Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
830/15.9T8FAR-A.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE
NULIDADE
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Os peritos médicos devem fundamentar de forma concisa as razões do seu laudo a fim do julgador poder seguir o seu raciocínio com vista a analisar criticamente o valor probatório da perícia.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

Apelante: P.M. (sinistrado)

Apelada: Companhia de Seguros Allianz, Portugal, SA (ré responsável).

Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo do Trabalho de Portimão, J1.

1. A seguradora, na qualidade de entidade responsável pela reparação do acidente de trabalho, veio, ao abrigo do disposto no artigo 145.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, requerer a submissão do sinistrado a exame médico de revisão, alegando que este beneficiou de um desagravamento do grau de incapacidade permanente que lhe havia sido atribuído.

Deferida tal pretensão, foi o sinistrado submetido a exame médico pelo perito médico do Gabinete Médico-Legal de Portimão.

Notificados do resultado do exame médico acima referido, por dele discordar, veio a entidade seguradora requerer a sujeição do sinistrado a um novo exame por junta médica.

Veio a ser realizado o exame por junta médica, em que os senhores peritos médicos (do Tribunal, Sinistrado e Seguradora) foram unânimes em atribuir ao sinistrado o coeficiente global de uma incapacidade Permanente Parcial.

De seguida foi proferida sentença com a decisão seguinte:

Nestes termos e por tudo o exposto, decide-se:

a) Julgar o sinistrado P.M., por via do acidente de trabalho de que foi vítima a 29/04/2014, afetado a partir de 23/10/2020 de um grau de incapacidade permanente parcial (IPP) de 17,175%.

b) Condenar, em conformidade, a entidade responsável “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” a pagar ao sinistrado P.M., o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 1 851,47 (mil, oitocentos e cinquenta e um euros e quarenta e sete cêntimos), devida desde 23/10/2020.

Fixa-se o valor da ação em € 27.496,18.

Custas pelo sinistrado, que ficou vencido.

Porém, a entidade responsável responde pelo pagamento da remuneração dos peritos e das despesas realizadas com as diligências necessárias ao diagnóstico clínico do sinistro (cf. artigo 17.º, n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais).

Registe-se, notifique-se e, oportunamente, proceda-se ao cálculo do capital de remição (n.º 3, do artigo 148.º do Código de Processo do Trabalho), cumprindo-se em seguida o disposto no artigo 148.º, n.º 4, aplicável por força do disposto no artigo 149.º do mesmo diploma legal.

2. Inconformado, veio o sinistrado interpor recurso de apelação motivado e conclusões, nos seguintes termos:

I. Vem o presente recurso interposto da sentença que alterou a IPP de 30% previamente atribuída ao recorrente, para uma IPP de 17,175% a partir de 23/10/2020, e fixação de pensão anual e vitalícia de € 1 851,47, e a respetiva condenação da seguradora a pagar ao recorrente o respetivo capital de remição.

II. Ao recorrente havia sido fixado, por sentença, em 03/2020, uma IPP de 30% ao sinistrado recorrente.

III. Em fase conciliatória, junto do Gabinete de Medicina Legal, pelo respetivo perito foi atribuído uma IPP de cerca de 29,22 % ao sinistrado.

IV. Não se conformando a parte recorrida com a IPP atribuída requereu a fixação da IPP ao sinistrado por meio de junta médica.

V. Em 15.10.2021, os peritos entenderam de fixar ao sinistrado uma IPP de 17,175%.

VI. O sinistrado em 2.11.2021, veio deduzir oposição à respetiva perícia, concluindo que, os respetivos peritos, não lhe aplicaram A) Fator de bonificação e em que medida; B) A aplicação ao sinistrado das rubricas constantes nos pontos I.15.2.4.a) e I.15.2.3 ambos da TNI; C) E, aplicando-se tais rubricas, em que medida se impõe a alteração dos respetivos coeficientes e IPP a atribuir ao sinistrado.

VII. Os respetivos peritos e o Tribunal a quo, não obstante o relatório médico/pericial feito em fase conciliatória, não atribuíram qualquer dos fatores de bonificação constantes na TNI e que o perito em fase conciliatória apurou no seu relatório pericial junto nos autos;

VIII. Nem sequer aplicaram os pontos I.15.2.4.a) e I.15.2.3 ambos da TNI, que, salvo melhor opinião, são aplicáveis ao caso concreto decorrente dos factos quesitados e dados como assentes na perícia;

IX. Daí que, o recorrente, em resposta ao auto de junta médica, haja concluído em conformidade com o pedido de nova junta médica, com vista à apreciação dos pontos em apreço.

X. Porém, o Tribunal a quo, entendeu ser de descurar conforme consta na decisão recorrida.

Com efeito, Venerandos Julgadores,

XI. Da análise ao auto de junta médica ocorrido em 15.10.2021, os respetivos peritos não fundamentaram os motivos ou factos que motivaram a aplicação ao sinistrado/recorrente de uma IPP de 17,175%, em conformidade com o ponto 8º das instruções gerais constante no DL nº 352/2007.

XII. Aliás, o Tribunal a quo, e os peritos em sede de junta médica, nem sequer consideraram (apesar dos factos quesitados em sentido positivo), o indicado nas instruções gerais nº 5 (bonificação) aplicável ao caso concreto do sinistrato/recorrente.

Posto isto, Venerandos Julgadores,

XIII. Entende o recorrente que foi totalmente omissa a fundamentação dos peritos para a apreciação e determinação da IPP aplicável ao ora recorrente.

Ademais,

XIV. O Tribunal a quo, e o respetivo relatório de junta médica, em face dos factos/danos apurados ao sinistrado/recorrente, não aplicara ao mesmo os pontos I.15.2.4.a) e I.15.2.3 ambos da TNI, que são aplicáveis aos danos considerados no relatório pericial (junta médica).

Logo, Venerandos Julgadores,

XV. Entende ainda o recorrente que a omissão total dos peritos, em sede de junta médica, de fundamentarem a atribuição de uma IPP de cerca de 17% ao sinistrado, constitui uma nulidade processual, uma vez que, os peritos, violaram o disposto no ponto 8º e 5º das instruções gerais estabelecidas no DL 352/2007, de 23/10, uma vez que tal omissão influi no exame e decisão da causa, ao abrigo do disposto no art.º 195.º n.º 1 do CPC (a propósito, cfr. Ac. do TRG datado de 10.9.2020, em que foi relator o Dr. Vera Sottomayor, no proc. n.º 342/19.1T8BCL.G1).

Nestes termos e nos melhores de Direito, com o D. Suprimento de V. Exas., deve a sentença recorrida ser revogada, e, em consequência:

A) Ser declarada a nulidade processual por falta de fundamentação dos peritos, no ato de junta médica, por falta de fundamentação do respetivo relatório pericial;

B) Cumulativamente, ordenar-se a repetição do ato de junta médica com vista a obter a respetiva fundamentação quanto ao relatório pericial ocorrido em sede de junta médica (perícia);

Ou assim não se entendendo, subsidiariamente,

C) Determinar-se a aplicação a favor do recorrente dos fatores de bonificação constantes na TNI em conformidade com as alegações do recorrente, e, a aplicação dos pontos I.15.2.4.a) e I.15.2.3 ambos da TNI;

D) Condenar-se a parte recorrida em custas.

3. A seguradora foi notificada e não contra-alegou.

4. O Ministério Público, junto desta Relação, emitiu parecer no sentido e ser confirmada a sentença recorrida.

As partes foram notificadas e não se pronunciaram.

5. Dispensados os vistos por acordo, em conferência, cumpre apreciar e decidir.

6. Objeto do recurso

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.

A questão a decidir consiste em apurar se o laudo pericial não está fundamentado e se deve realizar-se nova junta médica.

A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A1) A sentença recorrida respondeu à matéria de facto e motivou da forma seguinte:

1.1 P.M. nasceu no dia 20/09/1976.

1.2 No dia 29/04/2014, quando desempenhava as suas tarefas profissionais como gerente de “ADN - Máquinas, Lda”, sofreu traumatismo do tornozelo e pé direito.

1.3 Daí resultaram para o sinistrado, a partir da cura clínica em 25/10/2019, como sequelas, artrodese da articulação Chopart do pé direito, amiotrofia da perna (4cm), rigidez moderada da articulação tibiotársica e cicatrizes dismórficas do dorso e planta do mesmo pé, o que lhe determina uma incapacidade permanente parcial de 17,175%.

1.4 Desse acidente resultaram para o sinistrado P.M. as seguintes incapacidades temporárias:

1.4.1 Incapacidade temporária absoluta de 30/04/2014 até 18/07/2014;

1.4.2 Incapacidade temporária parcial de 50% de 19/07/2014 até 01/12/2014;

1.4.3 Incapacidade temporária absoluta de 02/12/2014 até 16/01/2015;

1.4.4 Incapacidade temporária parcial de 50% de 17/01/2015 até 20/02/2015;

1.4.5 Incapacidade temporária parcial de 30% de 21/02/2015 até 01/01/2019;

1.4.6 Incapacidade temporária absoluta de 02/01/2019 até 27/09/2019;

1.4.7 Incapacidade temporária parcial de 35% de 28/09/2019 até 25/10/2019.

1.5 Na data do acidente o sinistrado P.M. auferia da referida “ADN - Máquinas, Lda.” a retribuição anual de € 15 400.

1.6 À data do acidente a responsabilidade por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA”, com referência à retribuição anual referida.

1.7 A entidade seguradora pagou ao sinistrado a título de indemnizações pelas incapacidades temporárias desde 30/04/2014 a 25/10/2019 a quantia de € 15 106,13.

1.8 Por sentença proferida em 12/03/2020, transitada em julgado, ficou decidido que o sinistrado P.M. ficou afetado, a partir de 30/10/2015 e por conversão legal, de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 30% e, em consequência, condenar a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” a pagar ao sinistrado P.M. uma pensão anual e vitalícia de € 3 234, devida desde 31/10/2015.

1.9 Atualmente, o sinistrado apresenta artrodese da articulação Chopart do pé direito, amiotrofia da perna (4 cm), rigidez moderada da articulação tibiotársica e cicatrizes dismórficas do dorso e planta do mesmo pé, o que lhe determina uma IPP (incapacidade permanente parcial) de 17,175%.

MOTIVAÇÃO

A prova dos factos decorre da consideração dos documentos juntos aos autos e do consenso quanto aos factos em sede auto de tentativa de conciliação (sinistrado e entidades responsáveis chegaram a acordo relativamente à forma como o acidente ocorreu, à sua caraterização como acidente de trabalho, bem como no que respeita à retribuição auferida e transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho daquele), pelo que, conforme decorre do disposto nos artigos 114.º, 131.º n.º 1, alínea c) e 135.º, todos do Código de Processo do Trabalho, o Tribunal deverá considerar tais factos como assentes.

Atendeu-se, finalmente, ao teor dos exames, designadamente o realizado por junta médica, em que os senhores peritos médicos vieram, por unanimidade, a fixar ao sinistrado um grau de incapacidade.

O Tribunal só pode/deve afastar-se do resultado da junta médica em casos devidamente justificados, que se mostrem fundamentados em opinião científica abalizada, ou em razões processuais que se afigurem relevantes.

São várias, aliás, as referências doutrinárias e as decisões jurisprudenciais nesse sentido (cf. entre outros, Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, 2ª edição, e Acórdão da Relação de Lisboa de 11/05/88, in CJ de 1988, Tomo 3, pág. 191, Acórdão da Relação do Porto de 30/04/90, in CJ 1991, Tomo 2, pág. 257, Acórdão da Relação de Évora de 30/1/2001 e Acórdão da Relação de Coimbra de 21/04/2005, processo 311/05, disponível em www.dgsi.pt).

Relembre-se que, no caso, por perícia de 18/12/2015 (exame médico singular no processo principal) foi arbitrada ao sinistrado uma IPP de 22,5%. Depois disso foi o sinistrado submetido a intervenção cirúrgica (para melhoria da sua condição). Após essa intervenção foi terminada perícia por junta médica no processo principal onde, por unanimidade, os senhores peritos arbitraram ao sinistrado uma IPP de 17,175%, não tendo merecido qualquer oposição das partes essa opinião.

Acontece que, por conversão legal, acabou por se fixar ao sinistrado uma IPP superior à que tinha sido arbitrada pela opinião unânime da junta médica. É verdade que, no âmbito deste apenso de revisão, o perito singular arbitrou ao sinistrado uma IPP de 29,2248% (sem qualquer bonificação), mas não foi essa a opinião maioritária dos peritos.

Nada existe nos autos, por isso, que nos permita divergir do resultado da perícia por junta médica.

B) APRECIAÇÃO

A instrução n.º 5, alínea b), do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23.10, prescreve que: a incapacidade é igualmente corrigida, até ao limite da unidade, mediante a multiplicação pelo fator 1.5, quando a lesão implicar alteração visível do aspeto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afete, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho.

A junta médica considera: “a nível do membro inferior direito o sinistrado apresenta: artrodese da articulação Chopart do pé direito, amiotrofia da perna (4 cm), rigidez moderada da articulação tibiotársica e cicatrizes dismórficas do dorso e planta do mesmo pé”.

Não resulta dos autos que as lesões do sinistrado implicam alteração visível do aspeto físico que afete de forma relevante o desempenho do posto de trabalho.

As cicatrizes dismórficas do dorso e planta do pé já são consideradas pela junta médica no capítulo II.1.5.b) da TNI.

Aparentemente, não encontramos fundamento para a atribuição da bonificação de 1.5 como pretende o apelante, mas os autos não fornecem os elementos necessários para decidir esta questão.

O apelante conclui que a junta médica não aplicou “os pontos I.15.2.4.a) e I.15.2.3 ambos da TNI, que, salvo melhor opinião, são aplicáveis ao caso concreto decorrente dos factos quesitados e dados como assentes na perícia”.

O apelante tem razão.

O ponto I.15.2.3 da TNI refere:

“- Limitação da mobilidade das articulações do pé (rigidez):

a) Limitação dolorosa da mobilidade do tarso por artrose pós-traumática ... 0,10-0,15

b) Limitação dolorosa do hallux pós-traumática ... 0,02-0,04 “,

E o ponto I.15.2.4.a) refere:

“Perda de segmentos (ressecções ou amputações do pé):

a) Amputações transtársicas (Chopart) ... 0,25”.

Perante a resposta ao quesito n.º 2, não está explicada a razão pela qual a junta médica não integrou as lesões nestes pontos da TNI e tal influi manifestamente no grau de incapacidade a atribuir.

Perante as dúvidas quanto aos factos relativos à bonificação de 1.5 e à falta de fundamentação quanto a esta matéria, deve a junta médica esclarecer esta matéria.

Torna-se, assim, necessário repetir a junta médica a fim de esclarecer se é ou não de integrar as lesões do sinistrado nos pontos I.15.2.3 e I.15.2.4.a) e se as lesões implicam alteração visível do aspeto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afetem, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho, calculando a respetiva incapacidade permanente daí resultante de acordo com a TNI, tudo com breve e sucinta explicação.

Se não for possível repetir a junta médica com a mesma composição, deverá ser constituída nova junta médica, anulando-se a junta médica já realizada, por falta de fundamentação.

Nesta conformidade, procede a apelação e revoga-se a sentença recorrida.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação procedente, ordenar a repetição da junta médica a fim de esclarecer se é ou não de integrar as lesões do sinistrado nos pontos I.15.2.3 e I.15.2.4.a) e se as lesões implicam alteração visível do aspeto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afetem, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho, calculando a respetiva incapacidade permanente daí resultante de acordo com a TNI, tudo com breve e sucinta explicação.

Se não for possível repetir a junta médica com a mesma composição, deverá ser constituída nova junta médica, anulando-se a junta médica já realizada, por falta de fundamentação.

Custas pela parte vencida a final, em face da não oposição da ré apelada.

Notifique.

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 10 de março de 2022.

Moisés Silva (relator)

Mário Branco Coelho

Paula do Paço