Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5068/21.3T8STB-I.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ARROLAMENTO COMO PRELIMINAR DE DIVÓRCIO
FIEL DEPOSITÁRIO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Havendo o juiz indeferido a nomeação da requerente do arrolamento como fiel depositária, não lhe é lícito reapreciar a mesma questão, ainda que à luz de diferente fundamento, por extinção do poder jurisdicional.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 5068/21.3T8STB-I.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
1. AA, residente na Rua ..., ..., ..., como preliminar da ação de divórcio, instaurou contra BB, residente na Rua ..., ..., ..., em ..., procedimento cautelar de arrolamento.
A providência teve parcial êxito e, entre outros, foi decretado o arrolamento do saldo da conta bancária do casal no Banco 1..., S.A., no montante de € 204.991,37.
Os autos prosseguiram e a Requerente, em 27.06.2022, veio pedir a sua nomeação como fiel depositária do saldo de, pelo menos, € 102.495,69, depositado no Banco 2..., SA e “que fosse ordenado à instituição bancária (…) que permitisse à requerente, e apenas a esta, a movimentação, devendo o banco assegurar a transferência à conta à ordem associada e, após, a transferência para conta a indicar pela Requerente”.

Fundamentou o seu pedido com a necessidade de prover às necessidades educativas dos filhos nos anos letivos de 2022-2023 e seguintes, no estabelecimento de ensino que atualmente frequentam, argumentando que o progenitor não pretende custear ou comparticipar os respetivos encargos.

2. Houve lugar ao seguinte despacho:

Pretende a requerente que o Tribunal:

a) A nomeie como fiel depositária do saldo existente na conta a conta de depósito a prazo ...20, com dois titulares (Requerente e Requerido), com o saldo atual de pelo menos € 102.495,69 (cento e dois mil, quatrocentos e noventa e cinco euros, sessenta e nove cêntimos).

b) Ordene à instituição bancária Banco 1..., SA que permita à requerente, e apenas a esta, o levantamento ou transferência do valor do depósito a prazo, devendo o banco assegurar a transferência à conta à ordem associada e, após, a transferência para conta a indicar pela Requerente.

c) Comine a dita instituição com a prática de um crime de desobediência no caso de não cumprir a ordem.

d) Comine a dita instituição que se constituirá na obrigação de indemnizar a requerente em idêntico montante, caso permita a movimentação pelo requerido.

Alega, no essencial, que precisa do saldo para pagar o colégio privado dos filhos até que os mesmos concluam o 12.º ano.

Cumpre apreciar e decidir.

Por requerimento de 24-03-2021 (ref. Citius ...23), a requerente peticionou o arrolamento do saldo existente na conta bancária suprarreferida e a sua nomeação como fiel depositária do mesmo saldo.

Foi proferido despacho, no dia 26-03-2021, com o seguinte teor: «notifique o Banco 1... para que proceda ao arrolamento da totalidade do saldo existente na conta a prazo n.º ...20 – € 204.991,37 (duzentos e quatro mil, novecentos e noventa e um euros e trinta e sete cêntimos) –, conforme solicitado pela requerente AA, cotitular da referida conta, juntamente com o Sr. BB (…)

Relativamente à nomeação da requerente como fiel depositária do referido saldo bancário, indefere-se o requerido, já que, tratando-se de montante que se encontra depositado em instituição bancária, é a própria instituição que assume, por natureza, a qualidade de depositária».

A requerente voltou a insistir com o mesmo pedido no requerimento de 03-05-2021 (ref. citius ...99), tendo o Tribunal proferido despacho, no dia 05-05-2021, onde se escreveu, além do mais, o seguinte: «relativamente à nomeação da requerente como fiel depositária, mantem-se o já decidido quanto a essa matéria no despacho de 26/03/2021, nada havendo a alterar quanto a essa matéria».

Por requerimento de 02-06-2021 (ref. Citius ...30), a requerente volta, pela 3.ª vez, a pedir que seja nomeada fiel depositária dos saldos bancários, tendo o Tribunal, por despacho proferido no dia 04-06-2021 escrito, além do mais: «quanto ao requerido de nomeação da sua como fiel depositária, indefere-se, pela terceira vez, o pedido, pelos fundamentos já aduzidos nos despachos que antecedem».

Constata-se, pois, que já foi proferido no passado, por três vezes, despacho a indeferir a pretensão da requerente de ser nomeada como fiel depositária do saldo bancário, mostrando-se, por isso, esgotado o poder jurisdicional quanto à questão em apreço (artigo 613.º/1 e 3, do Código de Processo Civil).

Face ao exposto, indefere-se, pela quarta vez, a pretensão da requerente.

Adverte-se desde já a requerente que se voltar a requerer, o que constituiria a quinta vez, a sua nomeação como fiel depositária dos saldos bancários arrolados, o Tribunal aplicará a taxa sancionatória excecional a que alude o artigo 531.º do Código de Processo Civil.”

4. A Requerente recorre deste despacho e conclui:
“1. A requerente AA, instaurou a contra o requerido BB, como preliminar da ação de divórcio, o presente procedimento cautelar de Arrolamento, requerendo a apreensão dos bens comuns do casal, que identificou nas alíneas a) a bb) do artigo 6º da petição inicial.

2. Foi proferida decisão, com a referência Citius ...37 em 21.02.2022, que determinou o arrolamento de bens comuns do casal, constantes de fs. 4 do douto aresto.

3. Quanto ao arrolamento dos saldos das contas bancárias indicadas vieram a ser arrolados os indicados nas alíneas g), h), i), j), k), l), m), n), q), r) e s) do artº 6º da p.i.,

4. Em 11.03.2021 com referência ...76 foi a Rte notificada de informação do Banco 1..., SA., que a conta de depósito a prazo nº ...20, já arrolada, titulada pelo casal tinha um saldo total de € 204.991,37 (duzentos e quatro mil e novecentos e noventa e um euros e trinta e sete cêntimos), mas apenas arrolou € 102.495,69 (cento e dois mil, quatrocentos e noventa e cinco euros, sessenta e nove cêntimos).

5. Pelo que, em 24 de Março 2021, com a referência ...23, face à conduta da entidade bancária, a requerente solicitou ao tribunal a quo, além do mais, que ordenasse ao Banco 1... o arrolamento do saldo total da conta atrás identificada, a sua nomeação como fiel depositária do saldo assim arrolado;

6. Por despacho certificado em 26/03/2021 com a referência citius ...73, o Tribunal a quo conheceu o pedido supra e determinou a notificação do Banco 1... conforme requerido pela recorrente, sendo que quanto à nomeação desta como fiel depositária do referido saldo bancário, indeferiu o pedido considerando que, tratando-se de montante que se encontra depositado em instituição bancária, é a própria instituição que assume, por natureza, a qualidade de depositária.

7. Em 03/05/2021 com a referência Citius ...99, face ao conhecimento de o requerido transferiu metade do saldo da conta supra para contas exclusivamente movimentadas por si e da sociedade de que é único sócio e gerente - a requerente peticionou o arrolamento da conta com o IBAN ...23 da referida sociedade pelo montante de € 102.495,69; o arrolamento da conta do banco Banco 3..., ...26 de que é titular o Requerido e para onde este passou a transferir e ocultar património comum do casal; e nomear a requerente fiel depositária dos saldos arrolados com o fundamento de que, nem o Requerido nem a instituição bancária oferecem segurança para as finalidades a alcançar com o arrolamento;

8. Sobre tal requerimento, recaiu despacho do tribunal a quo (certificação citius ...64, de 05/05/2021), determinando, além do mais, nova notificação ao Banco 1... para cumprir o ordenado anteriormente; a notificação do banco Banco 3... para informar se o requerido é titular de contas bancárias naquele banco, designadamente a conta ...26 e, em caso afirmativo, proceder de imediato ao arrolamento da totalidade do saldo existente em tais contas, não ordenando o arrolamento da conta titulada pela sociedade A..., Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal, Lda. por se tratar de terceira pessoa (sociedade), com património autónomo dos bens comuns ou dos bens próprios de cada um dos cônjuges e que, relativamente à nomeação da requerente como fiel depositária, mantem-se o já decidido quanto a essa matéria no despacho de 26/03/2021, nada havendo a alterar quanto a essa matéria.

9. Em 25.05.2021, a Requerente interpôs recurso (referência Citius ...50) do despacho com a referência ...64, na parte em que indeferiu o arrolamento de conta de terceiro (uma sociedade unipessoal cujo único sócio e gerente é o cônjuge marido) e para a qual se provou documentalmente ter o requerido ordenado a transferência da verba mandada arrolar pertencente ao casal (requerente e requerido).

10. Em 02/06/2021 com a referência Citius ...61, a requerente solicitou nova notificação do Banco 3... SA., para arrolar o crédito da AT referente ao pagamento do reembolso do IRS devido ao casal, que com base na nota de liquidação emitida, será no valor de € 10.835,40, e para nomear a Requerente fiel depositária dos saldos arrolados.

O fundamento do pedido aqui foi a transferência pelo requerido de um bem comum, reembolso de IRS do casal, para conta exclusivamente por si titulada.

11. O Requerido deduziu oposição ao decretamento da providência, com a referência citius ...58, notificada à requerente em 28.05.2021.

12. Foi produzida prova arrolada na oposição e proferida sentença pelo tribunal a quo, com a referência citius ...95 com certificação em 07.07.2021 que determinou, o levantamento do arrolamento da conta Na ... da conta com o n.º ...00, pertencente à sociedade A..., Mediação Imobiliária, Lda. no valor de € 3.092,66; e a manutenção do saldo arrolado no valor de 204.391,37 no Banco 1..., não obstante o 1º Requerido ter procedido ao levantamento de metade da conta contra decisão judicial.

13. Em 14.07.2021, com a referência Citius ...02, foi proferido douto acórdão por este Venerando Tribunal da Relação de Évora que decidiu conceder provimento ao recurso, interposto pela requerente (de 25.05.2021 referência Citius ...50) e revogar o douto despacho recorrido e estender àquele saldo de € 102.496,82 o arrolamento decretado nos autos.

14. Em 27.06.2022, sob a referência Citius ...59 e volvidos mais de um ano sobre o último requerimento que apresentou, e por razões e fundamentos distintos, a Requerente veio solicitar a sua nomeação como fiel depositária do saldo existente na conta a conta de depósito a prazo ...20, com dois titulares (Requerente e Requerido), com o saldo atual de pelo menos € 102.495,69 (cento e dois mil, quatrocentos e noventa e cinco euros, sessenta e nove cêntimos).

15. O fundamento deste pedido foi a necessidade da Requerente movimentar a referida conta de que é co-titular (juntamente com o requerido que já havia movimentado a outra metade do saldo) para poder fazer face às despesas escolares dos filhos e garantir, até ao termo da escolaridade obrigatória, a frequência pelos menores do colégio que já frequentam de modo a garantir a estabilidade dos menores.

16. Em 07.09.2022, a Requerente mediante requerimento com a referência Citius ...51 reiterou o pedido formulado anteriormente, em 27.06.2022.

17. Em 14.10.2022, dado o decurso do tempo e persistindo a falta de pronúncia do Tribunal a quo sobre o peticionado, sob a referência Citius ...63, a requerente apresentou novo requerimento, que instruiu já com prova documental de despesas que carecia de pagar com a verba arrolada, e terminou reiterando o pedido.

18. Em 31.10.2022 com a referência Citius ...13, o Tribunal a quo proferiu despacho consignando que já foi proferido no passado, por três vezes, despacho a indeferir a pretensão da requerente de ser nomeada como fiel depositária do saldo bancário, mostrando-se, por isso, esgotado o poder jurisdicional quanto à questão em apreço (artigo 613.º/1 e /3, do Código de Processo Civil). Pelo que indefere-se, pela quarta vez, a pretensão da requerente. Adverte-se desde já a requerente que se voltar a requerer, o que constituiria a quinta vez, a sua nomeação como fiel depositária dos saldos bancários arrolados, o Tribunal aplicará a taxa sancionatória excecional a que alude o artigo 531.º do Código de Processo Civil.

19. Pelo presente recurso, impugna a requerente a decisão proferida, porque os fundamentos que determinaram a apresentação pela requerente dos requerimentos que antecedem datados de 24.03.2021; 03.05.2021; 02.06.2021 e os despachos que sobre eles recaíram, são distintos do que fundamentou o requerimento que apresentou, um ano mais tarde, em 27.06.2022 e reiterou em 07.09.2021 e 14.10.2021.

20. Nos primeiros, o fundamento do pedido prendia-se com a atuação, quer do requerido, quer da própria instituição bancária, que não cumpriram a determinação de arrolamento da quantia € 204.991,37, sendo que o requerido transferia verbas que eram comuns do casal por contas por si tituladas. Nos segundos, o pedido prendia-se com a necessidade da Requerente movimentar a conta, de que também é titular, para garantir a satisfação de necessidades escolares dos filhos do casal.

21. Porque, não obstante, no mesmo processo, o Tribunal ter tomado uma decisão, já transitada em julgado, nada obsta a que as partes, posteriormente, com fundamento e causa superveniente, possam requerer a substituição do fiel depositário nomeado (artigo 761.º/1, do CPC).

22. A verdade é que o Tribunal a quo, no douto despacho recorrido, não conheceu e não se pronunciou sobre a causa do pedido e fundamentos invocados, omitindo o dever que sobre si impende, pelo que tal despacho é, nessa vertente, nulo.

23. Cabia ao tribunal a quo conhecer do pedido formulado pela Requerente e dos fundamentos que veiculava nesse atual pedido, admitindo-o e julgando-o, como é de direito.

Admitindo-se todavia, caso assim o defendesse, que o mesmo devia ser tramitado como incidente, determinando essa tramitação, por apenso, o que lhe era exigível em face do disposto nos artigos 6.º, 547.º e 761.º do C.P.C. que, ao não aplicar, violou.

24. Ao agir como agiu, indeferindo o pedido sem conhecer os fundamentos, limitando-se a sinalizar que a Requerente já pediu a sua nomeação como fiel depositária daquele bem 4 vezes e que o seu poder jurisdicional se esgotou com a prolação da sentença de arrolamento, o tribunal violou o disposto nos artigos 6.º, 154.º, 547.º, 613.º, n.º 3, 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), 671.º ex vi do artigo 406.º, n.º 5, todos do CPC.

25. Ao invés, deveria o Tribunal a quo ter apreciado o pedido, julgando-o procedente por provado, ordenando ao Banco 1..., SA a movimentação pela Requerente e titular dessa conta, do saldo existente na conta ...20.

Nestes termos, deverão proceder as invocadas nulidades do despacho, que deverá ser revogado e substituído por outro que, julgando verificados os respetivos pressupostos, dados os fundamentos aduzidos pela requerente, defira o peticionado.

E assim far-se-á a esperada JUSTIÇA!”

Respondeu o Requerente por forma a defender a confirmação da decisão recorrida.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.


II. Objeto do recurso
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 3, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
Vistas as conclusões da motivação do recurso, importa decidir se a decisão é nula e ii) se a diversidade de fundamentos de uma mesma pretensão obsta à extinção do poder jurisdicional.


III. Fundamentação
1. Factos
Para além do que consta no relatório supra, relevam as seguintes ocorrências processuais:
a) Em 24/3/2021, a Requerente pediu o arrolamento do saldo existente na conta de depósito a prazo n.º ...20, do Banco 1..., S.A., titulada por si e pelo Requerido e a sua nomeação como fiel depositária do mesmo saldo. Decidiu-se: “Relativamente à nomeação da requerente como fiel depositária do referido saldo bancário, indefere-se o requerido, já que, tratando-se de montante que se encontra depositado em instituição bancária, é a própria instituição que assume, por natureza, a qualidade de depositária” [despacho de 26/3/2021, refª citius ...73].

b) Em 3/5/2021, a Requerente pediu a sua nomeação como fiel depositária dos saldos arrolados “já que nem o Requerido nem a instituição bancária oferecem segurança para as finalidades a alcançar com o arrolamento”. Decidiu-se: «Relativamente à nomeação da requerente como fiel depositária, mantem-se o já decidido quanto a essa matéria no despacho de 26/03/2021, nada havendo a alterar quanto a essa matéria» [despacho de 5/5/2021, refª citius ...64].

c) Em 2/6/2021, a Requerente pediu a sua nomeação como fiel depositária dos saldos arrolados “já que é notória intenção do Requerido ocultar ao património comum e à partilha, as referidas verbas”. Decidiu-se: «Quanto ao requerido de nomeação da sua como fiel depositária, indefere-se, pela terceira vez, o pedido, pelos fundamentos já aduzidos nos despachos que antecedem» [despacho de 4/6/2021, ref.ª citius ...53].


2. Direito
2.1. Se a decisão recorrida é nula por omissão de pronuncia

Considera a Requerente que a decisão é nula por não se haver pronunciado sobre o pedido e fundamentos invocados no requerimento indeferido [cclºs 22ª e 23ª].

A sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar [artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, do CPC], o que significa que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras [artigo 608.º, n.º 2, do CPC], ou seja, deve conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta, dos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, das causas de pedir por estes invocadas e das exceções deduzidas. Existirá, omissão de pronúncia quando o juiz deixe de conhecer de pedidos, de causas de pedir ou de exceções, invocadas pelas partes ou que lhe cumpra oficiosamente conhecer[1], por violação do princípio da correspondência entre a ação e a sentença[2]. Tudo isto sem prejuízo do conhecimento de algumas questões ficar prejudicado pelo julgamento de outras, caso em que também não ocorrerá qualquer omissão de pronúncia.
Esta a regra geral de conhecimento da sentença, aplicável com as necessárias adaptações aos despachos [artigo 613.º, n.º 3, do CPC], a observar pelo juiz na resolução do conflito de interesses que a ação pressupõe.
Regra que não vigora isolada, antes faz parte de conjunto de outras regras e de princípios, à luz dos quais encontra sentido e alcance.
“O direito objetivo (…) não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio. (…) O sentido duma disposição ressalta nítido e preciso, quando é confrontada com outras normas gerais ou supra-ordenadas, de que constitui uma derivação ou aplicação ou uma exceção (…).”[3]
Pois bem.
Se a lei impede o juiz de conhecer da matéria da causa depois de proferir a decisão (sentença ou despacho), por extinção do poder jurisdicional [artigo 613.º, nºs 1 e 3, do CPC], parece claro que, em tal situação, não se aplica a regra antes enunciada, ou seja, em tais casos não incumbe ao juiz conhecer do pedido e dos fundamentos da matéria da causa por uma simples razão: porque já conheceu e lei obsta, em princípio, a que o juiz reaprecie as suas próprias decisões.
Assim, a decisão recorrida ao não conhecer do pedido e dos fundamentos do requerimento indeferido por se haver esgotado o poder jurisdicional observa a lei e, como tal, não é nula. Nula seria, ao invés, se depois de declarar esgotado o poder jurisdicional houvesse conhecido do pedido formulado e das suas razões, por contradição entre os fundamentos e a decisão [artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC].
A decisão recorrida não é nula por omissão de pronúncia.
O recurso improcede quanto a esta questão.

2.2. Se a diversidade de fundamentos de uma mesma pretensão obsta à extinção do poder jurisdicional

A decisão recorrida indeferiu o pedido de nomeação da Requerente como fiel depositária da quantia depositada no Banco 1..., S.A., arrolada nos autos, por já se haver pronunciado sobre tal pedido e esgotado o poder jurisdicional para conhecer da mesma questão.
A Requerente não questiona que antes havia formulado e visto indeferida, a mesma pretensão [cfr. alíneas. a) a c) supra], mas considera que lhe é permitido formular o mesmo pedido – a nomeação como fiel depositária da quantia depositada no Banco 1..., S.A. – tantas vezes quantas forem distintos os fundamentos invocados [cclªs 19ª a 21ª].

Liminarmente importará anotar que o desiderato visado pela Requerente - a utilização do saldo bancário para prover a necessidades “educativas dos filhos nos anos letivos de 2022-2023 e seguintes” – mais ajustado a um processo tutelar cível [artigo 3.º, alínea c), da Lei n.º 141/2015, de 8/9] e menos condizente com um incidente da providência de arrolamento, não seria alcançado ainda que viesse, como pretende, a ser nomeada fiel depositária da quantia arrolada nos autos e depositada nos balcões do Banco 2..., S.A..
Constitui obrigação do depositário guardar a coisa depositada e restituir a coisa com os seus frutos [artigo 1187.º, alíneas a) e c), do Código Civil e 760.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC)], o que significa que a pretensão de, enquanto depositária, usar o saldo para fazer face a necessidades “educativas dos filhos nos anos letivos de 2022-2023 e seguintes”, não é alcançável, à face da lei, com a nomeação de fiel depositária.
A Requerente, a nosso ver, labora em erro neste ponto e não se vê que a concreta questão colocada no recurso – a alteração de fundamentos justifica a formulação reiterada da mesma pretensão – mereça melhor qualificação.
Por razões de segurança jurídica, de prestígio dos tribunais e até de economia de meios, a lei processual é adversa à repetição de atos processuais e dispõe de vários mecanismos para os combater e, no limite, eliminar.

Proíbe a prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), previne a prolação de decisões de mérito, determinando a absolvição do réu da instância, nos casos em que as causas se repetem (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i) e 580.º e 581.º do CPC), determina que em caso de decisões contraditórias sobre a mesma pretensão se cumpra, não a última, mas a que passou em julgado em primeiro lugar (artigo 625.º, n.º 1, do CPC) e impede os juízes de proferirem mais do que uma decisão sobre a mesma questão (artigo 613.º do CPC).

Proferida uma decisão sobre uma determinada questão colocada no processo – a matéria da causa – extingue-se o poder jurisdicional do juiz, o que significa que o juiz não pode reapreciar a mesma questão.

Regra que não vigora em absoluto, isto é, há casos em que o próprio juiz pode rever, emendar ou alterar a sua decisão, como acontece com a retificação de erros materiais (artigo 614.º do CPC), com reforma da decisão, em casos tipificados, desde que dela não cabe recurso (artigo 616.º do CPC), com a possibilidade de modificação da decisão que fixe alimentos ou satisfaça outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida e duração (artigo 619.º, n.º 2, do CPC).

À parte estes casos, e situação dos autos não comporta nenhum deles, lavrada e incorporada nos autos a decisão judicial (sentença ou despacho), o juiz já não a pode alterar, nem modificar os fundamentos dela, isto é, não pode rever a decisão proferida.[4]

A Requerente não converge com este entendimento e defende: “não obstante, no mesmo processo, o Tribunal ter tomado uma decisão, já transitada em julgado, nada obsta a que as partes, posteriormente, com fundamento e causa superveniente, possam requerer a substituição do fiel depositário nomeado, artigo 761.º/1, do CPC” [Cclª 21ª].

Afirmação certa na parte irrelevante e equivocada na parte relevante; se bem vemos.

É certo que o fiel depositário nomeado – admitindo que por despacho judicial transitado em julgado – pode ser removido do cargo a requerimento de qualquer interessado ou por iniciativa do agente de execução quando deixe de cumprir os deveres do cargo [artigo 761.º do CPC], o mesmo se passará, v.g. com a remoção de perito [artigo 472.º do CPC], ou com a remoção de cabeça-de-casal do inventário [artigo 1103.º do CPC] e também é certo que tais situações resultam justificadas por factos supervenientes à nomeação.

Mas a verdade desta constatação não tem qualquer relevância para a apreciação do fundamento do recurso, isto é, nada nos diz sobre a possibilidade de o juiz indeferir e deferir a mesma pretensão desde que o faça com fundamentos diferentes – argumento da Recorrente – por uma razão simples mas determinante: o despacho que remove o fiel depositário aprecia uma questão ou matéria da causa, diferente do despacho que nomeia o fiel depositário, os fundamentos são diferentes, é certo, mas também o pedido é diferente e, assim, ainda que haja razões para remover o fiel depositário não se coloca o problema de o juiz rever a decisão de nomeação; o juiz reconhece que o fiel depositário deixou de cumprir as suas funções, remove-o do cargo, mas não altera (indefere) o despacho de nomeação o qual permanece incólume e constitui, aliás, pressuposto lógico da remoção.

Por isto que a possibilidade legal de remoção do fiel depositário não envolve a reapreciação do despacho de nomeação, como sugere o recurso, bem pelo contrário, a remoção supõe uma nomeação deferida e válida, pela impossibilidade lógica que resultaria da remoção do cargo, v.g. do fiel depositário cuja nomeação houvesse sido indeferida ou cujo deferimento não tivesse aptidão para produzir efeitos.

Assim e sendo certo que “nada obsta a que as partes, posteriormente, com fundamento e causa superveniente, possam requerer a substituição do fiel depositário nomeado. artigo 761.º/1, do CPC”, tal não envolve qualquer habilitação do juiz para reapreciar uma mesma pretensão no decurso do processo.

A afirmação está certa, mas é inócua para os efeitos visados pelo recurso.

No mais, a Requerente litiga contra legem e daqui o equívoco. Diz: “não obstante, no mesmo processo, o Tribunal ter tomado uma decisão, já transitada em julgado, nada obsta a que as partes, posteriormente, com fundamento e causa superveniente, possam requerer (…).”

A lei dispõe de forma diferente.

Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar [artigo 625.º, n.º 1, do CPC]; por isto que proferida uma primeira decisão de indeferimento da nomeação da Requerente como fiel depositária do saldo arrolado no Banco 1..., S.A, na sequência do requerimento de 24/3/2021 [cfr. alínea a), supra] e transitada em julgado, a questão ficou definitivamente resolvida no processo, de tal forma que ainda que outra decisão viesse, dando o dito por não dito, a nomear a Requerente como fiel depositária, como reiteradamente requereu [cfr. alíneas a) a c), supra], e a transitar em julgado, ter-se-ia que cumprir a primeira decisão (de indeferimento) por transitada em julgado em primeiro lugar.

Inútil, pois, a decisão posterior e daqui que o juiz não a deva tomar por aplicação do princípio da extinção do poder jurisdicional.

Em conclusão, indeferido o pedido de nomeação da Requerente como fiel depositária da quantia (saldo) arrolada na conta do Banco 2..., S.A. extinguiu-se o poder jurisdicional quanto à apreciação desta questão, não sendo lícito ao juiz reapreciá-la ainda que à luz de diferente fundamento.

Havendo sido este o sentido da decisão recorrida, resta confirmá-la.

Improcede o recurso.

3. Custas

Vencida no recurso, incumbe à Recorrente pagar as custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Decisão:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 25/1/2024
Francisco Matos
Maria Domingas Simões
Rui Manuel Machado e Moura


__________________________________________________
[1] Cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., vol. 2º, pág. 704.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1952, vol. V, pág. 52.
[3] Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 3ª ed. pág. 143.
[4] Cfr., v.g. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, 3ª ed., pág. 191; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, anotado, vol. 2º, 4ª ed., pág. 729.