Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
194/10.7YREVR
Relator: ANTÓNIO M. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
INCOMPETÊNCIA RELATIVA
Data do Acordão: 04/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO
Sumário:
A divergência sobre a competência decorrente exclusivamente do valor da causa, surgida entre o juiz da comarca e o juiz de círculo os quais, em decisões transitadas, do mesmo passo que declinam a competência respectiva, mutuamente a atribuem para a tramitação dos autos, não constitui um verdadeiro conflito negativo de competência (art. 115º, nº 2 do C.P.C.), mas uma questão de incompetência relativa (art. 108º do C.P.C.) a ser dirimida nos termos do art. 675º, n.º 1 do CPC, ou seja, cumprir-se-á a decisão que passou em julgado em primeiro lugar, pois que, e independentemente da sua correcção ou conformidade com a lei, a mesma resolveu definitivamente a questão (art. 111º, n.º 2 do CPC).
Decisão Texto Integral:
O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, junto deste tribunal, requereu a resolução do conflito negativo de competência surgido entre o Sr. juiz do 2º juízo cível da comarca do Loulé e o Sr. juiz do círculo judicial de Loulé, os quais, do mesmo passo que declinam a competência respectiva, mutuamente a atribuem para a tramitação dos autos de expropriação com o nº 2077/05.3TBLLE e conhecimento do recurso da arbitragem.
O processo foi instruído com certidão daqueles autos e, nomeadamente, dos despachos judiciais em conflito, com nota do respectivo trânsito em julgado.
O presente pedido de resolução do conflito foi intentado com observância da tramitação estabelecida nos arts. 115º e segs. do Código de Processo Civil (diploma a que se reportarão todos os preceitos que doravante forem invocados sem referência a outra fonte).
Ouvidos os juízes em conflito, nos termos do art. 119º, nada disseram.
O MºPº, em seu douto parecer, pronuncia-se no sentido do deferimento da competência ao juiz do 2º juízo cível da comarca de Loulé, dando assim acolhimento à posição assumida pelo Sr. juiz do círculo judicial de Loulé.

Dispensados os vistos, dada a simplicidade da questão objecto do recurso, cumpre decidir.

Vejamos então.

Estão certificados nos autos os seguintes factos:
-Ao 2º juízo cível do tribunal judicial da comarca de Loulé foi distribuído o processo de expropriação por utilidade pública com o nº 2077/05.3TBLLE, em que é expropriante a EP…, SA., e expropriados J… e Maria…;
-No dia 30 de Outubro de 2006, o Sr. juiz titular declarou-se incompetente e competente o Sr. juiz do círculo de Loulé, ao qual ordenou a remessa, após trânsito, do processo;
-Remetido e recebido o processo, o Sr. juiz de círculo, declarou-se igualmente incompetente para o julgamento do recurso de arbitragem e competente o juiz do 2º juízo cível;
-Os despachos transitaram em julgado, em 6.12.2006 e 12.11.2009, respectivamente.

Embora, não conste da certidão junta aos autos o valor da acção, nem este venha indicado, podemos assentar que excede o valor da alçada da Relação, já que isso mesmo é referido pelo Sr. juiz do 2º juízo cível e foi esse o pressuposto da sua decisão e não foi questionado pelo Sr. juiz de círculo.

A questão que se coloca, dado que o valor da causa é superior à alçada da Relação, é tão só a de saber se competente para conhecer do recurso de arbitragem é o juiz de círculo ou o juiz do 2º juízo cível.
Estabelecem os arts. 58º e 60º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei 168/99 de 18/09, que “no requerimento da interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente deve… requerer a intervenção do tribunal colectivo…” e “com o recurso subordinado ou com a resposta devem ser… requerida a intervenção do tribunal colectivo”.
Nos termos dos arts. 67º, nº 1, 104º, nº 2, 106º, al. b) e c), da Lei 3/99 de 13/01 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) “os tribunais judiciais de 1ª instância funcionam, conforme os casos, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal do júri”, competindo ao tribunal singular “julgar os processos que não devam ser julgados pelo tribunal colectivo…”, sendo da competência deste, o julgamento das “questões de facto nas acções de valor superior à alçada dos tribunais da Relação... ou em que a lei do processo o determine”.
Dispõem os arts. 105º e 107º da mesma Lei 3/99, que os tribunais colectivos são compostos por dois juízes de círculo e pelo juiz do processo, cabendo a presidência a um dos juízes de círculo por distribuição equitativa a quem caberá também “proferir a sentença final nas acções cíveis”.
Por seu turno ao art. 646º, nº 5 determina que, quando não tenha lugar a intervenção do colectivo (nomeadamente, por não ter sido requerida), o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença incumbem ao juiz que a ele deveria presidir, ou seja, ao juiz de círculo.
Resulta das normas referidas, que a competência do tribunal singular ou colectivo (estrutura do tribunal) e do juiz prolator da sentença, depende, em primeiro lugar, do valor da causa.
Na sistemática do Código de Processo Civil, a competência do tribunal singular ou colectivo em função do valor da causa está integrada na competência relativa (secção II sob a epígrafe “Incompetência relativa”), como claramente resulta dos arts. 108º (“a infracção das regras de competência fundadas no valor da causa… determina a incompetência relativa do tribunal”), 110º, nº 2 (“a incompetência em razão do valor da causa… é sempre do conhecimento oficioso do tribunal…”) e 110º nº 4 (“no caso previsto no nº 2, a incompetência do tribunal singular, por o julgamento da causa competir a tribunal colectivo, pode ser suscitada…”).
É, assim, perfeitamente claro que, a questão da competência em função da estrutura do tribunal, singular ou colectiva, ou do juiz a quem compete proferir a sentença, não integra uma questão de competência material (absoluta) mas relativa.
Consequentemente, também no caso em apreço, saber se o juiz competente para conhecer do recurso da arbitragem é o juiz do 2º juízo cível de Loulé ou o juiz do círculo de Loulé, será uma questão de competência relativa e não absoluta como, incorrectamente, referiu e se declarou o Sr. juiz do círculo no seu despacho em que declinou a competência (“…impõe-se declarar que me falece competência em razão da matéria relativamente aos presentes autos…”).
No caso, ambos os juízes se declaram incompetentes.
O incidente de incompetência relativa está regulado na secção II, nos arts. 108º a 114º.
A secção III, arts. 115º a 212º, regula a tramitação dos conflitos de jurisdição e competência, não sendo, por conseguinte, aplicáveis às questões de incompetência relativa, como é o caso.
Estabelece o art. 111º n.º 2 que “a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada”.
Ora, tratando-se de um caso de competência relativa que fica definitivamente resolvida com o trânsito em julgado da decisão que dela conheceu, a conclusão que se impõe é que, efectivamente, não estamos perante qualquer conflito de competência, sendo ainda certo que, face ao estabelecido no citado art. 111º, n.º 2, o nosso sistema jurídico não comporta nem prevê a existência de conflitos de competência relativa [1], porquanto, nos termos do art. 115º, n.º 3, não há conflito enquanto as decisões sobre a competência (relativa) forem susceptíveis de recurso e logo que transite uma delas, o conflito também deixa de existir, porquanto, nos termos do referido art. 111º, n.º 2 a mesma resolve definitivamente a questão.
Por isso, caso existam duas decisões sobre a competência em razão do valor da causa, transitadas em julgado, como é o caso, há que observar o estabelecido no art. 675º, n.º 1, ou seja, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar, pois que, e independentemente da sua correcção ou conformidade com a lei, a mesma resolveu definitivamente a questão (art. 111º, n.º 2, citado).
Perante uma primeira decisão se, eventualmente, em desconformidade com o legalmente estabelecido, impunha-se o recurso da mesma, nos termos estabelecidos nos arts. 111º, n.ºs 4 e 5.
Não tendo sido interposto recurso e, assim, tendo transitando em julgado, impunha-se a remessa do processo para o juiz de círculo, considerado competente naquela decisão, a quem restava aceitá-lo, sem mais, ou seja, sem que legalmente pudesse proferir nova decisão sobre a questão da competência relativa, pois que a mesma ficou fixada definitivamente com aqueloutra decisão transitada.
Como se certifica a fls. 4, a decisão proferida pelo Sr. juiz do 2º juízo cível a declarar-se incompetente e a ordenar a remessa do processo ao Sr. juiz de círculo, transitou em julgado em 6.12.2006 e, como tal, antes da decisão do Sr. juiz de círculo a declinar a sua competência a qual transitou em julgado em 12.11.2009. Por isso, “ex vi” dos citados arts. 111º, n.º 2 e 675º, n.º 1, terá que se cumprir aquela.
A questão submetida à nossa apreciação reduz-se, pelo exposto, a uma questão formal, não importando, por conseguinte, dirimir a questão substancial, ou seja a de saber qual o juiz efectivamente competente, já que esta é questão que, bem ou mal, está definitivamente decidida [2].
Poderia, inclusive, e quiçá deveria, o pedido ter sido liminarmente indeferido, nos termos do art. 118º, nº 1, uma vez que inexiste qualquer conflito de competência.

Pelo exposto e sem mais considerandos por desnecessários, reconhecendo-se a inexistência de conflito negativo de competência, nos termos dos arts. 111º, n.º 2 e 675º, n.º 1 do Código de Processo Civil, determina-se a remessa dos autos ao Sr. juiz do círculo judicial de Loulé.
Sem custas.
Évora, 14.04.2011
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Acácio Luís Jesus Neves)
(José Manuel Bernardo Domingos)
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[1] Em razão do valor da causa, da forma de processo, do território ou das convenções (pactos privativo e atributivo de jurisdição ou competência convencional – arts. 99º e 100º), mas, tão só, conflitos de jurisdição, de competência material e de estrutura.
[2] Cfr., neste sentido os acs. desta Relação de 7.04.2005 no proc. n.º 2955/04-2, de 27.01.2005, no proc. 2472/04-3, ambos relatados pelo aqui adjunto Des. Bernardo Domingos, de 29.01.2009, no proc. 2291/08-2 e de 31.03.2009, no proc. 26/09.9YREVR, relatados pelo Des. Almeida Simões, os três últimos in www.dgsi.pt