Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
242/24.3T8STB.E1
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- a omissão do despacho a convidar ao aperfeiçoamento da alegação, com vista a suprir a insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto, quando esta insuficiência ou imprecisão conduza à improcedência da acção na sentença, constitui vício processual que pode ser invocado em recurso e conduz à anulação da sentença, na parte afectada pela omissão, com vista à formulação do convite ao aperfeiçoamento em falta.

Decisão Texto Integral: Proc. 242/24.3T8STB

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I. AA, BB e CC intentaram a presente acção contra DD, pedindo que seja «declarada:


a) A simulação do negócio jurídico de compra e venda constante da escritura pública, outorgada a 8 de agosto de 2002, no Cartório Notarial da Vila 1, a fls. 146 a 147, do Livro 208-F, na qual BB e AA declararam que vendiam a CC, a fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao segundo andar esquerdo, para habitação e uma arrecadação no sótão n.º 9, do prédio urbano sito no gaveto formado pelas Rua 1 e Avenida 2, Lote 144, freguesia do Vila 2, do concelho de Cidade 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob o n.º 892, e inscrito na matriz sob o artigo 6170, devendo essa compra e venda ser declarada nula;


b) Ser declarado que a Autora CC adquiriu a referida fração “Q”, na supra identificada escritura, por doação de seus pais, os Autores AA e BB, devendo essa fração ser declarada bem próprio da Autora CC, nos termos do disposto no artigo 1722, n.º 1, al. b), do Código Civil;


c) Que na descrição 892-Q, da freguesia de Vila 2, se ordene o cancelamento da Ap. 17 de 2002/08/30, quanto ao sujeito ativo DD, devendo constar doação, como causa de aquisição desta fração a favor da Autora CC;


d) Que o valor de € 7.500,00, pago pela Autora CC, na escritura pública, de 20 de março de 2018, outorgada no ... EE, de fls. 79 a 81, do Livro 10, referente ao preço da fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente à Garagem número sete na cave, do prédio urbano sito no gaveto formado pelas Rua 1 e Avenida 2, Lote 144, freguesia do Vila 2, do concelho de Cidade 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob o n.º 892, e inscrito na matriz sob o artigo 6170, seja declarado bem próprio da Autora CC, por lhe ter sido doado por seus pais, assim, como a Fração “G”, por ter sido adquirida com dinheiro doado pelos seus pais, aqui Autores AA e BB, nos termos do disposto no artigo 1723, al. c) do Código Civil.


e) Que na descrição 892-G, da freguesia de Vila 2, se ordene o cancelamento da Ap. 5172 de 2018/03/23, quanto ao sujeito ativo DD, devendo-se averbar que a referida fração, é um bem próprio da Autora CC.


f) Ser o Réu condenado a reconhecer o direito de propriedade da Autora CC, nas supra identificadas frações e ainda a restituir ambas as frações à Autora, nos termos do disposto no artigo 1311.º do Código Civil.


Alegaram para tanto, no essencial, que:


- a A. AA e o A. BB são casados ente si no regime da comunhão de adquiridos.


- a A. CC é filha única daqueles AA., tendo casado com o R. em 1995, sem convenção antenupcial.


- os AA. adquiriram duas fracções autónomas (garagem, fracção G, e apartamento, fracção Q), sendo o apartamento destinado à filha quando se casasse e para onde esta foi após o seu casamento.


- em 08.08.2002 foi celebrada escritura pela qual os primeiros AA. declararam vender à terceira A. aquela fracção Q.


- os primeiros AA. pretendiam dar a fracção à filha, usando a compra e venda como forma de não pagar impostos, e a terceira A. não queria comprar mas aceitar a doação.


- a aquisição encontra-se registada a favor da terceira A., casada com o R..


- em 20.03.2018 foi celebrada escritura pela qual os primeiros AA. declararam vender à terceira A. a referida fracção G, aquisição também registada.


- a terceira A. adquiriu esta fracção com dinheiro dos pais (doação dos pais), pelo que a fracção também lhe foi doada.


- a terceira A. e o R. divorciaram-se.


- como a terceira A. adquiriu ambas as fracções por doação dos pais, os imóveis devem figurar como seus bens próprios.


O R. contestou, impugnando a versão dos AA., tendo em particular alegado que:


- inexiste, quanto ao primeiro negócio, simulação quer por faltar a divergência da vontade dos declarantes quer por faltar a intenção de enganar terceiro.


- o preço, naquele negócio, foi pago pelos custos suportados pela terceira A. e pelo R. com a conservação do imóvel.


- a simulação não lhe seria oponível enquanto terceiro de boa fé.


- na segunda venda, o cheque proveio de conta também titulada pela terceira A., a quem cabiam assim os fundos dela constantes, e que tal valor também foi reposto pela terceira A. e pelo R..


- na escritura não consta a origem do dinheiro usado.


Invocou ainda a litigância de má fé dos AA. por deduzirem pretensão cuja falta de fundamento não ignoram, alterando deliberadamente a verdade dos factos e omitindo intencionalmente factos e conclusões jurídicas essenciais. Pediram que fossem os AA. condenados em indemnização não inferior a 5.000 euros.


Os AA. responderam a esta invocação da litigância de má fé, recusando a verificação dos seus pressupostos.


Dispensada a audiência prévia, efectuou-se o saneamento da causa, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova. Apresentadas reclamações à enunciação dos temas da prova, realizou-se audiência prévia na qual foram desatendidas aquelas reclamações.


Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


«julgo a presente ação improcedente e, consequentemente, absolvo o R. dos pedidos.


Julgo procedente o pedido de condenação por litigância de má-fé impetrado pelo R. e, consequentemente:


a) condeno os AA. no pagamento de uma multa que fixo em 2 UC’s;


b) em ordem à fixação da indemnização requerida, determino a notificação das partes para se pronunciarem, no prazo de 10 dias, nos termos do art. 543º, nºs. 1, al. a), 2 e 3 do CPC».


Dessa sentença interpuseram os AA. recurso, formulando as seguintes conclusões:


7.1. A Decisão Recorrida decidiu julgar improcedente o pedido formulado pelos ora Recorrentes contra o Réu e, consequentemente, absolvê-lo dos pedidos.


E ainda julgar procedente o pedido de condenação por litigância de má-fé impetrado pelo R. e, consequentemente:


a) Condenar os Recorrentes no pagamento de uma multa que fixo em 2 UC’s;


b) Em ordem à fixação da indemnização requerida, determino a notificação as partes para se pronunciarem, nos prazos de 10 dias, nos termos do art.º. 543º, nºs 1, al. a), 2 e 3 do CPC.”


7.2. Considerou o Tribunal a quo provados, em particular, os seguintes factos:


5. E destinaram a fração “Q” a ser a casa que a sua filha iria usar quando um dia se casasse.


6. Os pais da A. CC mobilaram a fração “Q” tendo adquirido, com o seu próprio dinheiro, a mobília e os eletrodomésticos.


7. Após o casamento da A. CC com o R., o casal passou a viver na fração “Q”, destinando-a a ser a sua casa de morada de família.


8. A A. CC e o R. não pagaram qualquer contrapartida aos pais da A. pelo uso que fizeram da fração.


9. A A. CC foi ajudada financeiramente pelos seus pais ao longo do casamento.


10. No dia 8 de agosto de 2002, no Cartório Notarial da Vila 1, os AA. BB e AA, de um lado, e CC, de outro lado, outorgaram escritura de compra e venda (exarada da fls. 146 a fls. 147 do Livro 208-F) na qual declararam que “pelo preço de quarenta e um mil euros, que da segunda outorgante, sua única filha, já receberam, a esta vendem a fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao segundo andar esquerdo …”.


11. A A. CC nunca pagou o preço aos seus pais.


12. Sendo que os AA. BB e AA não queriam vender, mas apenas doar a fracção para não pagarem mais impostos (IMI), e que a A. CC não queria comprar, mas apenas aceitar a doação.


16. O preço de aquisição da garagem - € 7,500,00 - foi pago com o cheque número ... sacado sobre conta do Autor BB (conta n.º ... da Caixa Geral de Depósitos, SA).


17. O dinheiro que existia na conta bancária em causa, à data da emissão do cheque, pertencia exclusivamente aos pais da A. CC, sendo proveniente apenas dos rendimentos dos AA. BB e AA.


18. O R. restituiu ao A. parte da quantia de € 7.500,00 referida em 16..


21. A A. CC e o R. encontram-se divorciados desde 12 de janeiro de 2023, data do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de divórcio.»


7.3. O fundamento de consideração a improcedência da ação e de absolver o R. dos pedidos, foi o facto de considerar que a petição inicial foi omissa quanto ao terceiro dos requisitos necessários elencados no n.º 1 do artigo 240.º do Código Civil: para o Tribunal a quo, a petição é omissa quanto ao intuito de enganar terceiro, o Estado, no acordo simulatório;


7.4. Deparando-se com uma petição deficiente findos os articulados, o tribunal, em sede de despacho pré-saneador – nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 590.º do CPC - deve proferir despacho de aperfeiçoamento obrigatório, convidando o autor a suprir “as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”;


7.5. É incontroversa, no domínio do CPC 2013, a natureza vinculada de tal despacho de aperfeiçoamento (“incumbe ao juiz (…)” preceitua o citado n.º 4 do artigo 590º), pelo que a sua prolação pode fundar uma arguição de nulidade;


7.6. Porque tal despacho de aperfeiçoamento não implica, como é óbvio, salvar petições feridas de ineptidão resultante da falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, o tribunal poderá em alternativa, oficiosamente ou a requerimento, julgar no despacho saneador a petição inepta, exceção dilatória geradora da nulidade do processo e da consequente absolvição da instância, conforme previsto nos artigos 186.º, n. º1 e 2, al. a), 200.º, n.º 2, 577.º, al. b) e 278.º. n.º 1, al. b), todos do CPC.


7.7. Tal ineptidão, em que não é possível colmatar o vício por convite, ocorre por exemplo, e para o que aqui importa considerar, em casos de não revelação ou individualização da causa de pedir no articulado relevante ou, para utilizar expressão a que amiúde recorre a Jurisprudência dos nossos tribunais superiores, situações em que se omite o “núcleo essencial da causa de pedir” nesse mesmo articulado quando estejam em causa causas de pedir complexas;


7.8. Importa ainda referir que, quer esteja em causa a ineptidão da petição inicial ou a sua insuficiência determinante da prolação de despacho de aperfeiçoamento em sede de audiência prévia, o despacho que convoca esta última “não deve conter meras referências genéricas aos fins da audiência prévia ou limitar-se a remeter para as alíneas do n.º 1 do art. 591.º, Se o juiz pretender ouvir as partes acerca de uma exceção dilatória, deve identificar essa exceção; se a audiência tiver por fim esclarecer este ou aquele ponto de facto alegado nos articulados, deve ser dada ainda nota disso” [ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA, CPC Anotado, Vol. I, p. 710 (nota 6].


7.9. No caso vertente, não foi proferido pelo Tribunal a quo qualquer despacho pré-saneador a este respeito e o despacho de designação da audiência prévia limitou-se a remeter para o n.º 3 do artigo 593.º do CPC.


7.10. Consta da petição inicial de que o negócio simulado visava obter uma vantagem fiscal – quiseram doar o imóvel para não pagarem mais impostos - não poderá ter outro significado que não o do intuito de enganar a administração tributária, o que o Tribunal a quo poderia até inferir por presunção (artigo 349.º do Código Civil) baseada nas regras de experiência comum.


7.11. E que a afirmação constante da Decisão recorrida de que o propósito de contornar a lei, i.e., de enganar o Estado, enquanto entidade governativa e legislativa não preenche os requisitos necessários para ser considerado um terceiro para efeitos de simulação não procede, uma vez que à data da escritura de compra e venda – 08.08.2002, as transmissões onerosas até ao valor de € 80.000, estavam isentas do pagamento de imposto – SISA. À contrário, as transmissões gratuitas de pais a filhos maiores pagavam uma taxa de 9% - IMPOSTO DE SUCESSÕES E DOAÇÃO. Com o negócio simulado os AA pouparam o valor de € 3.690,00, valor que o Estado Português, deixou de receber, valor no qual a Fazenda Nacional foi prejudicada, o que vem de acordo com a doutrina e a jurisprudência dominante.


7.12. Corresponde, aliás, a um exemplo de escola de simulação fraudulenta, comentado, por exemplo, pelos saudosos Professores Manuel de Andrade e Inocêncio Galvão Telles [nota de rodapé: MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, p. 172 e INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em Geral, 3ª edição, p. 152.], consabido que é que, à data da outorga das escrituras públicas de compra e venda, a taxa do imposto sobre sucessões e doações era mais elevada do que a sisa, pelo que o acordo dissimulado seria a doação,


7.13. À luz do regime supra descrito, o Tribunal a quo só tinha dois caminhos possíveis: (i) a prolação de despacho pré-saneador ou outro convidando ao aperfeiçoamento do articulado dos Recorrentes, caso entendesse não estarem aí alegados factos que sustentassem a procedência da pretensão deduzida, ou (ii), se entendesse que o problema radicaria na falta de causa de pedir, apreciar a nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição, no despacho saneador.


7.14. Devendo, em qualquer dos casos - se entendesse possível que o convite ao aperfeiçoamento de petição deficiente pudesse ser ainda feito na audiência prévia – ter identificado no despacho de convocação da audiência prévia a nova questão prévia (exceção) de conhecimento oficioso que pretendia suscitar em tal diligência para adequada garantia do exercício do contraditório, conforme prescreve o artigo 3.º, n.º 3 do CPC, o que também não aconteceu in casu.


7.15. Não tendo feito nada do que ora se descreveu, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 590.º, n.º 4, 591.º, n.º 1, al. c), 186.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 200.º, n.º 2, 577.º, al. b), 278.º. n.º 1, al. b) e 3.º, n.º 3, todos do CPC.


7.16. A omissão do despacho pré-saneador, na modalidade de despacho de aperfeiçoamento de articulado deficiente (artigo 590.º. n.º 4), ou do convite a tal aperfeiçoamento em sede de audiência prévia [artigo 591.º, n.º 1, al. c)] integraria, em abstrato, a nulidade processual secundária prevista nos nºs 1 e 2 do artigo 195.º do CPC, a ser arguida no prazo de 10 dias, dado que era insuscetível de conhecimento oficioso;


7.17. Porém, a postergação de tal convite ao aperfeiçoamento de petição deficiente nos casos em que a sentença se venha a louvar nessa mesma deficiência para julgar improcedente o pedido inquina tal decisão de mérito de nulidade por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615.º, n. º1, al. d) do CPC, a ser arguida em sede de recurso (artigo 615.º, n.º 4 do CPC).


7.18. Isto porque, nessa circunstância, tal nulidade processual projeta-se negativamente na decisão de mérito que vier a ser desfavorável à parte a quem se imputa a deficiência alegatória, ou seja, a irregularidade assim cometida influi na decisão da causa (artigo 195.º, n.º 2 do CPC) e, o que é mais, só se manifesta com a prolação dessa mesma decisão de mérito.


7.19. Esta é, atualmente, a orientação jurisprudencial uniforme dos nossos Tribunais superiores (cf. os arestos citados em 2.13. supra).


7.20. Destarte, tendo a alegada insuficiência da petição dos Recorrentes constituído fundamento utlizado pelo Tribunal a quo para julgar improcedente o pedido por si formulado, tal decisão é nula por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, o que expressamente se argui.


7.21. E, mesmo que se situasse a deficiência detetada pelo Tribunal a quo no plano da ausência de causa de pedir, por omissão do seu núcleo essencial – o que, por mera cautela de patrocínio, se pondera, sem conceder -, o mesmo teria incorrido em erro de interpretação e aplicação da lei processual, posto que, nesse caso, deveria ter julgado a petição dos Recorrentes inepta com nulidade de todo o processado e a consequente absolvição da instância dos Réus ex vi artigos 186.º, n.º1 e 2, al. a), 577.º, al. b) e 278.º. n.º 1, al. b), todos do CPC.


7.22. Estando provado no ponto 12. Da matéria de facto que: «… AA. BB e AA não queriam vender, mas apenas doar a fração para não pagarem mais impostos (IMI), e que a A. CC não queria comprar, mas apenas aceitar a doação …», estão provados os 3 requisitos da simulação.


7.23. O Estado, o Estado Fisco, a Fazenda Nacional é um Terceiro para feitos de aplicação do regime de simulação, e em particular se foi prejudicado como é o caso dos presentes autos. Existe vasta doutrina e jurisprudência nesse sentido. Cita-se Prof. Inocêncio Galvão Teles: «Outras vezes quer realizar-se a doação de um imóvel, mas porque o imposto sobre doações e, no caso, mais pesado do que a sisa, devida pela transmissão de imobiliários a título oneroso, declara-se fazer uma compra e venda, escondendo a doação sob a máscara de uma venda fictícia; aparentemente vendeu-se; assim se disse ao notário, e o adquirente afirma ter pago ao alienante o preço, de que este lhe dá a quitação; tudo isto porém, não passa de uma farsa (imaginaria venditio), porque no ânimo das partes estava a transferir a propriedade, sim, mas a título gratuito….As simulações mais frequentes são ao que se fazem para prejudicar o Fisco ….» e de entre outros o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011; o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-09-2020; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-07-2017.


7.24. A sentença é ainda nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, por não ter apreciado os pedidos sobre a fração “G” – garagem e os pedidos constantes nas alíneas a) a f), em clara violação dos artigos 20.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 615.º, n.º 1, als. b) e d) do CPC., sendo que a esta fração “G” e a estes pedidos não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de improcedência, deixando o juiz de se de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.


7.25. Os factos, a causa de pedir e o pedido da fração “G”, não são os mesmos da fracção “Q”; e da fração “G” e dos pedidos das alíneas d) e f), a sentença é totalmente omissa.


7.26. O Tribunal a quo não indica os fundamentos de facto, não elabora um exame crítico das provas, não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão, referente aos pedidos da fração “G” e aos pedidos constantes das alíneas d) a f).


7.27. É fundamental, sob pena de nulidade da sentença que sejam mencionados os princípios, as regras, as normas em que a decisão se apoia, o que não aconteceu no que se refere à fração “G” e aos pedidos a) a f), e em particular aos pedidos constantes das alíneas b) e d), quando no que se refere à fração “G” estão dados como factos provados:


«16. O preço de aquisição da garagem - € 7,500,00 - foi pago com o cheque número ... sacado sobre conta do Autor BB (conta n.º ... da Caixa Geral de Depósitos, SA). 17. O dinheiro que existia na conta bancária em causa, à data da emissão do cheque, pertencia exclusivamente aos pais da A. CC, sendo proveniente apenas dos rendimentos dos AA. BB e AA.» e o pedido constante na alínea d) da petição inicial é: «Que o valor de € 7.500,00, pago pela Autora CC, na escritura pública, …. “G”, correspondente à Garagem …. seja declarado bem próprio da Autora CC, …. por ter sido adquirida com dinheiro doado pelos seus pais, aqui Autores AA e BB …», denotando uma clara contradição entre a matéria provada, e a decisão, violando claramente as alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, assim como os artigos 1722º e 1723.º do CC.


7.28. E sobre a condenação de má-fé importa ter presente, os factos provados nos pontos 16. e 17., quem são os Recorrentes, sendo que os Recorrentes alegam os factos tal como os conheceram, como os viveram e como os sofreram.


7.29 Os AA BB e AA deram ao longo de muitos anos uma grande ajuda financeira, quer à filha, quer ao R., despenderam do seu património a favor a filha e do R. - factos que estão provados na ação.


7.30 Os Recorrentes não atuaram nem com dolo, nem com negligência grave.


7.31 Não podem os Recorrentes ser condenados por litigância de má-fé, o que violaria os pressupostos constantes no artigo 542.º do CPC.


O R. respondeu, tendo considerado prolixas as conclusões dos recorrentes e pugnado pela manutenção da decisão recorrida.


O Mmo. Juiz a quo pronunciou-se pela inexistência das nulidades invocadas.


II. O recorrido, na sua resposta, invoca o carácter prolixo ou pouco normativo das conclusões formuladas pelos AA. recorrentes.


As conclusões estão, na verdade, algo distanciadas do seu sentido legal, que as pretende como sintética indicação das questões submetidas a apreciação pelo tribunal de recurso (e até envolvem, na verdade, elementos de todo estranhos ao seu âmbito, como a reprodução do dispositivo de sentença ou de elencos de factos provados). Mas ainda correspondem a esforço de síntese e permitem apreender o sentido impugnatório do recurso (sendo apreensíveis as questões colocadas no recurso). De outro lado, o recorrido não invocou a incapacidade de apreender aquelas questões, ou o carácter obscuro ou ininteligível das conclusões. Pelo que o convite ao aperfeiçoamento (que seria o efeito imediato da prolixidade das conclusões, nos termos do art. 639º n.º3 do CPC) teria, no caso, valor pedagógico, mas não um sentido útil autónomo, importando sobretudo dilação ou perda de economia. Não se justifica assim intervenção específica.


III. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar:


- a existência de vício da sentença derivado da omissão de oportuno convite ao aperfeiçoamento da alegação.


- a suficiência da alegação com apoio nos factos provados ou com base na utilização de presunção natural.


- a nulidade da sentença, no quadro do art. 615º do CPC.


- a condenação dos AA. como litigantes de má fé.


IV. Foram considerados provados os seguintes factos [1]:


1. Os AA. BB e AA casaram a ... de ... de 1966, sob o regime da comunhão de adquiridos.


2. A A. CC nasceu a ... de ... de 1971, sendo filha dos AA. BB e AA.


3. A A. CC e o R. contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia ... de ... de 1995.


4. No dia 14.06.1993, os AA. BB e AA, pelo preço de Esc. 500.000$00 (€ 2.493,98), e pelo preço de Esc. 8.100.000$00 (€ 40.402,62), compraram as frações autónomas “E” (garagem número cinco da cave) e “Q” (segundo andar esquerdo, para habitação, e uma arrecadação no sótão com o número 9) do prédio descrito na CRP de Cidade 2 sob o n.º 892 da freguesia de Vila 2, inscrito na matriz sob o artigo 6170.


5. E destinaram a fração “Q” a ser a casa que a sua filha iria usar quando um dia se casasse.


6. Os pais da A. CC mobilaram a fração “Q” tendo adquirido, com o seu próprio dinheiro, a mobília e os eletrodomésticos.


7. Após o casamento da A. CC com o R., o casal passou a viver na fração “Q”, destinando-a a ser a sua casa de morada de família.


8. A A. CC e o R. não pagaram qualquer contrapartida aos pais da A. pelo uso que fizeram da fração.


9. A A. CC foi ajudada financeiramente pelos seus pais ao longo do casamento.


10. No dia 8 de agosto de 2002, no Cartório Notarial da Vila 1, os AA. BB e AA, de um lado, e CC, de outro lado, outorgaram escritura de compra e venda (exarada da fls. 146 a fls. 147 do Livro 208-F) na qual declararam que “pelo preço de quarenta e um mil euros, que da segunda outorgante, sua única filha, já receberam, a esta vendem a fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente ao segundo andar esquerdo …”.


11. A A. CC nunca pagou o preço aos seus pais.


12. Sendo que os AA. BB e AA não queriam vender, mas apenas doar a fração para não pagarem mais impostos (IMI), e que a A. CC não queria comprar, mas apenas aceitar a doação.


13. A aquisição da fração “Q” foi registada a favor da A. CC e do R., casados no regime da comunhão de adquiridos.


14. No dia 20 de março de 2018, no Cartório Notarial da Licenciada EE, em Cidade 2, a A. CC, no estado civil de casada sob o regime da comunhão de adquiridos com o R., outorgou escritura de compra e venda através da qual, “pelo preço de SETE MIL E QUINHENTOS EUROS pago no momento da celebração deste acto pelo cheque número ... sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, SA., que declararam já ter recebido, vendem à segunda outorgante, livre de quaisquer ónus ou encargos, a fracção autónoma, destinada a estacionamento coberto e fechado, designada pela letra “G” correspondente à GARAGEM NÚMERO SETE NA CAVE, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no Vila 2, no Gaveto da Rua 1 e Avenida 2, Lote 144 – Bairro ..., na freguesia de Vila 2, concelho de Cidade 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 2 sob o número oitocentos e noventa e dois, da dita freguesia …”.


15. A aquisição da fração “G” foi registada a favor da A. CC e do R., casados no regime da comunhão de adquiridos.


16. O preço de aquisição da garagem - € 7,500,00 - foi pago com o cheque número ... sacado sobre conta do Autor BB (conta n.º ... da Caixa Geral de Depósitos, SA).


17. O dinheiro que existia na conta bancária em causa, à data da emissão do cheque, pertencia exclusivamente aos pais da A. CC, sendo proveniente apenas dos rendimentos dos AA. BB e AA.


18. O R. restituiu ao A. parte da quantia de € 7.500,00 referida em 16..


19. No período em que a A. CC e o R. viveram na fração “Q”, foi construída uma marquise na casa.


20. Em 30 de novembro 2022, no âmbito do processo de divórcio que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Estremoz, Tribunal Judicial da Comarca de Évora (processo n.º 300/22.9...), foi realizada tentativa de conciliação, tendo as partes chegado a acordo, convolando o divórcio em mútuo consentimento.


21. A A. CC e o R. encontram-se divorciados desde 12 de janeiro de 2023, data do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de divórcio.


E foram tidos por não provados os seguintes factos:


1. O R. desconhecia que, na escritura de 8 de agosto de 2002, os AA. BB e AA queriam doar, e não vender, a fração “Q”, e que a A. CC não queria comprar a mesma fração, mas apenas aceitar a doação.


V.1. A pretensão dos AA., no caso e quanto à fracção Q, assentou de forma clara na qualificação da compra e venda como negócio simulado (simulação relativa objectiva, por atinente à natureza do negócio).


Sem discrepância essencial, aceita-se, a partir do art. 240º n.º1 do CC, que são elementos constitutivos desta simulação:


- o acordo simulatório, com o fim de criar uma falsa aparência negocial,


- a divergência intencional entre a vontade e a declaração, e


- o intuito de enganar terceiros (e não necessariamente prejudicar).


A sentença recorrida entendeu que os dois primeiros requisitos estariam, a partir dos factos alegados e provados, verificados. Tal asserção não foi impugnada. A acção improcedeu apenas por se ter entendido que o terceiro requisito elencado estaria por verificar, dada a insuficiência dos factos provados e por falta da sua devida alegação pelos AA.. É apenas quanto a este ponto que a discussão se coloca.


2. Pese embora a falta de consagração legal expressa no CPC, o regime processual civil continua vinculado ao princípio do dispositivo, mormente na definição do seu objecto, implicando que caiba às partes introduzir no processo os factos que suportam as suas pretensões (causa de pedir) ou os mecanismos de defesa a que apelam (máxime, fundamentos da defesa por excepção) (art. 5º n.º1 do CPC). Tal princípio não vale, é certo, com um rigor absoluto, conhecendo excepções pelas quais se permite que o tribunal introduza no processo factos relevantes para aqueles fins (art. 5º n.º2 do CPC [2]), mas vale como regra principal que subjaz ao processo civil.


3. Avaliando a alegação dos AA., na petição inicial, constata-se, de forma clara, que existe a alegação de factos bastantes para indicar, identificar e delimitar, de forma apreensível, a causa de pedir, ou seja, o «facto jurídico» que sustenta a pretensão, na acepção do art. 581º n.º4 do CPC. Causa de pedir que se considera abranger todos os factos que integram a previsão da norma invocada e que faculta o efeito pretendido pela parte [3]. Os contornos essenciais e elementos nucleares daquela causa de pedir estão definidos: a alegação excede, claramente, os factos mínimos necessários à identificação e individualização da causa de pedir (que é também, naturalmente, perceptível ou inteligível). A própria forma como se processou a discussão da causa, e os termos da sentença proferida, revelam a suficiência, deste ponto de vista, da alegação (o que o R. também reconhece na sua resposta ao recurso), não se justificando colocar a questão no âmbito da ineptidão por falta de descrição da causa de pedir (e já que esta descrição não tem que incluir todos os factos essenciais: o regime dos art. 5º n.º2 al. b) e 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC, na solução adoptada, confirma-o). Ora, situando-se o caso além dos limites desta ineptidão, coloca-se apenas a questão da suficiência da causa de pedir, em sentido amplo, para suportar o pedido formulado.


4. Ponto no qual se verifica que a alegação não se mostra realmente cabal ou bastante.


Com efeito, e quanto ao intuito ou intenção dos simuladores, a petição inicial não contém uma alegação concludente de tal intenção. Esta intencionalidade ou finalidade pressupõe que se pretenda, com a aparência do negócio simulado, criar num terceiro uma imagem errónea da realidade negocial - embora não seja necessário que se pretenda prejudicar esse terceiro (aqui radica a distinção entre a simulação inocente e a simulação fraudulenta), tal em regra também sucederá.


O único momento onde a alegação de tal intenção teria algum apoio na petição inicial seria quando os recorrentes alegam que os AA. AA e BB transmitiram formalmente a propriedade da fracção, não por compra e venda, mas antes por doação «com vista e forma de não pagar impostos» (art. 19º da PI).


Tal alegação é simultaneamente imprecisa e insuficiente porquanto:


- de um lado, a alegação peca pela generalidade e ambiguidade, pois de tal formulação não se retira sem mais que pretendiam criar uma aparência negocial para enganar um terceiro, mormente o Estado. A formulação pode sugerir ou indiciar que se pretendia evitar o pagamento de impostos devidos (e assim prejudicar o Estado, dessa forma também enganado), mas tal não está suficientemente expresso, não sendo imediatamente compreensível de que impostos se trataria, e em que termos a diferenciação de negócios teria efeitos em tais impostos. Tal situação não é sequer a única compatível com a alegação. Ambiguidade esta que se revela na própria sentença, a qual não fixou o sentido da alegação na forma que os recorrentes agora explicitaram em recurso, associando-a, diversamente, a outra realidade.


- de outro lado, e decisivamente, a intenção tem que ser comum a todos os simuladores. Tal é decorrência do contorno legal da simulação e do acordo simulatório. Como a simulação constitui acto de ambos os simuladores, e nota essencial da simulação é enganar terceiros, só existe então simulação se ambos visam aquele engano. Aliás, se um deles não tiver essa intenção (de enganar terceiros), o regime muda: se o declarante pretende enganar o declaratário, existirá, da sua parte, reserva mental (art. 244º n.º1 do CC); se nenhuma intenção tem (não pretende enganar ninguém), será a divergência inconsequente, salvo se valer o regime do art. 236º n.º2 do CC [4]. Ora, a alegação apenas respeita aos primeiros AA., não abrangendo a terceira A.. A intenção desta não é alegada, embora seja patente, na petição inicial, que os AA. pretenderam envolver todos os AA. em todos os momentos da simulação. Assim, esta situação impede a verificação deste requisito intencional da simulação. A alegação é, também assim, insuficiente.


5. Pese embora os recorrentes dirijam o recurso, primeiramente, contra a omissão do despacho de aperfeiçoamento, acabam, depois, por defender que os factos provados seriam capazes de sustentar a sua pretensão, mormente a partir do descrito em 12 dos factos provados, ou que, por presunção, se poderiam ainda alcançar os factos relevantes (atinentes à intenção de enganar o Estado) - o que em rigor detém prioridade sobre aquela omissão, pois, a ser como alegam, tal omissão estaria suprida, tornando-se irrelevante.


Mas esta perspectiva não merece acolhimento.


De um lado, porquanto o facto em causa não descreve de forma directa qualquer intenção de enganar terceiros por parte dos intervenientes no negócio. A vontade de não pagar impostos (IMI) que em tal facto consta significa apenas que os primeiros AA. não querem pagar impostos, não que querem enganar, e daquela intenção ou finalidade não deriva sem mais este intuito enganador. Aliás, atendendo à literalidade do facto, que se reporta apenas ao IMI, a alienação do imóvel satisfaz a finalidade visada (não pagar impostos) sem ser necessária uma finalidade enganadora, pois, como nota a sentença recorrida e do ponto de vista daquele IMI, nenhum efeito advém da forma negocial utilizada (aquele imposto não é afectado muda em função do tipo de negócio) e tal forma é, para o Estado e para este imposto, indiferente.


O que se poderia era discutir a racionalidade do facto, ou da sua motivação, pois não é fácil perceber como a opção pela doação em vez da compra e venda se justificaria pela intenção de não pagar IMI (o tipo de negócio é, como referido, irrelevante para o efeito), mas, não impugnado o facto (e antes da avaliação do cabimento do despacho de aperfeiçoamento), nesta sede cabe apenas assinalar a sua insuficiência para sustentar a asserção que os recorrentes propõem.


Acresce que o facto apenas imputa a finalidade que descreve aos primeiros AA., deixando de fora a terceira A., em relação à qual nada se diz (na sequência, aliás, da limitada alegação).


Donde ser manifesto que tal facto não serve para sustentar a pretensão dos recorrentes.


De outro lado, e quanto à presunção que os recorrentes também afirmam poder ser utilizada (para presumir a intenção de prejudicar o Estado), tal está, em primeira linha, proibido pelo disposto nos art. 394º n.º2 e 351º do CC: não podem ser usadas presunções legais para demonstrar a simulação (qualquer um dos elementos constitutivos da presunção) quando invocada pelos simuladores, como ocorre no caso.


A menção dos temas da prova a esta intenção, também referida, é irrelevante porquanto a sua enunciação não supre, obviamente, a falta de alegação dos factos, e só sobre os factos alegados se produz a prova, e ainda porque, de qualquer forma, essa enunciação não teve relevo prático a final.


6. Naturalmente, a deficiência da alegação só é relevante, criando uma situação processualmente patológica, se tal deficiência condicionar a decisão do mérito da causa. Tal relevo não vem no caso impugnado e é, aliás, seguro, na medida em que, de um lado, a intenção de enganar (e prejudicar) o Estado, que poderia estar subjacente à alegação deficiente, pode ser considerada como capaz de integrar a intenção enganadora à simulação (é, seguramente, uma das soluções jurídicas possíveis, não cabendo aqui avaliação adicional). E, de outro lado, essa insuficiência é determinante do destino da acção, pois esta acaba por improceder, nesta parte, por falta de verificação desse requisito.


7. Constatada uma deficiência determinante da alegação, coloca-se então a questão do aperfeiçoamento, o qual se julga que seria realmente devido. Assim porque, como demonstrado, está em causa mera incompletude ou inconcludência da causa de pedir, passível de eventual sanação através do convite ao aperfeiçoamento. Trata-se, aliás, de insuficiência muito mitigada, em que não existe omissão completa dos factos integradores do aludido requisito, mas apenas uma alegação ambígua, algo genérica e, em último termo, apenas parcial. Ao ponto de, sem reserva, tal deficiência poder ser suprida no quadro do art. 5º n.º2 al. b) do CPC, caso a audiência de julgamento o admitisse [5]. O que constitui sinal claro de que à superação da insuficiência diagnosticada era igualmente adequado o convite ao aperfeiçoamento da alegação.


Ponto este onde se não adopta, como deriva dos exposto, a solução restritiva que limita o aperfeiçoamento ao domínio dos «esclarecimentos, aditamentos ou correcções», recusando que possa contemplar factos que integram a causa de pedir (factos que integram a previsão da norma que concede o efeito visado) por, salvo o devido respeito por opinião contrária, não corresponder nem à letra nem à intenção do regime, inerente aos art. 5º n.º2 al. b) e 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC, e, de forma mais ampla, aos art. 6º e 7º do CPC, e subjacente à distinção entre falta de causa de pedir e causa de pedir insuficiente (que aquelas primeiras normas pressupõem). Tal solução equivalia, aliás, a inutilizar o regime do aperfeiçoamento pois factos que não integram a causa de pedir ou são irrelevantes pois não condicionam a decisão final (e os esclarecimentos conhecem regime próprio: art. 7º n.º2 do CPC), ou são instrumentais, e não necessitam de intervenção aperfeiçoadora (não tendo sequer que ser alegados - art. 552º n.º1 al. d) do CPC, que se reporta aos factos essenciais, e art. 5º n.º2 al. a) do CPC). Sustenta-se, é certo, que os factos instrumentais podem ser objecto de aperfeiçoamento quando a lei deles retira a prova do facto principal (presunção legal) ou quando a parte confia em que deles seja retirada pelo julgador a ilação que os firma [6], mas a primeira situação é marginal e não justifica o regime legal, e a segunda não seria admitida, na referida tese restritiva, pois estar-se-ia sempre a usar o aperfeiçoamento para introduzir no processo um facto essencial. Sempre permanecia sem utilidade o aperfeiçoamento. E por isso que, aliás, se justifique afirmar que o art. 590º n.º4 «reporta-se, fundamentalmente, aos factos principais da causa, isto é, aos que integram a causa de pedir» [7] [8].


8. Esta constatação coloca um problema de enquadramento da falta de formulação de tal convite.


Aceita-se, de forma que se crê pacífica no actual regime processual, que tal convite, previsto no art. 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC, não constitui uma faculdade discricionária do juiz, mas um verdadeiro poder-dever, por o poder concedido (de formular o convite) estar funcionalizado à realização de finalidades materiais, a cabal discussão da causa com vista à justa composição do litígio (art. 6º n.º1 do CPC), a qual pressupõe um apuramento ajustado da realidade das coisas e assim o convite ao aperfeiçoamento da alegação meramente deficiente. E finalidades estas que se impõem ao juiz e de que este não pode dispor. Tal deriva aliás do sentido literal das normas legais pois o despacho depende exclusivamente da verificação da sua necessidade («sendo caso disso», na letra do n.º1 do art. 590º, pelo que a sua necessidade é o único critério da sua prolação), e constitui uma incumbência do tribunal (n.º4 do art. 590º). O convite é, assim, um acto obrigatório, quando se verifique a sua necessidade.


No caso, não importa a discussão sobre o momento processual ajustado à formulação do convite, e sobre o vício decorrente dessa omissão nesse momento tido por processualmente ajustado. Importa apenas avaliar a questão em função da situação concreta, com decisão de mérito que julga improcedente a acção por insuficiência de alegação que podia ter sido corrigida, não tendo o tribunal promovido essa correcção, em contravenção ao disposto naquele art. 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC.


Quanto ao enquadramento desta violação da lei processual (nas condições presentes no caso), este oscila essencialmente entre três pólos. Para um primeiro, a omissão do acto devido configura uma nulidade processual quando seja susceptível de afectar a sentença como ocorre no caso (art. 195º n.º1 do CPC), mas, porque a omissão apenas se torna patente com a decisão final (na qual o desfecho da acção é determinado pela falta de elementos de facto, falta que o convite ao aperfeiçoamento podia suprir), defende-se que o vício radica na própria decisão, e que o vício se traduz num excesso de pronúncia, no sentido de que a falta do devido convite ao aperfeiçoamento da alegação devia impedir que a deficiência da alegação fosse usada como critério da decisão - tudo para os termos do art. 615º n.º1 al. d) do CPC, nulidade esta a invocar em sede de recurso (art. 615º n.º4 do CPC). Para um segundo, dando relevo ao acto omitido enquanto acto inserido na tramitação, e externo à decisão final, afirma-se estar em causa uma nulidade comum, derivada do art. 195º n.º1 do CPC. Para uma terceira posição, está em causa um erro de julgamento (da sentença) incidente sobre questão adjectiva (a decisão de decidir sem prévio aperfeiçoamento), que levará o tribunal da Relação a revogar a sentença e a proferir o convite ao aperfeiçoamento, o qual, se acolhido, determinará a produção de prova sobre os novos factos e a prolação de nova sentença (na primeira instância) [9]. Trata-se de solução que, de um lado, parte de um erro de julgamento que se não vê verificado (o tribunal não decide mal, actua, para decidir, fora do quadro devido), e, de outro lado, excede o quadro e o sistema legal, não tendo apoio no direito constituído, o qual reserva o convite ao tribunal de primeira instância (a quem cabe, em conformidade, proceder à actividade instrutória e decisória inerente), e define em termos distintos o papel (de reponderação) da instância de recurso.


Assim, e quanto às duas primeiras qualificações (a primeira mais ajustada à materialidade do vício, por se revelar na sentença; a segunda mais conforme ao sentido processual, não de julgamento, do vício), e embora se tenda a considerar mais ajustada a primeira, revelam-se conformes no diagnóstico do vício.


A questão que as diferencia prende-se com o momento ou forma de invocação do vício. Mas mesmo na segunda das soluções, a jurisprudência tem vindo, de forma predominante e com boas razões, a admitir que a nulidade seja invocada no recurso da decisão pela qual se manifesta o vício. Desde logo por tal se ajustar com propriedade ao momento de verificação/conhecimento do vício (o vício manifesta-se apenas com a sentença, só com esta se tornando patente, e torna-se conhecido com a notificação desta), e ainda constituir uma forma imediata, e com economia, de reacção a vício que surge na estrita dependência da sentença (e sua notificação). Assim, nesta perspectiva, as duas soluções coincidem essencialmente no mesmo resultado processual, o qual se mostra, mesmo na segunda solução e pelas razões indicadas, justificado [(i) sustentando estar em causa uma nulidade por excesso de pronúncia, Acs. do TRP proc. 3163/19.8T8OAZ.P1 de 11.01.2021, proc. 11226/16.5T8PRT-A.P1 de 10.09.2019 ou proc. 1587/20.7T8PVZ.P1 de 15.12.2021, do TRL proc. 8032/21.9T8LSB.L1-6 de 14.09.2023 ou proc. 836/20.6T8LSB.L1-2 de 10.03.2022, do TRG proc. 1066/19.5T8VRL.G1 de 28.10.2021 ou do TRE proc. 5210/21.4T8STB.E1 de 15.06.2023, e C. Mendes e T. de Sousa, Manual de processo civil, vol. II, AAFDL 2022, pág. 84, sendo também T. de Sousa por último no comentário no Blog do IPPC de 05/07/2024 - Jurisprudência 2023 (207), disponível online (ou ainda em 19/01/2015 - A consequência da omissão do convite ao aperfeiçoamento: um apontamento, também naquele Blog), e A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2024, pág. 33 e ss.; admitindo também a verificação desta nulidade, Ac. do TRC proc. 79820/22.6YIPRT.C1 de 05.03.2024; (ii) sustentando estar em causa uma nulidade comum, mas admitindo, expressa ou implicitamente [10], a sua invocação em recurso, Ac. do STJ proc. 656/14.7T8LRS.LL.S1 de 16.12.2020, Ac. do TRP proc. 639/18.8T8PRD.P1 de 30.04.2020, Acs. do TRL proc. 7599/16.8T8SNT.L1-7 de 14.03.2017 ou proc. 10908/22.7T8LSB.L1-4 de 14.12.2023, do TRG proc. 357/13.3TBVRM.G1 de 04.04.2017, ou do proc. 2929/15.2T8STR-A.E1 de 26.10.2017 ou proc. 1709/18.8T8ENT-B.E1 de 14.10.2021 (este, porém, para convite para junção de documentos); ou Acs. do TRP proc. 1676/16.2T8OAZ.P1 de 08.01.2018, proc. 3738/18.2T8AVR.P1 de 22.02.2021 ou proc. 4475/16.8T8MAI.P1 de 15.05.2020, ou Ac. do TRL proc. 13824/21.6T8SNT.L1-7 de 08.04.2025; (iii) sem formulação expressa quanto ao vício, mas conhecendo-o em sede de recurso, Ac. do TRE proc. 1544/18.3T8STR.E1 de 14.01.2021 (parecendo pressupor a existência de nulidade comum), Ac. do TRP proc. 2311/22.5T8VNG.P1 de 13.03.2023, proc. 7052/24.6T8VNG.P1 de 27.01.2025 ou proc. 380/18.1T8ESP-A.P1 de 24.01.2022 ou Ac. do TRG proc. 6563/21.0T8GMR.G1 de 15.02.2024; (iv) sustentando estar em causa nulidade comum, da qual se deve reclamar (e não recorrer) Ac. do STJ proc. 20714/13.4YYLSB-B.L1 de 10.09.2019 ou Acs. do TRC proc. 174/22.0T8OLR.C1 de 08.10.2024 e proc. 475/23.0T8CTB.C1 de 30.12.2023 (ambos do mesmo relator), e ainda P. Pimenta, Processo civil declarativo, Almedina 2023, pág. 265/6, L. Freitas, A acção declarativa comum, Gestlegal 2023, pág. 197/8 e nota 24, Salvador da Costa, A injunção e as conexas acção e execução, Almedina 2021, pág. 141/2, U. Dias, Breves nótulas sobre o controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância, 16.06.2014, Blog do IPPC, e Daniel Bessa de Melo, Causa de pedir e pedido na injunção, Revista de Direito Civil, 2022, n.º4, pág. 833 nota 60 [11]; (v) também sustenta estar em causa uma nulidade comum, mas sem referir os termos da sua invocação, M. Mesquita, Anot. em RLJ 154/335] [12].


Justifica-se assim a anulação da sentença, para formulação do convite ao aperfeiçoamento.


9. Importa, porém, considerar que esta anulação da sentença tem um carácter limitado, circunscrito à matéria do aperfeiçoamento.


Com efeito, o âmbito da alegação imperfeita é que delimita o aperfeiçoamento e inerentemente o âmbito da anulação. Isto considerando que:


- o aperfeiçoamento não permite exceder o objecto que lhe é fixado pelo convite, nem pode por isso servir para ampliar ou alterar a alegação de outros factos essenciais (tal decorre do fundamento e teleologia do aperfeiçoamento, e tem apoio no art. 590º n.º6 do CPC).


- a instrução a realizar terá por objecto apenas a matéria aperfeiçoada (art. 590º n.º5 do CPC) e, em conformidade, a nova decisão sobre a matéria de facto apenas sobre esses factos incidirá.


- os demais factos, externos ao aperfeiçoamento, estão já consolidados por via do seu julgamento que não é afectado pelo vício (nulidade) diagnosticado (parcial) nem foi impugnado nem pode por isso ser reponderado. Esta inimpugnabilidade é efeito, de um lado, da limitação da cognição deste tribunal ao objecto do recurso definido pelos recorrentes (dispositivo), com relevo mormente na proibição de modificação da decisão (art. 635º n.º5 do CPC), ficando assim afastada a reponderação da questão, em articulação, de outro lado, com a falta de impugnação da questão pelo R. (com a inerente preclusão do direito de discutir aquela questão) [13].


- solução que tem apoio, de um lado, no regime do citado art. 635º n.º5 do CPC, e de outro lado na ideia da redução dos efeitos da nulidade ao que por ela seja directamente afectado, patente, no âmbito processual, no art. 195º n.º2 e 3 do CPC, tributária ainda de uma ideia de economia (art. 130º do CPC).


Ponto este onde se nota que o facto descrito em 12 está situado no âmbito da anulação, mas apenas em parte (quanto ao motivo descrito), e por isso se deve levar em conta que: i. esse facto não pode ser alterado no que excede a matéria do aperfeiçoamento, e ii. a sua redacção (aparentemente restritiva) no que respeita ao motivo, não pode constituir obstáculo à discussão eventualmente mais ampla que do acolhimento do convite ao aperfeiçoamento decorra.


10. Os AA. imputam de seguida à sentença nulidades derivadas directamente do art. 615º do CPC.


11. Atendendo à alegação do recurso, os AA. afirmam que a sentença é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia (art. 615º n.º1 al. b) e d) do CPC) (n.º 5.1 das alegações), porquanto:


a) «o Tribunal a quo não indica os fundamentos de facto, não elabora um exame crítico das provas, não concretize[a] os factos que considera provados e coloca na base da decisão, referente aos pedidos da fração “G” e aos pedidos constantes das alíneas d) a f)» (n.º 5.3 das alegações).


b) «é fundamental, sob pena de nulidade da sentença que sejam mencionados os princípios, as regras, as normas em que a decisão se apoia, o que não aconteceu no que se refere à fração “G” e aos pedidos a) a f), e em particular aos pedidos constantes das alíneas b) e d» (n.º 5.4 das alegações).


Assim, a nulidade, nas alegações, vem imputada à pretensão [14] relativa à fracção G (al. a) mas também, pelo n.º 5.4 das alegações (al. b), à pretensão relativa à fracção Q, já que aqui os AA. reportam-se a todos pedidos formulados e assim também aos pedidos atinentes a esta fracção Q (al. b).


Nas conclusões, verifica-se que:


a) os recorrentes reiteram a nulidade por falta de fundamentação e omissão de pronúncia no que à fracção G (e respectivos pedidos) respeita, referida na al. a) supra - conclusões 7.24 a 7.26.


b) reiteram a nulidade atinente aos pedidos a) a f) referida na al. b) supra - primeira parte da conclusão 7.27.


c) invocam a nulidade da sentença assente na contradição entre a matéria provada e a decisão, com base no art. 615º n.º1 b), c) d) e e) do CPC.


12. Começa por notar-se que esta terceira nulidade (assente na contradição entre a matéria provada e a decisão) não foi invocada nem discutida nas alegações, o que impede a sua avaliação.


Com efeito, o recurso é, como corolário do princípio do dispositivo, necessariamente fundamentado, estando esta fundamentação subordinada a dois momentos: a alegação, onde se desenvolvem as razões que sustentam o recurso, e as conclusões, nas quais se sintetizam aquelas razões, assim se expondo os fundamentos invocados de forma sucinta e resumida (art. 637º n.º2 e 639º n.º1 do CPC). A função das conclusões analisa-se na individualização precisa do objecto do recurso, ao delimitar e definir os concretos fundamentos invocados (delimitando assim o poder de cognição do tribunal e intervindo ainda na salvaguarda do exercício cabal do contraditório). As alegações obedecem a um princípio mais amplo, contendo o desenvolvimento e discussão das razões que servem de fundamento ao recurso e que são, depois, sintetizadas nas conclusões. Existe, assim, entre as alegações e as conclusões uma relação «bi-unívoca» ou de interdependência e complementaridade, já que as alegações sustentam as conclusões, e as conclusões delimitam o alcance das alegações, fixando o seu sentido. Deste modo, os fundamentos invocados para sustentar o recurso têm que constar quer das alegações, onde são discutidos, quer das conclusões, onde são sumariamente evidenciados como questão a apreciar: nas alegações, o recorrente explana as razões, motivos e interpretações; nas conclusões, define o sentido preciso do argumento ou fundamento, assim o integrando no objecto do recurso. Sem a conclusão, o fundamento não integra o objecto do recurso. Sem a alegação, a conclusão atraiçoa a sua finalidade, pois, sem suporte argumentativo, não constitui síntese de coisa alguma, sendo assim gratuita: as conclusões, dada a sua exposta natureza (de síntese do alegado, o qual pressupõem), não podem inovar nem ampliar o recurso (como aliás deriva quer do art. art. 639º n.º1 do CPC quer, a contrario, do art. 635º n.º4 do CPC, pois aí admite-se a restrição mas não a ampliação do recurso nas conclusões). Sem ser cabível qualquer aperfeiçoamento por legalmente circunscrito às conclusões, não contemplando as alegações (art. 639º n.º3 do CPC) [15].


Não é assim possível conhecer aquela terceira nulidade.


Isto sem embargo de ainda se notar que, ainda que assim não fosse, os recorrentes nunca explicitam aonde radicaria a invocada contradição (limitando-se a afirmá-la em termos axiomáticos), nem se vê, realmente, onde ela poderia assentar, dada a coerência interna da sentença recorrida.


13. No que toca à nulidade atinente à fracção Q, o exposto quanto ao vício inerente à omissão do despacho de aperfeiçoamento não prejudica a sua avaliação. Pois esta nulidade tem um sentido total (viciando a totalidade da sentença) que excede o efeito anulatório descrito, para além de as nulidades serem, em rigor, compatíveis, no sentido de cumuláveis. Justifica-se, pois, o seu conhecimento.


14. No que toca à nulidade relativa à fracção G, deve atentar-se em que a acção assenta em duas causas de pedir distintas, a que correspondem pedidos também distintos (sendo patente a divisibilidade e autonomia dos efeitos pretendidos). Com efeito, a situação das duas fracções em causa corresponde a realidades fácticas distintas, subordinadas a qualificações jurídicas diversas, e conduzindo a pretensões e decisões autónomas (no sentido de que cada uma pressupõe uma decisão própria, embora nada impedindo que, em último termo, decisões idênticas se aglutinem no dispositivo da sentença - como ocorreu no caso). A acção integra assim uma cumulação de pedidos assente em relações jurídicas diferentes, o que conduz, em sentido amplo, a uma cumulação de acções.


O que significa que, para além das razões referidas quanto à fracção Q, também aqui se impõe conhecer a nulidade e por razões acrescidas, pois o vício diagnosticado apenas respeita à sentença no que diz respeito à primeira pretensão, atinente à fracção Q. Já não afecta a sentença no que respeita à segunda pretensão, atinente à fracção G (garagem).


15. Os AA. consideram que a sentença seria nula por força do art. 615º n.º1 al. b) e d) do CPC. Desta norma deriva, na parte ora relevante, que:


1 - É nula a sentença quando:


a) (…)


b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;


c) (...);


d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (...).


No que respeita à falta de fundamentação da sentença, é dominantemente aceite que só existe esta falta de fundamentação (de facto e/ou de direito) quando ela seja total, completa (falando-se de «falta absoluta de fundamentação» ou de «absoluta falta de indicação das razões de facto e de direito»). Não obstante, também se tende a admitir, embora de forma menos pacífica, que tal falta também ocorrerá ao menos quando ocorra uma falta funcional de fundamentação, ou seja, quando a fundamentação é apenas aparente por não ter conteúdo, esgotando-se em fórmula sem significado próprio, sem elencar verdadeiras razões determinantes da decisão: nestes casos continuaria a faltar completamente a fundamentação.


Quanto à omissão de pronúncia, ela ocorrerá quando o tribunal deixe de apreciar questões que, nos termos do art. 608º n.º2 do CPC, devia ter conhecido. A noção de questões relevante para este efeito, co-determinada pela definição do âmbito do caso julgado, equivale às questões de direito correspondentes aos pedidos, causas de pedir e excepções formuladas (ou, nas excepções, também as oficiosamente cognoscíveis).


Para sustentar a sua pretensão, os recorrentes afirmam, quanto à segunda pretensão (fracção G), que a sentença seria nula porquanto «não indica os fundamentos de facto, não elabora um exame crítico das provas, não concretize[a] os factos que considera provados e coloca na base da decisão» . Assentam a sua pretensão, assim, numa omissão total, na existência de «uma sentença totalmente omissa».


Atendendo aos termos da sentença, e no que concerne à primeira nulidade imputada, verifica-se que ela contém factos atinentes à segunda pretensão (garagem), tal como deriva do descrito em 14 a 18 dos factos provados (factos que, aliás, os recorrentes até invocam e descrevem nas conclusões - (conclusão 7.27, já referida). Quanto à motivação do apuramento de tais factos, e embora seja este aspecto cuja integração no âmbito da nulidade da sentença em causa não seja seguro, ela também consta da sentença, em termos expressos (motivação que é feita por referência aos números de todos os factos provados).


Do ponto de vista das razões jurídicas, a sentença também avalia esta segunda pretensão, afirmando-se que «Improcedendo os pedidos relativos à fração “Q”, o mesmo deverá suceder no que à fração “G” diz respeito, uma vez que não se mostram verificados os requisitos previstos no art. 1723º, al. c), do CC, de modo a que a fração em causa pudesse ser considerada um bem próprio da A. CC (nem a aquisição foi feita com dinheiro ou valores próprios da A. CC, nem a escritura contém qualquer menção sobre a proveniência do dinheiro ou valores, sem olvidar que o R. não interveio na escritura). O que é o mesmo que dizer que a ação vai ser julgada totalmente improcedente, havendo decaimento dos AA. quanto aos pedidos deduzidos nas supracitadas alíneas a) a f).». A fundamentação pode ser sintética, mas não é seguramente inexistente nem aparente, sendo claramente indicadas as razões, plurais, por que se considerou que a pretensão não pode ser acolhida, e sendo também indicado ainda o efeito dessa avaliação nos concretos pedidos formulados.


Do ponto de vista da omissão de pronúncia, o exposto também revela que a sentença avaliou a causa de pedir relativa à segunda pretensão, e bem assim os pedidos com ela relacionados, sendo o dispositivo conforme a tal avaliação quando julga improcedente a acção e absolve o R. dos pedidos, ou seja, de todos os pedidos formulados.


Nenhuma omissão é aqui discernível.


16. Ainda do ponto de vista da falta de fundamentação e da omissão de pronúncia, os recorrentes imputam tais vícios à sentença por referência a todos os pedidos formulados. Sustentam a pretensão no facto de ser «fundamental, sob pena de nulidade da sentença que sejam mencionados os princípios, as regras, as normas em que a decisão se apoia, o que não aconteceu». Ora, atendendo ao teor da sentença, verifica-se que esta indica as regras legais pertinentes, e os princípios inerentes, de forma cabal (invocando, nomeadamente, os art. 240º e 1723º al. c) do CC). É manifesto que também este vício não ocorre.


E, deste modo, não se verificam as nulidades imputadas.


17. O recurso visa, por fim, também a condenação dos AA. como litigantes de má fé.


Esta condenação diz respeito a factos relativos à fracção G (garagem), pelo que também não é afectada pelo vício apontado, devendo ser aqui avaliada.


A sentença fez assentar a condenação na seguinte fundamentação: «no que tange aos pedidos atinentes à fração “G”, relativamente aos quais se provou que parte da quantia disponibilizada pelos AA. BB e AA acabou por ser restituída pelo R. (embora não se tenha apurado, em concreto, que valor foi efetivamente restituído), deve entender-se que, por estarmos perante um facto pessoal que os AA. não podiam deixar de conhecer, a alegação de que houve uma doação de tal quantia consubstancia, pelo menos, uma atuação com negligência grave, justificando a condenação dos AA. por litigância de má-fé, em multa e indemnização (art. 542º, nºs. 1 e 2, al. b) do CPC).».


Do exposto depreende-se que se considerou que o apuramento de que o R. restituiu parte da quantia disponibilizada pelos AA. para adquirir a garagem, facto pessoal que não podiam deixar de conhecer, era incompatível com a afirmação dos AA. de que a quantia tinha sido doada pelos primeiros AA. à terceira A.. Donde que, ao afirmarem esta doação, estariam a alterar a verdade dos factos, para os termos do art. 542º n.º2 al. b) do CPC.


Perante esta fundamentação, cabe notar, de um lado, que dos factos provados consta que a quantia foi restituída ao A., não se fazendo qualquer menção às demais AA.. Quanto a elas, nada mais consta, nesta parte, mormente que tal restituição era do conhecimento destas AA.. Pelo que ficaria por revelar que estas tinham conhecimento de tal facto (a restituição), não havendo assim razão, mesmo segundo a lógica da decisão recorrida, para as considerar litigantes de má fé. Decerto, podia hipotisar-se (ou presumir-se) que, dada a ligação destas AA. ao A., e a ligação da terceira A. também ao R., deveriam ter conhecimento do facto. Mas a ilação não assenta em dados seguros, sendo ainda possível que o A. não tenha partilhado o facto com as AA.: trata-se de meras possibilidades, sem que alguma tenha consistência suficiente para superar determinantemente a outra. A condenação não poderia manter-se, assim, no que às AA. concerne.


De outro lado, a asserção que justifica a condenação não tem, face à alegação e aos factos provados, suporte seguro.


Com efeito, o que os AA. alegaram foi que a garagem foi adquirida com dinheiro que os pais da terceira A. lhe ofereceram/doaram, e que o R. «não contribuiu com qualquer quantia para a celebração deste negócio» [16] (art. 38º, 39º, 67º e 68º da PI).


O que se prova é que foram usados fundos dos primeiros A. e que o R. restituiu ao A. parte da quantia usada.


Ora, e de um lado, esta restituição é, por natureza, subsequente ao negócio, e por isso não contraria a asserção de que o R. não contribuiu (financeiramente) para a celebração do negócio. E, de outro lado, a verdade é que a restituição é compatível com aquela doação pois aquilo que é doado também pode ser restituído. Mormente porque pode o cônjuge do donatário discordar ou mudar de ideia e pretender restituir o valor equivalente à doação. A ambiguidade surge porque se ignora qual o título da restituição e, assim sendo, ela é compatível com um conjunto de causas diversas, não sendo, por natureza ou só por si, incompatível com uma prévia doação. Donde que, perante os estritos factos provados, se não possa afirmar que os AA. alteraram a verdade dos factos.


Não pode subsistir, assim, a condenação dos AA. como litigantes de má fé.


18. O R./recorrido decai no recurso quanto à primeira das pretensões (no sentido exposto) e quanto à litigância de má fé. Estes AA./recorrentes decaem no que à segunda pretensão respeita. Assim, tendo em conta o significado relativo das questões indicadas, considera-se ajustado que os recorrentes suportem 35% do valor das custas, suportando o recorrido a parte restante - embora, quanto a este, sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário.


VI. Pelo exposto, decide-se:


- anular a sentença recorrida, na parte relativa à intenção dos AA. acima referida, determinando que seja proferido despacho de aperfeiçoamento tendente, nos moldes também acima indicados, a completar e concretizar a alegação, pelos AA., de tal intenção;


- revogar a sentença recorrida no que à condenação dos AA./recorrentes como litigantes de má fé respeita;


- julgar improcedente o recurso na parte restante.


Custas pelos recorrentes e pelo recorrido, na proporção de trinta e cinco / sessenta e cinco por cento, e sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário.


Notifique-se.


Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):


(…)

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).


António Fernando Marques da Silva - relator


José António Moita - adjunto


Francisco Xavier - adjunto

________________________________________

1. Em reprodução literal.↩︎

2. A afirmação da oficiosidade da intervenção do tribunal (não dependente, pois, da iniciativa das partes) constitui a solução dominante e a que se adere (pese embora se conheçam posições contrárias). A economia da decisão não justifica, porém, desenvolvimentos adicionais sobre a questão.↩︎

3. Pese embora subsista alguma divergência sobre a questão, divergência esta que se prende com a inclusão na causa de pedir de todos os factos essenciais necessários ao acolhimento da pretensão ou apenas dos factos essenciais bastantes para individualizar aquela causa de pedir (ainda que insuficientes para alcançar o efeito jurídico visado), a questão não tem relevo próprio no caso.↩︎

4. Assim, quando nenhum dos simuladores pretende enganar terceiro, P. Pais de Vasconcelos e P. Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria geral do direito civil, Almedina 2022, pág. 679.↩︎

5. O que se admite que não permitisse. Esta é questão de que o recurso não trata. Apenas se aflora como ponto de apoio argumentativo.↩︎

6. L. Freitas e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 2º, Almedina 2022, pág. 570.↩︎

7. L. Freitas e I. Alexandre, ob. cit., pág. 634.↩︎

8. Não sendo esta perspectiva sustentada na resposta ao recurso, a economia da decisão não justifica desenvolvimentos adicionais.↩︎

9. Assim, Paulo Ramos de Faria / Nuno Lemos Jorge, As outras nulidades da sentença cível, Julgar online, especialmente pág. 61 e ss..↩︎

10. Por conhecerem o vício no recurso, embora sem aferir de forma expressa a possibilidade de a nulidade ser invocada no recurso.↩︎

11. Ponto onde se nota uma clara diferenciação jurisprudencial, com maior abertura ao conhecimento do vício, sem dúvida em homenagem aos valores em causa, à fisionomia concreta da situação e ao relevo da law in action.↩︎

12. O Ac. do STJ proc. 1566/22.0T8GMR-A.S1 de 06.02.2024, e pese embora a formulação do sumário, tende a referir apenas a nulidade comum na sua fundamentação.↩︎

13. Refere-se mesmo, por vezes, a existência de caso julgado na parte não impugnada como forma de salientar esta definitividade do avaliado não impugnado - embora, em rigor, não havendo segmento decisório autónomo e existindo recurso, não exista verdadeiro caso julgado (art. 628º do CPC).↩︎

14. Utiliza-se a menção à pretensão em sentido impróprio e amplo, contemplando os vários pedidos que integram cada uma das acções cumuladas.↩︎

15. Assim, A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 159, e R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 295 (se as conclusões versam matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes, diz-se aí, aderindo a Ac. do TRC, proc. 1840/16 e citando-se ainda Ac. do TRE proc. 612/08). Sobre a constitucionalidade da solução, v. Ac. 462/2016, do TC (disponível online).↩︎

16. Sublinhado aditado nesta sede.↩︎