Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1012/22.9T8LLE.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTE COMUM
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – O art. 1419º do Código Civil, sobre a modificação do título de propriedade horizontal, estabelece essa possibilidade como uma faculdade dos respectivos condóminos, verificadas as demais circunstâncias aí previstas.
2 – Por conseguinte, improcede qualquer pretensão nesse sentido vinda de quem não tenha essa condição de condómino no condomínio em causa.
3 – Designadamente, não pode alguém que não seja condómino de um prédio promover alteração ao título para que lhe seja atribuído o direito de uso a determinado lugar de estacionamento pertencente às partes comuns desse edifício.
4 – Dado o disposto no art. 1293º do Código Civil, também está legalmente excluída qualquer pretensão de aquisição desse direito de uso por meio de usucapião.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A - Os Autores, AA e mulher BB, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher DD, formulando os seguintes pedidos:
“a) declarar-se serem os Autores donos e legítimos proprietários da fracção I indicada em 1º supra, e consequentemente do lugar de estacionamento nº. 7 que é parte integrante desta fracção.
b) Condenar-se os Réus a reconhecerem esse direito de propriedade dos Autores sobre a fracção e o lugar de estacionamento n.º 7 em causa, e consequentemente,
c) Serem os Réus condenados a restituir imediatamente aos Autores o lugar de estacionamento n.º 7 que faz parte integrante da fracção identificada em 1 supra, livre e desocupada de pessoas e coisas e em bom estado de conservação.
d) Condenar-se os RR. a abster-se de, por qualquer meio ou forma, obstaculizar o direito de propriedade ou a posse dos AA. do lugar de estacionamento n.º 7 que faz parte integrante da fracção identificada em 1 supra.
e) Serem os RR. condenados a pagar, solidariamente, aos autores a quantia de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros) por lucros cessantes,
f) Serem os Réus condenados a pagar aos AA. as prestações vicendas, à quantia média de 250,00€/mês relativa aos meses em que a ocupação persista e até efectiva entrega do lugar de estacionamento.
g) Serem os RR. condenados a pagar aos Autores juros, à taxa legal, sobre tais quantias vencidas e vicendas desde a notificação até integral pagamento e custas de parte que se pedirão.”.
Para sustentar esses pedidos alegaram ser proprietários da mencionada fracção autónoma designada pela letra “I”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “Lote 12”, melhor identificado em art. 1.º da petição inicial, por a terem adquirido por compra, encontrando-se o seu direito registado, e que essa fracção autónoma inclui três lugares de estacionamento auto, identificados pelos números 7, 25 e 26.
Acontece que os Réus têm vindo a ocupar o lugar de estacionamento número 7 e, apesar de interpelados, não o desocuparam e recusam-se a fazê-lo.
Mais alegam os Autores que desde a data em que adquiriam a fracção encontram-se privados de usufruir do referido lugar de estacionamento, tendo, inclusive, surgido pessoas interessadas em arrendá-lo por 250,00€ mensais, o que não tem sido possível devido à conduta dos Réus.
B - Na sequência da sua citação os Réus contestaram, alegando que ocupam o referido lugar de estacionamento há mais de 36 anos por o terem adquirido à sociedade construtora, que lhes prometeu vender as fracções autónomas Loja 1 e Loja 2 do Bloco 11 com dois lugares de estacionamento com os números 21 e 24 e uma área de 100 m2 junto a esses lugares, que posteriormente foram renumerados passando a corresponder aos actuais números 10 e 11 e Bloco 11.
E, dizem os Réus, aquando da venda das Lojas 1 e 2 do Bloco 11, foi também vendido aos Réus o estacionamento número 7 do Bloco 12.
Assim, alegando que estão na posse pacífica, sem oposição de quem quer que seja, à vista de toda a gente, há mais de 36 anos do lugar de estacionamento número 7 do Bloco 12, deduzem reconvenção pedindo que seja reconhecido que têm direito de alteração da propriedade horizontal do prédio denominado Bloco 12, dele constando que o lugar de estacionamento dá serventia ao prédio do Bloco 11 e, subsidiariamente, que seja constituída por usucapião a serventia do lugar de estacionamento do número 7 do Bloco 12 a favor da fracção A do Bloco 11.
C - Os Autores apresentaram réplica, defendendo a inviabilidade da reconvenção, desde logo por ser inadmissível, suscitando a ilegitimidade passiva dos Autores/Reconvindos por preterição de litisconsórcio necessário passivo, uma vez que os pedidos deduzidos deveriam ser deduzidos contra todos os condóminos, e por último pugnando pela improcedência da dita Reconvenção.
Alegam em suma que em causa estão direitos de uso, atestados por documentos autênticos, que não se podem adquirir por usucapião e impugnam a factualidade alegada pelos Reconvintes.
D - Findos os articulados, foi proferido despacho a marcar audiência prévia, destinada, além da tentativa de conciliação, a facultar às partes a discussão de facto e de direito, discutir a posição das partes com vista à delimitação dos termos do litígio, suprir as insuficiências ou imprecisões da matéria de facto que ainda subsistam, e proferir despacho saneador.
Foi em seguida realizada Audiência Prévia, tendo nesta, após cumprimento das suas finalidades, a Mma. Juíza concluído estarem reunidas as condições para proferir decisão de mérito, o que comunicou às partes por despacho:
"Considerando a matéria alegada pelas partes, os documentos juntos e não impugnados e aqueles que têm força probatória plena, em face do direito aplicável, o Tribunal entende que o estado do Processo permite que seja proferida decisão sem necessidade de produção de quaisquer outras provas, nos termos do disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Contudo e, tendo em consideração a complexidade das questões suscitadas, o despacho não será de imediato ditado para a acta, sendo proferido por escrito nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.”
Como consta da acta respectiva, as partes declararam nada ter a opor ou a requerer.
Saliente-se que nesta audiência prévia as partes prestaram esclarecimentos: os Autores esclareceram estar-se a referir ao direito de utilização quando alegam que o referido lugar de estacionamento é parte integrante da sua fracção autónoma e por seu lado os Réus/Reconvintes esclareceram que no pedido reconvencional deduzido quando se referem ao direito de serventia estão a referir-se ao direito de uso.
E - Nessa sequência, veio a ser proferida sentença, na qual ficou decidido o seguinte (transcrevemos o dispositivo):
“A) Julgo a acção parcialmente procedente e, por via disso:
i) Declaro que aos Autores AA e mulher BB enquanto proprietários da fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra “I, correspondente ao apartamento 1.º andar esquerdo, porta F, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal denominado “Lote 12”, sito na Avenida ..., em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...86, da freguesia ..., concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número ...13, tem o direito de utilização exclusiva do lugar de estacionamento n.º 7, situado na cave do edifício;
ii) Condeno os Réus CC e mulher DD a desocupar o referido lugar de estacionamento n.º 7, restituindo-o aos Autores livre e desocupado de pessoas e coisas e em bom estado de conservação, bem como, absterem-se de, por qualquer meio ou forma, obstaculizar o direito dos Autores;
iii) Condeno os Réus a pagarem, solidariamente, aos Autores a quantia de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) por cada mês desde a data da citação até à efectiva entrega do referido lugar de estacionamento, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento;
iv) Absolvo dos Réus do demais peticionado a título de lucros cessantes.
B) Julgo a Reconvenção totalmente improcedente e, por via disso, absolvo os Autores/Reconvindos dos pedidos reconvencionais deduzidos.”
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II – DA APELAÇÃO
Em face da sentença proferida, os Réus interpuseram o presente recurso de apelação, apresentando no final das alegações as seguintes conclusões, que transcrevemos:
“I) Deve anular-se a decisão do tribunal a quo e ordenar-se que se proceda à discussão e julgamento da causa porquanto aquela decisão é deficiente, obscura e contraditória - artigo 662.-° do CPC.
II) Foi violada a Lei 8/2022 de 10,04 que alterou o artigo 1419.° do Código Civil.
III) Foram ainda violadas as disposições dos artigos 1544,° 1547.°, 1548.º e 1565.° e 1287.° todos do Código Civil.
IV) A douta sentença recorrida ao não pronunciar-se sobre o pedido ele constituição de servidão do estacionamento n.º 7 a favor dos ora recorrentes por usucapião (prédio dominante — desc. 797 e prédio serviente - desc. 799), violou as normas legais atrás mencionadas.
V) Os ora recorrentes estão há mais de 36 anos na posse pacífica e à vista de toda a gente do estacionamento n.º 7, cuja servidão deve ser registada a favor dos ora recorrentes.
VI) Ambos os prédios têm um só estacionamento que é comum aos dois prédios (desc. 797 e desc. 799) com acesso único ao exterior pelo prédio dos AA. ora recorridos, por esse facto já existe uma servidão legal de passagem registada em ambos os prédios.
VII) A douta sentença violou por má interpretação o disposto no artigo 5.º n.° 2 al. a) e a lei substantiva dos artigos citado do código civil.
Termos em que V, Exas. concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos das presentes alegações, farão inteira JUSTIÇA!”
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Os Autores apresentaram contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada,
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IV - DOS FACTOS
Na decisão recorrida foram declarados provados os seguintes factos considerados de interesse para a decisão da causa, tendo em conta os articulados pelas partes e não impugnados e os documentos juntos aos autos:
1) Os Autores são donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra I, do Lote 12, 1º esquerdo, Porta F, sita na Avenida ... em ..., descrita na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o n.º ...13..., e inscrita na matriz predial de Loulé sob o art. ...86, que integra o prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “Lote doze”.
2) O prédio urbano referido em 1) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé com a seguinte composição e confrontações “Edifício de cave, rés do chão, 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º andares; norte – Avenida ...; sul – urbanização ..., ...; poente- A..., Lda.”.
3) A fracção referida em 1) encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial com a seguinte composição “1.ºandar anterior - esquerdo – Porta F- Habitação -3 estacionamentos auto, na cave com os n.ºs 7, 25 e 26.”.
4) Os Autores compraram a fracção autónoma com os lugares de estacionamento nela referidos, por escritura de compra e venda celebrada no dia 06.01.2022 no Cartório Notarial de Faro, encontrando-se a referida aquisição registada a seu favor pela Ap. ...70 de 2022/01/06.
5) No pedido de licença de habitabilidade apresentado pela sociedade construtora junto da Câmara Municipal de Loulé consta a descrição do prédio “ Urbano, designado por Bloco 12, (…) a que respeita o processo de construção n.º ...1, dessa Exmª Câmara, composto por cave para estacionamento auto, r/chão com 3 lojas e seis andares para habitação”, sendo que, quanto à fracção I consta o seguinte “Fracção I: 1.º andar anterior – esquerdo, Porta F, para habitação, idêntico em composição, área e permilagem à fracção D, e com lugares de parqueamento auto na cave marcados com os n.ºs 7, 25 e 26.”.
6) No processo de construção referido em 5) consta, ainda, o plano gráfico da localização de cada um dos lugares de estacionamento, conforme fls. 44, que aqui se dá por reproduzido.
7) A licença de habitabilidade concedida pela Câmara Municipal de Loulé, em 22.05.1987, teve por base a realidade referida em 5) e 6).
8) Através da Ap. ...86, foi feito o registo a favor dos Réus, provisório por natureza, da aquisição, por compra, das seguintes fracções autónomas do prédio descrito sob o número ...13, da freguesia ..., concelho de Loulé:
a) fracção A - rés do chão – lado nascente, Loja n.º 1, destinada a escritório, comércio ou indústria – 1 divisão, 1 arrecadação e sanitários – 78,30 m2 e estacionamento na cave com o n.º 10;
b) fracção B – rés do chão – a poente da fracção A, Loja n.º 2 – destinada a escritório, comércio ou indústria – 1 divisão, 1 arrecadação e sanitários – 56,80 m2 e estacionamento na cave com o n.º11.
9) Encontra-se registada a favor dos Réus, através da Ap.... de 1986/04/11, a aquisição, por compra, das seguintes fracções autónomas do prédio descrito sob o número ...13, da freguesia ..., concelho de Loulé:
a) fracção autónoma designada pelas letras “AB”, com a seguinte composição “6.º andar direito, letra A, destinada a habitação, hall, cozinha, 2 despensas, sala comum, 2 quartos, casa de banho e balcão, 92,30 m2 e estacionamento na cave com o n.º8;
b) fracção autónoma designada pelas letras” AC”, com a seguinte composição “6.º andar frente – direito – letra B, destinada a habitação – hall, cozinha, 2 despensas, sala comum, 2 quartos, casa de banho e balcão – 86,20 m2 e estacionamento na cave com o n.º 9.
10) As fracções referidas em 8) e 9) integram-se no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal denominado “Lote 11” confinante com o “Lote 12”.
11) Sobre o prédio referido em 1) encontra-se registada, através da Ap....2 de 1986/...13, uma servidão de pé e carro com a largura de 3 m. e o comprimento de 28 m. no sentido poente – nascente ao nível da cave a favor do prédio urbano descrito sobre o número 797, no qual se integram as fracções autónomas dos Réus.
12) Em 10.04.1986 o Réu intentou acção para fixação judicial de prazo contra a sociedade construtora do prédio, que deu origem ao Processo n.º 24/1986, que correu termos neste tribunal, alegando:
“1.º - Por documento particular de 19/06/84 o Requerente e a Sociedade Requerida celebraram um contrato-promessa de compra e venda, documento que se junta e se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais (doc.1).
2.º - Nos termos do referido contrato o Requerente prometeu comprar e a Requerida vender, pelo preço de 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil escudos), a fracção autónoma que vier a corresponder em propriedade horizontal à Loja 1 e Loja 2 do Lote 11 do prédio sito na Avenida ... em ..., e dois lugares de parqueamento da cave do referido lote assinalados com os n.ºs 21 e 24 e uma área de 100 m2 junto a esses lugares.
3.º- Ficou consignado no supra referido contrato-promessa que a Requerida construiria na área acima identificada uma casa de banho com chuveiro, uma sanita e um lavatório, devidamente equipada com água, esgotos e electricidade, e uma escada de acesso à Loja n.º 2 e à Loja n.º 1, conforme a cláusula terceira do referido contrato.
4.º- A Requerida e Promitente-Vendedora obrigou-se a construir 3 arcos redondos na parede divisória das duas lojas, e a abrir uma porta de acesso ao lugar 21 do parqueamento, à zona dos 100 m2 (vide cláusula 5.ª e 6.ª do contrato-promessa).
5.º- O prédio já foi constituído em propriedade horizontal por escritura lavrada em 01/02/86 a folhas 80 v do Livro ...0... do 2.º Cartório da Secretaria Notarial de Loulé, e a licença de habitabilidade já foi emitida pela Câmara Municipal de Loulé em 22/01/86 (doc. 2 3).
6.º- Por conta do preço acordado o requerente entregou à Requerida e Promitente Vendedora a quantia de 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos cinquenta mil escudos) e ficou estipulado que os restantes 3.000.000$00 (três milhões de escudos) seriam pagos no acto de assinatura da escritura de compra e venda.
7.º - Apesar de ao prédio já haver sido feito a respectiva vistoria pela Câmara, há cerca de dois meses, a Requerida não concluiu ainda, as obras nas fracções prometidas que se obrigou a efectuar, mantendo-as paralisadas há largos meses.
8.º- Inclusivamente a Requerida já fez entrega ao requerente das chaves da referida fracção, prometida vender.
9.º - O Requerente pretende instalar na referida fracção um restaurante havendo há cerca de um ano encomendado todos os móveis, máquinas e utensílios necessários ao seu funcionamento, mas não pode fazer a respectiva acomodação em virtude de as obras não se encontrarem concluídas.
10.º - Tal facto tem causado ao requerente enorme prejuízos financeiros, devido ao aumento constante dos móveis e equipamentos necessários ao funcionamento do Restaurante.
11.º- Como não ficou estipulado prazo certo para o cumprimento do contrato-promessa que consiste em celebrar a escritura pública depois das obras estarem concluídas, contra o pagamento da parte do preço em dívida, nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 777.º do C. Civil, se fixe judicialmente prazo para a conclusão das obras.
12.º - Com efeito, nada obsta a que a Requerida conclua as obras constantes do referido contrato-promessa, e a referida fracção estar já na posse do Requerente, havendo assim tradição da fracção em causa para o Requerente.
13.º- As obras que falta concluir são a escada interior de acesso ao armazém, a construção dos 3 arcos de acesso à Loja 1 e 2, derrubar os muros da casa de banho e despensa, e acabar o pavimento, acabar a segunda casa de banho, montagem da porta de acesso à esplanada: rebocos interiores e exteriores, equipar a casa de banho com chuveiro e esgotos, instalar água e electricidade e pavimentar o solo.
Em tais termos,
Requer-se a V. Exa. que se digne fixar à Requerida o prazo de 30 dias, que se reputa bem suficiente, para concluir as obras nas fracções prometidas, em cumprimento do estipulado no contrato promessa de compra e venda 19/06(84.
Para tanto, deverá a Requerida ser citada para responder ao presente requerimento, querendo, no prazo e sob a cominação legais, seguindo-se os demais trâmites legais até final.”.
13) Por termo lavrado nos autos, em 02.06.1986, o Réu, ali Autor, desistiu da instância nos autos do processo referido em 12).
14) Os Réus ocupam, há vários anos, o lugar de estacionamento n.º7, referido em 3) e recusam-se a desocupá-lo.
15) Os Réus não são proprietários de qualquer fracção autónoma no prédio urbano referido em 1).
16) A anterior proprietária da fracção autónoma referida em 1) exigiu aos Réus, por diversas vezes, que abandonassem o lugar de estacionamento n.º7.
17) O lugar de estacionamento n.º7 tem o valor locativo de 250,00€ mensais.
18) Os Autores têm tido pessoas interessadas em arrendar o lugar de estacionamento pelo referido valor mensal de 250,00€, tendo recebido propostas de arrendamento logo em Janeiro de 2022.
19) Os Réus foram citados em 11.04.2022.
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V – DO DIREITO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, resumem-se no seguinte:
a) saber se deve anular-se a decisão e ordenar-se que se proceda à discussão e julgamento da causa por aquela decisão ser “deficiente, obscura e contraditória - artigo 662.-° do CPC”.
b) saber se a decisão impugnada errou, na aplicação das normas legais pertinentes, por não ter reconhecido a “constituição de servidão do estacionamento n.º 7 a favor dos ora recorrentes por usucapião”.
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VI – FUNDAMENTAÇÃO
A - Começamos por notar que os Recorrentes não questionam a realidade dos factos estabelecidos na decisão recorrida, com base no acordo das partes ou na força da documentação junta.
Na verdade, os recorrentes aludem nas suas alegações à falta de consideração da matéria de facto que teriam alegado para fundamentar os seus pedidos reconvencionais, lamentando agora a “inexistência de realização da audiência de discussão em julgamento, com inexplicável incumprimento dos deveres de cognição contidos no artigo 5.° n.° 2 do CPC que deveriam ter sido aplicados, o que só pode ter lugar com a produção de prova sobre a matéria de facto que se impõe e que não foi feita nesta fase processual do saneador”.
Porém, quando lhes foi comunicado expressamente que o tribunal considerava reunidas as condições para proferir sentença, e que o iria fazer, nos termos previstos no art. 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, nada opuseram nem nada requereram a esse respeito.
Como é evidente, essa posição do tribunal implicava o não prosseguimento dos autos para julgamento.
A disposição legal citada, relativa ao despacho saneador, prevê precisamente que esse despacho pode “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.”
Foi essa faculdade legal que o tribunal usou, depois de ter informado as partes da sua intenção e facultado a discussão sobre as questões que se colocavam para decisão.
Constata-se até, pela respectiva acta, que os Ilustres mandatários presentes deram a sua anuência ao procedimento proposto pelo tribunal (a decisão por despacho saneador que lhes seria posteriormente notificado).
Não se descortina, portanto, nem tal foi oportunamente alegado, que o procedimento do tribunal na tramitação referida tenha infringido alguma norma legal, nomeadamente do direito adjectivo a considerar.
Outra coisa seria concluir agora que a matéria de facto considerada não é bastante, não fundamenta suficientemente a decisão proferida; mas isso teria que decorrer da restante argumentação dos recorrentes, que veremos a seguir.
B - Logo no início das suas conclusões dizem os recorrentes que “Deve anular-se a decisão do tribunal a quo e ordenar-se que se proceda à discussão e julgamento da causa porquanto aquela decisão é deficiente, obscura e contraditória - artigo 662.-° do CPC.”
Em face dos qualificativos utilizados, depreende-se que os recorrentes estão a aludir à al. c) do n.º 2 do art. 662º do CPC, onde se estatui que, em sede de recurso, pode a Relação, mesmo oficiosamente “Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
O número anterior a esse é o n.º 1, o qual estabelece que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Vistos os aludidos preceitos, e mesmo relendo as alegações dos recorrentes, não é possível compreender qual o fundamento da falada anulação, mencionada nas conclusões citadas.
Com efeito, não está em causa a alteração da matéria de facto nos termos do n.º 1 do art. 662º, nem os recorrentes o dizem (não se vislumbra onde e como “os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente” impõem decisão diversa da tomada na primeira instância).
Note-se que não existe nenhuma impugnação da matéria de facto, nos termos legalmente previstos no art. 640º do CPC.
E os recorrentes também não indicam concretamente os motivos para que a Relação deva reputar de “deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto” (quais??) ou ainda as razões para considerar indispensável a ampliação dessa matéria.
Por parte deste tribunal, tendo presente os seus poderes oficiosos, não se encontra fundamento algum para censurar a sentença proferida com base nas citadas disposições legais; e os recorrentes também não adiantam nenhuma razão a que possa atender-se para tal efeito, pelo que o recurso também improcede a este respeito.
C - Na realidade as conclusões dos recorrentes atacam a sentença recorrida fundamentalmente por entenderem que esta não se pronunciou sobre o seu pedido de “constituição de servidão do estacionamento n.º 7 a favor dos ora recorrentes por usucapião (prédio dominante — desc. 797 e prédio serviente - desc. 799)”.
Devemos notar que a pretendida constituição de servidão por usucapião refere-se a um lugar de estacionamento sito no prédio ...99, e seria a favor dos Réus, condóminos do prédio ...97 – pelo que não está correcta a caracterização deste 797 como o “prédio dominante”. A aceitar-se a visão dos réus, “prédio dominante” seria apenas a sua própria fracção.
No entanto, o que se impõe observar é que a sentença impugnada não incorreu em tal omissão. Pelo contrário, pronunciou-se sobre essa pretensão dos Réus, concluindo pela sua inadmissibilidade legal.
Pode ler-se na sentença em causa:
“Quanto ao peticionado na alínea b) do pedido reconvencional, ou seja, a aquisição por usucapião do direito de uso do lugar de estacionamento n.º7 a favor da fracção A do Bloco 11, também o mesmo é manifestamente improcedente, conforme se passa a expor. (…)
A actuação dos Réus/Reconvintes sobre aquele espaço destinado a estacionamento de veículos consubstancia-se em actos de posse porque assentes na prática reiterada, com publicidade de actos materiais de gozo e fruição do referido espaço, como sendo um direito próprio, ao longo do tempo.
No entanto, o âmbito do direito a reconhecer não pode extravasar o respectivo suporte sobre o qual a posse é exercida.
Assim, no domínio da propriedade horizontal, a usucapião, como fonte aquisitiva de direitos só pode actuar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra (artigo 1263.º, alínea a) do Código Civil) e nunca a extravasar.
No caso dos autos, os Réus/Reconvintes não possuem qualquer título para manter a posse do referido espaço, sendo que as fracções autónomas que lhes pertencem estão integradas em outro prédio - Lote 11- e os lugares de estacionamento que lhes são afectos estão devidamente identificados e, também eles, localizados na cave daquele prédio – Lote 11.
Com efeito, e conforme se provou, os prédios têm caves autónomas, apenas com a particularidade de (eventualmente por os prédios terem sido construídos na mesma altura e pela mesma sociedade) o prédio Lote 12 se encontrar onerado com uma servidão de passagem a pé e de carro, ao nível da cave, a favor do prédio Lote 11 ( cfr. facto 11).
Nestes termos, será de concluir que a posse dos Réus/Reconvintes sobre aquele lugar de estacionamento n.º 7 se configura como uma posse não titulada (artigo 1259.º do Código Civil).
Como estamos no domínio da aquisição de imóveis, a simples perspectiva de possível aplicação do instituto de usucapião, poderia conduzir-nos à regra plasmada no artigo 1296.º do Código Civil, segundo o qual, “não havendo registo do título nem da mera posse a usucapião só pode dar-se ao termo de 15 anos, se a posse for de boa-fé, e de 20 anos, se for de má-fé.”
No entanto, mostra-se irrelevante as características da alegada posse dos Réus/Reconvintes sobre aquele espaço pois o direito que pretendem que lhes seja reconhecido - direito de uso - não se pode adquirir por usucapião, conforme resulta expressamente do art. 1293.º, alínea b) do Código Civil.”
Em resumo, após análise da questão, conclui-se na sentença que o direito que os Réus pretendem ter adquirido por usucapião (o direito de uso sobre o lugar de estacionamento n.º 7 do edifício 799) não pode adquirir-se por usucapião.
E efectivamente resulta do art. 1293º do Código Civil que não são susceptíveis de ser adquiridos por usucapião “os direitos de uso e de habitação”.
Ora, conforme foi esclarecido pelos próprios Réus, a sua pretensão referia-se à aquisição do direito de uso desse lugar de estacionamento n.º 7 do prédio contíguo ao seu, a favor da sua própria fracção.
Concluindo, não têm razão os Réus quando alegam que a sentença não se pronunciou sobre tal questão. Pronunciou-se, efectivamente, e considerou improcedente a pretensão dos Réus.
Acontece que neste seu recurso também não apresentam os Réus qualquer fundamento para considerar erróneo o entendimento do tribunal recorrido. E também este tribunal de recurso não encontra na posição seguida qualquer motivo de censura, pelo que também neste ponto considera improcedente o recurso interposto.
D) Segue-se que outra discordância fundamental dos recorrentes prende-se com a sua pretensão de que seja alterada por via judicial o título constitutivo da propriedade horizontal, no referente a esse lugar n.º 7.
Convém sublinhar neste ponto que esse lugar de estacionamento está incluído nas partes comuns do edifício onde se situa, e que os Réus recorrentes não são condóminos desse edifício. Tanto o edifício descrito sob o n.º ...97 como o edifício descrito sob o n.º ...99 estão constituídos em propriedade horizontal, tal como ficou a constar da matéria de facto provada.
Como certeiramente se observa na sentença impugnada, as pretensões dos Réus/Reconvintes implicariam a alteração/modificação do título constitutivo de cada um daqueles prédios, visto que dos títulos constitutivos de cada um dos prédios, Lote 11 e Lote 12, consta que o direito de utilização desses lugares de estacionamento, embora em zona comum (cave) de cada um dos prédios, pertence ao titular das respectivas fracções autónomas a que foi afecto (cfr. art. 1421.º, n.º 3 do Código Civil).
Ou seja, os Autores são condóminos do prédio ...99, e da descrição predial da sua fracção consta a utilização do lugar de estacionamento em disputa, e os Réus são condóminos do prédio contíguo, cujo título constitutivo da propriedade horizontal também lhes atribui lugares de estacionamento – mas no seu prédio.
A circunstância de serem contíguos os prédios e de ser feita a entrada para o estacionamento sito na ..., ... (onde os Réus são condóminos) através da ..., ... (onde os Autores são condóminos), para o que existe uma servidão de passagem, registada, não transforma os Réus em condóminos do aludido prédio n.º ...99 (lote 12).
Ora este pormenor só por si basta para comprometer de todo a viabilidade das suas pretensões, que implicariam a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal nesse prédio de que não são condóminos.
O art. 1419º do Código Civil, que regula a modificação do título, na redacção introduzida pela Lei 8/2022, de 10-01, que entrou em vigor a partir de 10 de Abril de 2022, abre realmente a via judicial como solução possível para a modificação do título.
Mas essa possibilidade está prevista para os condóminos, e só para eles, e só quando se verifiquem as circunstâncias ali previstas (v. g. a falta de acordo, como referido no n.º 2).
No nosso caso nem está comprovado o preenchimento do circunstancialismo previsto nesse n.º 2 do art. 1419º, e sobretudo está provado que os Réus não são condóminos desse prédio.
Tanto basta para rejeitar liminarmente a possibilidade de lhes aproveitar o citado art. 1419º, a que se referem nas conclusões como mal aplicado pelo julgador.
Voltando às conclusões em apreço, verifica-se que os recorrentes imputam ainda à sentença a desconsideração do disposto em diversas disposições do Código Civil, designadamente “artigos 1544,° 1547.°, 1548.º e 1565.° e 1287.° “.
Os quatro primeiros artigos referem-se à constituição de servidões, e o quinto é a própria definição legal de usucapião.
Como resulta de tudo aquilo que ficou dito atrás, nem a matéria de facto disponível permite considerar verificada no caso qualquer aquisição por usucapião nem as normas legais pertinentes permitiriam nesta situação o funcionamento dessa forma de aquisição, atento o direito em referência.
Desta forma, e sem necessidade de mais considerações, julga-se improcedente o recurso dos Réus, nos termos e pelos fundamentos que constam da douta sentença recorrida, aliás muito bem fundamentada.
Improcedendo o recurso, ficarão também os Réus condenados nas custas respectivas, nos termos legais.
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VII - DECISÃO
Concluindo, julgamos improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Réus/recorrentes, dado o seu decaimento (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 7 de Dezembro de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso