Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
914/21.4T8EVR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ENTIDADE PÚBLICA EMPRESARIAL
HOSPITAL INTEGRADO NO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
MÉDICO
INSTRUMENTO DE REGULAMENTAÇÃO COLECTIVA DE TRABALHO
PERÍODO NORMAL DE TRABALHO
TRABALHO SUPLEMENTAR
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. Face à cláusula 44.ª n.º 4 do Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, e outros, e vários sindicatos de médicos, uma médica trabalhadora em entidade prestadora de cuidados de saúde integrada no Serviço Nacional de Saúde está sujeita ao limite máximo de 18 horas de trabalho semanal em serviços de urgência.
2. Pode assim, se tal lhe for determinado pela sua entidade empregadora, realizar apenas 12 horas de trabalho semanal em serviços de urgência.
3. A trabalhadora médica no SNS, que invoca a prestação de trabalho suplementar, deve provar os horários de trabalho praticados ao longo da relação laboral, os dias e horas em que prestou trabalho para além desses horários, e ainda que o mesmo lhe foi determinado pela sua entidade patronal.
4. A eventual circunstância de não terem sido adoptados procedimentos internos de aprovação das horas de trabalho suplementar assim prestadas não pode ser decidida em desfavor da trabalhadora, se também está provado que tal trabalho foi determinado pela respectiva hierarquia e a trabalhadora cumpriu a ordem assim recebida, em benefício da sua empregadora.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Évora, AA demandou Hospital do Espírito Santo de Évora, E.P.E., alegando ser médica com contrato individual de trabalho celebrado com a Ré e ter prestado trabalho suplementar por indicação da empregadora, entre Setembro de 2013 e Março de 2020, pelo que pede a sua condenação no pagamento da quantia global de € 17.548,43, a título de acréscimo remuneratório devido por essa prestação, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de € 3.174,77, e de juros de mora vincendos.
Em momento anterior ao oferecimento da contestação, a A. requereu a ampliação do pedido, para o montante global de € 21.329,60.
Na contestação, a Ré alegou não ter autorizado e/ou determinado que a A. realizasse os períodos de trabalho suplementar invocados na petição inicial. E deduziu reconvenção, pedindo que a A. seja condenada no pagamento da quantia global de € 3.493,89, a título de reembolso pelos valores que lhe foram indevidamente processados a título de trabalho suplementar, entre os anos de 2016 e 2020.

Após julgamento, com produção da prova oferecida pelas partes, foi proferida sentença julgando a causa parcialmente procedente e condenando a Ré a pagar à A. a quantia global de € 14.989,50, a título de acréscimo remuneratório devido pela prestação de trabalho suplementar, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, contados desde a data da propositura da acção e até efectivo e integral pagamento.
Mais se decidiu absolver a Ré do demais peticionado pela A., e igualmente absolver esta do pedido reconvencional contra si deduzido.
Desta sentença a Ré interpôs recurso, tendo a A. interposto recurso subordinado da parte da sentença que lhe foi desfavorável.

A Ré apresentou as seguintes conclusões:
1.ª Nos presentes autos, a A./Recorrida peticionou a condenação do Réu/Recorrente, no pagamento «(d)a quantia total de €17.548,43 a título de remuneração pelo trabalho suplementar prestado em serviço de urgência, acrescido de juros de mora vencidos, no montante de €3.174,77, calculados e vencidos (…) e vincendos até efectivo e integral pagamento; (…)» (al. a) do pedido a fls. 29 dos autos);
2.ª Na causa de pedir, alega que, «(…) por necessidade e interesse do serviço, o horário foi fixado no sentido de apenas cumprir 12 horas em serviço de urgência, de modo a utilizar as restantes 6 horas em tempo para realização de consultas, face aos tempos de espera que estavam a observar-se» (vide artigo 19º da PI, a fls. 10 dos autos);
3.ª Mais acrescentou que «(…) cumpridas as 40 ou 30 horas semanais a que a Autora estava adstrita, foi ainda prestado trabalho fora do seu horário e, portanto, a título suplementar, em serviço de urgência que não foi pago como tal no período compreendido entre Setembro de 2013 e Dezembro de 2020.» (artigo 20º da PI a fls. 10 dos autos);
4.ª O Mmo. Juiz a quo decidiu condenar o Réu/Recorrente no pagamento à A., da«(…) quantia global de €14.989,50 (catorze mil, novecentos e oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos), a título de acréscimo remuneratório devido pela prestação de trabalho suplementar, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, que se fixa presentemente em 4% contados desde a data da propositura da presente acção até efectivo e integral pagamento.»
5.ª É com o assim decidido, que o Réu não pode conformar-se por entender, com o devido respeito, que o Mmo. Juiz a quo fez uma errada interpretação dos normativos legais que aplicou, que, por consequência, determinou uma errada subsunção dos factos provados, ao direito aplicável, e a decisão ora recorrida;
6.ª O que está em causa é saber se a Autora, conforme peticionou, tem direito ao pagamento do trabalho prestado para o Réu/Recorrente, em serviço de urgência, para além do banco de 12 horas semanais, a título de trabalho suplementar;
7.ª Na sentença recorrida, o Mmo. Juiz considerou provada a prestação, pela Autora, de trabalho para além do horário, nos anos, meses e dias que constam elencados na matéria provada sob os pontos 14 a 20 da sentença, concluindo pela condenação do Réu, no pagamento desse tempo de trabalho como trabalho extraordinário/suplementar;
8.ª A Autora não logrou provar, como se lhe impunha, que tenha acordado com o Réu, que «(…) a prestação de trabalho em serviço de urgência, para além das 12 horas semanais fixadas dentro do respectivo horário de trabalho, seriam contabilizadas e pagas a título de trabalho suplementar.» (ponto D. a págs. 11 da sentença recorrida);
9.ª Não obstante, entendeu, ainda assim o Mmo. Juiz a quo, que, a simples prestação (não autorizada), de trabalho para além do horário, determina o pagamento, pelo Réu á Autora, de trabalho extraordinário/suplementar, entendimento que não tem acolhimento legal, nas normas especiais disciplinadoras da carreira médica;
10.ª O Réu, Hospital do Espírito Santo de Évora (HESE), E.P.E., é uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial, que integra a administração indirecta, sendo o seu capital estatutário, integralmente realizado pelo Estado, nos termos do regime jurídico do sector público empresarial do Estado e do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro, que provou os Estatutos dos Hospitais EPE;
11.ª O Réu HESE foi criado pelo Decreto-Lei n.º 50-A/2007, de 28 de Fevereiro, aplicando-se-lhe as regras respeitantes ao regime jurídico de recursos humanos, constantes do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro (entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 18/2017 de 10 de Fevereiro);
12.ª Dispõe, por um lado, o n.º 1 do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 233/2005, que «(o)s trabalhadores dos hospitais E. P. E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos.»;
13.ª Por outro lado, prevê o artigo 15º do mesmo DL 233/2005 que «(o) pessoal com relação jurídica de emprego público que, (…) esteja provido em lugares dos quadros das unidades de saúde (…), bem como o respectivo pessoal com contrato administrativo de provimento, transita para os hospitais E.P.E. que lhes sucedem, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico (…)»;
14.ª Os médicos no exercício de funções nas entidades públicas empresariais, que integram o SNS, que sejam detentores de relação de trabalho titulada por contrato individual de trabalho, integram a carreira médica;
15.ª Os médicos no exercício de funções nas EPE que integram o SNS, que sejam detentores de relação jurídica de emprego público titulada por contrato de trabalho em funções públicas (antigos funcionários públicos), integram a carreira especial médica;
16.ª Na diferença de regimes, subsistem ainda algumas especificidades inerentes a cada um deles, que não podem ser ignoradas, diferenças essas, de resto, reflectidas nas tabelas remuneratórias;
17.ª A CARREIRA MÉDICA, que a Autora integra, é regulada pelo Decreto-Lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto, que foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor no dia 01.01.2013 (cfr. artigo 8º);
18.ª Nos termos do disposto nos n.ºs 9 e 10 do artigo 5º deste diploma legal, «(a) aplicação dos valores das retribuições mínimas decorrentes do presente decreto-lei e dos instrumentos de regulamentação colectiva relativamente aos trabalhadores médicos sujeitos ao regime do Decreto-Lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto, com um período normal de trabalho de 40 horas [como é o caso da Autora] determina a alteração do conteúdo do contrato de trabalho em matéria de tempo de trabalho em conformidade com aquele decreto-lei com a redacção do presente diploma» (n.º 9) e «(s)em prejuízo do disposto no número anterior, mantêm-se o número de horas do período normal de trabalho afecto aos serviços de urgência, externa e interna, (…) fixados por contrato de trabalho quando superiores aos previstos na lei.» (n.º 10);
19.ª Autora e Réu celebraram contrato individual de trabalho por tempo indeterminado, em 01.12.2012, para o exercício de funções inerentes à categoria profissional de Assistente da carreira médica hospitalar de oftalmologia (ponto 3 dos factos provados, pág. 3 da sentença), tendo, como se alcança de fls. 37 dos autos (recibo de vencimento da Autora referente ao mês de Janeiro de 2013) passado a auferir o vencimento ilíquido de €2.746,24 (dois mil, setecentos e quarenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos) – (ponto 5, al. i) dos factos provados, pág. 4 da sentença), montante correspondente à primeira posição remuneratória da categoria de Assistente hospitalar da nova tabela remuneratória, facto que não se mostrou controvertido;
20.ª Assim, dúvidas não restam, que se aplica à Autora, todo o acervo legislativo que disciplinar a CARREIRA MÉDICA, aplicando-se-lhe igualmente, o Acordo Colectivo de Trabalho, outorgado, também pelo SIM, publicado no Boletim do Trabalho e do Emprego n.º 41, de 08.11.2009, o Acordo Colectivo de Trabalho, outorgado, também pelo SIM, publicado no Boletim do Trabalho e do Emprego n.º 7, de 22.02.2010 (integração em níveis de qualificação relativamente aos trabalhadores abrangidos pelo ACT antes referido), o Decreto-Lei n.º 62/79, de 30 de Março (revogado mas em vigor no que respeita a alguns aspectos do regime remuneratório), e bem assim, em tudo o que não se encontrar especialmente previsto nos diplomas antes referidos, o Código do Trabalho, em linha, de resto, com a previsão estatutária transcrita na conclusão 12.ª;
21.ª Dispõe o artigo 15º-A, do Decreto-Lei n.º 176/2009, de 4.08, aditado a este, pelo Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31.12 (evidentemente aplicável à Autora), que «(o) período normal de trabalho dos trabalhadores médicos é de 8 horas diárias e 40 horas semanais, organizadas de segunda a sexta-feira, sem prejuízo do disposto nos números seguintes» (n.º 1) e que «(o) regime de trabalho correspondente a 40 horas de trabalho implica a prestação de até 18 horas de trabalho semanal normal nos serviços de urgência, externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, a prestar até duas jornadas de trabalho, de duração não superior a 12 horas e com aferição do total de horas realizadas num período de referência de 8 semanas, sendo pago o trabalho extraordinário que exceda as 144 horas do período normal de trabalho, relativamente ao referido período de aferição» (n.º2);
22.ª Mais se dispõe nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo 15º-A, que «(s)em prejuízo da obrigação de prestar trabalho suplementar nos termos gerais, os trabalhadores médicos devem prestar, quando necessário, um período semanal único até 6 horas de trabalho extraordinário no serviço de urgência externa e interna (…)», sendo que «(o) cumprimento do período normal de trabalho nos serviços de urgência, externa e interna, (…) ocorre no período compreendido entre as zero horas de segunda-feira e as 24 horas de domingo (…)» sem prejuízo da aplicação do número de horas mínimo e período de aferição a alude a parte final do n.º 2 do mesmo artigo 15º-A;
23.ª Nos termos do n.º 9 do artigo 5º do DL n.º 266-D/2012, acima transcrito, o número de horas do período normal de trabalho afecto aos serviços de urgência, interna e externa, fixados por contrato de trabalho, apenas se mantém quando superiores aos previstos na lei, pelo que, em 01.01.2013, a Autora passou a estar abrangida pelo período mínimo de trabalho em SU, de 18 (dezoito) horas semanais, só podendo ser pago como trabalho extraordinário, o trabalho em SU, que ultrapasse as 72 horas, aferidas às 4 semanas;
24.ª Terá, de resto, sido esta a motivação do legislador para atribuir aos profissionais, abrangidos ope legis por estas alterações, mantendo o PNT semanal, uma valorização remuneratória não desprezível no montante de €627,43 (seiscentos e vinte e sete euros e quarenta e três cêntimos), numa altura em que, não podemos olvidar, a RMG se cifrava nos €485 (quatrocentos e oitenta e cinco euros), tendo, a partir de 01.10.2014, passado para €505 (quinhentos e cinco euros). (cfr. pontos 3 e 5, al. i) dos factos provados [págs. 3 e 4 da sentença recorrida]);
25.ª Por estarmos em presença de uma Instituição pública, financiada pelo Orçamento do Ministério da Saúde, a prestação de trabalho suplementar/extraordinário carece de ser previamente autorizado pelo Conselho de Administração, nos termos previstos na al. e) do artigo 7º dos Estatutos, que constam em anexo ao DL n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro, nos seguintes termos: «(c)ompete ao conselho de (…) em especial: e) Autorizar a realização de trabalho extraordinário e de prevenção dos trabalhadores do hospital E. P. E., independentemente do seu estatuto, bem como autorizar o respectivo pagamento; (…)»;
26.ª Esta alegação, - aparentemente interpretada pelo Mmo. Juiz a quo, como manifestação de abuso de poder e má-fé, insinuando-se que o Réu pretenderia retirar proveito ilícito do trabalho extraordinário realizado pela Autora -, significa que a Lei impõe um especial dever de controlo da prestação do trabalho suplementar, visto que esta modalidade de trabalho, para além de ser, pela sua própria natureza, extraordinário e, por conseguinte, excepcional, representa uma pesada parcela dos custos das Instituições com o pessoal médico, parcela que onera os impostos pagos pelos contribuintes, razão pela qual, o n.º 3 mesmo artigo 7º dos Estatutos dos Hospitais EPE, veda ao Conselho de Administração a delegação das competências previstas nas alíneas a) a j) do n.º 1;
27.ª Isto porque, a dimensão de Instituições como o Réu, não permite que os Conselhos de Administração verifiquem e controlem a prestação de trabalho de todos e cada um, das suas muitas centenas de trabalhadores;
28.ª Por outro lado, como é do conhecimento da Autora, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 37º do Regulamento de Organização do Tempo de Trabalho, Assiduidade e Pontualidade do Réu (que a Autora não pode ignorar porque se encontra muito publicitado na intranet da Instituição, à qual a A. tem amplo acesso, como qualquer outro trabalhador), «(c)onsidera‐se justificado e automaticamente autorizado pelo Conselho de Administração, o trabalho extraordinário/suplementar realizado pelo grupo do pessoal médico, que decorre da execução dos diferentes regimes de cobertura de Urgência, 24 horas por dia e 365 dias do ano, desde que os esquemas a praticar se encontrem aprovados pelo Conselho de Administração.»;
29.ª Isto é, o trabalho extraordinário/suplementar que se destine a dar cobertura à prestação de cuidados no Serviço de Urgência do Hospital do Espírito Santo de Évora, 24 horas por dia, 365 dias por ano, encontra-se automaticamente autorizado por via regulamentar, desde que as escalas se encontrem aprovadas pelo Conselho de Administração;
30.ª A prestação de trabalho extraordinário/suplementar em tarefas, actividades ou serviços, que não sejam o Serviço de Urgência, carece do estrito cumprimento do procedimento antes referido, a saber: - cálculo, pelo Director do Serviço respectivo, do número de horas estimadas para realização de trabalho suplementar; - submissão a proposta de realização do trabalho suplementar, pelo Director do Serviço, ao Conselho de Administração, para efeitos de prévia autorização da sua prestação; - após a realização, apuramento do concreto número de horas realizado para efeitos de pagamento, devidamente autorizado pelo Conselho de Administração;
31.ª O que se encontra, aliás, em cumprimento do disposto no artigo 22º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28.07., que dispõe que «(a) autorização de despesas fica sujeita à verificação dos seguintes requisitos: a) Conformidade legal; b) Regularidade financeira; c) Economia, eficiência e eficácia. 2 - Por conformidade legal entende-se a prévia existência de lei que autorize a despesa, dependendo a regularidade financeira da inscrição orçamental, correspondente cabimento e adequada classificação da despesa. 3 - Na autorização de despesas ter-se-á em vista a obtenção do máximo rendimento com o mínimo de dispêndio, tendo em conta a utilidade e prioridade da despesa e o acréscimo de produtividade daí decorrente»;
32.ª A tese apresentada pela Autora ao Tribunal foi a de que teria sido acordado, à data (Janeiro de 2013), entre o Director do Serviço de Oftalmologia (a testemunha BB) e o Conselho de Administração, que aquela prestaria apenas 12 horas por semana em serviço de urgência, ao invés das 18 horas legalmente previstas, e que as remanescentes 6 horas seriam prestadas em realização de consultas, de tal sorte que, todo o tempo de trabalho prestado para além do assim, alegadamente acordado, seria pago em regime de trabalho extraordinário/suplementar;
33.ª Acontece que, esse acordo nunca existiu e, por isso, a Autora não logrou prova-lo, ainda que o Director do Serviço, testemunha BB, tenha afirmado ter obtido um acordo verbal do Vogal …, em Janeiro de 2013, olvidando, todavia, que o gestor tinha cessado funções em meados de 2012, concluindo-se, pois, nesta parte, pela inverdade do depoimento desta testemunha;
34.ª Ora, não tendo havido acordo algum, o trabalho efectuado para além do horário, acordado entre a Autora e o Director do Serviço, não foi sujeito ao procedimento legal de autorização acima referido nem a despesa que lhe é inerente, foi previamente autorizada pelo Conselho de Administração, como legalmente se impõe;
35.ª Como explicou a testemunha …, Chefe de Divisão do Serviço de Gestão de Recursos Humanos do Réu, contrariamente ao que parece entender o Mmo. Juiz, não desconsiderou nem ignorou (ou ilicitamente se aproveitou) dos tempos de trabalho prestados para além do horário;
36.ª Procedeu ao seu cômputo em bolsa de compensação, para efeitos de cálculo da aferição das 144 horas de trabalho em SU, no período de referência legalmente previsto, de 8 semanas (no caso do Réu, em benefício dos trabalhadores, 72 horas, no período de referência de 4 semanas) e as remanescentes, a Autora vem gozando sempre que necessita, por acordo com o Director do Serviço que autoriza o seu gozo; Vejamos agora, o regime da CARREIRA ESPECIAL MÉDICA, para que se perceba e se conclua pela bondade do entendimento do Réu.
37.ª A CARREIRA ESPECIAL MÉDICA encontra-se regulada no Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de Agosto, também alterado pelo Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de Dezembro;
38.ª Este regime específico, «(…) aplica-se aos médicos integrados na carreira especial médica cuja relação jurídica de emprego público seja constituída por contrato de trabalho em funções públicas» (artigo 2º) que tenham exercido o direito de opção pelo regime de trabalho a que correspondem as 40 horas semanais;
39.ª Não é este o caso da Autora/Recorrida, como visto acima;
40.ª Os trabalhadores médicos que a 31.01.2013 se encontravam inseridos na carreira especial médica, mantiveram o direito à manutenção integral do regime jurídico que detinham, regime de trabalho de 35 horas semanais com ou sem exclusividade ou 42 horas semanais com exclusividade e estatuto remuneratório e de prestação de trabalho, onde se incluía, nomeadamente e para o que ora nos interessa, a prestação de 12 horas de trabalho em Serviço de Urgência, dentro do horário normal semanal;
41.ª Com efeito, similarmente à previsão legal da carreira médica, prevê-se no artigo 20º do DL 176/2009, na redacção que lhe foi dada pelo DL 266-D/2012, que o período normal de trabalho é de 40 horas semanais e também que «(o) regime de trabalho correspondente a 40 horas de trabalho implica a prestação de até 18 horas de trabalho semanal normal nos serviços de urgência, externa e interna, (…) a prestar até duas jornadas de trabalho, de duração não superior a 12 horas e com aferição do total de horas realizadas num período de referência de 8 semanas, sendo pago o trabalho extraordinário que exceda as 144 horas do período normal de trabalho, relativamente ao referido período de aferição.» (n.ºs 1 e 2);
42.ª Assim é, também para todos os médicos que integrem a carreira especial médica, a partir de 01.01.2013, data de entrada em vigor das alterações introduzidas pelo DL n.º 266- A/2012. (n.º 1 do artigo 5º do DL n.º 266-D/2012);
43.ª Dispõe, todavia, o artigo 5º (disposições transitórias), do Decreto-Lei n.º 266- D/2012, de 31 de Dezembro, que «(o)s médicos providos na carreira especial médica à data da entrada em vigor do presente decreto-lei regem-se pelo disposto no Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de Agosto, com as alterações do presente diploma, excepto no que respeita às seguintes matérias: a) Duração do período normal de trabalho semanal, incluindo as até 12 horas semanais a afectar à prestação de cuidados de saúde de urgência externa e interna, (…); b) Remuneração correspondente ao regime de trabalho; c) Faculdade de redução de uma hora em cada ano no horário de trabalho semanal, relativamente aos médicos com idade superior a 55 anos e que trabalhem em regime de dedicação exclusiva há, pelo menos, cinco anos, com horário de 42 horas por semana, até que o mesmo perfaça as 35 horas semanais; d) Regime de incompatibilidades; e) Dimensão da lista de utentes. (…)» (n.º 2);
44.ª Mais dispõem os n.ºs 5 e 6 do mesmo normativo legal (art.º 5º), que «(a) transição para o horário de 40 horas semanais referida nos números anteriores implica que o médico requerente renuncie ao exercício do direito de dispensa, em função da idade, de trabalho em serviço de urgência externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, ainda que já declarado, pelo período de 2 anos» e «(o) pessoal médico que requeira a passagem para o regime de 40 horas semanais transita para a nova estrutura remuneratória na mesma categoria e de acordo com o anexo I ao presente decreto-lei.»;
45.ª Como visto, apenas os trabalhadores médicos que se encontravam inseridos na CARREIRA ESPECIAL MÉDICA antes de 01.01.2013, que não tenham exercido o direito de opção pelo regime de trabalho a que corresponde 40 horas de trabalho semanal é que mantiveram o direito à manutenção das 12 horas de trabalho em serviço de urgência, dentro do PNT semanal, sendo abonado como extraordinário/suplementar, o trabalho prestado em SU, a partir da 13.ª hora;
46.ª Estas são, de resto, as orientações emitidas pelo organismo de tutela que, em esclarecimentos prestados a propósito do âmbito das alterações ao Decreto-Lei n.º 266- D/2012, de 31 de Dezembro, à questão de saber como se aferem as até 18 horas de trabalho normal semanal a afectar à componente urgência/emergência, responde a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) que, «(a) aferição do limite das 18 horas semanais referidas (…) resulta da média correspondente ao trabalho afecto a estas actividades num período de 8 semanas. Assim, por exemplo, um trabalhador médico pode realizar 24 horas de urgência numa semana, 12 horas na semana seguinte sem que dê lugar à prestação de trabalho extraordinário/suplementar. Deste modo, a aferição do total de horas realizadas em urgência é feita num período de referência de 8 semanas, sendo pago, como trabalho extraordinário, todo aquele que exceda as 144 horas do período normal de trabalho, relativamente ao referido período de aferição de 8 semanas.» (cfr. doc. n.º 30 juntos aos autos pelo Réu e que o Mmo. Juiz a quo desconsiderou e que se encontra disponível online, no site da ACSS, em https://www.acss.min-saude.pt/wp-content/uploads/2017/10/Faqscarreira-medica_vf.pdf);
47.ª Decidindo como decidiu, pretende o Mmo. Juiz a quo aplicar à Autora, que integra a CARREIRA MÉDICA, as normas legais excepcionais aplicáveis apenas aos trabalhadores que integram a CARREIRA ESPECIAL MÉDICA, que não tenham exercido o direito de opção ao que se referem os n.ºs 4 a 6 do artigo 5º do DL n.º 266-D/2012, de 31 de Dezembro;
48.ª Assim, não tendo a Autora logrado provar o acordo que alegou, sobre o qual fundamentou a causa de pedir nos presentes autos;
49.ª Não tendo o Director do Serviço submetido proposta no sentido pretendido, ao órgão de gestão, nos termos dos normativos imperativos acima transcritos;
50.ª Não tendo, pois, sido autorizada a prestação desse trabalho para além do horário, não pode o Réu ser condenado a proceder ao seu pagamento;
51.ª Tanto mais que, como esclarecido em sede de audiência de discussão e julgamento, pela testemunha …, as horas de trabalho realizadas pela Autora, para além do horário, entraram em bolsa de compensação, para efeitos do cômputo do período de aferição, tendo as remanescentes, permanecido em bolsa, gozando-as a Autora quando lhe apraz, por acordo com o Director do Serviço, a quem compete a gestão clínica do serviço;
52.ª Dito de outro modo, contrariamente ao que parece entender o Mmo. Juiz, o Réu não desconsiderou nem ignorou os tempos de trabalho prestados para além do PNT semanal. Procedeu ao seu cômputo em bolsa de compensação, para efeitos de cálculo da aferição das horas de trabalho em SU, no período de referência previsto, ou procedendo ao pagamento de todas as horas realizadas a partir das 13 horas de sábado até às 8 horas de segunda-feira e feriados como «horas incómodas», suplemento por trabalho em dia de descanso semanal, completar ou feriado, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 62/79, de 30 de Março, o que resulta dos recibos de vencimento juntos aos autos pela Autora (código 211);
53.ª Como se observa da análise da última pág. do doc. n.º 3, doc. n.º 4, doc. n.º 5, e última pág. do doc. n.º 6, todos juntos aos autos pelo Réu com a sua contestação, o formato de horário é acordado pelo médico com o Director do respectivo Serviço, a quem compete a gestão clínica do mesmo, o que se torna evidente se atentarmos nas datas em que cada um subscreve o documento; o horário é, posteriormente submetido à aprovação da Direcção Clínica;
54.ª Tudo como, de resto, sucede pacificamente, com outros trabalhadores do Réu;
55.ª E, este procedimento nada tem de ilícito. É, aliás, o procedimento conforme à legalidade, como – afigura-se-nos – fica demonstrado;
56.ª Decidindo como decidiu, o Mmo. Juiz a quo, violou, por errada interpretação, os normativos que aplicou, e, como fica exposto, os artigos 5º e 15º-A do Decreto-Lei n.º 176/2009, de 04.08., na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31.12., artigo 7º dos Estatutos do Réu, em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10.02., artigo 37º do Regulamento de organização do Tempo de trabalho, Assiduidade e Pontualidade do Réu e artigo 22º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28.07., que estabelece o regime da administração financeira do Estado;
57.ª Pretendendo aplicar à Autora, inserida na carreira médica, o regime aplicável aos médicos inseridos na carreira especial médica, que não exerceram o direito de opção pelo regime de trabalho a que correspondem 40 horas semanais, o Mmo. Juiz a quo incorre igualmente por este motivo em violação do artigo do artigo 5º, n.º 2 do DL n.º 266-D/2012, de 31.12.;
58.ª Razões pelas quais, deve a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que absolva o Réu/Recorrente, de todos os pedidos deduzidos pela Autora/Recorrida;
59.ª Refira-se ainda que, conforme resulta dos recibos de vencimento juntos aos autos pela Autora, todo o trabalho prestado em dia de descanso complementar (a partir das 13 horas), dia de descanso semanal e feriados, foi abonado nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 62/79, de 30 de Março, com o suplemento devido por trabalho nesses dias, o que, igualmente o Mmo. Juiz desconsiderou;
60.ª É que, ainda que se considerasse devido o pagamento de trabalho extraordinário/ suplementar nesses dias, sempre teria que se deduzido ao valor apurado, estes montantes pagos pelo Réu, o que não foi decidido.

Por seu turno, a A. apresentou as seguintes conclusões:
1. De acordo com os pontos 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20 dos factos provados da Sentença recorrida, foi considerado provado que, por determinação da Ré Apelante, a Autora prestou trabalho além das 40 horas do seu período normal de trabalho semanal e do seu horário nos anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, pelo que não tendo a Ré Apelante requerido a alteração da matéria de facto provada, deverá manter-se a decisão que ordenou o pagamento do trabalho suplementar em causa pela Ré Apelante.
2. O trabalho suplementar foi determinado através de escalas para prestação de trabalho em serviço de urgência, elaboradas e divulgadas pelo Serviço de Oftalmologia, serviço interno da Ré Apelante, seguidas por todos os trabalhadores médicos ali afectos, escalas estas que não foram impugnadas pela Ré.
3. A Ré Apelante refere, apenas agora em sede de Recurso, um Regulamento interno que no qual se considerará “justificado e automaticamente autorizado pelo Conselho de Administração, o trabalho extraordinário/suplementar realizado pelo grupo de pessoal médico, que decorre da execução dos diferentes regimes de cobertura de Urgência (…) desde que os esquemas a praticar se encontrem aprovados pelo Conselho de Administração.”
4. A Autora Apelante não tem conhecimento directo se “os esquemas” estão ou não aprovados, apenas tem conhecimento do que lhe é transmitido pela Direcção de Serviço, como sempre sucedeu durante anos a fio, pelo que é razoável concluir que contava que os “esquemas” tivessem aprovação, se não expressa, então tácita, e contava com o pagamento deste trabalho suplementar.
5. Nesta esteira, veja-se que à Autora Apelada, também trabalhadora, (i) foi transmitido um horário, repete-se, durante anos, que apenas prevê a realização de 12 horas em serviço de urgência dentro do seu período normal de trabalho semanal (“PNT”) de 40 horas, (ii) foram-lhe sendo sempre transmitidas escalas para prestação de trabalho em serviço de urgência depois de perfeito tal PNT semanal, e (iii) foi transmitido pelo Director de Serviço de Oftalmologia, que, face à necessidade de recuperação de consultas no Hospital, a Ré Apelante tinha mais necessidade de afectar o seu trabalho em período normal à realização destas e não ao serviço de urgência, conforme o próprio testemunhou nos presentes autos.
6. Conforme bem se argui na Sentença recorrida: “No que respeita, por sua vez, à existência de um acordo entre a Autora e a Ré de que a prestação de trabalho em serviço de urgência para além das 12 horas seriam pagas a título de trabalho suplementar (ponto D. dos factos provados) (…) os elementos dos autos sinalizam apenas que tal terá sido ´acordado´, não pela Autora, mas antes entre o superior hierárquico da Ré (a testemunha BB) e a Direcção Clínica / Conselho de Administração da R; conforme devidamente descrito pela testemunha em causa, em sede de audiência final, e sinalizado na missiva data de 24 de Fevereiro de 2020 (cf. Fls. 118 e 119), cujo teor não foi impugnado pelas partes.” (sublinhado e realces ora introduzidos).
7. A Autora Apelada não tem que ter conhecimento, - como não tem, nem tal se encontra provado -, dos procedimentos internos em que não intervém, nem lhe são oponíveis “as regras de atribuição e/ou limites de competências entre os órgãos internos da Ré” (cf. página 22 da Sentença).
8. Resulta ainda, e bem, da douta Sentença do tribunal a quo, a referência às regras de experiência comum e ao facto de ser “pouco verosímil que a Autora tivesse praticado, durante cerca de cinco meses, um horário de trabalho à revelia da Ré (…); horário esse que, ademais, surge expressamente inscrito no sistema informático de gestão de horários de trabalho da Ré.”
9. Não colhe a tese da Ré Apelante no sentido de que, encontrando-se a Autora integrada na carreira médica na categoria de assistente hospitalar da área de especialidade de Oftalmologia e vinculada ao regime de trabalho correspondente a 40 horas de trabalho semanais, que tal implicaria a prestação de até 18 horas de trabalho semanal normal nos serviços de urgência, externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, a prestar até duas jornadas de trabalho, de duração não superior a 12 horas e com aferição do total de horas realizadas num período de referência de 8 semanas, sendo pago o trabalho extraordinário que exceda as 144 horas do período normal de trabalho, relativamente ao referido período de aferição, pelo que nada tem a pagar (cfr. n.º 4 da cláusula 44.ª do Acordo Colectivo de Trabalho n.º 41/2009, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, em 8 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Acordo Colectivo de Trabalho n.º 1/2013, publicado do mesmo local em 8 de Janeiro, cujo Anexo II (posições remuneratórias) foi rectificado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 23/2013, publicado em 22 de Junho, alterado e republicado pelo Acordo Colectivo de Trabalho, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 43/2015, em 22 de Novembro, alterado pelo Acordo Colectivo de Trabalho, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 30/2016, em 15 de Agosto e alterado nos termos que constam do Boletim do Trabalho e Emprego n.º 15/2019, em 22 de Abril, adiante “ACT”, regime também previsto no art.15.º-A do Decreto-Lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto invocado pela Ré).
10. É verdade que a Autora poderia ter que prestar de até 18 horas de trabalho semanal normal em serviço de urgência, externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, em cada semana, pelo que não está previsto um “período mínimo de trabalho em SU, de 18 (dezoito) horas semanais”, ao contrário do que conclui a Ré Apelante na 23.ª Conclusão do Recurso, pelo que, assim e por determinação da Ré Apelante, a Autora Apelada não prestou 18 horas semanais de trabalho em serviço de urgência dentro do horário de 40 horas, mas apenas 12 horas semanais em serviço de urgência, sendo as restantes 6 horas, que podiam ser afectas ao serviço de urgência dentro do respectivo horário, imputadas à realização de consultas por interesse do Serviço de Oftalmologia da Ré.
11. O que foi corroborado pelo Director de Serviço de Oftalmologia da Ré, que bem explicou que o determinado foi que a prestação de trabalho em serviço de urgência além das 12 horas semanais dentro do horário, sê-lo-ia a título de trabalho suplementar, devendo ser pago enquanto tal (cfr. Docs. 19 e 20 da petição inicial).
12. Conforme bem decidido na Sentença recorrida: “Ora, em face da factualidade acima considerada, parece ser de concluir não ser aplicável à situação em pareço o disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto, já que a totalidade dos montantes peticionados pela Autora nos presentes autos dizem respeito à prestação de trabalho em serviço de urgência realizado fora do período normal de trabalho fixado pela Ré à Autora. Destarte, estando em causa a prestação de trabalho fora do horário de trabalho da Autora, deve a mesma ser remunerada pela respectiva realização, enquanto trabalho suplementar (cf. Artigo 226.º, n.º 1 do Código do Trabalho).” (sublinhado e realces ora introduzidos).
13. Da aplicação da norma constante do n.º 4 da cláusula 44.ª do ACT ou do art. 15.º-A referido supra, não podia, nem pode resultar na violação de uma norma de ordem pública imperativa, que neste caso determina que o período normal de trabalho semanal é de 40 horas, a qual não pode ser ultrapassada ou beliscada, sob pena de os trabalhadores se encontrarem obrigados a prestar trabalho não remunerado, com o que a Ré Apelante aparentemente se conforma com facilidade.
14. Incorre, assim, em erro a Ré Apelante quando refere que o tribunal a quo tentou aplicar os antigos regimes das 35 horas e 42 horas semanais, violando o art. 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de Dezembro, trata-se, sim, de aplicar o regime correctamente e não prejudicar o trabalhador para benefício da entidade empregadora que aceitou, de bom grado, trabalho além das 40 horas semanais sem proceder ao pagamento enquanto trabalho suplementar.
15. Conforme bem referido na douta Sentença, o que é relevante é que ficou provado que “a Ré determinou à Autora, quer a realização de um determinado horário, quer a realização de ´bancos´ de urgência para além das 30 ou 40 horas semanais acordadas”, pelo que se a Ré Apelante pretendia beneficiar de um facto impeditivo do direito da Autora, cabia-lhe a ela o ónus da prova de que o conselho de administração da Ré não teria autorizado tal prestação ou os horários e escalas praticadas durante anos, o que não sucedeu.
16. Como claramente invocado na douta Sentença: De resto, a entender-se de outro modo, permitir-se-ia que a Ré lograsse impor aos seus trabalhadores a prestação de inúmeras horas de trabalho para lá do respectivo horário de trabalho – através da fixação dos respectivos horários de trabalho e escalas de urgência -, sem que os mesmos fossem devidamente remunerados pela prestação do mesmo, apenas e tão-só por inexistir um acto formal de autorização por parte do conselho de administração da Ré.” (sublinhado e realce ora introduzido).
17. E, mais, decide o tribunal a quo que: “entende-se não figurar lícito à Ré invocar a eventual falta de autorização acima referenciada, por constituir a mesma uma actuação de abuso de direito e violadora dos limites impostos pela boa-fé (cf. Artigo 344.º do Código Civil). O que resulta acentuado, na situação em apreço, pela circunstância já anteriormente descrita de estarmos perante uma situação prolongada no tempo e determinada (através da elaboração dos horários de trabalho e das escalas de serviço de urgência) pelos serviços da própria Ré).” (realce introduzido nesta oportunidade).
18. Por fim, e embora não tenha sido matéria vertida nos autos, sempre se refere é verdade que este regime das 40 horas semanais previu uma alteração no montante da remuneração mensal, o que dava a oportunidade do empregador, querendo, alocar os trabalhadores médicos 18 horas semanais ao serviço de urgência, o que neste caso não fez, pelo que tal argumento apenas serve para introduzir ruído à boa decisão da causa.
19. A propósito dos suplementos remuneratórios previstos no Decreto-Lei n.º 62/79, de 30 de Março esclarece-se que têm que ser objecto de pagamento, seja o trabalho prestado dentro ou fora do horário, ou seja, como trabalho normal ou suplementar (cfr. arts. 5.º, 6.º e 7.º do referido diploma).
20. A Ré Apelante refere, pela primeira vez nos presentes autos, que terá abonado tais suplementos em diversos dias, que, além do mais, não identifica cabalmente, pelo que é óbvio que a douta Sentença não tinha que debruçar-se sobre o tema, devendo a Ré Apelante ter invocado tal eventual excepção de cumprimento em tempo útil, o que não fez.
21. O que também sucede com a suposta existência de uma bolsa de compensação, cuja configuração jurídica nem sequer se alcança, ou o alegado gozo de horas remanescentes do período de referência que nunca foi abordado anteriormente e, portanto, nem sequer constam dos autos, não tendo, por natureza, sido objecto de prova quanto mais sido consideradas provadas.
22. Por tudo, veja-se que nos termos do art. 573.º do CPC, aplicável por remissão do n.º 2 do art. 49.º do CPT, “toda a defesa deve ser deduzida na contestação”, sendo que, depois desta, só podem ser deduzidas excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, o que não sucede no caso concreto, não dando oportunidade de defesa e produção de prova à Autora, pelo que, não se tratando, ademais, de matéria que o tribunal deva conhecer oficiosamente considerando que está em causa uma excepção peremptória e não dilatória, não pode a Ré Apelante, neste momento, tentar corrigir a ausência de invocação de excepção peremptória que devia ter adereçado logo em sede de Contestação, nem a douta Sentença recorrida pode ser anulada em razão disso.
23. Por tudo o exposto, não deverá o recurso interposto pela Ré Apelante obter qualquer provimento.
24. Vejamos o RECURSO SUBORDINADO.
25. No ponto 8 dos factos provados na Sentença recorrida conclui-se que: “Entre 2013 e 23 de Março de 2014, a pedido da Autora, a Ré concedeu à mesma duas horas diárias a título de dispensa para amamentação, durante o horário de trabalho acima referenciado.”
26. O horário de trabalho em causa é o descrito no ponto 7 dos factos provados e que prevê a realização do total de 40 horas semanais a prestar entre segunda-feira e sexta-feira.
27. O tribunal a quo entendeu dar como não provados os factos descritos na alínea E) da matéria de facto não provada, ou seja, a prestação de trabalho em serviço de urgência, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho por determinação da Ré, aqui Recorrida subordinada, nos dias ali indicados, uma vez que, e não obstante considere que a prestação de trabalho foi determinado pela Ré (escalas) e que o mesmo foi prestado pela Autora (registos de tempos de trabalho): “(…) não é possível concluir no sentido de que as horas de trabalho em causa tenham sido realizadas após o cumprimento do horário de trabalho por parte da Autora, já que resulta dos elementos probatórios acima considerados que a mesma, durante todo o período em apreço, não trabalhou duas horas por dia, no âmbito da dispensa para amamentação por si requerida. (…) horário esse que, conforme se disse, não era integralmente cumprido pela mesma durante o período em apreço.” – realces introduzidos nesta oportunidade.
28. O regime da dispensa por efeito de amamentação dita o contrário, sendo que o trabalho suplementar em causa foi sempre prestado após o horário fixado e após o cumprimento do PNT semanal, e sempre realizado sempre no final da semana e com início em sábados e domingos, ou seja, fora e após os dias em que se considerou a dispensa de duas horas para amamentação.
29. Nos termos do n.º 2 do art. 65.º do Código do Trabalho: “A dispensa para consulta de PMA ou pré-natal, amamentação ou aleitação não determina perda de quaisquer direitos e é considerada como prestação efectiva de trabalho.” – sublinhados e realce ora introduzidos.
30. Logo, as duas horas diárias de ausência ao abrigo e por efeito da aplicação deste direito parental, são consideradas como prestação efectiva de trabalho, mantendo-se, aliás, o direito à respectiva remuneração.
31. Acresce que é perfeitamente possível que haja dispensa de amamentação e a trabalhadora preste, ainda assim, trabalho suplementar, trabalho de que o empregador beneficiou.
32. Se a trabalhadora cumpriu o seu horário e PNT semanal, atento que a dispensa configura prestação efectiva de trabalho, e, depois, cumpriu trabalho aos sábados e domingos, deverá este ser pago como trabalho suplementar na esteira do decidido quanto aos restantes dias.
33. É manifesto que a Autora trabalhadora, aqui Recorrente subordinada, prestou tal trabalho suplementar, por determinação da Ré, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e PNT semanal, devendo os factos vertidos na alínea E) dos factos não provados ser considerados, sim, no âmbito dos factos provados da Sentença, nos termos seguintes: “Nos anos de 2013 e 2014, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
i) 22 de Setembro de 2013 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
ii) 26 de Outubro de 2013 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
iii) 1 de Dezembro de 2013 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
iv) 12 de Janeiro de 2014 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
v) 22 de Março de 2014 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).”
34. Na sequência e na esteira do argumentário já apreciado supra e que consta da douta Sentença, deve a Ré Recorrida subordinada ser igualmente condenada no pagamento destas horas de trabalho suplementar, acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos, nos termos peticionados na petição inicial.
35. Foi ainda considerado que, nos dias 27.8.2016, 1.2.2020 e 1.3.2020, o trabalho prestado pela Autora Recorrente subordinada foi-o em regime de prevenção e não em presença física (o que implica pagamento pelo valor total e não pela metade), tendo a decisão sido sustentada nas escalas juntas aos autos que referiam trabalho em prevenção, quanto aos dias “27 de Agosto de 2016 (cf. fls. 98), de 1 de Fevereiro de 2020 (cf. fls. 87 verso) e 1 de Março de 2020 (cf. fls. 87)”.
36. A questão é que estas escalas têm, por vezes, gralhas/incorrecções, acontecendo que trabalho previsto em regime de prevenção seja, de facto e na realidade dos factos, prestado em presença física.
37. Nota-se ainda que no dia 24 de Março de 2019, e tal como indicado na petição inicial, a Autora Recorrente subordinada prestou trabalho em serviço de urgência em regime de prevenção, pelo que este dia devia ter sido considerado enquanto tal (cfr. Página 9 do Doc. 17 junto com a petição inicial, adiante “pi”, em que está assinalado que prestou trabalho em regime de prevenção).
38. Ora, nos dias espelhados na alínea F) dos factos não provados e indicados na transcrição da douta Sentença supra, a Autora Recorrente subordinada prestou trabalho em serviço de urgência em presença física, de acordo com as folhas de ponto manuais e/ou registo sisqual essa presença física, respectivamente: 27.8.2016 – cfr. páginas 18 e 19 do documento n.º 14 junto com a pi; 1.2.2020 – cfr. páginas 4, 5 e 6 do documento n.º 18 junto com a pi; 1.3.2020 – cfr. páginas 7 e 9 do documento n.º 18 junto com a pi.
39. Veja-se que, quando os trabalhadores médicos prestam serviço em prevenção tal fica assinalado no quadro respectivo, o que não sucede quando o trabalho é prestado em regime de presença física, a título de exemplo, veja-se o registo de assiduidade relativo ao mês de Abril de 2019 espelhado na página 12 do Doc. 17 junto com a pi.
40. Assim, e face a alterações que são realizadas após a comunicação das escalas, a verdade é que a Autora Recorrente subordinada, por determinação da Ré e após o cumprimento do seu horário de trabalho, nos dias 27.8.2016, 1.2.2020 e 1.3.2020 prestou trabalho em serviço de urgência em presença física, factos que devem constar dos factos provados na Sentença, alterando-se a alínea F) dos factos não provados em consonância e a Ré Recorrida subordinada ser igualmente condenada no pagamento destas horas de trabalho suplementar, acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos, nos termos peticionados na petição inicial.
41. Por fim, quanto à petição de condenação em juros de mora legais, o tribunal condenou a Ré, aqui Recorrida subordinada, ao pagamento de juros à taxa legal de 4%, sobre os montantes remuneratórios em dívida, apenas contados desde a data da propositura da presente acção até efectivo e integral pagamento, nos termos dos “artigos. 804.º, 805.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), 806.º e 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 08/04”.
42. No entanto, a Autora Recorrente subordinada não só contabilizou, como peticionou o pagamento de juros de mora vencidos à taxa legal de 4%, considerando cada período mensal de pagamento da remuneração, e calculados desde o primeiro dia do mês seguinte até ao dia 25 de Maio de 2021, data de entrada da presente acção (conforme cálculos realizados no art. 61.º da pi).
43. O que se estranha é que o tribunal a quo indicou na Sentença os artigos correctos, mas depois, salvo o devido respeito, aplicou, consubstanciou, as normas aos factos de forma incorrecta.
44. In casu, o momento da constituição em mora da Ré, aqui Recorrida subordinada, é no final de cada mês da prestação de trabalho e não apenas quando interpelada para o pagamento, em conformidade com a al. a) do n.º 2 do art. 805.º do Código Civil e art. 278.º do Código do Trabalho, tendo sido estas normas violadas.
45. Pelo que os juros de mora relativos ao pagamento de trabalho suplementar têm que ser calculados de acordo com os respectivos períodos de vencimento mensais, que foram identificados e calculados, sob pena de estar a premiar-se o empregador, que não pagou o trabalho suplementar em tempo e, ainda assim, paga o mesmo montante anos depois da constituição da sua obrigação.
46. A manter-se a douta Sentença neste tema, o trabalhador é que assumirá o risco de não reclamar o respectivo pagamento em tribunal, o que é desproporcional e manifestamente injusto, especialmente considerando que a lei confere ao trabalhador a salvaguarda de não prescrição dos créditos laborais, senão 1 ano após a cessação do seu contrato de trabalho, principalmente para garantir que não é alvo de pressões no âmbito da relação laboral em execução.
47. A Sentença Recorrida aplicou de forma incorrecta o direito, em particular o disposto na al. a) do n.º 2 do art. 805.º do Código Civil e art. 278.º do Código do Trabalho, pelo que a mesma deve ser revogada nessa parte, devendo a Ré Recorrida subordinada ser condenada no pagamento dos juros de mora a taxa legal de 4% nos termos peticionados e desde a data de vencimento efectivo de cada montante, o que se requer.

A Ré não respondeu ao recurso subordinado.
Nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público formulou parecer no sentido de ser mantida a sentença recorrida, ao qual ambas as partes responderam.
Cumpre decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Nas suas alegações de recurso subordinado, a A. impugna a decisão tomada quanto às alíneas E) e F) do elenco de factos não provados, alertando que existe prova documental da realização de trabalho suplementar nos dias ali referidos.
Na alínea E), a sentença declarou não provado o seguinte:
“E. Nos anos de 2013 e 2014, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
i) 22 de Setembro de 2013 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
ii) 26 de Outubro de 2013 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
iii) 1 de Dezembro de 2013 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
iv) 12 de Janeiro de 2014 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
v) 22 de Março de 2014 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).”
Nestas datas, a A. gozava de duas horas diárias de dispensa para amamentação, durante o seu horário de trabalho – ponto 8 dos factos provados.
A sentença entendeu dar aquela alínea E) como não provada, sob a seguinte argumentação:
“Quanto à prestação de trabalho pela Autora, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho, em diversas datas balizadas entre 2013 e Março de 2014 (ponto E. dos factos não provados), começará por se notar que a quase totalidade das datas em surgem efectivamente referenciadas nas escalas de urgência relativas aos períodos em causa – mais concretamente, quanto aos dias 22 de Setembro de 2013 (cf. fls. 120), 26 de Outubro de 2013(cf. fls. 127 verso), 1 de Dezembro de 2013 (cf. fls. 121), 12 de Janeiro de 2014 (cf. fls. 121) e 22 de Março de 2014 (cf. fls. 127) –, encontrando igualmente respaldo nos registos de tempo de trabalho realizados pela Autora.
O certo é, no entanto, que não é possível concluir no sentido de que as horas de trabalho em causa tenham sido realizadas após o cumprimento do horário de trabalho por parte da Autora, já que resulta dos elementos probatórios acima considerados que a mesma, durante todo o período em apreço, não trabalhou duas horas por dia, no âmbito da dispensa para amamentação por si requerida. Pelo exposto, inexistem elementos nos autos que suportem que os períodos de trabalho acima considerados tenham sido realizados após a Autora ter cumprido com os correspondentes horário e período normal de trabalho, que havia sido previamente fixado pela Ré; horário esse que, conforme se disse, não era integralmente cumprido pela mesma durante o período em apreço.”
Como reconhece a sentença, as escalas de urgência relativas àquelas datas confirmam a efectiva prestação de trabalho. Porém, a dispensa para amamentação, que a A. gozou nessa altura, constitui prestação efectiva de trabalho – art. 65.º n.º 2 do Código do Trabalho – pelo que a sentença não deveria concluir que o gozo daquele direito implicou qualquer desconto no período normal de trabalho prestado pela A., pelo que esta parte da impugnação fáctica deve proceder.
Na alínea F), a sentença recorrida declarou não provado que: “Após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias: (…) 27 de Agosto de 2016 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas); (…) 1 de Fevereiro de 2020 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas); 1 de Março de 2020 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).”
Para o efeito, a sentença considerou “a circunstância de constar expressamente indicado nas ‘escalas de urgência’ dos meses em causa que o trabalho a prestar pela Autora nos dias 27 de Agosto de 2016 (cf. fls. 98), 1 de Fevereiro de 2020 (cf. fls. 87 verso) e 1 de Março de 2020 (cf. fls. 87) seria em regime de ‘prevenção’; e já não, conforme alegado pela mesma, em regime de presença física. Destarte, em face do exposto, não é possível concluir que a Ré tenha determinado a Autora a prestar actividade em regime de presença física nos dias em apreço; o que justificou que a matéria em causa fosse dada como não provada pelo tribunal.”
No entanto, como bem aponta a A., as folhas de ponto revelam que nessas datas o trabalho no serviço de urgência foi prestado em presença física, porque as necessidades de serviço assim o determinaram: vide páginas 18 e 19 do documento n.º 14 junto com a petição inicial, e páginas 4 a 9 do documento n.º 18 junto com a mesma peça.
E porque tais documentos não se mostram impugnados e revelam a efectiva prestação de trabalho nessas datas, também esta parte da impugnação deve proceder.
Procedendo a impugnação fáctica deduzida pela A., determina-se:
a) a eliminação da alínea E) do elenco de factos não provados, passando todo o seu teor para o elenco de factos provados, agora sob o novo ponto n.º 21;
b) o aditamento de outro ponto, com o n.º 22, ao elenco de factos provados, com o seguinte teor:
22. Após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 27 de Agosto de 2016 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 1 de Fevereiro de 2020 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 1 de Março de 2020 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).

A matéria de facto provada fica assim estabelecida:
1. A Ré é uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial, integrada na rede de prestação de cuidados do Serviço Nacional de Saúde.
2. A Autora é sindicalizada no SIM – Sindicato Independente dos Médicos, desde 24 de Setembro de 2020.
3. Entre a Autora e a Ré foi celebrado escrito denominado de “contrato individual de trabalho sem termo”, datado de 1 de Dezembro de 2012, mediante o qual declararam que a segunda admitia a primeira ao seu serviço para exercer as funções inerentes à categoria de assistente hospitalar, na área de oftalmologia, na sede da Ré e a partir da data acima referenciada, mediante o pagamento da quantia mensal de € 2.118,81, a título de retribuição, e da quantia diária € 4,27, a título de subsídio de alimentação, por cada dia de trabalho efectivo.
4. Na cláusula 4.ª do escrito denominado de “contrato individual de trabalho sem termo” acima referido consta que:
«1- O segundo outorgante [ora Autora] fica sujeito ao período normal de trabalho de oito horas diárias e quarenta horas semanais, organizadas de segunda a sexta-feira, de acordo com o disposto na cláusula 34.ª do ACT [Acordo colectivo de trabalho publicado no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 41, de 08-11-2009].
2- A organização e racionalização do tempo de trabalho, deve ser definido, em obediência ao disposto nas cláusulas 35.ª a 43.ª do ACT.
3- O trabalho em serviço de urgência, externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, é organizado de segunda-feira a domingo observando as especificidades constantes das cláusulas 44.ª e 45.ª do ACT».
5. Entre os anos de 2013 e 2019, a retribuição base da Autora correspondeu à primeira posição remuneratória da categoria de assistente hospitalar, fixando-se nos seguintes montantes:
a. Entre Janeiro 2013 e Abril de 2020: € 2.746,24;
b. A partir de Maio de 2020: € 2.754,48.
6. Entre 2013 e 2016, a retribuição da Autora foi sujeita às reduções/cortes previstos nos sucessivas Leis do Orçamento do Estado.
(Quanto aos horários de trabalho de Autora)
7. Entre 1 de Janeiro de 2013 e Outubro/Novembro de 2014, por indicação da Ré, a Autora passou a cumprir o seguinte horário:
- 2.ª-feira: das 08h00m às 13h00m / das 13h30m às 16h30m (8 horas);
- 3.ª-feira: das 08h00m às 13h00m / das 13h30m às 15h30m (7 horas);
- 4.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas);
- 5.ª-feira: das 08h00m às 14h00m / das 14h30m às 15h30m (7 horas);
- 6.ª-feira: das 08h00m às 20h00m (12 horas), em serviço de urgência.
8. Entre 2013 e 23 de Março de 2014, a pedido da Autora, a Ré concedeu à mesma duas horas diárias a título de dispensa para amamentação, durante o horário de trabalho acima referenciado.
9. Entre Novembro/Dezembro de 2014 e Março de 2015, por indicação da Ré, a Autora passou a cumprir o seguinte horário:
- 2.ª-feira: das 08h00m às 17h00m (9 horas);
- 3.ª-feira: das 08h00m às 13h00m (5horas);
- 4.ª-feira: das 08h00m às 16h00m (8 horas);
- 5.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas);
- 6.ª-feira: das 08h00m às 20h00m (12 horas), em serviço de urgência.
10. Entre 1 de Abril de 2015 e 6 de Novembro de 2016, por indicação da Ré, a Autora passou a cumprir o seguinte horário:
- 2.ª-feira: das 08h00m às 14h00m / das 14h30m às 17h00m (08h30m);
- 3.ª-feira: das 08h00m às 13h00m (5 horas);
- 4.ª-feira: das 08h00m às 13h00m / 13h30m às 17h00m (08h30m);
- 5.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas);
- 6.ª-feira: das 08h00m às 20h00m (12 horas), em serviço de urgência.
11. Entre 7 de Novembro de 2016 e 30 de Setembro de 2018, por indicação da Ré, a Autora passou a cumprir o seguinte horário:
- 2.ª-feira: das 08h00m às 13h30m / das 14h30m às 17h00m (08h30m);
- 3.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas);
- 4.ª-feira: das 08h00m às 13h00m / 13h30m às 16h30m (08h00m);
- 5.ª-feira: das 08h00m às 20h00m (12 horas), em serviço de urgência;
- 6.ª-feira: das 08h00m às 13h30m (05h30m).
12. Em 1 de Outubro de 2018, Autora e Ré acordaram na redução do período normal de trabalho da primeira para 30 horas semanais.
13. Entre 1 de Outubro de 2018 e até ao final do ano de 2020, por indicação da Ré, a Autora passou a cumprir o seguinte horário:
- 3.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas);
- 4.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas);
- 5.ª-feira: das 08h00m às 20h00m (12 horas), em serviço de urgência;
- 6.ª-feira: das 08h00m às 14h00m (6 horas).
(Quanto ao trabalho prestado pela Autora fora do respectivo horário de trabalho)
14. No ano de 2014, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 18 de Abril (sexta-feira / feriado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 27 de Abril (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 29 de Junho (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
d. 27 de Julho (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
e. 2 de Agosto (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
f. 15 de Agosto (sexta-feira / feriado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
g. 28 de Setembro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
h. 1 de Novembro (sábado / feriado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
i. 14 de Dezembro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).
15. No ano de 2015, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 17 de Janeiro (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 22 de Fevereiro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 4 de Abril (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
d. 10 de Maio (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
e. 6 de Junho (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
f. 12 de Julho (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).
16. No ano de 2016, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 25 de Setembro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 29 de Outubro (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 27 de Novembro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
d. 23 de Dezembro (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m).
17. No ano de 2017, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 28 de Janeiro (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 3 de Fevereiro (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
c. 26 de Fevereiro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
d. 8 de Abril (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
e. 30 de Abril (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
f. 19 de Maio (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
g. 4 de Junho (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
h. 15 de Junho (quinta-feira / feriado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
i. 23 de Junho (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
j. 2 de Julho (domingo: das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
k. 14 de Julho (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
l. 25 de Agosto (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
m. 10 de Setembro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
n. 29 de Setembro (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
o. 3 de Novembro (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
p. 5 de Novembro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
18. No ano de 2018, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 14 de Janeiro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 10 de Fevereiro (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 16 de Fevereiro (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
d. 9 de Março (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
e. 18 de Março (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
f. 28 de Abril (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
g. 6 de Maio (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
h. 15 de Junho (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
i. 16 de Junho (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
j. 22 de Julho (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
k. 27 de Julho (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
l. 31 de Julho (terça-feira): das 14h00m às 20h00m, em presença física (6 horas);
m. 26 de Agosto (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
n. 22 de Setembro (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
o. 28 de Setembro (sexta-feira): das 13h30m às 20h00m, em presença física (06h30m);
p. 28 de Outubro (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
q. 16 de Novembro (sexta-feira): das 14h00m às 20h00m, em presença física (6 horas);
r. 15 de Dezembro de 2018 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em prevenção (12 horas).
19. No ano de 2019 após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 5 de Janeiro de 2019 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em prevenção (12 horas);
b. 11 de Janeiro (sexta-feira): das 14h00m às 20h00m, em presença física (6 horas);
c. 3 de Fevereiro de 2019(domingo): das 08h00m às 20h00m, em prevenção (12 horas);
d. 30 de Agosto (sexta-feira): das 14h00m às 20h00m, em presença física (6 horas);
e. 5 de Outubro (sábado / feriado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
f. 18 de Outubro (sexta-feira): das 14h00m às 20h00m, em presença física (6 horas).
20. No ano de 2020, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência no dia 14 de Fevereiro (sexta-feira): das 14h00m às 20h00m, em presença física (6 horas).
21. Nos anos de 2013 e 2014, após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 22 de Setembro de 2013 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 26 de Outubro de 2013 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 1 de Dezembro de 2013 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
d. 12 de Janeiro de 2014 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
e. 22 de Março de 2014 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).
22. Após o cumprimento do respectivo horário de trabalho e por determinação da Ré, a Autora prestou trabalho em serviço de urgência nos seguintes dias:
a. 27 de Agosto de 2016 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
b. 1 de Fevereiro de 2020 (sábado): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas);
c. 1 de Março de 2020 (domingo): das 08h00m às 20h00m, em presença física (12 horas).

APLICANDO O DIREITO
Da prestação de trabalho suplementar por médica trabalhadora em entidade prestadora de cuidados de saúde integrada no Serviço Nacional de Saúde
A sentença recorrida julgou procedente o pedido, utilizando a seguinte fundamentação:
«O que cumpre determinar na situação em apreço é, destarte, se o trabalho prestado pela Autora para lá do respectivo horário de trabalho deve, ou não, ser retribuído pela Ré a título de trabalho suplementar.
De acordo com a Ré, inexiste qualquer obrigação no pagamento das horas de trabalho acima descritas, na medida em que, quer o horário de trabalho praticado pela Autora no período em apreço, quer a prestação de trabalho em serviço de urgência para além do mesmo, não foram autorizados pelo respectivo conselho de administração.
A posição defendida pela Ré estriba-se, pois, nos poderes que se encontram legal e formalmente cometidos ao respectivo Conselho de Administração, enjeitando a mesma qualquer responsabilidade pelo pagamento de trabalho prestado pela Autora para lá do referido horário de trabalho, por não ter sido o mesmo – segundo alega –, determinado pelo referido órgão executivo.
Dispõe, para o efeito, o artigo 7.º, n.º 1 dos Estatutos dos Hospitais, Centros Hospitalares e Institutos Portugueses de Oncologia, E.P.E, anexo ao Decreto-lei n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro, que «compete ao conselho de administração garantir o cumprimento dos objectivos básicos, bem como o exercício de todos os poderes de gestão que não estejam reservados a outros órgãos, e em especial: (…) e) autorizar a realização de trabalho extraordinário e de prevenção dos trabalhadores do hospital E. P. E., independentemente do seu estatuto, bem como autorizar o respectivo pagamento».
E acrescenta o n.º 3 do referido normativo que «o conselho de administração pode delegar as suas competências nos seus membros ou demais pessoal de direcção e chefia, incluindo os directores dos Centros de Responsabilidade Integrada, com excepção das previstas nas alíneas a) a j) do n.º 1, definindo em acta os limites e condições do seu exercício».
No caso dos autos, começará por se notar não ter resultado provado que o conselho de administração da Ré não autorizou a prestação de trabalho extraordinário por parte da Autora e/ou a fixação do respectivo horário de trabalho e escalas de urgência (cf. pontos A. e C. da matéria de facto). Sendo de assinalar que, tratando-se de um facto impeditivo do direito invocado pela Autora, incumbia especificamente sobre a própria Ré o ónus de prova relativamente à matéria em apreço (cf. artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil).
O que resulta da matéria de facto provada é, ao invés, que a Ré determinou à Autora, quer a realização de um determinado horário, quer a realização de ‘bancos’ de urgência para além das 30 ou 40 horas semanais acordadas; o que fez, aliás, de acordo com as respectivas competências (cf. cláusula 35.º do acordo colectivo celebrado entre a o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE e outros e a Federação Nacional dos Médicos – FNAM e outro, publicado com texto consolidado e alterações, no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 43, de 22 de Novembro de 2015).
Ora, se bem se compreende, a fixação dos horários de trabalho em apreço e a determinação por parte da Ré no sentido de que a Autora realizasse inúmeros bancos em serviço de urgência para lá do referido horário, durante vários anos, pressupõe que se reconheça, no mínimo, a existência de uma autorização e/ou ratificação tácita por parte do respectivo conselho de administração quanto à realização por parte da Autora de trabalho suplementar.
De resto, e a entender-se de outro modo, permitir-se-ia que a Ré lograsse impor aos seus trabalhadores a prestação de inúmeras horas de trabalho para lá do respectivo horário de trabalho – através da fixação dos respectivos horários de trabalho e escalas de urgência –,sem que os mesmos fossem devidamente remunerados pela prestação do mesmo, apenas e tão-só por inexistir um acto formal de autorização por parte do conselho de administração da Ré.
Ademais, entende-se não se afigurar lícito à Ré invocar a eventual falta de autorização acima referenciada, por constituir a mesma uma actuação em abuso de direito e violadora dos limites impostos pela boa-fé (cf. artigo 344.º do Código Civil). O que resulta acentuado, na situação em apreço, pela circunstância já anteriormente descrita de estarmos perante uma situação prolongada no tempo e determinada (através da elaboração dos horários de trabalho e das escalas de serviço de urgência) pelos serviços da própria Ré.
A este propósito, importará distinguir dois tipos de situações: aquela em que uma trabalhadora, por sua iniciativa, decida realizar mais horas de trabalho, vindo depois a peticionar o pagamento das mesmas a título de trabalho suplementar; e, por outro lado, aqueloutra em que a mesma trabalhadora – como sucede no caso em apreço –, recebe instruções para prestar o trabalho em causa e, em cumprimento das indicações recebidas por parte da sua entidade empregadora, efectivamente o realiza.
Ora, em casos deste jaez, parece resultar manifesto que a Autora deve ser retribuída por todo o trabalho prestado (cf. artigo 268.º, n.º 2 do Código do Trabalho), não lhe sendo oponíveis as regras de atribuição e/ou limites de competências entre os órgãos internos da Ré; regras essas cuja violação, pese embora se afigure susceptível de desencadear a eventual responsabilização (seja disciplinar, seja criminal) dos respectivos intervenientes, não poderá ser oponível à Autora/trabalhador subordinada, sob pena de afectação do núcleo essencial do respectivo direito à retribuição (cf. artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa).
Ainda de acordo com a Ré, a pretensão da Autora deverá soçobrar, na medida em que apenas seria devido à mesma o pagamento de trabalho suplementar, que ultrapassasse as 18 horas semanais realizadas pela mesma em serviço de urgência; conforme previsto no artigo 15.º-A, n.º 2 do Decreto-lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto.
Dispõe, para o efeito, o artigo 226.º, n.º 1 do Código do Trabalho, «considera-se trabalho suplementar o prestado fora do horário de trabalho».
Prevendo um regime especial aplicável à carreira médica, dispõe, por sua vez, o artigo 15.º-A, n.º 1 do Decreto-lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto, que «o período normal de trabalho dos trabalhadores médicos é de 8 horas diárias e 40 horas semanais, organizadas de segunda a sexta-feira, sem prejuízo do disposto nos números seguintes».
E acrescenta o n.º 2 do referido artigo, «o regime de trabalho correspondente a 40 horas de trabalho implica a prestação de até 18 horas de trabalho semanal normal nos serviços de urgência, externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, a prestar até duas jornadas de trabalho, de duração não superior a 12 horas e com aferição do total de horas realizadas num período de referência de 8 semanas, sendo pago o trabalho extraordinário que exceda as 144 horas do período normal de trabalho, relativamente ao referido período de aferição» (grifado nosso).
O normativo supra transcrito foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de Dezembro, o qual, de acordo com o respectivo preâmbulo, teve como desiderato aumentar «de 12 para 18 horas a parte do período normal de trabalho que pode ser afecta às actividades urgentes e emergentes, passando a aferição dos tempos de trabalho dedicados a estas actividades a fazer-se num período de referência de oito semanas».
De acordo com o regime legal acima descrito, seria lícito à Ré fixar à Autora a prestação de 18 horas em serviço de urgências, integrando as mesmas no respectivo período normal de trabalho.
Assim procedendo a Ré, apenas seria devido à Autora, a título de trabalho suplementar, o pagamento do número de horas trabalhadas que excedesse, no período de referência de 8 semanas, ‘as 144 horas do período normal de trabalho’ (correspondentes às já referidas 18 horas semanais em serviço de urgência, multiplicadas pelo período de referência ora em apreço).
No caso dos autos, resulta da factualidade provada que a Ré determinou que a Autora cumprisse horários de trabalho, que previam que a mesma prestasse semanalmente apenas 12 horas de trabalho em serviço de urgência, sendo todas as demais horas de trabalho afectas à prática de consultas ou outros serviços (cf. pontos 7., 9., 10. 11. e 13.).
Mais resulta dos autos, outrossim, que a Ré determinou igualmente à Autora que a mesma prestasse actividade em serviço de urgência para além do respectivo período normal de trabalho de 30 ou de 40 horas então acordado e, bem assim, do seu horário de trabalho.
Ora, em face da factualidade acima considerada, parece ser de concluir não ser aplicável à situação em apreço o disposto no 15.º-A do Decreto-lei n.º 176/2009, de 4 de Agosto, já que a totalidade dos montantes peticionados pela Autora nos presentes autos dizem respeito à prestação de trabalho em serviço de urgência realizado fora do período normal de trabalho fixado pela Ré à Autora.
Destarte, estando em causa a prestação de trabalho fora do horário de trabalho da Autora, deve a mesma ser remunerada pela respectiva realização, enquanto trabalho suplementar (cf. artigo 226.º, n.º 1 do Código de Trabalho).»
Nas suas alegações, a Ré insiste que a A. estava sujeita a um período mínimo de trabalho normal em serviços de urgência de 18 horas semanais, nos termos do art. 15.º-A n.º 2 do DL 176/2009, e ainda que o trabalho suplementar apenas poderia ter sido autorizado pelo conselho de administração, nos termos do art. 7.º al. e) dos seus Estatutos, aprovados pelo DL 18/2017, de 10 de Fevereiro. E, argumenta a Ré, não tendo ficado provado que aquele conselho de administração tenha prestado tal autorização, não pode a A. obter o pagamento do trabalho suplementar prestado.
Apreciando, observaremos, preliminarmente, que à relação estabelecida pelas partes é aplicável o Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, e outros (entre eles, a aqui Ré) e vários sindicatos, entre eles aquele onde a A. está filiada (o Sindicato Independente dos Médicos), publicado em BTE n.º 41/2009, com várias alterações, relevando o texto consolidado publicado no BTE n.º 43/2015, com posteriores alterações publicadas nos BTE’s n.ºs 30/2016 e 15/2019.
De acordo com a cláusula 44.ª n.º 4 daquele ACT, “o regime de trabalho correspondente a 40 horas de trabalho semanal implica a prestação de até 18 horas de trabalho semanal normal nos serviços de urgência, externa e interna, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, a prestar até duas jornadas de trabalho, de duração não superior a 12 horas e com aferição do total de horas realizadas num período de referência de 8 semanas, sendo pago o trabalho extraordinário que exceda as 144 horas do período normal de trabalho, relativamente ao referido período de aferição.”
A sequência de preposições “de até” – que é igualmente utilizada no art. 15.º-A n.º 2 do DL 176/2009 – significa apenas a marcação de um limite máximo: o trabalho semanal dos médicos que prestam trabalho no SNS implica a prestação até 18 horas em serviços de urgência.
Não tem razão, pois, a Ré quando argumenta que a A. estava sujeita a um mínimo de 18 horas de trabalho semanal em serviços de urgência, pois, bem pelo contrário, esse era o limite máximo que lhe podia ser exigido.
Ora, está provado que, desde Janeiro de 2013 e por determinação da Ré, a A. prestava, por semana, apenas 12 horas de trabalho em serviços de urgência, estando o restante tempo normal de trabalho semanal distribuído pela sua actividade de assistente hospitalar, na área de oftalmologia, o que não é desconforme àquela cláusula 44.ª n.º 4 do ACT e ao art. 15.º-A n.º 2 do DL 176/2009, que permite o estabelecimento de tal regime.
Quanto à autorização para a prestação de trabalho suplementar, está provado que a A. o prestava, desde Setembro de 2013 e por determinação da Ré.
O trabalhador que invoca a prestação de trabalho suplementar deve alegar – e provar – não apenas quais os horários de trabalho praticados ao longo da relação laboral, mas ainda quais os dias e horas em que prestou trabalho para além desses horários e que o mesmo foi prévia e expressamente determinado, ou realizado de modo a não ser previsível a oposição do empregador. Apenas assim se poderá apurar a regularidade e periodicidade dessa prestação laboral para além do horário definido e determinar qual o montante que corresponde ao efectivo pagamento desse trabalho.
Maria do Rosário Palma Ramalho ensina que a determinação da realização do trabalho suplementar “cabe ao empregador, uma vez que se funda em motivos de gestão ou de força maior que só a ele cabe avaliar”, não sendo de “qualificar como trabalho suplementar o prestado pelo trabalhador fora do seu horário de trabalho, a título espontâneo e sem para tal ter sido solicitado pelo empregador”, tanto mais que a norma que admite a prestação de trabalho suplementar espontâneo – art. 268.º n.º 2, in fine, do Código do Trabalho – deve ser interpretada de modo restritivo, “sob pena de permitir que a gestão do trabalho suplementar passe a caber ao trabalhador, o que contraria frontalmente a razão de ser da figura”.[1]
Ainda de acordo com a mesma autora, “só é reclamável o pagamento de trabalho suplementar determinado expressamente pelo empregador, devendo o trabalho suplementar espontâneo ser justificado pelo trabalhador nos mesmos termos objectivos de indispensabilidade de gestão ou de força maior que fundamentam o recurso à figura, de acordo com o art. 227.º n.ºs 1 e 2, para que possa reclamar o respectivo pagamento.”[2]
Sucede que, no caso dos autos, o trabalho suplementar não foi prestado de forma espontânea pela A., pois foi-lhe expressamente determinado pela hierarquia a que estava sujeita e devia obediência.
Ponderamos, pois, tal como fez a sentença recorrida, que a trabalhadora logrou demonstrar os requisitos necessários à procedência da sua pretensão, para os fins do art. 268.º n.º 2 do Código do Trabalho: provou os horários de trabalho praticados, os dias e horas em que prestou trabalho para além desses horários, e ainda que o mesmo lhe foi determinado pela sua entidade patronal.
A eventual circunstância de não terem sido adoptados procedimentos internos de aprovação das horas de trabalho suplementar prestadas não pode ser decidida em desfavor da trabalhadora. O certo é que foi determinada à A. a prestação das horas de trabalho mencionadas nos pontos 14 a 22 do elenco fáctico, e esta cumpriu essa ordem, em benefício da sua entidade patronal, que assim se constitui em devedora da retribuição devida por essa prestação laboral.
Não tendo a Ré demonstrado que pagou o trabalho suplementar que assim foi determinado à A. e que esta efectivamente prestou – notando-se que o pedido reconvencional respeita a trabalho suplementar prestado em outras datas, que a Ré pagou e assim a A. não incluiu no pedido formulado na sua petição inicial – deve o recurso interposto pela Ré improceder.
Quanto ao recurso subordinado interposto pela A., face à procedência da impugnação fáctica deduzida, deve ser-lhe reconhecido o direito ao pagamento do trabalho suplementar prestado por determinação da Ré, nos seguintes dias e pelos seguintes valores, conformes à liquidação efectuada na petição inicial e que não foram impugnados, e que atingem um valor global de € 2.497,51, assim discriminado:
· 22.09.2013, domingo (12 horas), no montante de € 331,45;
· 26.10.2013, sábado (12 horas), no montante de € 263,40;
· 01.12.2013, domingo (12 horas), no montante de € 331,45;
· 12.01.2014, domingo (12 horas), no montante de € 331,45;
· 22.03.2014, sábado (12 horas), no montante de € 263,40;
· 27.08.2016, sábado (12 horas), no montante de € 263,40;
· 01.02.2020, sábado (12 horas), no montante de € 336,67; e,
· 01.03.2020, domingo (12 horas), no montante de € 376,29.
Quanto aos juros, dispõe o art. 278.º n.ºs 4 e 5 do Código do Trabalho que “o montante da retribuição deve estar à disposição do trabalhador na data do vencimento ou em dia útil anterior”, e que “o empregador fica constituído em mora se o trabalhador, por facto que não lhe seja imputável, não puder dispor do montante da retribuição na data do vencimento.”
De acordo com os recibos de vencimento da A., anexos à petição inicial e não impugnados, esta era paga mensalmente, vencendo-se assim a retribuição pelo trabalho suplementar prestado no final do respectivo mês, a partir do qual a empregadora se constitui em mora, por força do citado art. 278.º n.º 5 do Código do Trabalho e, ainda, dos arts. 804.º n.º 2 e 805.º n.º 2 al. a) do Código Civil.
Assim, como bem defende a A., ao capital apurado de € 17.487,01, acrescem juros de mora, liquidados à data da petição inicial em € 3.144,62 (foram descontadas as três datas em relação às quais não se provou a prestação de trabalho suplementar, 07.09.2013, 01.03.2019 e 24.03.2019), continuando a vencer-se juros de mora, à taxa legal que decorre do art. 559.º n.º 1 do Código Civil, desde a data daquela peça e até integral pagamento.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso interposto pela Ré mas concede-se provimento ao recurso subordinado interposto pela A., indo aquela condenada a pagar a esta o capital de € 17.487,01, a título de acréscimo remuneratório devido pela prestação de trabalho suplementar, acrescida de juros de mora, liquidados à data da petição inicial em € 3.144,62, continuando a vencer-se tais juros, à taxa que decorre do art. 559.º n.º 1 do Código Civil, desde a data daquela peça e até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento.

Évora, 9 de Fevereiro de 2023

Mário Branco Coelho
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
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[1] In Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª ed., 2016, págs. 425-426.
[2] Idem, pág. 426.