Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
322/24.5T8SLV-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
COMUNICABILIDADE
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 06/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A consequência da impossibilidade de enquadramento da situação da executada, seja no n.º 1 do artigo 53.º do CPC, seja no seu artigo 54.º, é inevitável: a ilegitimidade passiva daquela para a acção executiva que os recorrentes lhe moveram.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 322/24.5T8SLV-A.E1

Exequentes/embargados/recorrentes: (…); (…).

Executados/embargantes/recorridos: (…); (…).

No requerimento executivo, os exequentes alegaram, em síntese, o seguinte:

- Em 20.07.2022, através de documento autenticado, exequentes e executados celebraram uma confissão de dívida e acordo de pagamento;

- Nesse documento, os executados declararam-se devedores da quantia de € 30.000,00 aos exequentes e obrigaram-se a pagá-la até 31.12.2023;

- Porém, esse pagamento não foi efectuado;

- A execução foi instaurada em litisconsórcio necessário activo e passivo devido ao regime de comunhão de bens matrimoniais (adquiridos), quer dos exequentes, quer dos executados.

Os executados deduziram embargos de executado, alegando, na parte relevante para a decisão do recurso, o seguinte:

- A executada não se confessou devedora de qualquer quantia e nada tem a ver com os negócios havidos entre o executado e os exequentes, pelo que carece de legitimidade processual;

- Os exequentes não invocaram a comunicabilidade da dívida, nem alegaram factos que permitam concluir que a dívida é comum;

- A executada não aceita a comunicabilidade da dívida;

- O executado é titular de um crédito, contra os exequentes, no montante de € 61.715,81, pretendendo operar a sua compensação com o crédito exequendo;

- Sendo certo que a compensação pode ser deduzida na oposição à execução, ao abrigo do disposto no artigo 729.º, alínea h), do CPC, sem necessidade de o respectivo crédito estar previamente reconhecido judicialmente, bastando que esteja em condições de ser judicialmente reconhecido nos termos do artigo 817.º do Código Civil, isto é, por acção de cumprimento e execução.

Os exequentes contestaram, alegando, na parte relevante para a decisão do recurso, o seguinte:

- A legitimidade processual da executada decorre do simples facto de ela ser casada com o executado, subscritor do documento de confissão de dívida, no regime de comunhão de adquiridos; trata-se de uma situação de litisconsórcio necessário passivo;

- Apenas é conhecido, aos executados, um bem penhorável: a titularidade conjugal de uma quota ideal numa fracção imobiliária detida em compropriedade com os exequentes;

- Quota essa que virá a ser penhorada;

- O direito de crédito invocado na petição de embargos também o foi, anteriormente, na reconvenção que os executados deduziram na acção de divisão de coisa comum contra eles proposta pelos exequentes;

- Essa acção de divisão de coisa comum encontra-se pendente e a decisão dos presentes embargos encontra-se dependente do seu julgamento;

- Pelo que deve ser determinada a suspensão dos presentes embargos, nos termos do n.º 1 do artigo 272.º do CPC, sem prejuízo do prosseguimento da execução;

- Tal suspensão da instância de embargos de executado deverá manter-se até que a acção de divisão de coisa comum se ache definitivamente julgada – artigo 276.º, n.º 1, alínea c), do CPC;

- O crédito invocado na petição de embargos não existe.

Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu, nomeadamente, o seguinte:

- Declarar a executada parte ilegítima;

- Suspender a instância dos embargos de executado até à prolação de decisão na acção de divisão de coisa comum.

Os exequentes interpuseram recurso do despacho saneador, tendo formulado conclusões que assim sintetizamos:

1 – A razão da propositura da acção executiva também contra a executada não decorria do título executivo, mas sim da comunicabilidade da dívida do executado, como especificaram na contestação.

2 – O tribunal a quo fez disso tábua rasa, julgando a executada parte ilegítima, «argumentando com a insusceptibilidade do título executivo a poder obrigar, e também com a não comunicabilidade da dívida dos executados, e, ainda, no facto de uma decisão de indeferimento da aludida excepção de ilegitimidade “coarctar a possibilidade daquela (executada) fazer uso da faculdade que lhe é concedida por lei no referido artigo 740.º”, louvando-se, para a estas conclusões chegar, seja no artigo 741.º do NCPC, que versa justamente o incidente de comunicabilidade suscitado pelo exequente, seja no artigo 1691.º do CC, que se ocupa das “dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges”».

3 – Ora, não é assim.

4 – Aplica-se, à executada, o artigo 741.º do CPC, pelo que os exequentes podiam, como efectivamente fizeram, deduzir o incidente de comunicabilidade no próprio requerimento executivo.

5 – Em face do que o cônjuge do executado deve ser citado para, em 20 dias, declarar se aceita a comunicabilidade da dívida.

6 – Que foi o que aconteceu, não tendo a executada aceitado a comunicabilidade da dívida, embora sem fundamentar.

7 – Quando tal sucede, segue-se o julgamento da questão da comunicabilidade, coisa que o tribunal a quo não fez, antes tendo julgado a executada parte ilegítima, decisão esta que deverá ser anulada, determinando-se que a executada se mantenha nos autos, pelo menos até ser decidido o incidente de comunicabilidade.

8 – O tribunal a quo alargou, oficiosamente, o âmbito da excepção de compensação, conhecendo «da necessidade/desnecessidade de suspender o andamento, seja da execução, seja dos respectivos embargos, ou de ambos, por via daquele suposto contracrédito».

9 – Como ninguém, maxime os embargantes, solicitou que fosse decidida essa suspensão, tal decisão acha-se ferida de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC.

10 – A apreciação feita pelo tribunal a quo tinha de se cingir ao excepcionado pelos executados, ou seja, à apreciação da excepção de compensação de créditos, devendo ser dado por não escrito o demais.

11 – Para poder ser objecto de compensação em sede de execução, o contracrédito deve ter sido judicialmente reconhecido, isto é, não pode ser controvertido.

12 – O crédito invocado na petição de embargos não se encontra nessas condições, pelo que não pode ser objecto de compensação em sede de execução, donde, por sua vez, decorre que não há fundamento para suspender a execução ou, sequer, os embargos de executado.

13 – Pelo que o despacho saneador deverá ser anulado, seja no que tange à decisão que considerou poder ser aqui apresentado, com sucesso, pelos executados, um contracrédito ainda em curso de discussão num outro processo, seja na parte que ordenou a suspensão do apenso dos embargos de executado.

14 – Isto se, quanto a este último aspecto, não for declarada, antes, a nulidade do despacho por excesso de pronúncia, acima esgrimida.

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Legitimidade processual da recorrida (…);

2 – Suspensão da instância;

3 – Compensação.


*


1 – Legitimidade processual da recorrida (…):

Ao contrário do que é alegado no requerimento executivo, a recorrida (…) não confessou a dívida exequenda, pois não assinou o documento de que consta tal confissão.

Na contestação que deduziram nos presentes embargos de executado, os recorrentes alteraram o fundamento da legitimidade processual da recorrida (…). Tal legitimidade decorreria do simples facto de esta ser casada, no regime de comunhão de adquiridos, com o recorrido (…), subscritor do documento de confissão de dívida, tratando-se de uma situação de litisconsórcio necessário passivo.

Nas alegações de recurso, os recorrentes mantêm este entendimento, com fundamentação mais desenvolvida.

Analisemos a questão.

A regra geral de determinação da legitimidade para a acção executiva encontra-se consagrada no artigo 53.º do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas adiante referenciadas). O n.º 1 deste artigo estabelece que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. O n.º 2 estabelece que, se se tratar de título ao portador, será a execução promovida por este último. O artigo 54.º prevê as excepções a esta regra.

Não constando a recorrida (…) do título executivo como devedora, a sua legitimidade processual não decorre do n.º 1 do artigo 53.º. Por outro lado, a qualidade em que a recorrida (…) foi demandada (meramente por ser casada com o recorrido (…) no regime da comunhão de adquiridos e a dívida ser, alegadamente, comunicável) não se enquadra em qualquer das excepções previstas no artigo 54.º.

A consequência da impossibilidade de enquadramento da situação da recorrida (…), seja no n.º 1 do artigo 53.º, seja no artigo 54.º, é inevitável: a ilegitimidade passiva daquela para a acção executiva que os recorrentes lhe moveram.

Em abono da sua tese de que a recorrida (…) tem legitimidade passiva para a acção executiva, os recorrentes invocam o disposto no artigo 741.º.

Sem razão, porém.

Do artigo 741.º não resulta que o credor que, com fundamento na natureza comunicável da dívida, pretenda ver penhorados bens comuns do casal, possa instaurar a acção executiva, não só contra a pessoa cuja qualidade de devedor resulta do título executivo, mas também contra o cônjuge desta. Resulta precisamente o contrário, pois a sua aplicabilidade tem, como pressuposto, que a execução seja movida apenas contra um dos cônjuges, mais precisamente contra o cônjuge cuja qualidade de devedor resulta do título executivo.

Instaurada a acção executiva contra este último, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 53.º, o exequente que pretenda penhorar bens comuns do casal tem o ónus de alegar, fundamentando, que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comunicável. Ainda que essa alegação seja feita logo no requerimento executivo, o cônjuge de quem consta do título executivo como devedor carece de legitimidade passiva para ser imediatamente demandado como executado.

Nos termos do n.º 2 do artigo 741.º, o cônjuge não executado deverá ser citado para, no prazo de 20 dias, declarar se aceita a comunicabilidade da dívida, baseada no fundamento alegado, com a cominação de que, se nada disser, a dívida é considerada comum, sem prejuízo da oposição que contra ela deduza.

Ainda na hipótese de a alegação da natureza comunicável da dívida ser feita no requerimento inicial, o cônjuge não executado poderá impugnar tal alegação em oposição à execução, quando a pretenda deduzir, ou em articulado próprio, quando não pretenda opor-se à execução – artigo 741.º, n.º 3, alínea a).

O tribunal decidirá se a dívida deve ser considerada comunicável. Estabelece o n.º 5 do artigo 741.º que, «Se a dívida for considerada comum, a execução prossegue também contra o cônjuge não executado». Entenda-se: Apenas se e quando for preferida decisão no sentido da qualificação da dívida exequenda como comunicável é que o cônjuge do primitivo executado passará a sê-lo também. A sua legitimidade processual depende dessa decisão. Antes dela, não a tem.

No caso sob apreciação, os recorrentes nem sequer deram início ao incidente regulado no artigo 741.º. Limitaram-se a instaurar, desde logo, a execução também contra a recorrida (…), alegando, como fundamento da sua pretensa legitimidade processual, que ela confessara a dívida exequenda, o que é falso, e que o simples facto de ela ser casada com o recorrido (…) no regime de comunhão de adquiridos assegurava tal legitimidade, o que é errado. Sendo assim, é inevitável a conclusão de que a recorrida (…) carece, ao menos neste momento processual, de legitimidade passiva, devendo, consequentemente, manter-se a decisão recorrida nessa parte.

2 – Suspensão da instância:

Os recorrentes censuram a decisão recorrida por, no seu entendimento, ter oficiosamente alargado o âmbito da excepção de compensação, conhecendo a questão, não suscitada por qualquer das partes, da necessidade de suspender, quer a instância executiva, quer a instância dos presentes embargos de executado. Consideram os recorrentes que, nessa parte, a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte.

É manifesta a falta de razão dos recorrentes, pois eles próprios suscitaram a questão da suspensão da instância dos embargos de executado, com fundamento na existência de uma causa prejudicial, concretamente de uma acção de divisão de coisa comum, que corre termos no Juízo Local Cível de Portimão sob o n.º 4068/23.3T8PTM, sustentando que aquela suspensão deveria ser decretada, nos termos do n.º 1 do artigo 272.º do CPC, sem prejuízo do prosseguimento da execução. Atente-se no teor dos artigos 42º a 64º e 97º a 112º da contestação.

O tribunal a quo tinha, pois, o dever de conhecer aquela questão. Dever esse que cumpriu. Mais, o tribunal a quo decidiu precisamente no sentido pretendido pelos recorrentes, suspendendo a instância dos embargos de executado, mas não a instância executiva.

Sendo assim, a decisão recorrida não padece da nulidade invocada pelos recorrentes, sendo incompreensível a posição por estes agora assumida.

3 – Compensação:

Os recorrentes pretendem impugnar uma suposta decisão do tribunal a quo no sentido de «poder ser aqui apresentado, com sucesso, pelos executados, um contracrédito ainda em curso de discussão num outro processo» (ponto 153 do corpo das alegações).

Contudo, o tribunal a quo não se pronunciou acerca do mérito da pretensão de operar a compensação do crédito exequendo com o crédito invocado na petição de embargos. Acerca dos pressupostos da compensação em processo executivo, o tribunal a quo limitou-se a escrever o seguinte na decisão recorrida: «Temos vindo a entender que o crédito que o executado pretende operar na oposição à execução por via da compensação não pode estar controvertido». Fê-lo, porém, com a exclusiva finalidade de fundamentar a sua decisão de suspender a instância de embargos de executado, dando provimento ao requerimento que, nesse sentido, os recorrentes formularam na contestação.

Consequentemente, nesta parte, o recurso carece, pura e simplesmente, de objecto. A questão que os recorrentes suscitaram não foi decidida pelo tribunal a quo.


*


Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

05.06.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Maria Domingas Simões (1.ª adjunta)

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2.º adjunto)