconvencionais de constituição da propriedade horizontal, nos seguintes termos:

Da admissibilidade dos pedidos reconvencionais
Os Requeridos AA e BB apresentaram contestação, com dedução de pedido reconvencional – cfr. referência n.º ...49.
Os Requeridos DD e HH apresentaram contestação, com dedução de pedido reconvencional – cfr. referência n.º ...87.
Vieram, em suma, e de forma similar, pugnar pela procedência do pedido reconvencional e declaração da constituição da propriedade horizontal do prédio em causa nos presentes autos e caso assim não se entenda e julgando procedente a acção, sendo imóvel vendido a terceiros ou adjudicado a uma das partes, devem ser consideradas as benfeitorias executadas pelos requeridos no rés-do-chão e primeiro andar, para efeitos de distribuição do produto da venda ou pagamento de tornas.
Alegaram, em suma, que o prédio em discussão encontra-se dividido há mais de 70 anos e essa divisão originou três habitações distintas concretamente identificadas, com entradas próprias para a dita fracção e ainda entrada para o “prédio mãe” e assim, sendo as mesmas independentes, distintas e isoladas entre si, nada obsta à constituição da propriedade horizontal.
A partir de 1991, a fracção ... passou a estar na posse da mãe dos Requeridos e mais tarde também na posse dos Requeridos DD e HH, que procederam ao aterro do logradouro e a fracção ... foi ocupada por GG até ao seu óbito e desde então encontra-se na posse do Requerente e a fracção ... por AA e BB.
Deste modo, cada comproprietário e respectivos herdeiros passaram a agir como proprietários exclusivos da fracção que lhes coube aquando da divisão do imóvel e passou a gozar e usufruir da sua fracção de forma ininterrupta há mais de 70 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pelo que ocorreu a aquisição por usucapião, relativamente à respectiva fracção devidamente autonomizada e, designadamente, quanto aos Requeridos, a fracção ... e ..., o que deverá ser determinado.
De forma subsidiária, caso a acção seja julgada procedente, referem que os Requeridos AA e BB procederam a obras de manutenção e conservação na fracção ... que estimam ascender a €64.000,00 e DD e HH, na fracção ... que referem ascender a € 62.500,00 e que consideram que contribuíram para a valorização do imóvel, pugnando pela realização de perícia para apuramento do seu valor aproximado.
Em sede de réplica, veio o Requerente pugnar pela inadmissibilidade dos pedidos reconvencionais por a acção de divisão de coisa comum configurar um processo especial incompatível com a admissibilidade do pedido reconvencional e impugnando a matéria aí deduzida.
Seguiu-se a tramitação supra consignada, cumprindo, agora, aferir da admissibilidade dos pedidos reconvencionais.
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Para que a reconvenção seja admitida é necessário que se encontrem verificados todos os requisitos processuais e substantivos, prescritos por lei.
Assim, quanto aos requisitos de ordem processual a reconvenção deverá ser expressamente identificada e deduzida separadamente na contestação, devendo o Reconvinte: (i) expor os seus fundamentos; (ii) formular o pedido; (iii) indicar de forma expressa o valor da reconvenção (vide, artigo 583.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Compulsados os autos, verifica-se que a Requerida observou todos os requisitos processuais acima enunciados.
Relativamente aos requisitos de ordem substantiva, deverá ter-se em consideração o preceituado pelo n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil que determina que a reconvenção é admissível: a) quando o pedido do Réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; b) quando o Réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) quando o Réu pretender o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado exceder o do Autor; d) quando o pedido do Réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito que o Autor se propõe obter.
Por outro lado, à semelhança do que ocorre para a petição inicial, há que equacionar as hipóteses de indeferimento liminar do pedido reconvencional.
Vieram os Requeridos deduzir dois pedidos reconvencionais, reportando-se o primeiro à constituição da propriedade horizontal e o segundo ao reconhecimento das benfeitorias que alegam ter realizado no imóvel em discussão nos autos. De forma a apreciar da sua admissibilidade, analisaremos, separadamente, cada um dos pedidos.
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Do pedido de constituição da propriedade horizontal
Nesta sede, cumpria aos Reconvintes a alegação e demonstração da verificação dos requisitos de índole administrativa, o que não foi feito, nem sequer após despacho (vinculado) de convite ao aperfeiçoamento no sentido de procederem à respectiva junção.
Assim, na esteira do propugnado por Pires de Sousa (in Processo Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2016 p. 88), sendo um facto essencial do pedido formulado pelos Requeridos/Reconvintes, a sua omissão, conduz, necessariamente, à manifesta improcedência da acção.
Como acima referido, os pressupostos subjacentes à constituição do prédio em propriedade horizontal, deverão existir no momento em que se coloca a questão da divisibilidade, o que, de forma absolutamente cristalina, se poderá dizer que não se verifica – ver, neste sentido,
Pelo exposto, na falta de alegação e demonstração, considera o tribunal que deverá ser proferido despacho de indeferimento liminar do pedido reconvencional, não devendo relegar-se o seu conhecimento de mérito para sede de julgamento, atento o momento temporal em que a questão tem de ser conhecida e a manifesta improcedência do pedido formulado, por falta de demonstração dos requisitos legalmente exigidos para o efeito.
Decide-se, em consonância com os argumentos supra aduzidos, indeferir liminarmente o pedido reconvencional deduzido pelos Requerido, por manifesta improcedência – cfr. artigos 590.º, n.º 3, ex vi do disposto no artigo 549.º do Código de Processo Civil.”
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Inconformados com a decisão na parte em que não admitiu o referido pedido reconvencional, AA, e BB... interpuseram recurso de apelação, apresentando, após alegações, as seguintes conclusões:
A) Por douto despacho de 22.05.2023, o Tribunal decidiu rejeitar o pedido reconvencional deduzido pelas partes, que se traduzia no pedido de constituição de propriedade horizontal, alicerçado na usucapião.
B) Fundamentou a sua decisão, no facto dos Réus, à data do pedido, não se encontrarem munidos da certificação prévia camarária, exigível pelo RJEU, concluindo que "o pedido de constituição da propriedade horizontal, depende da verificação simultânea quer dos requisitos civis previstos no artigo 1417.º do Código Civil quer dos requisitos administrativos fixados no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
C) Os réus solicitaram prazo de 60 dias, vindo mais tarde solicitar prorrogação do prazo por mais 90 dias, pois quando ultimavam o pedido para apresentar junto da Câmara Municipal ..., depararam -se com significativa discrepância de áreas, cuja harmonização se impõe.
D) A referida prorrogação não foi aceite nem pelos Autores, nem pelo Tribunal, tendo nessa medida sido rejeitado o pedido reconvencional de constituição de propriedade horizontal, nos seguintes termos:
Pelo exposto, na falta de alegação e demonstração, considera o tribunal que deverá ser proferido despacho de indeferimento liminar do pedido reconvencional, não devendo relegar-se o seu conhecimento de mérito para sede de julgamento, atento o momento temporal em que a questão tem de ser conhecida e a manifesta improcedência do pedido formulado, por falta de demonstração dos requisitos legalmente exigidos para o efeito.
Decide-se, em consonância com os argumentos supra aduzidos, indeferir liminarmente o pedido reconvencional deduzido pelos Requerido, por manifesta improcedência cfr. artigos 590.º, n.º 3, ex vi do disposto no artigo 549.º do Código de Processo Civil.
E) Com a referida decisão de rejeição do pedido reconvencional, não se conformam os Réus, razão pela qual interpõem recurso do douto despacho, nos termos do artigo 644.º n.º 1 al. b) do CPC.
F) A douta interpretação - a de que ambos os requisitos se devem verificar à data da apreciação do pedido pelo Tribunal - deve ser convenientemente apreciada, e contextualizada, por forma a permitir a justa
composição do presente litígio.
G) Na perspetiva dos Recorrentes, a verificação simultânea dos requisitos supra no momento da sua apreciação - momento esse que na perspetiva do douto despacho ocorre no momento da apresentação da contestação -ou quando muito, logo após os articulados- é na maior parte dos casos, absolutamente inconcretizável quando na posição processual de Réus contestantes/Reconvintes,
H) Na medida em que estes, apenas se vêm na contingência de obter a prévia certificação camarária, quando na qualidade de Réus, são citados, para os termos da acção de divisão de coisa comum.
I) Assim, e no que concerne aos Réus -que no caso em apreço , apenas se viram na contingência de proceder à junção da certificação camarária, após notificação judicial para o efeito - deve tratar-se esta exigência com alguma flexibilidade e permitir os ajustamentos que a situação em concreto demanda.
J) Até ao momento da notificação do referido despacho, os Réus desconheciam que teriam de obter a certificação camarária prévia, sem a qual, o Tribunal não decidiria a questão de mérito, tendo sido necessário começar do zero: solicitar levantamentos topográficos, contratar terceiros para instruir o processo para dar entrada na Câmara, etc.
L) Os Recorrentes entendem que o despacho ora recorrido, viola o dever de gestão processual / material do processo pelo juiz, gestão essa que se deve materializar na promoção oficiosa de diligências probatórias, com vista à descoberta da verdade e à realização a justiça (decisão materialmente justa).
M) Com efeito, se o momento de apreciação dos factos constitutivos da usucapião, é o momento da audiência de discussão e julgamento pode e deve relegar-se também para esse momento, a obtenção do referido documento camarário, permitindo-se a sua junção, até á referida data, e /ou ordenar-se simultaneamente pelo Tribunal uma perícia a fim de apurar da divisibilidade do prédio em causa.
N) Só assim se faria a justiça que se impõe no caso em apreço, pois se para o Autor se trata de uma mera questão de encaixe financeiro imediato, para os Réus, trata-se do seu direito à habitação.
O) A apreciação da questão da "divisibilidade" é claramente necessária para uma "melhor aplicação do Direito", por estarem em causa habitações próprias dos Réus e ora recorrentes, tendo estes despendido avultadas quantias no melhoramento das suas fracções, não possuindo habitação alternativa, em caso de alienação total do prédio!!
P) Esta decisão, para além de não esgotar todas as possibilidades processuais que se poderiam utilizar com vista a uma justa composição do presente litígio, é extremamente gravosa para os Réus, pois ocorrendo uma perícia, ou uma simples inspeção ao local, ( tal como requerido) não restariam dúvidas ao Tribunal (independentemente da certificação administrativa exigível no caso em apreço) de estarmos na presença de três frações autónomas, e distintas entre si, com entradas próprias, suscetíveis de serem constituídas em propriedade horizontal
Q) Pelo que ao abrigo do artigo 264.º do CPC, o Tribunal deveria ter ordenado a inspeção ao local, e promovido as diligências necessárias ao cabal apuramento da divisibilidade do prédio, nomeadamente ordenando uma perícia.
R) Considerando que o juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, a perícia acerca da divisibilidade, sanaria quaisquer dúvidas que pudessem subsistir quanto à obtenção da certificação camarária, cuja junção se deveria admitir até ao encerramento da discussão da causa.
S) Acresce ainda que, o dever de direção ou gestão material do Juiz , se materializa, entre outras, na promoção oficiosa de diligências probatórias, uma vez que está ligada intrinsecamente ligada à descoberta da verdade, e à realização a justiça (decisão materialmente justa).
T) Por último, a decisão proferida quanto ao pedido reconvencional, não promove a a igualdade processual das partes, uma vez que aos Réus foi-lhes vedada a prova dos factos que alegam, prova essa que lograriam fazer com toda a fiabilidade, uma vez que é evidente e notória individualização das frações, com acessos e entradas autónomas, tal como exigível pelo RJEU.
U) Pelo que ante o exposto, e face ao alegado, o douto despacho que indefere o pedido reconvencional deduzido quanto à constituição da propriedade horizontal, deve ser substituído por outro que admita a reconvenção, relegando até final a decisão sobre a existência de todos os requisitos de verificação da propriedade horizontal, incluindo a certificação camarária já referida , e ordenando perícia para apreciação da divisibilidade do prédio seus poderes/deveres de gestão processual, de inquisitório e do máximo aproveitamento dos atos praticados.
V) Caso assim não se entenda, é entendimento dos recorrentes, também em obediência aos mesmos princípios, a que supra se faz referência, que o Tribunal deveria ter deferido a prorrogação de prazo solicitada pelos Réus, prazo esse que deve ser fixado, atendendo à realidade aplicável à situação em concreto.
W) É certo que, no caso em apreço, o Tribunal concedeu 10 dias, e depois mais 60 dias, para o referido efeito, contudo questiona-se: pelos usos e costumes, configuram estes prazos razoáveis e suficientes para a obtenção da certificação camarária exigida pelo Tribunal? Entendemos que não!
X) Assim, se o tribunal entendeu que nesta fase é inultrapassável a exigência do requisito camarário, cremos que seria mais curial conceder à parte prazo razoável para obter junto da autarquia tal certificação, concedendo-se prazo razoável para o efeito.
Z) Prazo razoável, no caso em apreço, é aquele que se ajusta à realidade do funcionamento dos serviços camarários, e ao tempo médio expetável para resolução de situações análogas, nunca inferior, em média, em 120 dias- ainda para mais, se atendermos a que se trata da Câmara Municipal ..., entidade que, como é do conhecimento geral, apresenta escassez de pessoal no departamento urbanístico, por força de uma investigação judicial em curso.
TERMOS EM QUE ANTE O EXPOSTO, E NO MAIS A SUPRIR POR V.EXAS, SE REQUER :
A) A substituição do douto despacho que indefere o pedido reconvencional deduzido quanto à constituição da propriedade horizontal, por outro que admita a reconvenção, relegando para final a decisão sobre a existência de todos os requisitos de verificação da propriedade horizontal, incluindo a certificação camarária já referida , e ordenando perícia para apreciação da divisibilidade do prédio seus poderes/deveres de gestão processual, de inquisitório e do máximo aproveitamento dos atos praticados, em alternativa
B) A concessão de prazo razoável, para obtenção da referida certificação, atendendo às especificidades e morosidade dos procedimentos urbanísticos, prazo esse que no caso em apreço, e à cautela, não deverá ser inferior a 120 dias.
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O Autor contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
A. A Recorrente não tem qualquer razão ou fundamento para colocar o despacho em crise, porquanto realizou uma irrepreensível aplicação do direito aos factos.
B. A Recorrente não cumpriu o ónus de alegar e formular conclusões, na medida em que não indica a norma jurídica violada, nem sequer o sentido com que, no entender da Recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e aplicadas.
C. O prédio não reúne objectivamente condições para a constituição da propriedade horizontal.
D. O juízo acerca da divisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento em que se encontra a coisa quando a divisão é requerida.
E. Aquando da apresentação da contestação e reconvenção, a Recorrente já deveria estar munida de todos os elementos necessários à constituição da propriedade horizontal.
F. A referida certidão nunca poderá ser obtida dada a discrepância de áreas do terreno e a realização de obras ilegais (pela Recorrente) no imóvel em causa.
G. O Tribunal a quo, benevolente e pacientemente, conferiu à Recorrente a possibilidade de cumprir o ónus de comprovar a verificação dos requisitos formais de que depende a constituição da propriedade horizontal por 3 vezes, em 16 de Dezembro de 2022 (10 dias), em 10 de Janeiro de 2023 (60 dias) e em 28 de Março de 2023 (10 dias).
H. Acresce que, entre a data da citação e a presente data, já decorreram 435 dias, um prazo que se reputa de razoável para obtenção do documento.
I. Desde 1996 que os Réus e Reconvintes conhecem a intenção do Recorrido por fim à indivisão, tendo sido sempre gorados os esforços extrajudiciais, quer através da famigerada (mas nunca concretizada) propriedade horizontal, quer porque é oferecido um valor medíocre pela quota ideal do Recorrido.
J. O processo de divisão de coisa comum é um processo especial que visa, em tempo útil e de forma expedita, por fim à indivisão.
K. Com os sucessivos pedidos de prorrogação do prazo (e agora com o presente recurso), a Recorrente apenas pretende adiar uma decisão de mérito.
L. As reivindicações da Recorrente consubstanciam um manifesto abuso de direito, bem como uma utilização perversa dos mecanismos processuais.
M. A estratégia processual (conjunta e articulada) dos Réus e Reconvintes é evitar a venda do imóvel a terceiros no âmbito do processo de divisão de coisa comum ou o pagamento de um justo valor pela quota ideal do Recorrido.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se o despacho em crise, assim se fazendo JUSTIÇA.
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II. Questões a decidir.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente que, como é sabido, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil importa apreciar e decidir da nulidade invocada e se deve considerar-se legalmente admissível o pedido reconvencional (na parte em que foi rejeitado).
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III. Fundamentação.
III.1. De facto.
Com interesse para a boa decisão da causa relevam os factos relativos à tramitação dos autos que supra se elencaram.
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III.2. Apreciação jurídica.
Conforme resulta do disposto no n. 1 do artigo 266.º do Código de Processo Civil, o réu pode deduzir pedido reconvencional, apresentando uma contra pretensão contra o autor, nos casos previstos no n.º 2 do mesmo artigo.
De harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 266.º do mesmo diploma, não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda forma de processo diferente da do pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos do artigo 37.º, n.ºs. 2 e 3 do Código de processo Civil, com as necessárias adaptações.
Para além dos requisitos processuais e conforme resulta do disposto no n.º 2 do artigo 266.º referido, o exercício do direito de reconvir depende ainda da verificação de requisitos de ordem substancial ou material, apenas sendo admissível em situações em que exista uma certa conexão entre o pedido do autor e o formulado pelo réu, ou seja:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou a despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; e
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
Como adequadamente se expôs na decisão recorrida, a questão da admissibilidade da reconvenção nas ações de divisão de coisa comum tem dividido a jurisprudência, entre o entendimento segundo o qual se verifica incompatibilidade processual entre o pedido de divisão e o pedido reconvencional face ao disposto no artigo 266.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, e outro que acolhe a possibilidade de adaptação do processado, com base no disposto no artigo 37.º, nºs 2 e 3, ex vi do artigo 266.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.
Subscrevemos o entendimento vertido na decisão recorrida, nos termos do qual, considerando que o juiz terá sempre a possibilidade de autorizar a dedução de pedido reconvencional ainda que a este corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, desde que se encontrem verificados os pressupostos enunciados nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do Código de Processo Civil, que segue o propugnado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-03-2022, proferido no âmbito do processo n.º 823/20.4T8CSC-A.L1.2, segundo o qual:
“efetivamente, as diversas formas processuais – especial e comum – não prosseguem uma tramitação manifestamente incompatível, obstaculizadora da admissibilidade da reconvenção, o que decorre, desde logo, da circunstância daquele processo especial já prever, numa sua fase eventual, o tramitar sob a forma do processo comum. Sendo que, por tramitação manifestamente incompatível deve apenas entender-se aquela que, ainda que potencialmente, determinasse a prática de actos processuais contraditórios, antinómicos ou inconciliáveis. Donde, inexiste pertinência no entendimento que considera exigível que, na aferição do deve e haver entre cada um dos comproprietários, ou seja, do que cada um contribuiu para o valor da sua quota, que constitui o efectivo diferendo entre as partes, entendesse por necessário, para tal resolução, o recurso a outro processo judicial.”[1]
A decisão recorrida indeferiu liminarmente os pedidos reconvencionais relativos à constituição da propriedade horizontal, não porque se tivesse entendido que eram processualmente inadmissíveis, mas antes porque se ter considerado que eram manifestamente improcedentes.
Entendemos que se decidiu bem.
Entendeu-se que não se mostravam verificados os pressupostos de constituição da propriedade horizontal, pois que competia aos Reconvintes a alegação e demonstração da verificação dos requisitos de índole administrativa, o que não foi feito, e que sendo esse um facto essencial do pedido formulado pelos Requeridos/Reconvintes, a sua omissão, conduz, necessariamente, à manifesta improcedência da ação.
O artigo 1412.º do Código Civil atribui a cada comproprietário o direito de exigir a divisão. Trata-se de um direito potestativo destinado a dissolver a relação de compropriedade, adjetivado nos artigos 925.º a 929.º do Código de Processo Civil.
A ação de divisão de coisa comum é, assim, uma ação de natureza real e constitutiva, na medida em que implica uma modificação subjetiva e objetiva do direito real que incide sobre a coisa, pois, caso se verifique a divisibilidade da coisa, o direito de compropriedade será fragmentado, quer quanto aos sujeitos, quer quanto ao objeto e, nos casos de indivisibilidade, o direito de compropriedade transforma-se em direito de propriedade singular, passando a ser seu titular outro ou outros sujeitos.
Dispõe o artigo 925.º do Código de Processo Civil, a respeito da petição do processo especial de divisão de coisa comum, que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.
Como ação especial que é, comporta processualmente duas fases distintas, uma declarativa a que se reportam os artigos 925.º a 928.º do Código de Processo Civil e outra executiva, nos termos do artigo 929.º do mesmo diploma.
A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, como determina o n.º 2 do citado artigo 926º, salvo se o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que os autos deverão seguir os termos do processo comum, cf. artigo 926.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
De acordo com o art.º 926.º, 1, do CPC, os requeridos são citados para contestar, no prazo de 30 dias, oferecendo logo as provas de que dispuserem.
Seguidamente, se houver contestação ou a revelia não for operante, o juiz, produzidas as provas necessárias, profere logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º do CPC.
Se, porém, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, conforme o preceituado no número anterior, manda seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum art.º 962.º, n.º 3, do CPC.
Determina o n.º 4 da citada disposição que, ainda que as partes não hajam suscitado a questão da indivisibilidade, o juiz conhece dela oficiosamente, determinando a realização das diligências instrutórias que se mostrem necessárias –– artigo 962º/2 do CPC.
Se tiver sido suscitada a questão da indivisibilidade e houver lugar à produção de prova pericial, os peritos pronunciam-se logo sobre a formação dos diversos quinhões, quando concluam pela divisibilidade– art.º 962/5 do CPC.
Fixados os quinhões, realiza-se a conferência a que alude o disposto no artigo 929.º do CPC.
Sendo a coisa indivisível, a conferência tem em vista o acordo dos interessados na respetiva adjudicação a algum ou a alguns deles, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes. Na falta de acordo sobre a adjudicação, é a coisa vendida, podendo os consortes concorrer à venda.
Assim, a ação especial de divisão de coisa comum tem por objeto a concretização do direito dos comproprietários à divisão, a que se reporta o artigo 1412.º do Código Civil, ou, no caso de indivisibilidade material da coisa, o acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos outros com dinheiro, ou na falta de acordo, a venda executiva e subsequente repartição do seu produto na proporção das quotas de cada um (cf. artigo 929.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
Daqui se infere que a natureza – divisível ou indivisível – da coisa condiciona o processamento ulterior dos autos, sendo que o conhecimento da indivisibilidade é oficiosamente imposto, como se referiu.
E sendo certo que não é possível conceber a constituição da propriedade horizontal sem a observância de todos os requisitos legais, incluindo os de natureza administrativa, necessário é, no caso dos autos, determinar o momento em que os referidos requisitos têm de ser demonstrados.
Tratando-se de uma condição de procedência da pretensão, como acertadamente se ponderou na decisão recorrida, deve ser demonstrada até ao momento em que o tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre a questão da divisibilidade o momento em que as pretensões relativas à divisão do imóvel são colocadas.
Assim, o juízo acerca da (in)divisibilidade da coisa comum deve reportar-se, como se entendeu na decisão recorrida, ao momento e estado em que se encontra a coisa, quando a divisão é requerida, isto é, ter-se-á que atender ao que o prédio é e não ao que poderá vir a ser.
Para que a propriedade horizontal possa ser constituída por decisão judicial impõe-se que, a par dos requisitos civis previstos no artigo 1415.º do Código Civil, se verifiquem os correspondentes requisitos administrativos, os quais terão de verificar-se no momento em que a divisão é requerida, seja pelo autor, seja pelo réu.
Decidiu-se no Acórdão de 22.03.2018 da Secção deste Tribunal, proferido no processo n.º 151/17.2T8ODM.E1 que aqui seguimos de perto:
“(…) De acordo com o art. 209.º do Código Civil, são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam. Trata-se, assim, de um conceito jurídico de divisibilidade, e não naturalístico ou físico, uma vez que, materialmente, todas as coisas são divisíveis, até à sua ínfima parte.
Por outro lado, para se decidir da divisibilidade ou indivisibilidade de um prédio, tem de se atender ao que ele é e não ao que poderá vir a ser, devendo assim o juízo de divisibilidade reportar-se ao momento e estado em que se encontra a coisa quando a divisão é requerida.[4]
Por outro lado, como já afirmou o Supremo Tribunal de Justiça[5], não é legítimo ao comproprietário de um prédio utilizar a acção de divisão de coisa comum para, com o concurso do tribunal, mas sem a concordância dos demais comproprietários, proceder à constituição da propriedade horizontal. Na verdade, excede os poderes de um dos comproprietários, sem o acordo dos demais, proceder à alteração da estrutura e natureza do prédio, pois a tal obsta o disposto nos arts. 1407.º e 985.º, n.º 1, do Código Civil.
Acresce, ainda, que o fraccionamento e constituição da propriedade horizontal sobre prédios urbanos depende da verificação de exigências urbanísticas que são de satisfação exclusivamente deferida às câmaras municipais, a quem cabe, como requisito prévio da constituição da propriedade horizontal, emitir a respectiva licença de utilização – arts. 62.º a 66.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL 555/99, de 16/12.
No caso, os RR. não alegaram que o prédio dos autos tinha a sua divisão ou fraccionamento autorizada pela competente câmara municipal, ou sequer que preenchia, actualmente, os requisitos para a concessão da competente licença. Argumentam que, com obras de alteração, com as quais os AA. não concordam, tal divisão poderá ser possível, mas, em bom rigor, no local até pode ser viável a construção futura de uma torre com vários apartamentos, mas o que importa é o estado actual do prédio, e essa é de indivisibilidade jurídica.
Assim, não tendo os RR. alegado, sequer, o actual preenchimento dos requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, não podia a indivisibilidade deixar de ser declarada, como os AA. requereram e a primeira instância concedeu.(…)”
Tem-se entendido, neste âmbito, que a constituição da propriedade horizontal “(…) basta-se com um certificado municipal de que o edifício satisfaz os requisitos para a constituição da propriedade horizontal (…)” cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in “Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas”, pág. 55.
Refere este Autor que «no que tange aos requisitos civis da constituição da propriedade horizontal, devem os mesmos ocorrer aquando do pedido de constituição de propriedade horizontal e não estarem dependentes da realização de obras futuras no prédio. Para além do requisito de actualidade referido não se deve impor aos comproprietários a realização de despesas extraordinárias destinadas à constituição de propriedade horizontal de um imóvel que não está em condições para o efeito. Perante uma situação desta índole, que concluir pela indivisibilidade do prédio. A existência de certificação camarária integra um facto constitutivo do direito invocado pelo autor/consorte, cuja demonstração lhe incumbe. O tribunal não pode decidir pela constituição da propriedade horizontal sem a observância de tais requisitos legais, civis e administrativos. O que a administração não pode conceder, não pode a Jurisdição autorizar.»
No caso, apesar dos esforços do Tribunal Recorrido, no sentido de convidar os Requeridos a demonstrarem o preenchimento dos pressupostos administrativos referidos, o certo é que os mesmos se mostram indemonstrados.
Desta forma não estando junto aos autos o documento que comprove que se verificam os requisitos administrativos da propriedade horizontal, não pode o tribunal pronunciar-se sobre a mesma, nem a constituição da propriedade horizontal é legalmente admissível.
Assim sendo, e em conclusão, o prédio objeto da presente ação é indivisível, como se entendeu na decisão recorrida não era divisível na data em que foram formuladas as pretensões, e não se demonstrou que fosse no momento de proferir decisão sobre a (in)divisibilidade.
A partir desse momento, indemonstrados os requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, ou seja, do modo legalmente admissível de divisão de construções urbanas, a indivisibilidade do prédio em questão, que era controvertida entre as partes, não pode deixar de ser, perante os elementos disponíveis, reconhecida, como foi na decisão recorrida, indivisibilidade que se traduz na impossibilidade de constituição da propriedade horizontal.
Como se referiu e se entendeu na decisão recorrida, os pressupostos subjacentes à constituição do prédio em propriedade horizontal deverão existir no momento “em que se coloca a questão da divisibilidade, o que, de forma absolutamente cristalina, se poderá dizer que não se verifica ver, neste sentido” (certamente por lapso ficou a frase incompleta).
Acresce que, quanto à constituição por usucapião, cabe a este propósito recordar o que se escreveu no Acórdão do STJ de 29.01.2008[3]:
“(…) É condição de procedência de uma acção de divisão de coisa comum a existência de uma situação de compropriedade.
Se, quando a acção foi proposta, a compropriedade já tinha cessado por se ter verificado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade singular de parte determinada do prédio, o pedido de divisão tem de improceder.(…)”
No caso, os Requeridos admitem a compropriedade, mas alegam que o prédio em causa nos presentes autos se encontra dividido em frações autónomas há mais de 70 anos, divisão essa que se apresenta em três frações autónomas, afetas à habitação, correspondendo cada uma a um andar do prédio, sendo cada uma dessas frações completamente autónoma em relação às outras, com entradas próprias e independentes, pelo que estão preenchidos os requisitos para a constituição de propriedade horizontal.
Porém, como também se entendeu, no referido Acórdão do STJ, a posse de uma parte do prédio pelo comproprietário não permite por si invocar com êxito a aquisição do direito de propriedade sobre essa parte. Como ali se escreveu:
“(…)Com efeito, e independentemente da opção teórica que se adoptar quanto ao conceito de compropriedade, que, para a lei portuguesa (nº 1 do artigo 1403º do Código Civil), existe “quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, a verdade é que, sendo certo que “os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular” e que são “qualitativamente iguais” os direitos dos comproprietários “sobre a coisa comum” (nº 2 do mesmo preceito), pode haver dificuldade em concluir se a posse que os recorrentes invocam deve ser considerada como correspondente à posse de comproprietário (em relação a todo o prédio, indiviso), ou à posse de proprietário individual da metade nascente do prédio.
É por isso que o nº 2 do artigo 1406º do Código Civil estabelece que, mesmo que um só dos comproprietários use a coisa comum – o que não significa qualquer infracção das regras da compropriedade, como resulta do nº 1 do mesmo preceito, ainda que quantitativamente seja diferente a quota de cada um –, tal uso “não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.
O mesmo se diga da modificação da coisa comum, que cada consorte pode fazer por si só, de forma a permitir-lhe melhorar as condições de uso da referida coisa, desde que respeite os limites também constantes do nº 1 do já citado artigo 1406º do Código Civil. É claro que o uso da coisa é susceptível de ser fixado por acordo dos comproprietários, e que uma das soluções encontradas pode justamente consistir em ficar convencionado que cada um tem a faculdade de usar uma parte (fisicamente) determinada da mesma, “sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., Coimbra. 1984, pág. 357).
Todos estes apontamentos demonstram a dificuldade atrás recordada, “dado (como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, Código cit. III, pág. 359) o carácter essencialmente equívoco em que a posse, em princípio, reveste em tais situações (dada a latitude dos poderes de uso conferidos ao comproprietário)”, motivo pelo qual o Código Civil português exige, caso se verifique que um dos comproprietários passa a utilizar toda ou parte da coisa comum como se fosse seu proprietário individual, e pretenda invocar a aquisição do correspondente direito de propriedade por usucapião, que se tenha verificado a inversão do título da sua posse, prevista no artigo 1265º do Código Civil (…)”[4].
O alegado uso pelos comproprietários de partes do prédio não será, pois, suscetível de conduzir, à aquisição de tal parte por usucapião, sem inversão do título da posse.
Conclui-se desta forma que a decisão proferida, que indeferiu por manifestamente improcedente o pedido reconvencional de constituição de propriedade horizontal no prédio em causa, não merece censura.
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IV. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Custas pela Apelante artigo 527º do CPC.
Registe e notifique.

Évora, 11 de abril de 2024
Ana Pessoa
Maria Adelaide Domingos
Maria João Sousa e Faro
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[1] Idêntico entendimento havia já sido acolhido no Acórdão desta Secção do Tribunal da Relação de Évora de 17.012019, proferido no processo n.º 764/18.5T8STB.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Cf. ainda neste sentido o Acórdão 13.10.2022, proferido no âmbito do processo n.º 17/18.9T8VLC.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Cf. ainda o Acórdão da Relação do Porto de 13.10.2022, proferido no processo n.º 17/18.9T8VLC.P1, acessível em www.dgsi.pt.