Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
518/22.4JAFAR-A.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
APLICAÇÃO DE MEDIDA MAIS GRAVOSA
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A agravação da medida de coação é consentida se se verificar incumprimento pelo arguido das obrigações resultantes da sujeição a essa medida ou o incumprimento dos deveres processuais que a aplicação de tal medida visa.
- A medida de coação aplicada pode ser substituída por outra mais grave ou ser determinada uma forma mais gravosa da sua execução quando se verificar um agravamento das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coação.

- Ou seja, desde que ocorra alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação de uma medida de coação, também se admite a aplicação da medida mais gravosa.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, Processo com o nº 518/22.4JAFAR, foi proferido despacho, aos 05/07/2023, que alterou o estatuto coactivo e determinou que o arguido AA passasse a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o arguido, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª Entende a decisão recorrida que a “factualidade mais gravosa” resulta das declarações dos restantes arguidos e de testemunhas amigos daqueles.

2.ª Testemunhas cujos depoimento actuais divergem substancialmente dos que prestaram logo após os acontecimentos.

3.ª Ou seja, a convicção do Digno Tribunal foi criada por depoimentos contraditórios e ilógicos de pessoas que construíram a “história” em liberdade e de acordo com o seu interesse.

4.ª Havendo câmaras de vigilância no local, não se compreende porque não foram estas objecto de visualização.

5.ª Os factos recolhidos permitem acreditar ter havido na sua análise uma tendência particular, já que não foram concedidos ao Recorrente todos os meios de defesa.

6.ª No despacho do M.P. defende-se a “factualidade bem mais gravosa” com o depoimento das testemunhas BB (fls 280) e CC (fls 246).

7.ª Veja-se o depoimento de ambos, que são elucidativas nas divergências existentes.

8.ª O primeiro afirma que só ele é que viu a agressão e que após esta o Arguido escondeu-se na casa-de-banho.

9.ª O segundo descreve a agressão, que viu, afirmando ainda ter empurrado o Arguido até à casa de banho…

10.ª Isto é que são os depoimentos que identificam uma “factualidade mais gravosa”.

11.ª Gravidade que não se alterou desde a fixação das medidas de coacção.

12.ª O Arguido escolheu cumprir a medida de coação em casa da sua irmã, numa altura em que esta se havia separado do marido.

13.ª Contudo, viviam na mesma casa, mas em quartos separados.

14.ª A chegada do Arguido a casa do casal agravou irremediavelmente as relações entre o casal e, consequentemente, entre o Arguido e o cunhado.

15.ª O ambiente em casa era de grande violência, proporcionada por discussões violentas e que criaram no Arguido uma sensação de desespero e impotência.

16.º Foi esse ambiente hostil que levou o Arguido a praticar um acto de enorme desespero e sofrimento.

17.ª O Arguido nunca pretendeu fugir, mas tão só transferir-se para uma casa com ambiente propício.

18.ª O Arguido reconhece que agiu mal, mas nunca pretendeu eximir-se à responsabilidade dos seus actos.

19.ª O Arguido nega a autoria do “Storie” publicado na sua página do Instagram.

20.ª Em todo o caso, não se compreende como aquelas afirmações possam prejudicar a conservação e a veracidade da prova.

21.ª Em caso algum foi ponderada, pelo M.P., a possibilidade de o Arguido ter agido drasticamente por se ter sentido ameaçado por vários indivíduos.

22.ª A Acção do Arguido não foi determinada de forma gratuita, nem representa a “história” que o grupo do ofendido quis fazer passar.

23.ª Não há, seguramente, factos que possam determinar o agravamento do estatuto coactivo do Arguido.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-se por Douto Acórdão que determine a substituição da medida de prevenção aplicada ao Arguido, de prisão preventiva, por outra menos gravosa e que permita a integral recuperação do Recorrente.

Com tanto, e com o Douto e Valioso suprimento de VV: Excelências, que se pede e espera, far-se-á JUSTIÇA

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4. Respondeu à motivação de recurso o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, pugnando por lhe ser negado provimento.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Existência de fundamento para a agravação da medida de coacção anteriormente aplicada ao recorrente.

Necessidade, adequação e proporcionalidade, da medida de coacção de prisão preventiva.

2. Elementos relevantes para a decisão

2.1 Aos 27/12/2022, em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido, foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, “sem prejuízo de aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com meios de controlo à distância, caso se reúnam as condições técnicas para o efeito”, por existirem fortes indícios da prática pelo mesmo de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 22º e 23º, do Código Penal e se verificarem em concreto os perigos de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo (nomeadamente para a aquisição, conservação e veracidade da prova) e perigo de continuação da actividade criminosa.

2.2 Por despacho de 16/01/2023, foi determinado que passasse o arguido a estar sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização através da utilização de meios técnicos de controlo à distância.

2.3 Por despacho de 22/03/2023, procedeu o tribunal recorrido ao reexame dos pressupostos da medida de coacção aplicada ao arguido, tendo sido mantida a determinada em 16/01/2023, por se não terem alterado esses pressupostos.

2.4 O despacho recorrido, lavrado aos 05/07/2023, apresenta o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

Por despacho proferido a 27/12/2022, em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, por se encontrar fortemente indiciada a prática por parte de o arguido AA, em autoria material e na forma consumada, de um crime de 1 crime de homicídio na forma tentada, p.e.p. pelos art.ºs 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal, praticado em 25/12/2022 foi-lhe aplicada a medida de coacção “prisão preventiva, sem prejuízo de aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com meios de controlo à distância, caso se reúnam as condições técnicas para o efeito”.

Por se encontrarem reunidos os pressupostos e condições legais, foi alterado o estatuto coactivo do arguido, por despacho datado de 16 de Janeiro de 2022, tendo o mesmo passado a estar sujeito, para além do TIR já prestado, à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância – cfr. fls. 144.

Por despacho datado de 22 de Março de 2023, foi a referida medida de coacção sujeita a reexame, tendo sido a mesma mantida – cf. fls. 352.

No final do inquérito, foi deduzido despacho de acusação, no qual é imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, alínea i), 22.º n.º 1.º, 14.º n.º 1 e 26.º 1.ª parte, todos do Código Penal.

A final, e quanto ao estatuto coactivo do arguido o Ministério Público pugnou pelo seu agravamento, sendo do entendimento do Ministério Público que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação deverá ser substituída pela prisão preventiva, pelos fundamentos que se reconduzem, em súmula, a três pilares principais: no decurso do inquérito houve reforço do material probatório, tendo sido apurada factualidade mais gravosa (cuja prática é imputada ao arguido no despacho de acusação), que consubstancia ilicitude muito elevada e especialmente censurável, e se reconduz à prática, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, alínea i), 22.º n.º1.º, todos do Código Penal, com pena de prisão de 12 a 25 anos; a ocorrência de vicissitudes durante a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, nomeadamente aquando do uso de aparelho de vigilância electrónica (violação do dispositivo); a prática de actos pelo arguido contra o aqui ofendido DD, amigos e familiares que se subsumem, in minime, a factualidade tendente a criar medo, receio e inquietação nas pessoas visadas e perturbar a aquisição, conservação e veracidade da prova a produzir em sede de Julgamento.

Cumpre tomar posição quanto ao actual estatuto coactivo do arguido (cfr. art. 213.º n.º 1 al. b). do Código de Processo Penal)

Do compulsar dos autos decorre (cfr. fls. 381 e ss.), nomeadamente do teor do relatório de incidentes elaborado pela D.G.R.S.P., que a 28 de Março de 2023, cerca das 2h36 minutos, o arguido tentou cortar, com recurso a um objecto perfurante, a borracha da pulseira electrónica numa tentativa de iniciar a abertura do clip que fecha a pulseira.

O arguido foi notificado para se pronunciar quanto aos factos no referido relatório e nada disse.

Por outro lado, dos autos (cfr. fls. 426) resulta ainda que, em data não concretamente apurada, mas que se situará no início do mês de Fevereiro de 2023 após já estar sujeito à medida de OPHVE, o arguido AA, que detém uma conta de Instagram com username “…” terá partilhado uma “storie” na referida rede social com o seguinte teor “Quanto menos esperarem/ E são gandas bandidos depois dao queixinha nos homens/Vejam bem quando sair daqui vou vos mostrar a brincar tudo se paga nesta vida palermas so em grupo kk/ Todos voçes primos tios o caralho que vos foda/Alentejaninhos de merda pensei mais de voçes kkk”. Tal mensagem tinha como destinatários DD, seus amigos e família.

O arguido foi ouvido nos termos e para os efeitos do art. 212.º n.º 4 do Código de Processo Penal.

Nesta sede, e em súmula, o arguido:

- Admitiu ter violado o aparelho de VE, alegando ser vítima de injúrias e discriminações por parte do companheiro da sua irmã, pessoa com quem residia à data em que lhe foi aplicado o dispositivo; Justificou o seu comportamento com o facto de pretender sair da habitação da sua irmã, por ser maltratado pelo companheiro desta; Referiu ainda que, apesar da sua intenção, não saiu de casa;

- Negou ter publicado qualquer mensagem de teor ameaçador contra o ofendido, alegando que a sua conta de Instagram foi hackeada, facto que determinou que perdesse por vezes o acesso, pese embora tivesse tido acesso à referida conta ela até há um mês atrás; Confirmou usar esta rede social e o perfil com username “…”.

O Ministério Público pugnou pelo agravamento do estatuto coactivo do arguido, devendo ser-lhe aplicada prisão preventiva, sendo esta a única medida capaz de acautelar o perigo de continuação de actividade criminosa e de perturbação do inquérito.

O arguido pronunciou-se, reiterando as declarações prestadas em sede de audição e pugnou pela manutenção das medidas de coacção que lhe foram impostas em sede de primeiro interrogatório judicial.

Cumpre apreciar e decidir.

Do compulsar dos autos, resulta fortemente indiciada a prática, pelo arguido contra DD, em autoria material, na forma tentada de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, alínea i), 22.º n.º 1., todos do Código Penal, com pena de prisão de 12 a 25 anos.

A forte indiciação deste ilícito admite a aplicação de qualquer uma das medidas de coacção elencadas nos arts. 196.º a 202.º do Código de Processo Penal.

As medidas de coacção encontram-se sujeitas aos princípios da adequação e da proporcionalidade ou seja, deverão cumprir as finalidades cautelares que se visam atingir com a respectiva aplicação e por outro lado, deverão ser proporcionais à gravidade do facto (art. 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), estatuindo o n.º 2 do mesmo artigo que a prisão preventiva só poderá ser aplicada quando se mostrem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção – cfr. art. 203.º do Código de Processo Penal.

Ora, conforme resulta do já exposto, após a aplicação da medida de coacção de OPHVE ao arguido foi junta aos autos informação, pela D.G.R.S.P., da qual resulta que o arguido violou o dispositivo de vigilância, facto que foi por este admitido.

Adianta-se, desde já, que as justificações dadas pelo arguido fazem ressaltar o seu carácter impulsivo e a sua personalidade pouco resiliente e de fraca adaptação às vicissitudes. Efectivamente, o arguido ingressou em estabelecimento prisional no dia 27 de Dezembro de 2022, tendo-lhe sido dada a oportunidade, pelo Tribunal, de poder aguardar os ulteriores termos do processo numa habitação, próximo dos seus familiares, ainda que privado da liberdade. Em resposta, o arguido, perante as alegadas vicissitudes (mau ambiente em casa promovido pelo seu cunhado), violou (partiu) o dispositivo que permite manter a sua localização activa e controlada. Por outro lado, como o próprio arguido admitiu a sua intenção era sair da habitação onde se encontrava a residir, deixando de estar sob vigilância, só não o tendo feito porque logrou falar com familiares nesse momento. Caso assim não fosse, a atitude do arguido (que, reitere-se, revela o seu carácter imprevisível e inconsequente), poderia ter levado a que encetasse a fuga para parte incerta.

Por outro lado, não colhe a versão do arguido de que a “storie” supra referida, não foi por si publicada na sua página do Instagram, uma vez que a mesma foi hackeada, o que o fez perder, em determinados momentos (que não soube explicar), o acesso à mesma. Em primeiro lugar, nenhum elemento foi junto no sentido de sustentar a sua tese. Depois, pese embora se tenha apercebido (alegadamente) que a sua conta teria sido usada ilicitamente, o arguido não denunciou a conta nem o uso indevido da mesma; Acresce que nenhum senso faz que o arguido tome conhecimento que terceiros possam ter acedido à sua conta pessoal e continue a usá-la meses após (relembre-se que os factos remontam a Fevereiro de 2023 e o arguido referiu ter perdido o acesso definitivo em inicio Junho de 2023); Depois, atento o teor da mensagem publicada não se afigura crível que a mesma tenha sido elaborada por terceiros (quem?), nenhuma justificação plausível foi aventada pelo arguido nesse sentido; Por fim, há que fazer menção à circunstância, referida pelo próprio arguido, de que este não deu o acesso da sua conta a terceiro;

Ademais, a versão aduzida pelo arguido em sede de audição denota uma atitude de total desresponsabilização pelos seus actos e pelas decisões judiciais, em especial no que se refere às medidas de coacção a que se encontra sujeito, tendo sido solenemente advertido para as consequências das obrigações inerentes às mesmas.

Em face do exposto, conclui-se estar fortemente indiciado que arguido não se inibiu de adoptar condutas ilícitas contra o ofendido, tendentes a prejudicar a prova adquirida e ainda a produzir em sede de Julgamento, sendo plausível que no futuro reitere a sua conduta, agora que se encontra acusado da prática de um crime de gravidade e ilicitude mais elevada do que aquele que determinou a sua privação de liberdade, ab initio.

Assim, no caso concreto, os perigos referidos no despacho de aplicação de medidas de coacção não só não se mantêm, como foram reforçados no decurso do inquérito (art. 204.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal): perturbação do inquérito e perigo de continuação da actividade criminosa.

Por outro lado, resulta indubitável o perigo de fuga, em face da conduta do arguido que não se inibiu de arrancar o dispositivo de vigilância electrónica com intenção de abandonar a habitação onde estava a cumprir a OPHVE, perante uma situação de adversidade não havendo qualquer garantia que não o possa voltar a fazer, tanto mais que agora foi notificado do despacho de acusação onde lhe é imputada criminalidade mais gravosa (art. 204.º, alíneas a). do Código de Processo Penal)

Deste modo, entende-se que apenas uma medida de coacção privativa de liberdade, a cumprir em estabelecimento prisional, será adequada, necessária e suficiente às exigências cautelares que se fazem sentir.

Assim, e em face do actual estatuto coactivo do arguido (que foi por este violado), a prisão preventiva afigura-se como a única medida necessária, adequada e proporcional a aplicar ao arguido.

Termos em que, e ao abrigo dos artigos 191º, 193º, 196º, 202.º n.º 1 al. a). e 204.º, als. a). a c). e 203.º n.º 1, 213.º n.º 1 al. b). todos do Código de Processo Penal, procedo à alteração do estatuto coactivo e determino que este aguarde os ulteriores termos do processo sujeito:

a. A T.I.R. já prestado;

b. A prisão preventiva;

Apreciemos.

Sustenta o recorrente inexistir fundamento para o tribunal recorrido ter agravado a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização do cumprimento das obrigações inerentes por meios técnicos de controlo à distância, para prisão preventiva.

Como resulta cabalmente do despacho recorrido, essa agravação alicerça-se em o ora recorrente ter violado o dispositivo de vigilância electrónica, com o intuito de abandonar a residência onde a mesma era exercida e estar fortemente indiciado que o arguido não se inibiu de adoptar condutas ilícitas contra o ofendido, tendentes a prejudicar a prova adquirida e ainda a produzir em sede de Julgamento, sendo plausível que no futuro reitere a sua conduta, agora que se encontra acusado da prática de um crime de gravidade e ilicitude mais elevada do que aquele que determinou a sua privação de liberdade, ab initio, tendo-se, por isso, reforçado os perigos de perturbação do decurso do inquérito e continuação da actividade criminosa, resultando ainda, ex novo, o perigo de fuga, em face da conduta do arguido que não se inibiu de arrancar o dispositivo de vigilância electrónica com intenção de abandonar a habitação onde estava a cumprir a OPHVE, perante uma situação de adversidade não havendo qualquer garantia que não o possa voltar a fazer, tanto mais que agora foi notificado do despacho de acusação onde lhe é imputada criminalidade mais gravosa (art. 204.º, alínea a), do Código de Processo Penal).

Ora, nos termos do artigo 6º, da Lei nº 33/2010, de 02/09, recaíam sobre o arguido, que se encontrava sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, entre outros, os deveres de “permanecer nos locais onde é exercida vigilância electrónica durante os períodos de tempo fixados” – alínea a); e “abster-se de qualquer acto que possa afectar o normal funcionamento dos equipamentos de vigilância electrónica” – alínea h).

E, estabelece-se no artigo 203º, do CPP:

“1 - Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas neste Código e admissíveis no caso.

2 - Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 193.º, o juiz pode impor a prisão preventiva, desde que ao crime caiba pena de prisão de máximo superior a 3 anos:

a) Nos casos previstos no número anterior; ou

b) Quando houver fortes indícios de que, após a aplicação de medida de coacção, o arguido cometeu crime doloso da mesma natureza, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.”

Tem-se entendido, como assinala Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª edição, Editorial Verbo, págs. 309/310, que “o nº 1 do art. 212 (do CPP, entenda-se) dispõe que as medidas de coacção são imediatamente revogadas sempre que se verifique: a) terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; b) terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação. O nº 2 do mesmo artigo dispõe, por sua vez, que as medidas revogadas podem de novo ser aplicadas se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.

Ora, se uma medida pode de novo voltar a ser aplicada, não se compreenderia que não pudesse revogar-se uma medida e aplicar outra diferente, ainda que mais grave, se as circunstâncias o justificarem” – fim de citação.

Ou, no dizer do Ac. R. de Évora de 27/11/2007, Proc. nº 2720/07-1, disponível em www.dgsi.pt, “a agravação da medida de coacção só é consentida se se verificar incumprimento pelo arguido das obrigações resultantes da sujeição a essa medida ou o incumprimento dos deveres processuais que a aplicação de tal medida visa acautelar - ou, no mínimo, o perigo e/ou eminência da sua violação - ou alteração das circunstâncias (cf., neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 17.12.2003, in rec. 44780/03 e o acórdão da Relação de Lisboa de 1.2.2005, in rec. 685/2005 -5, acessíveis in www.dgsi.pt).” – fim de citação.

Entendimento também subscrito por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, UCE, pág. 553, assim expresso: “independentemente da violação das obrigações impostas, o juiz pode substituir a medida aplicada por outra mais grave ou determinar uma forma mais gravosa da sua execução quando se verificar um agravamento das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção (artigo 212º, nº 3)”.

Ou seja, desde que ocorra alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, também se admite a aplicação da medida mais gravosa.

Pois bem.

Mostra-se isento de dúvidas que o arguido/recorrente violou obrigação imposta pela medida de coacção a que estava sujeito desde 16/01/2023 ao arrancar o dispositivo de vigilância electrónica com intenção de abandonar a habitação e que este comportamento leva a concluir pela verificação de um concreto perigo de fuga.

E vero é que se intensificaram os perigos de continuação da actividade criminosa e perturbação do decurso da instrução do processo com a publicação pelo arguido na sua página do “Instagram” da “storie” mencionada na decisão revidenda, mostrando-se em absoluto inverosímil, como nesta também acertadamente se aponta, a versão do recorrente do uso não autorizado da sua conta por terceiros.

Importa se elucide que este perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, constante do artigo 204º, alínea b), do CPP, prende-se com a aquisição, conservação ou veracidade da prova e tanto pode ocorrer no decurso da fase de inquérito, como posteriormente a esta, como sejam na de instrução – a que se reportam os artigos 286º a 310º, do CPP - ou mesmo de julgamento, nestas primacialmente nas vertentes da sua conservação ou veracidade.

A menção a “instrução do processo” abrange, não só a fase facultativa de instrução, mas todo o decurso do processo até à audiência de julgamento, reportando-se à actividade probatória que se desenvolve e vai desenvolvendo sequencialmente ao longo do mesmo, à semelhança da expressão utilizada no Livro II, título V, do Código de Processo Civil, precisamente: “Da Instrução do Processo” – artigo 410º e segs.

Só com este entendimento se pode conceder sentido útil ao escopo de proteger a conservação ou veracidade da prova adquirida, pois não se vê que o legislador pretendesse conferir essa protecção durante o inquérito e a instrução – a prevista nos artigos 286º a 310º, do CPP – mas a reputasse desnecessária na fase de julgamento, sendo certo que, como é sabido, o princípio geral é de que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”, nos termos do nº 1, do artigo 355º e que a leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas recolhidas em autos em fase anterior do processo só é admissível nos termos do artigo 356º do mesmo Código, abrindo desta forma a porta à susceptibilidade de desvirtuação destas por via da intimidação de quem as prestou pelos arguidos e assim colocando em causa a verdade material que se pretende apurar.

É sabido que, nos termos do artigo 193º, do CPP, “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas” – nº 1; e “a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção” – nº 2; sendo certo que “quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares” – nº 3.

O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea i), 22º, nº 1º e 23º, nº 1, do Código Penal, a que corresponde moldura penal máxima de 16 anos e 8 meses de prisão, sendo que a mera colocaçõr em causa pelo mesmo dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de inquérito não tem o mérito de abalar os suficientes indícios desse cometimento.

Como se disse retro, para além da intensificação dos perigos de continuação da actividade criminosa e perturbação do decurso da instrução do processo (que se verificavam já aos 27/12/2022 e mantinham em 16/01/2023 e 22/03/2023), presente está agora também o perigo de fuga.

Ora, a medida de coacção de prisão preventiva revela-se, in casu, necessária, porquanto sem a mesma as exigências cautelares do processo ficam comprometidas e adequada porque é a que melhor se ajusta às exigências processuais, uma vez que nem sequer a de obrigação de permanência na habitação satisfez esse desiderato.

E, também é proporcional (em observância do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, nº 2, 2ª parte, da Constituição da República Portuguesa), tendo em conta a gravidade do crime e a sanção que previsivelmente virá a ser aplicada.

Termos em que, cumpre negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso pelo arguido AA interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 26 de Setembro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Laura Goulart Maurício)

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(J. F. Moreira das Neves