Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
Descritores: | INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO NEGÓCIO FORMAL ÓNUS DO RECORRENTE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
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Sumário: | Sumário: I. A invocação de erros na apreciação da decisão de facto ou de direito, não correspondem aos vícios formais (nulidades) previstos no artigo 615.º do CPC. II. A impugnação da decisão de facto tem de obedecer aos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, que correspondem a ónus impostos ao recorrente, sob pena de rejeição da impugnação da decisão de facto. III. Para além das concretas especificações que constam do n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC, a parte tem de prévia e inequivocamente expressar a sua vontade de recorrer impugnando a decisão de facto por erro na aferição ou valoração da prova. IV. A interpretação do negócio jurídico segue as regras dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil. V. Estando em causa um negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, valendo o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se não puder razoavelmente contar com ele ou caso conheça a vontade real do declarante. VI. Se a interpretação das cláusulas contratuais acordadas pelas partes, na interpretação que uma das partes faça delas, cria um desequilíbrio negocial que, manifestamente, em face das estipulações escritas no acordo, as partes não quiseram, essa interpretação deve ser afastada em face das regras interpretativas acima referidas. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 132/24.0T8RMR.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ Comarca Santarém, Juízo de Competência Genérica de Local 1 Apelantes: AA e BB Apelados: CC e DD
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora I – RELATÓRIO 1. CC e mulher, DD, instauraram a ação declarativa condenatória comum contra AA e BB, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhes as quantias de €11.000,00 correspondente ao saldo dos créditos de prestação de contas e tornas pela permuta acordada, de €15.000,00 a título de cláusula penal e de juros de mora civis, vencidos no valor de €3.063,12 e vincendos até integral e efetivo pagamento, calculados sobre o referido montante de capital de € 11.000,00. 2. Para fundamentarem a sua pretensão, alegaram, em síntese, que celebraram com os Réus, em 11-10-2016, um acordo judicial para colocar termo a dois litígios judiciais que mantinham entre si, sendo que, por via do mesmo, foi adjudicado aos Autores um prédio sito em Local 2 e aos Réus um prédio sito em Local 1, dos quais Autores e Réus eram donos e legítimos proprietários em comum e em partes iguais, ficando os Autores obrigados a entregar aos Réus, no prazo de 6 meses, o apartamento correspondente à fração sita no 3.º Andar Esquerdo do prédio localizado em Local 1 e respetiva garagem e os Réus obrigados a entregar aos Autores, no mesmo prazo, a quantia de €11.000,00 a título de saldo dos créditos de prestação de contas e tornas pela permuta acordada, estipulando ainda que, em caso de incumprimento, deveriam os incumpridores indemnizar a contraparte no montante de € 15.000,00. Mais alegam que em março de 2017 procederam à entrega aos Réus da fração sita no 3.º Andar Esquerdo do prédio localizado em Local 1 e respetiva garagem, não tendo estes, no prazo de 6 meses, procedido ao pagamento da quantia de €11.000,00. 3. Contestaram os Réus e, em suma, aceitaram os termos do acordo celebrado e as obrigações assumidas mutuamente, sustentando, porém, que os Réus apenas se obrigaram a pagar aos Autores a quantia de €11.000,00 pela entrega da fração sita no 3.º Andar Esquerdo do prédio localizado em Local 1 e respetiva garagem se obtivessem a licença de utilização do prédio, entrega aquela que os Autores nem sequer concretizaram no prazo de 6 meses acordado, tendo-se limitado a abandonar a fração em data que desconhecem, pelo que os Réus tomaram da mesma posse por arrombamento da porta cerca de 1 ano após a celebração do referido acordo, não sendo por isso devida nem a quantia de €11.000,00 por não ter ainda sido obtida licença de utilização do prédio sito em Local 1, nem a quantia de €15.000,00 a título de cláusula penal, defendendo assim a improcedência da ação. Deduziram ainda reconvenção, alegando que, por via do referido acordo, ficou ainda estabelecida a divisão entre si em partes iguais das despesas camarárias, taxas, com técnicos e eventuais obras necessárias à obtenção da licença de utilização do prédio sito em Local 1, que computam atualmente em €3.012,00, devendo os Autores/Reconvindos ser condenados a pagar-lhes metade, ou seja, €1.506,00. 4. Os Autores responderam à exceção de não cumprimento defendendo que no acordo sub judice ficou expressamente estipulado o pagamento por estes da quantia de €11.000,00 caso os Autores procedessem à entrega da fração sita no 3.º Andar Esquerdo do prédio localizado em Local 1 e respetiva garagem no prazo de 6 meses, reiterando que esta teve lugar em março de 2017. 5. Na réplica, os Autores/Reconvindos, admitindo a existência por parte dos Réus/Reconvintes de crédito por despesas camarárias, taxas, com técnicos e eventuais obras necessárias à obtenção da licença de utilização do prédio sito em Local 1, pelo menos na quantia de €60,00, e, no demais, na medida do que estes viessem a provar. 6. Na audiência prévia, foi admitida a redução do pedido reconvencional formulado pelos Réus/Reconvintes para o montante de €1.270,25, juntando ainda documento parcialmente comprovativo das despesas alegadas. 7. Após realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu o litígio nos seguintes termos: «I –Julgar a ação totalmente procedente, por provada, e, consequentemente: a. a) Condenar os Réus AA e BB a pagar aos Autores CC e DD aquantia de €11.000,00 (onze mil euros), acrescida de juros de mora civis à taxa legal em vigor, vencidos desde 2017/12/31, e vincendos até integral e efetivo pagamento; e 1. b) Condenar os Réus AA e BB a pagar aos Autores CC e DD a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros). II –Julgar a reconvenção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente: a. a) Condenar os Autores/Reconvindos CC e DD a pagar aos Réus/Reconvintes AA e BB a quantia de €1.055,00 (mil e cinquenta e cinco euros); b) Absolver os Autores/Reconvindos CC e DD do demais peticionado pelos Réus/Reconvintes AA e BB.» 8. Inconformados, apelaram os Réus defendendo que seja julga procedente a nulidade arguida e, em qualquer caso, a revogação da sentença, com a sua substituição por outra que julgue improcedente por não provada a ação, absolvendo-os do pedido, formulado para o efeito as seguintes CONCLUSÕES: A. A) No âmbito do recurso da decisão proferida, salvo devido respeito, não foi a mesma devidamente decidida e apreciada pelo Tribunal a quo, sendo que o Tribunal à revelia de tudo quanto deve representar – Justiça - decidiu condenar os réus recorrentes AA e BB a pagar aos autores recorridos CC e DD a quantia de € 11.000,00 (onze mil euros), acrescida de juros de mora civis à taxa legal em vigor, vencidos desde 2017/12/31, e vincendos até integral e efetivo pagamento, e condenar os réus recorrentes a pagar aos autores recorridos a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros). B) A sentença de 1ª instância sob recurso enferma de vício que compromete a sua validade, sendo nula por verificação de OMISSÃO DE PRONÚNCIA, nos termos do nº 2 do artigo 608.º e alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. 1. C) O recorrentes, na sua contestação, alegaram que até hoje não foi possível obter a licença de utilização do prédio de Local 1, não obstante todos os esforços levados a cabo por si. D) Os recorrentes além de alegarem, provaram, aquando da inquirição da testemunha EE, que o prédio ainda não se encontrava licenciado, porém, o tribunal a quo não deu como provado este facto, nem se pronunciou quanto a tal questão, pronunciando-se apenas quanto às despesas do referido licenciamento reclamadas em sede de reconvenção, também referidas pela mesma testemunha em sede de inquirição. E) O depoimento da testemunha EE, encontra-se gravado com início às 15:49 e fim às 15:59, passando nós a reproduzir o que foi perguntado e respondido entre as 00.01.32 e as 00.02.35, assim: “O Sr. Arquitecto é o arquitecto responsável pela legalização do prédio na Rua 1, nº 24, não é? Sim sim.. O que eu… a questão que lhe quero colocar é, portanto, o que tem sido feito? Qual é o ponto da situação relativamente à legalização precisamente deste prédio e se já está licenciado, se já está licenciado, portanto.. É assim! Actualmente o prédio ainda não está licenciado, o projecto foi posto na Câmara penso eu em janeiro de 2023 e desde então tem sido avaliado pelos serviços da Câmara que têm pedido para rever algumas coisas e inclusivamente têm pedido alguns esclarecimentos da parte dele.. (gravação imperceptível)..e tem sido dado resposta e neste momento é dado a entender pela Câmara que o projecto já está a ponto de ser aprovado mas necessita de passar pela arquitecta chefe de secção para emitir o ofício, coisa que ainda não aconteceu. Pronto! Então o prédio ainda não está licenciado? O prédio ainda não está licenciado, exatamente! F) Esta questão é importante, pois a prova da falta de licenciamento do prédio é essencial à boa decisão da causa. G) Ora, como vimos, uma das questões colocadas pelos recorrentes na sua contestação foi precisamente a questão da não obtenção da licença de utilização do referido prédio até à presente data. H) Impõe-se concluir que a “questão” sobre a qual o Tribunal omitiu pronúncia não consubstancia mero argumento jurídico aduzido pelos réus recorrentes, mas antes questão que foi submetida à sua apreciação e sobre a qual deveria ter tomado decisão. I) Da análise da sentença é manifesto que tal não sucedeu, ou seja, o tribunal a quo não deu como provado o facto relevante da não obtenção da licença de utilização do prédio sito na Rua 1, nº 24, em Local 1, não se pronunciando quanto ao mesmo, o que devia ter feito. J) Em face do exposto, é manifesto que a decisão recorrida padece do vício de omissão de pronúncia, e por isso é nula, o que se invoca nos termos e para os efeitos do artigo 615.º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil. K) Está em causa neste autos a interpretação a dar ao acordo referido no ponto 4. dos factos dados como provados, designadamente no que concerne à correcta interpretação das cláusulas 8 e 16 do referido acordo. L) Da análise conjunta das cláusulas 5, 6, 8 e 16, o tribunal a quo chegou às seguintes conclusões: “(…), com meridiana certeza aos olhos do Tribunal, que o teor da cláusula A. cláusula 8, vindo esclarecer que a falta de obtenção da licença de utilização até 2017/04/11 apenas importaria a prorrogação do prazo de 6 meses para celebração da escritura de permuta, inexistindo assim qualquer prazo para o pagamento pelos Réus da quantia de € 11.000,00 aos Autores, condicionando este pagamento, apenas e só, à entrega por estes àqueles da fração e em simultâneo com esta. Pelo que, da concatenação daquelas cláusulas, resulta assim que as partes acordaram que os Autores poderiam entregar aos Réus a fração correspondente ao 3.º Andar Esquerdo, e respetiva garagem, do prédio urbano, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, em qualquer data a partir da celebração do contrato (2016/10/11), dependendo o cumprimento da obrigação de pagamento acometida aos Réus do momento em que aquela entrega ocorresse (cláusulas 5, 8 e 16): - caso os Autores fizessem a entrega aos Réus antes de 2017/04/11, os Réus só se encontravam obrigados a entregar-lhes a quantia de € 11.000,00 nesta data, ou seja, decorridos 6 meses da celebração do contrato; - caso os Autores procedessem à entrega do prédio depois de 2017/04/11, ou seja, decorridos 6 meses da celebração do contrato, os Réus deveriam entregar-lhes a quantia de € 11.000,00 simultaneamente na mesma data em que recebessem aquela fração. Por seu turno, a escritura de permuta deveria ser realizada no prazo de 6 meses, ou seja, até 2017/04/11, prazo o qual seria prorrogado caso não viesse a ser obtida licença de utilização do referido prédio urbano (cláusulas 6, 8 e 16).” 1. M) Com o devido respeito, e salvo melhor opinião, não resulta do teor da cláusula 16 que a mesma visou desfazer um equívoco causado pela redação da cláusula 8, que também não foi redigida em termos deficientes. N) A redação da cláusula 8 e a sua inserção no acordo, resultou de uma vontade expressa e inequívoca das partes. O) As partes, quiserem, claramente, condicionar o pagamento dos 11.000,00 €, por parte dos réus recorrentes, à obtenção da licença de utilização, a não ser (e agora sim, temos a cláusula 16), que os autores recorridos entregassem a fracção correspondente ao 3.º Andar Esquerdo, e respetiva garagem, do prédio urbano, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, a contar da data da formalização do acordo (11/10/2016). P) Foi isto que as partes quiseram dizer quando disseram “Em aditamento à clausula nº 8 fica acordado que SE o outorgante CC abandonar a sua fração no prazo de seis meses onde reside terá direito a receber de imediato o referido montante de € 11.000,00, sendo APENAS prorrogado o prazo para a realização da escritura de permuta. (…)” Q) Estes “SE” e “APENAS” fazem toda a diferença! R) Resumindo, não se aplicaria o disposto na cláusula 8 SE a fracção fosse entregue no prazo de 6 meses a contar da data da formalização do acordo, sendo que, verificando-se esta condição da entrega da fracção no prazo de 6 meses, APENAS seria prorrogado o prazo para a realização da escritura de permuta. Não se verificando esta condição, então aplicar-se-ia o disposto na cláusula 8, e assim seria prorrogado o prazo do pagamento dos 11.000,00 € até à obtenção de tal referida licença. S) Não está escrito em lugar nenhum do acordo, nem as partes o afirmaram em momento algum dos seus articulados, que acordaram que os autores recorridos poderiam entregar aos réus recorrentes a fração correspondente ao 3.º Andar Esquerdo, e respetiva garagem, do prédio urbano, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, em qualquer data a partir da celebração do contrato (2016/10/11), dependendo o cumprimento da obrigação de pagamento acometida aos réus recorrentes do momento em que aquela entrega ocorresse. T) Provou-se que a fracção entrou na posse dos réus recorrentes UM ANO após a celebração do acordo, portanto, passados os seis meses acordados. U) Esta circunstância, dada como provada, implica o afastamento da aplicação da cláusula 16, aplicando-se em pleno, o que ficou acordado na cláusula 8. V) O Tribunal a quo também concluiu o seguinte: “Tratando-se, in casu, de uma transação onerosa, é esta a interpretação que oferece maior equilíbrio entre as prestações assumidas por Autores e Réus (cfr. o já supra citado art.º 237.º do Código Civil). A interpretação propugnada pelos Réus, no sentido de que o pagamento por si aos Autores da quantia de € 11.000,00 ficaria condicionada à obtenção da licença de utilização do prédio oferece um inaceitável desequilíbrio entre as prestações, uma vez que, não sendo obtida a licença de utilização por um prazo alargado de tempo (como é precisamente o caso dos autos), e tendo os Autores procedido à entrega da fração aos Réus, ficariam simultaneamente privados do gozo das suas utilidades económicas e também do montante de € 11.000,00.” W) Ora o artigo 238, nº 1 do Código Civil manda-nos também ter em consideração o texto do documento, e a cláusula 8. faz parte do acordo e não pode ser ignorada. E naquele momento as partes acordaram expressamente que o prazo do pagamento do valor de 11.000,00 € seria sempre prorrogado até à obtenção da licença de utilização do prédio de Local 1. X) Logo, houve uma aceitação, da parte dos autores recorridos daquilo que o Tribunal a quo considerou “desequilíbrio entre as prestações”, se é que o houve. Y) Uma vez que o prédio não se encontra licenciado - facto sobre o qual deveria ter havido pronúncia do tribunal a quo e não houve - como acima referimos -, ainda não é devido o pagamento do valor de 11.000,00 €, uma vez que o prazo de pagamento tem sido sucessivamente prorrogado, por ainda não ter sido possível obter a referida licença de utilização, impondo-se, assim, a absolvição dos recorrentes. Z) Não se verificando o incumprimento da parte dos recorrentes relativamente ao pagamento do valor acordado de 11.000,00 €, também não são devidos os juros de mora nem é devido o valor da cláusula penal do montante de 15.000,00 €. AA) Pela factualidade alegada e provada pelos recorrentes, deverá concluir-se no sentido de absolver os recorrentes da totalidade do pedido. 9. Não foi apresentada resposta ao recurso. 10. Aquando da admissão do recurso, o tribunal a quo pronunciou-se pela não verificação da nulidade da sentença (artigo 617.º, n.º 1, do CPC). II- FUNDAMENTAÇÃO A. Objeto do Recurso Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se sucessivamente apreciar: - Nulidade da sentença por omissão de pronúncia; - Do mérito da sentença. B- De Facto A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto: Factos Provados «1. Os Autores tiveram pendentes contra os Réus as duas ações seguintes, tendo ambas corrido termos pela então designada Secção de Competência Genérica – J1 da Instância Local de Local 1 da Comarca de Santarém instância local cível de Local 1: a) Ação de Prestação de Contas, Processo n.º 1762/15.6...; b) Ação de Divisão de Coisa Comum, Processo nº 92/14.5... 2. No âmbito do processo identificado na alínea a) do ponto 1 supra, os Autores e os Réus decidiram pôr termo ao litígio tendo chegado a um acordo, o qual foi homologado por sentença datada de 2016/10/11, com o seguinte teor: “PRIMEIRO Os réus confessam-se devedores da quantia de €20.500,00 (vinte mil e quinhentos euros). SEGUNDO O pagamento da mencionada quantia será efetuado no prazo de 6 (seis) meses a contar da presente data. TERCEIRO As custas em dívida a juízo serão suportadas em partes iguais, por autores e réus, prescindindo das custas de parte.”. 3. No âmbito do processo identificado na alínea b) do ponto 1 supra, estavam em causa dois prédios urbanos, dos quais os requerentes e os ora requeridos são em comum e partes iguais, donos e legítimos proprietários, a saber: a) Prédio urbano, composto de rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiro andares, para habitação, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Local 1 sob o artigo ...265, omisso na Conservatória do Registo Predial de Local 1; b) Fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão para comércio, do prédio urbano sito na Rua 2, n.º 9, em Local 2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Local 2 sob o artigo ...691-A, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob o n.º ...860/Local 2. 4. Com vista a colocar termo aos litígios que os opuseram nos processos referidos no ponto 1 supra, os Autores e os Réus celebraram acordo escrito denominado “acordo”, datado de 2016/10/11, com o seguinte teor, no que ao caso releva: “Acordo Entre: CC e DD e AA e BB, é celebrado o presente acordo: 1) Considerando que entre as partes se encontram a decorrer as seguintes ações, ambas, na Instância Local de Local 1: a) Acção de Prestação de Contas Nº 1762/15.6...; b) Acção de Divisão de Coisa Comum nº 92/14.5...; 2) Considerando que as partes, na presente data, chegaram a acordo na ação de prestação de contas, tendo ficado estipulado que o senhor AA e a Senhora BB assumiram a obrigação de pagar tornas no valor de € 20.500,00 (vinte mil e quinhentos euros), digo prestar contas, no mencionado valor, no prazo de seis meses a contar da presente data. 3) Considerando ainda que as partes chegaram a acordo na ação de divisão de coisa comum identificada na alínea b), em que será adjudicado ao Sr. CC e DD, o prédio de Local 2, e aos outorgantes AA e esposa BB, o prédio de Local 1. 4) Considerando que ao prédio de Local 2 foi atribuído por acordo entre as partes o valor de € 176.000,00, e ao prédio de Local 1 o valor de € 157.000,00, tal significa que os outorgantes CC e esposa têm que entregar aos Segundos AA e esposa o montante de € 9.500,00, que as partes também acordam que terá que ser liquidado no prazo de 6 meses a contar da presente data. 5) Do exposto resulta que os outorgantes CC e mulher têm a haver do Outorgante AA e mulher a quantia de € 11.000,00, obrigando-se estes a efetuar tal pagamento no prazo de 6 meses a contar da presente data e na mesma data em que se verifique a entrega, pelos outorgantes CC e mulher, da fração correspondente ao 3º esquerdo e a garagem do prédio de Local 1 que habitam, e que aqui assumem. 6) Fica expressamente consignado entre as partes que os prédios aqui mencionados de Local 2 e de Local 1 serão permutados, mediante escritura notarial, servindo de valor de permuta o valor patrimonial tributável do prédio sito em Local 1. 7) No caso de se verificar que o prédio sito em Local 1 não dispõe de Licença de Utilização, fica acordado que todas as diligências e despesas, designadamente, com técnicos, camarárias, taxas e eventuais obras necessárias à obtenção da licença de utilização serão suportadas por ambas as partes, em partes iguais. 8) O prazo fixado no presente acordo para a entrega da fração habitada pelo Sr. CC e esposa, e consequentemente, o prazo para pagamento das prestações de contas, bem como das tornas devidas pela divisão dos prédios em causa, no montante de € 11.000,00, poderá será prorrogado, digo, será prorrogado caso, dentro do prazo de seis meses, não tenha sido possível obter a licença de utilização do prédio de Local 1, e será prorrogado pelo tempo indispensável à sua obtenção. 9) Ambas as partes obrigam-se mutuamente a colaborar e assinar, todos os documentos, bem como a diligenciar em todos os procedimentos necessários à obtenção de licença de utilização. 10) Os técnicos eventualmente necessários para a obtenção de licença de utilização, bem como a escolha de eventuais empreiteiros para a realização de obras seria feita de comum acordo entre as partes. 11) As partes assumem ainda a obrigação de enviar aos respetivos inquilinos notificações a comunicar as vossas contas bancárias para as quais estes deverão pagar as respetivas rendas. 12) Cada uma das partes assume a obrigação de pagar as despesas inerentes aos consumos de água, eletricidade, condomínios, e conservação de cada um dos prédios, ou frações, nos termos da divisão/permuta ora acordada, correndo os riscos inerentes a cada um dos prédios por cada um dos outorgantes e futuros proprietários plenos, a partir da presente data. 13) As custas da ação de divisão de coisa comum serão suportadas a meias, prescindindo de custas de parte, bem como todos os encargos com a escritura e registos da permuta e eventuais impostos, designadamente imposto de selo e eventualmente IMT serão suportados em partes iguais. 14) Caso seja necessário para registar o prédio de Local 1 na respetiva Conservatória a outorga da escritura de justificação ou outro ato notarial ou registral, todos os custos com as escrituras notariais e impostos serão também suportados em partes iguais, por ambas as partes. 15) Em caso de incumprimento do presente acordo, fixam as partes a cláusula penal de € 15.000,00 (quinze mil euros). 16) Em aditamento à clausula nº 8 fica acordado que se o outorgante CC abandonar a sua fração no prazo de seis meses onde reside terá direito a receber de imediato o referido montante de € 11.000,00, sendo apenas prorrogado o prazo para a realização da escritura de permuta. Fica assim claro que o pagamento da quantia de € 11.000,00 e a entrega da fração terá que ocorrer, em simultâneo e no prazo de seis meses. Se o outorgante CC e esposa saírem do apartamento/fração antes do prazo de seis meses tal não lhe confere o direito a antecipar o pagamento da quantia de € 11.000,00, que só irá ocorrer no prazo de seis meses a contar da presente data, salvo acordo por escrito em contrário. Local 1, 11 de Outubro de 2016”. * 5. Decorrido cerca de um ano da data do acordo referido no ponto 4 supra, os Réus procederam ao arrombamento da porta da fração correspondente ao 3.º Andar Esquerdo, e respetiva garagem, do prédio urbano, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, que tinha sido abandonado de pessoas e bens, passando a usufruir da mesma. 6. Com vista ao licenciamento do prédio urbano, composto de rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiro andares, para habitação, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Local 1 sob o artigo ..., omisso na Conservatória do Registo Predial de Local 1, foram até à data suportadas pelos Réus as seguintes despesas: a) € 15,00 correspondente ao direito à informação, titulado pela guia n.º 1953 de 2021/11/11; a. b) € 45,00 correspondente ao pedido inicial de licenciamento, titulado pela fatura n.º 23.015/156 de 2023/01/25. 7. (…) e ainda: a) € 2.050,00 correspondente aos serviços de arquitetura prestados por EE, titulados pela fatura-recibo n.º R ATSIRE01R/19, emitida em 2024/09/05.» Factos Não Provados «a) Em março de 2017, os Autores procederam à desocupação e entrega aos Réus, livres e devolutos de pessoas e bens, da fração correspondente ao 3.º Andar Esquerdo, e respetiva garagem, do prédio urbano, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, que até então tinham ocupado.» C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso 1. Nulidade da sentença 1. Os Recorrentes começam por arguir a nulidade da sentença (cfr. alíneas A) a J) das Conclusões) alegando que a mesma enferma de vício que compromete a sua validade, sendo nula por omissão de pronúncia, nos termos do n.º 2 do artigo 608.º e alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC. Na fundamentação desta arguição, invocam os Recorrentes que: «(…) até hoje não foi possível obter a licença de utilização do prédio de Local 1, não obstante todos os esforços levados a cabo por si»; »(…) além de alegarem, provaram, aquando da inquirição da testemunha EE, que o prédio ainda não se encontrava licenciado, porém, o tribunal a quo não deu como provado este facto, nem se pronunciou quanto a tal questão, pronunciando-se apenas quanto às despesas do referido licenciamento reclamadas em sede de reconvenção, também referidas pela mesma testemunha em sede de inquirição.». De seguida transcrevem parcialmente o depoimento da mencionada testemunha. Mais à frente, alegam: «(…) uma das questões colocadas pelos recorrentes na sua contestação foi precisamente a questão da não obtenção da licença de utilização do referido prédio até à presente data.» «Impõe-se concluir que a “questão” sobre a qual o Tribunal omitiu pronúncia não consubstancia mero argumento jurídico aduzido pelos réus recorrentes, mas antes questão que foi submetida à sua apreciação e sobre a qual deveria ter tomado decisão.» «Da análise da sentença é manifesto que tal não sucedeu, ou seja, o tribunal a quo não deu como provado o facto relevante da não obtenção da licença de utilização do prédio sito na Rua 1, nº 24, em Local 1, não se pronunciando quanto ao mesmo, o que devia ter feito.» 2. Na apreciação da questão, importa, desde já, caraterizar em termos jurídicos a alegação supra transcrita, porquanto a mesma é reconduzida à arguição de nulidade da sentença por omissão de pronúncia e, simultaneamente, é feita referência à alegação e prova de um facto que não foi considerado na sentença recorrida. 3. Ora, a arguição de nulidades da sentença taxativamente elencadas no artigo 615.º do CPC são vícios formais da sentença e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida. Assim, excetuando a falta de assinatura do juiz [alínea a) do n.º 1 do artigo 615º], as alíneas b) a e) do preceito reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença. «Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) [falta de fundamentação] e c) [oposição entre os fundamentos e a decisão e ocorrência de ambiguidades, obscuridades que tornem a decisão ininteligível]. Respeitam aos seus limites os das alíneas d) [omissão ou excesso de pronúncia] e e) [pronúncia ultra petitum].»1 Deste modo, a invocação de erros na apreciação da decisão de facto ou de direito, não correspondem aos vícios formais previstos no artigo 615.º do CPC. A forma de reação contra erros na apreciação da prova, incluindo aquele que desemboca na falta de consideração de factos alegados (ou de conhecimento oficioso) essenciais à decisão da causa, é através da impugnação da decisão de facto. Impugnação essa que tem de obedecer aos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, que correspondem a ónus impostos ao recorrente, sob pena de rejeição da impugnação da decisão de facto. Para além das concretas especificações que constam do n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC, a parte tem de prévia e inequivocamente expressar a sua vontade de recorrer impugnando a decisão de facto por erro na aferição ou valoração da prova. No caso, para além dos Recorrentes não expressarem, de todo, a vontade de impugnar a decisão de facto, reconduzem toda a alegação à arguição da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, não a reconduzindo de forma formal ou substancial à previsão do artigo 640.º do CPC. Assentemos, pois, que a decisão de facto não se encontra impugnada e que a alegação dos Recorrentes corresponde à arguição de uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia nos termos acima referidos. 4. Vejamos, então, se a arguida nulidade se verifica. Prescreve a alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, que a sentença é nula quando o « juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente da omissão de pronúncia (a invocada pelos Recorrentes), está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões2) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa3. Como referem os anotadores infra citados em relação ao n.º 2 do artigo 608.º do CPC4: «As questões a que se reporta o n.º 2 reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes das posições das parte, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicas, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir.» Trata-se de entendimento jurisprudencial consensualizado nas instâncias superiores. Veja-se, exemplificativamente e para além dos já citados, os seguintes arestos: - Acórdão do STJ, de 08-02-20245, com o seguinte sumário: «O Supremo Tribunal de Justiça tem declarado, constantemente, que deve distinguir-se as autênticas questões e os meros argumentos ou motivos invocados pelas partes, para concluir que só a omissão de pronúncia sobre as autênticas questões dá lugar à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil». - Ac. do STJ, de 11-02-20226, com o seguinte sumário: «O conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes». 5. No caso em apreço, a sentença elencou as questões a solucionar sendo uma delas a «Interpretação das declarações negociais das partes» que constam do acordo celebrado pelas partes e homologado por sentença datada de 11-10-2016, que se encontra vertido nos factos provados sob os n.ºs 2 a 5. Ora, a questão da relevância da obtenção de licença de utilização do imóvel de Local 1, decorre do teor do clausulado no referido acordo. Vejam-se as cláusulas 7 a 15 e 16. Lendo-se na sentença, na parte dedicada à interpretação do clausulado e especificamente à defesa apresentado pelos Réus concernente à relevância da obtenção da licença de utilização para invocarem que os Autores não têm o direito de obter a condenação dos Réus no pagamento de €11.000,00, o seguinte: «A interpretação propugnada pelos Réus, no sentido de que o pagamento por si aos Autores da quantia de € 11.000,00 ficaria condicionada à obtenção da licença de utilização do prédio oferece um inaceitável desequilíbrio entre as prestações, uma vez que, não sendo obtida a licença de utilização por um prazo alargado de tempo (como é precisamente o caso dos autos), e tendo os Autores procedido à entrega da fração aos Réus, ficariam simultaneamente privados do gozo das suas utilidades económicas e também do montante de € 11.000,00». Resulta da extratada fundamentação que a sentença teve presente no seu raciocínio que ainda não tinha sido obtida a licença de utilização (tal resulta claramente do que ficou escrito entre parêntesis) e que, nos termos acordados pelas partes, a sua falta não condiciona o pagamento dos €11.000,00 por parte dos Réus, desde que os Autores tenham entregue a fração, mas apenas tem como efeito a transposição da data da celebração da escritura notarial de permuta para o momento em que a mesma licença de utilização já exista. Por conseguinte, não existe qualquer omissão de pronúncia. O tribunal a quo pronunciou-se de forma clara sobre a inexistência da licença de utilização à data da entrega da fração e da sua irrelevância no que concerne à obrigação contratual dos Réus em relação ao pagamento da contrapartida dos €11.000,00. Improcede, assim, a arguida nulidade da sentença. 2. Do mérito da sentença 1. Nas Conclusões alinhadas em K) até final, os Apelantes colocam a questão da interpretação das cláusulas 5, 6, 8 e 16 do acordo referido transcrito na decisão de facto. Na interpretação do acordado, e após a sentença discorrer em termos teóricos sobre a natureza do acordo e as regras de interpretação das cláusulas contratuais escritas à luz dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil (CC) – considerações teóricas que nenhuma censura nos merecem, nem tão pouco é apontada qualquer crítica por parte dos Recorrentes – ficou escrito na sentença que a interpretação que fez das cláusulas 5, 6, 8 e 16 é a seguinte: «Procedendo à desconstrução e análise conjunta das mesmas, resulta, com meridiana certeza aos olhos do Tribunal, que o teor da cláusula 16 é absolutamente claro ao desfazer o equívoco causado pela deficiente redação da cláusula 8, vindo esclarecer que a falta de obtenção da licença de utilização até 2017/04/11 apenas importaria a prorrogação do prazo de 6 meses para celebração da escritura de permuta, inexistindo assim qualquer prazo para o pagamento pelos Réus da quantia de € 11.000,00 aos Autores, condicionando este pagamento, apenas e só, à entrega por estes àqueles da fração e em simultâneo com esta. Pelo que, da concatenação daquelas cláusulas, resulta assim que as partes acordaram que os Autores poderiam entregar aos Réus a fração correspondente ao 3.º Andar Esquerdo, e respetiva garagem, do prédio urbano, sito na Rua 1, n.º 24, em Local 1, em qualquer data a partir da celebração do contrato (2016/10/11), dependendo o cumprimento da obrigação de pagamento acometida aos Réus do momento em que aquela entrega ocorresse (cláusulas 5, 8 e 16): - caso os Autores fizessem a entrega aos Réus antes de 2017/04/11, os Réus só se encontravam obrigados a entregar-lhes a quantia de € 11.000,00 nesta data, ou seja, decorridos 6 meses da celebração do contrato; - caso os Autores procedessem à entrega do prédio depois de 2017/04/11, ou seja, decorridos 6 meses da celebração do contrato, os Réus deveriam entregar-lhes a quantia de € 11.000,00 simultaneamente na mesma data em que recebessem aquela fração. Por seu turno, a escritura de permuta deveria ser realizada no prazo de 6 meses, ou seja, até 2017/04/11, prazo o qual seria prorrogado caso não viesse a ser obtida licença de utilização do referido prédio urbano (cláusulas 6, 8 e 16). Tratando-se, in casu, de uma transação onerosa, é esta a interpretação que oferece maior equilíbrio entre as prestações assumidas por Autores e Réus (cfr. o já supra citado art.º 237.º do Código Civil).» A que acrescentou a parte já supra extratada e que se repete para maior clareza da argumentação: «A interpretação propugnada pelos Réus, no sentido de que o pagamento por si aos Autores da quantia de € 11.000,00 ficaria condicionada à obtenção da licença de utilização do prédio oferece um inaceitável desequilíbrio entre as prestações, uma vez que, não sendo obtida a licença de utilização por um prazo alargado de tempo (como é precisamente o caso dos autos), e tendo os Autores procedido à entrega da fração aos Réus, ficariam simultaneamente privados do gozo das suas utilidades económicas e também do montante de € 11.000,00.» 2. Analisando as ditas cláusulas e a fundamentação da sentença, não nos suscita qualquer dúvida que a mesma corresponde a uma correta interpretação da vontade das partes vertidas no referido clausulado, à luz dos critérios dos artigos 236.º a 238.º do CC, destacando-se, em síntese, que a declaração negocial apenas vale de acordo com a vontade real do declarante quando a mesma for conhecida do declaratário (artigo 236.º, n.º 2, do CC); não o sendo, por força do n.º 1 do referido artigo 236.º, vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário). Sendo que, nos negócios formais, como é o caso, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, ainda que expresso de forma imperfeita (artigo 238.º, n.º 1, do CC), sem prejuízo do sentido sem correspondência mínima no texto poder ainda valer se traduzir a vontade rela das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (n.º 2 do artigo 238.º do CC), situação que não ocorre no caso em apreço. Sublinhando-se que a ratio destas regras é a da proteção da confiança e da segurança jurídica do tráfico jurídico, pelo que, embora se dê ênfase ao ponto de vista do recetor da declaração, não prevalece o entendimento subjetivo que o mesmo delas faça, porque a primazia é dada ao entendimento que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário normal, depreenderia daquelas declarações. Como se refere no acórdão do STJ de 12-06-20127: «Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este efectivamente conheceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declaratário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo. Ainda segundo este mesmo autor, “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objectivo que se pode depreender do seu comportamento”. Importa por fim acrescentar que estando-se no caso sub judice em presença dum contrato, e dum contrato tipicamente sinalagmático, há que atender, simultaneamente, às declarações de ambas as partes porque ambas são, também simultaneamente, declarante e declaratário (neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2ª edição, pág. 435). Tudo isto significa em termos práticos que o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição de declaratário real.» 3. Dizem os Recorrentes que «As partes quiserem, claramente, condicionar o pagamento dos €11.000,00, por parte dos réus recorrentes, à obtenção de licença de utilização (…)», só que em nenhuma das cláusulas do acordo consta essa condicionante. Desde logo, do mesmo não resulta quem ficava com a obrigação de obter a licença de utilização. O que consta das cláusulas 7 a 14 é apenas o estabelecimento da obrigação das partes colaborarem, desenvolverem diligências e suportarem os custos a meias referentes à obtenção da licença de utilização. Ou seja, a obtenção da licença de utilização, sendo um requisito para a celebração da escritura notarial de permuta, como as partes aparentam bem saber – considerando que verteram no acordo obrigações recíprocas em ordem à sua obtenção – não foi elegido como um requisito da entrega do imóvel por parte do Autores aos Réus, nem do pagamento do valor dos €11.000,00 pelos Réus aos Autores. O que é evidente, considerando que as partes centraram os requisitos da execução do acordo na introdução de um prazo de cumprimento do acordo (6 meses) e no estabelecimento de uma regra simples: o valor dos €11.000,00 só seria devido aos Autores quando estes entregassem o imóvel aos Réus. A cláusula 5 é absolutamente clara quanto a estes requisitos, sendo manifesto que as partes estavam a prever nessa cláusula o cumprimento do acordado no prazo de 6 meses. Depois, a cláusula 8 vem introduzir uma «entorse» a este raciocínio, decorrendo do que ali ficou escrito que podia haver uma prorrogação do prazo de 6 meses (para entregar do imóvel e pagamento do referido valor), ao mencionar: «caso, dentro daquele prazo de seis meses não tenha sido possível obter a licença de utilização do prédio de Local 1, e será prorrogado pelo tempo indispensável à sua obtenção». Embora de forma algo confusa, o que resulta desta cláusula é, no fundo, a irrelevância do prazo de 6 meses por se admitir a sua prorrogação sem ser fixado um prazo certo, ficando a entrega e o pagamento do valor depende de um facto incerto, ou seja, o momento da obtenção da licença de utilização. Ora, a cláusula 16 vem corrigir e esclarecer a cláusula 8 ao mencionar em aditamento à cláusula 8, retomando novamente a relevância do prazo dos seis meses, nos seguintes termos: - Se os Autores abandonarem a fração no prazo de 6 meses, têm direito a receber os €11.000,00 de imediato (ou seja, reitera a cláusula 5, porque já ali estava prevista a simultaneidade dos atos dentro desse prazo acordado, a única diferença aparenta ser que na cláusula 5 é referido «entrega» e agora é referido «abandono»); - E nesse caso, fica «apenas prorrogado o prazo para a realização da escritura» (ou seja, fica afastada a parte final da cláusula 8 que estabelecia uma dependência entre a entrega do imóvel o pagamento do valor acordado e a obtenção da licença de utilização). E se dúvidas houvesse na interpretação do aditamento introduzido pela cláusula 16, ali ficou expressamente escrito: «Fica assim claro que o pagamento da quantia de € 11.000,00 e a entrega da fração terá que ocorrer, em simultâneo e no prazo de seis meses.» Ou seja, por um lado, vem sublinhar-se a relevância do prazo de 6 meses e a simultaneidade da entrega e do pagamento do valor dos €11.000,00, e, por outro, a irrelevância da obtenção da licença de utilização para este efeito. A sua importância – da obtenção da licença de utilização – continuava apenas a estar relacionada com a realização da escritura notarial de permuta, pois sem a mesma o ato notarial (formal) não seria passível de ser realizado. E acrescentou-se, ainda outro esclarecimento: - « Se o outorgante CC e esposa saírem do apartamento/fração antes do prazo de seis meses tal não lhe confere o direito a antecipar o pagamento da quantia de € 11.000,00, que só irá ocorrer no prazo de seis meses a contar da presente data, salvo acordo por escrito em contrário.» Ou seja, se os Autores saírem do imóvel antes do decurso do prazo dos 6 meses, só têm direito a receber os €11.000,00 quando tal prazo estiver esgotado. Nesta situação, a simultaneidade da entrega e o recebimento dos €11.000,00 sofre uma derrogação. O recebimento só ocorre quando o prazo de 6 meses estiver esgotado ainda que o imóvel esteja antes na disponibilidade dos Réus. Não obstante a complexidade do clausulado, afigura-se-nos que é claro que as partes não quiserem condicionar o pagamento dos €11.000,00 por parte dos Recorrentes à obtenção da licença de utilização. O aditamento introduzido pela cláusula 16 é clarificador da intenção das partes quanto a esse aspeto. Como se refere na sentença recorrida haveria um desequilíbrio contratual acentuado entre as prestações das partes se a entrega do imóvel pelos Autores aos Réus não significasse o recebimento dos €11.000,00, por ficar condicionado o recebimento à obtenção da licença de utilização sem que houvesse sequer um prazo definido e razoável para a sua obtenção. Esta interpretação da vontade das partes, considerando as regras insertas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, à luz do que acima se deixou sublinhado sobre o que as mesmas significam, é aquela que se nos afigura ser a que acolheria um declaratário normal na posição das partes, sendo que encontra arrimo na literalidade das estipulações. Efetivamente, as partes pretenderam acabar com os litígios judiciais, um relacionado com uma ação de divisão de coisa comum e outro de prestação de contas, tendo encontrado uma forma de dividirem os bens e de ficarem quites em termos pecuniários. E tal acordo passou, para além do mais, pela entrega do imóvel por parte dos Autores (onde estes viviam) aos Réus e estes pelo pagamento aos Autores de €11.000,00. É, pois, plausível e conatural a este acordo que as prestações fossem simultâneas e a realizar num determinado período de tempo que entenderam corresponder a 6 meses. Sabendo, porém, que formalmente era necessária a realização de uma escritura notarial para permuta dos prédios em causa (o de Local 2 e o de Local 1) e que a licença de utilização exige diligências e tempo para a sua realização, percebe-se que não quisessem fazer depender a concretização prática do acordo da sua formalização em termos notariais ou sequer da obtenção da licença de utilização. Obviamente, que o poderiam ter feito, mas percebe-se que a vontade das partes foi que, num prazo de 6 meses, se concretizasse a divisão dos bens imóveis e o acerto de contas. Por isso, a interpretação que os Réus fazem das estipulações não faz sentido para um declaratário normal, porque dela resulta que os Réus ficavam na posse do imóvel e só pagavam os €11.000,00 quando a licença de utilização fosse obtida, ficando, no entretanto, os Autores sem receberem a contrapartida pelo desapossamento do imóvel e sem sequer haver um prazo fixado para a obtenção da utilização da licença de utilização e, consequentemente, da escritura de permuta. Em face do exposto, a interpretação veiculada na sentença sobre a o sentido e alcance das estipulações acordadas, tem de ser confirmada. Sendo que as Conclusões Y) a AA) têm como pressuposto a interpretação que os Recorrentes vieram defender, que não foi acolhida, pelo que louvando-nos na sentença nos pontos C, D e E, cujo teor se subscreve e reitera por razões de economia processual, confirma-se a sentença, improcedendo a apelação. 3. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP. III- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas nos termos sobreditos. Évora, 10-07-2025 Maria Adelaide Domingos (Relatora) António Fernando Marques da Silva (1.º Adjunto) Ana Pessoa (2.ª Adjunta)
____________________________________ 1. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º , 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 735 (3).↩︎ 2. Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e Ac. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt, como todos os demais que se citem sem menção de outra fonte.↩︎ 3. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt↩︎ 4. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 727 (2).↩︎ 5. Proc. n.º 995/20.8T8PNF.P1.S2.↩︎ 6. Proc. n.º 602/15.0T8AGH.L1-A.S1.↩︎ 7. Proc. n.º 14/06.7TBCMG.G1.S1.↩︎ |