Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1362/03-3
Relator: GAITO DAS NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUTA NEGLIGENTE
Data do Acordão: 12/04/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
Conduz de forma negligente, aquele que transita com uma viatura ligeira, tão próximo da berma, que colhe um peão que avistou em cima do passeio, no momento em que este coloca uma perna na faixa de rodagem, tendo esta a largura de 7,50 metros.
Decisão Texto Integral:
“A”, residentes na Rua ..., nº ..., em ... - ..., em representação de seu filho menor, “B”, instauraram, na Comarca de ..., a presente acção, com processo sumário, contra

“C”, com sede na Av. ..., nº ... em ... - ..., alegando:

No dia ..., pelas ..., na Estrada Nacional, nº ..., junto ao cruzamento da ..., em ..., “B”, nascido aos 21.12.1986, foi vítima de atropelamento, quando após aguardar no passeio a passagem de várias viaturas, se preparava para atravessar a mencionada estrada, tendo colocado a sua perna esquerda no pavimento.

Foi atropelante a viatura automóvel, com a matrícula ..., conduzida por “D”, que na altura circulava no sentido ... ...

“B” é filho de “A”.

No local do acidente, a estrada tem a largura de 7,05 metros e o traçado é recto e a velocidade máxima permitida é de 50 Km/Hora.

Acontece que “D” animava a sua viatura com uma velocidade superior à permitida, circulava junto ao passeio e com falta de atenção.

“D” tinha a sua responsabilidade civil transferida para a ora Ré, conforme contrato de seguro titulado pela apólice nº ...

Foi instaurado o necessário processo crime que foi declarado amnistiado.

Em consequência do acidente, “B” sofreu fractura da coxa esquerda - à qual foi operado nos dias 19 de Fevereiro de 1997 e 07 de Janeiro de 1998 -, escoriações no joelho, mãos e cabeça.

Descrevem, seguidamente os tratamentos levados a cabo e as sequelas subsequentes, as despesas que suportaram e rendimentos que deixaram de auferir, devido à assistência que prestaram ao filho e os danos não patrimoniais que entendem ser passíveis de tutela jurídica.

Terminam, pedindo a procedência da acção.

CITADA, A RÉ SEGURADORA CONTESTOU, ALEGANDO:

Deduziu a excepção de prescrição, considerando que o acidente ocorreu aos 14 de Fevereiro de 1997 e a presente acção só deu entrada em Juízo aos 30 de Junho de 2000, invocando o disposto no artigo 498º, nº 1, do Código Civil.

Impugna os factos apresentados pelos Autores, dizendo que a sua Segurada conduzia a viatura pela metade direita da faixa de rodagem, a uma velocidade de 40 Km/Hora, quando foi surpreendida por “B” que de forma inopinada e repentina se lançou, correndo, a atravessar a faixa de rodagem, da direita para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, quando se encontrava a cerca de dois metros de distância.
Embora tenha travado e desviado para a esquerda, foi-lhe impossível deixar de colher o menor.

Após dizer que desconhece os factos de natureza pessoal, termina concluindo pela sua absolvição.

RESPONDERAM OS AUTORES à excepção de prescrição.
*
***
O Exmº Juiz relegou a apreciação da excepção para a decisão final
*
***
Seguiram-se os demais termos processuais e procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.
Na Primeira Instância foram dados como provados os seguintes factos:

1 - No dia 14 de Fevereiro de 1997, pelas 7H50 da manhã, na Estrada Nacional nº ..., junto ao cruzamento da ..., em ..., “B”, menor nascido a 21.12.1986, foi vítima de atropelamento.

2 - Os Requerentes são pais do menor “B” e ambos exercem sobre ele, o Poder Paternal.

3 - O veículo ... circulava no sentido ... ...

4 - A condutora “D”, causadora do atropelamento, transferiu para a ré “C”, a responsabilidade de indemnizar os danos causados a terceiros pelo veículo ..., pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº ...

5 - Foi apresentada a respectiva queixa crime, contra “D”, pela prática por esta de um Crime de Ofenda à Integridade Física por negligência, p.p. no nº 1 do art. 148º do C.P., o qual correu o Inquérito nº ..., que foi arquivado, em virtude da Lei da Amnistia nº 29/99, de 12 de Maio.

6 - “B” tinha à data do acidente 10 anos de idade.

7 - A factura mencionada a fls. 87 é referente a despesas de internamento do menor “B” no Hospital ..., em ...

8 - O menor “B” preparava-se para atravessar a identificada estrada quando foi atropelado pelo veículo automóvel, ... de matrícula ...

9 - Ao colocar a perna esquerda no pavimento da via, foi violentamente abatido pelo já identificado veículo automóvel nessa perna, que o projectou no pavimento da via.

10 - Imediatamente antes do acidente um colega do menor que o acompanhava também para a escola, tinha acabado de atravessar a referida estrada.

11 - A referida Estrada Nacional ou Rua da ..., no local do embate tem 7,50 m de largura.

12 - O local onde ocorreu o atropelamento é uma recta com boa visibilidade.

13 - O menor apenas tinha uma das pernas na estrada junto ao passeio.

14 - Em consequência do acidente, o menor “B” sofreu fractura da coxa esquerda - 1/3 médio - fémur esquerdo e escoriações várias no joelho, mãos e cabeça.

15 - Tendo sido de imediato assistido no Hospital de ..., e em seguida transferido para o Hospital ...

16 - Foi sujeito a intervenção cirúrgica no dia 19.02.97, onde lhe foram colocados ferros na perna esquerda, onde sofreu a fractura.

17 - Após esta primeira operação, sofreu um mês e meio de internamento hospitalar, onde foi sujeito, a vários tratamentos na área de fisiatria.

18 - Após a saída hospitalar, esteve ainda durante mês e meio em casa, a ser assistido directamente pela sua mãe.

19 - Manteve durante largo período a perna engessada e imobilizada.

20 - Sujeitou-se a fisioterapia, durante um mês e meio, no Hospital de ..., em ...

21 - Teve uma incapacidade total de 3 meses e incapacidade parcial durante 10 meses.

22 - Manteve durante largo período, queixas dolorosas na flexão do joelho.

23 - Sujeitou-se a vários exames e consultas de recuperação, respectivamente em 19.05.97, 23.06.97 e 18.08.97.

24 - Em 07.01.98, foi submetido a nova intervenção cirúrgica, para remoção dos ferros implantados na perna.

25 - O menor apresentava à data da elaboração da perícia médica, cicatriz não dolorosa e não limitativa da mobilidade do joelho esquerdo e alongamento inferior esquerdo de cerca de um cm.

26 - O menor teve alta em 09.01.98.

27 - Poderá haver agravamento da dismetria.

28 - Esteve num período de três meses sem poder ir à escola, privado do contacto com os seus amigos e tudo aquilo que a escola proporciona.

29 - Teve durante largo período, queixas dolorosas, na mobilidade e flexão do joelho.

30 - “B”, à data do acidente era uma criança que gozava de boa saúde, alegre e bastante popular entre os seus amigos.

31 - Em consequência do atropelamento foi sujeito a duas operações cirúrgicas com anestesia geral, com toda a angústia e ansiedade próprias de quem é sujeito a tais situações.

32 - Sofreu dores dolorosas na mobilidade e flexibilidade da perna.

33 - O menor no seu dia-a-dia sente-se complexado por não poder acompanhar os colegas nos jogos de futebol e quando andam mais depressa.

34 - Esteve com incapacidade total durante 3 meses e com incapacidade temporária parcial durante 10 meses.

35 - Sofreu e sofre o menor “B”, de uma grande tristeza, angústia e ansiedade, pelo que passou e pelas sequelas existentes.

36 - Tornou-se numa criança complexada, retraída e com menor dinamismo.

37 - O veículo ..., circulava pela meia faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha.

38 - O menor “B” seguiu uma outra criança que momentos antes havia atravessado a estrada nacional nº...
*
***
Perante a descrita factualidade:

A - Foi julgada improcedente a invocada excepção de prescrição.

B - Foi a acção julgada parcialmente procedente e:

a) - Foi a Ré condenada a pagar aos AA, que agem em representação do filho menor, a quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença a título de danos patrimoniais descritos nos números 25 e 27, enquanto indiciadores de uma eventual incapacidade parcial permanente;
b) - Condenou a Ré a pagar aos Autores, que agem em representação do seu filho menor, a título de danos patrimoniais (leia-se não patrimoniais) a quantia de 3.000.000$00;
c) - Sobre esta quantia, que é fixada com recurso a juízos de equidade não se vencem juros.
*
***
Com a decisão não concordou a Ré, tendo interposto o respectivo recurso, onde formulou as seguintes CONCLUSÕES:

1 - O presente recurso vem interposto da sentença condenatória, proferida nos presentes autos, com o teor da qual a ora Ré/Apelante não se conforma.

2 - Na realidade, da factualidade nos presentes autos resulta que não pode ser assacada qualquer responsabilidade à condutora do veículo ... pela produção deste acidente.

3 - Pelo contrário, foi o menor “B” que ao dirigir-se para a escola juntamente com outra criança que tinha acabado de atravessar, pretendendo atravessar a estrada pela qual circulava o ..., na sua mão de trânsito, resolveu preparar-se para atravessar a estrada quando já nesta se encontrava, colocando a perna esquerda em plena via e tendo, por consequência, sido atropelado.

4 - Destarte, a culpa pela produção deste acidente coube, na integra, ao malogrado peão, que pretendeu atravessar a estrada sem previamente constatar, antes, portanto, de iniciar o atravessamento, que o podia fazer em segurança, infringindo o disposto no art. 104º, nº 1 do C. Estrada.

5 - É inaplicável a este caso o disposto no art. 24º, nº 1 do C. Estrada, ao contrário do que na douta sentença se refere, pois nenhum condutor pode ser penalizado pela negligência de outrem, como sucedeu no presente caso, com o incauto comportamento do menor “B”, sendo de supor que os outros utentes da via também cumpram as regras estradais.

6 - Sem embargo do que supra fica exposto, reputa-se manifestamente exagerada a quantia de 3.000.000$00, arbitrada a título de danos não patrimoniais. Na realidade, tendo em conta os juízos de equidade, de ponderação, de justa medida das coisas, o enquadramento deste caso entre os demais, em que são igualmente arbitradas indemnizações por danos morais, afigura-se que, sem pretender menosprezar o sofrimento e a dor alheias, será adequada uma indemnização no valor de 1.500.000$00.

7 - Por todo o exposto, a douta sentença, decidindo de forma diversa, violou, entre outros, o disposto nos art.s 24º, nº 1 e 104º, nº 1, ambos do C. Estrada e 496º, nº 3 do C.C.

Deve ser a Ré/Apelante absolvida do pedido.
*
***
Contra-alegaram os Autores, concluindo pela improcedência do recurso.
*
***
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
***
As conclusões de recurso limitam o objecto do mesmo - artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Sendo assim, são três as questões a apreciar:
A - Culpa da Segurada da Ré pela ocorrência do sinistro;
B - Culpa do menor “B”;
C - Montante indemnizatório fixado para os danos não patrimoniais.
*
***
A- CULPA DA SEGURADA DA RÉ PELA OCORRÊNCIA DO SINISTRO

Conduzia “D” a sua viatura numa estrada com o traçado recto e com 7,50 metros de largura. Apercebeu-se, pois, que uma criança atravessava a faixa de rodagem (veja-se as suas declarações prestadas e juntas a fls. 26-27 e confirmado na contestação da ora Ré). Uma normal diligência impunha, de imediato, uma redução da velocidade com que antes animava o veículo.
Mas, uma normal diligência impunha ainda que com a vista percorresse o passeio donde tinha saído a criança que havia atravessado a estrada. Diz-nos a experiência diária que atrás duma bola vem uma criança e atrás duma criança a correr vem outra...
E, se tal tivesse feito, por certo se teria apercebido da presença do “B” ainda no passeio. E, novamente uma normal diligência motivava que ainda mais reduzisse a velocidade com que animava a viatura (e terá visto, efectivamente, “B” no passeio, face às declarações já mencionadas, embora depois, na contestação, já seja referido ter sido “D” surpreendida com “B” a, de forma repentina e inopinada, ter-se lançado na travessia da estrada...).
Ora, o artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada impõe que se conduza com uma velocidade que atente “a quaisquer ... circunstâncias relevantes, possa em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
Entende a Ré que o disposto neste artigo 24º não tem aplicação ao caso sub judice. Discorda-se de tal interpretação. “D” apercebe-se de crianças junto ao local onde transita e resolve seguir tão junto ao passeio que colhe uma delas. Que manobra, afinal, efectuou e por que não parou?
Mas a faixa de rodagem tem a largura de 7,50 metros. Significa isto que a hemi-faixa por onde circulava “D” tinha 3,75 metros.
Dispõe o artigo 13º, do Código da Estrada: “1 - O trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”.
Ora uma diligência normal impõe que não se conduza tão junto ao passeio que logo colida com um peão que coloca um pé na faixa de rodagem. E atente-se que não está provado que “B” corresse, saltasse, ou tomasse qualquer atitude que saísse do passeio e se colocasse de imediato distanciado deste. Antes pelo contrário, “o menor “B” preparava-se para atravessar a estrada (nº 8 da matéria factual) e ao colocar a perna esquerda no pavimento (nº 9) junto ao passeio (nº 13) foi colhido pelo veículo (nº 8)”.
Violado, foi, pois o normativamente disposto no artigo 13º do Código da Estrada.

A pouca diligência que colocava na condução, motiva que não possa ser isenta de culpa, quando viola os preceitos legais já mencionados.
B - CULPA DO MENOR “B”

Tratando-se de um peão, atentemos ao artigo 104º do Código da Estrada.
Antes de mais, “B” deveria certificar-se do tráfego automóvel existente. E só depois, proceder à travessia o mais depressa possível.
Resulta dos factos provados que o menor se preparava para atravessar (nº 8 da matéria factual) e mal colocou a perna esquerda na faixa de rodagem (nº 9), junto ao passeio (nº 13) foi colhido. Isto é, perante a prova produzida, o menor ainda não efectuava qualquer travessia. Preparava-se, sim, para a fazer. Só, pois, a circulação do veículo tão junto ao passeio motivou o acidente. E nada impunha que transitasse por tal sítio. A largura da Estrada possibilitava-o, pois que por certo um ... não tem uma largura que assim obrigasse para que o eixo da via não fosse ultrapassado para o lado esquerdo, atentando no seu sentido de marcha.
C - MONTANTE INDEMNIZATÓRIO FIXADO PARA OS DANOS NÃO

PATRIMONIAIS

Fixou a Primeira Instância a indemnização em 14.963,94 € (três milhões de escudos) por danos não patrimoniais.
A Apelante entende que a mesma é exagerada e opina pela sua redução a 7.481, 97 € (um milhão e quinhentos mil escudos).
Olhando a matéria de facto, constatamos:
Uma criança com 10 anos de idade, saudável e alegre, dirige-se para a escola. Afinal foi parar a um Hospital, com uma fractura no terço médio do fémur esquerdo, além de outras escoriações. E, posteriormente, viu-se transferido para um outro hospital, distante da localidade onde morava.
Cinco dias depois, vê-se sujeito a uma intervenção cirúrgica, onde lhe implantaram uns ferros, que só lhe vieram a ser retirados cerca de onze meses depois.
Durante todo este tempo permaneceu internado um mês e meio, durante o qual foi submetido a tratamentos de fisiatria, tendo depois seguido para casa, onde permaneceu durante outro mês e meio.
Viu a sua perna engessada e imobilizada e passou mais um mês e meio a receber tratamentos de fisioterapia e isto já num terceiro hospital.
Suportou durante um largo período dores, quando pretendia dobrar o joelho.
Finalmente vê-se com um alongamento inferior esquerdo, que pode vir a agravar-se, e ele, que era muito popular entre os seus colegas e amigos, vê-se impossibilitado de com eles brincar, sempre que tem que se deslocar com maior rapidez.
Da criança alegre e saudável resta uma outra complexada, triste, angustiada e retraída. E, repita-se, tudo isto com 10 anos de idade.
São danos que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, nos termos do artigo 496º, do Código Civil.
Assistimos, anualmente, ao aumento dos prémios dos seguros. Não poderão as indemnizações continuar a ser miserabilistas.

DECISÃO

Atentando em tudo quanto se procurou deixar esclarecido, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirma-se a sentença proferida na Primeira Instância.

Custas pela Recorrente.
*
***

Évora, 04.12.03