Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/21.7GBVVC.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: CRIME DE INCÊNDIO
CRIME DE PERIGO
REGRAS DE INQUIRIÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I O ponto crucial dos crimes de perigo reside no facto de que condutas cujo desvalor da ação é de pequena monta se repercutem, muitas vezes, num desvalor de resultado de efeitos amiúde catastróficos.
Ou seja, o que está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo.

Por outras palavras: a lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstrato) para que, dessa forma, o tipo legal esteja preenchido.

Nos crimes de perigo há também que distinguir entre crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Nos primeiros, o perigo, a perigosidade da ação, é presumido juris et de jure. Nos segundos, o perigo, concebido como situação perigosa, surge como evento típico, destacado da ação.

No crime destes autos (incêndio florestal), estamos perante um crime de perigo concreto, pelo que o tipo subjetivo do ilícito pelo qual o arguido vem condenado ficou preenchido com o cometimento doloso do incêndio com dolo do perigo criado.

II Quando for conveniente, podem ser mostradas às testemunhas quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, instrumentos com que o crime foi cometido ou quaisquer outros objetos apreendidos.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 59/21.7GBVVC, do Juízo Central Cível e Criminal de Évora (Juiz 4), o Tribunal decidiu:

“1º - Condenar o arguido AA como autor material de um crime de incêndio agravado, previsto e punível pelo artigo 274º, 1 e 2, a), do Código Penal, na pena de prisão de 04 anos.

2º - Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se em três unidades de conta a taxa de justiça – cfr. artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, 1º, 2º, 8º e 16º do Regulamento das Custas Processuais, e tabela III anexa a este diploma legal”.

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Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1ª - O artigo 138º, nº 4, do CPP, é inconstitucional, quando interpretado no sentido de o conceito de “peças do processo” abranger os autos com declarações que constituem prova proibida, por não ser admissível a sua leitura e exame em audiência, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5, da CRP.

2ª - O pressuposto objetivo da “causação normativamente orientada” não está preenchido, isto é, o arguido não atuou com vista a causar um incêndio.

3ª - Por outra banda, tendo ficado provado, apenas, que o arguido representou como possível que as chamas se propagassem aos bens aí existentes, haverá que apurar se se conformou, ou não, com essa possibilidade, sob pena de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

4ª - Foi violado o artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na medida em que o tribunal recorrido aplicou uma pena desajusta à culpa do agente e às exigências de prevenção, por não ponderação das seguintes circunstâncias a favor do arguido: a singularidade do ato de deflagração praticado pelo arguido, a sua atuação ainda durante o dia, a exígua área ardida, a influência do consumo de álcool na conduta do arguido e a ausência de antecedentes criminais.

Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência, decidir-se em conformidade”.

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O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. No decurso da inquirição da testemunha JJ, o Ministério Público requereu o seu confronto com as fotografias juntas a fls. 6 a 14 dos autos, o que foi deferido pelo Tribunal Coletivo, e foi com essas fotografias que a testemunha JJ foi confrontada, conforme consignado na ata da audiência de julgamento do dia 20-01-2022.

2. Nessas páginas encontram-se apenas fotografias tiradas no local dos factos pela Polícia Judiciária e não quaisquer declarações de testemunhas.

3. O confronto daquela testemunha com as fotos juntas a fls. 6 a 14 dos autos possui a cobertura legal dada pelo nº 4 do artº 138º do C.P.P., norma que não ofende, em qualquer medida, os princípios constitucionais vertidos nos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição.

4. Os factos provados integram, sem margem para dúvidas, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de incêndio florestal, imputado ao arguido e pelo qual foi condenado, pelo que quanto a este ilícito não ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a), do nº 2, do artº 410º, do C.P.P.

5. O arguido não avança com um único argumento no sentido de que «não atuou com vista a causar um incêndio», nem procura sequer abalar a argumentação aduzida pelo Tribunal Coletivo.

6. Argumentação essa que se mostra conforme à prova produzida em julgamento e às regras da experiência comum, nos termos ali bem demonstrados, que não merecem o mínimo de censura.

7. O arguido não demonstra, minimamente, que não atuou com vista a provocar incêndio, como pretende, pelo que a decisão de facto deve ser mantida nos seus precisos termos.

8. A culpa do arguido AA situa-se, efetivamente, a um nível médio, face ao descrito modo de atuação, às circunstâncias meteorológicas existentes e à persistência na sua conduta ilícita.

9. Acresce ainda que são fortíssimas as exigências de prevenção geral, e médias as de prevenção especial - ponderando a ausência de antecedentes criminais -.

10. A pena de quatro (4) anos de prisão situa-se muito próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável, pelo que não ultrapassa a culpa apresentada pelo arguido.

11. Atentos tais elementos e os demais indicados no Acórdão recorrido, a pena concreta aplicada mostra-se ajustada à conduta praticada pelo arguido, às consequências da sua conduta, à sua culpa e às exigências de prevenção geral e especial, e, consequentemente, está conforme aos critérios legalmente fixados no artº 71º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, para a determinação da medida concreta da pena.

12. A pena aplicada não ultrapassa a culpa revelada pelo arguido, e as fortes exigências de prevenção geral verificadas in casu impedem que se aplique uma pena inferior”.

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Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, face às conclusões retiradas pelo recorrente da motivação do recurso, e em breve resumo, são quatro as questões a conhecer:

1ª - Uso Indevido (e inconstitucional) do disposto no artigo 138º, nº 4, do C. P. Penal (confronto da testemunha JJ com um “auto de inspeção judiciária”, ou seja, com uma “peça do processo” que contém declarações cuja audição não é permitida na audiência).

2ª - Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (tendo ficado provado, apenas, que o arguido representou como possível que as chamas se propagassem aos bens ali existentes, tem de se apurar se o arguido se conformou, ou não, com essa possibilidade).

3ª - Impugnação alargada da matéria de facto (o arguido não atuou com vista a causar um incêndio).

4ª - Determinação da medida concreta da pena (a pena aplicada - 4 anos de prisão - é excessiva).

2 - A decisão recorrida.

O acórdão sub judice é do seguinte teor (quanto aos factos e quanto à motivação da decisão fáctica):

“A) Factos provados

Discutida a causa, o tribunal considera que com relevância e interesse para a decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos constantes da acusação:

1º O arguido reside em … - …, na localidade de …, área desta comarca de ….

2º No trajeto que percorre de forma apeada entre a sua residência e o centro da localidade de …, o arguido circula pela berma da Estrada Nacional n.º …, passando junto à Herdade … Estrada.

3º No dia 10 de agosto de 2021, às 19,55 horas, o arguido encontrava-se a cerca de 100 metros da Estrada Nacional n.º … junto ao acesso à Herdade …, em …, com as coordenadas geográficas …, -…, trazendo consigo uma caixa de fósforos.

4º Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, sabendo que naquele local se encontravam armazenados cerca de 400 fardos de palha, animais, e maquinaria agrícola, o arguido, fazendo uso de fósforo da caixa que trazia consigo, lançou fogo ao pasto existente no local, que progrediu de imediato no sentido do caminho alcatroado para o interior da Herdade …, explorada por BB.

5º Como consequência direta da conduta do arguido, foi originado um incêndio que consumiu cerca de 0,0156 hectares de pasto e alguns fardos de palha, e que somente não se propagou aos restantes fardos de palha, aos animais e à maquinaria agrícola, com o valor superior a 10.000,00€, por motivos alheios à vontade do arguido.

6º Após ter provocado o incêndio, o arguido abandonou a referida caixa de fósforos junto a um poste de eletricidade existente no local.

7º O arguido apenas abandonou o local do incêndio quando foi interpelado por JJ.

8º O incêndio foi combatido por funcionários da herdade que se dirigiram de imediato para o local após o início do incêndio, e por quatro viaturas e 15 operacionais dos bombeiros de …, o que permitiu que a dimensão do incêndio não tomasse outras proporções.

9º O arguido sabia que a parcela de terreno acima indicada não lhe pertencia, e que no local se encontravam fardos de palha, animais e maquinaria agrícola, e que naquela altura do ano, os matos e pastagens se encontravam secos.

10º Ademais, conhecia o arguido as condições atmosféricas que se faziam sentir na referida data, com uma temperatura média de 34º C e uma taxa de humidade relativa de 17%, encontrando-se o concelho de … na classe 3 - Risco de Incêndio elevado.

11º O arguido quis agir como agiu com o propósito concretizado de provocar incêndio no mato e terreno agrícola onde se encontrava, o que quis e conseguiu, representando como possível que as chamas se propagassem aos bens aí existentes, que eram de valor elevado, o que apenas não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade.

12º O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Das condições pessoais, económicas e sociais do arguido:

13º O arguido é proveniente de uma família iletrada, normativa, e de condição económica deficitária, atento o número elevado de filhos e os parcos rendimentos familiares provenientes do salário mínimo que o progenitor auferia como trabalhador agrícola.

14º Frequentou o ensino em idade própria, tendo apenas concluído o 4.º ano de escolaridade.

15º Iniciou posteriormente atividade laboral como indiferenciado no ramo agrícola, e foi mantendo ocupação muito irregular no campo, na vindima e em pedreiras, tendo-se desempregado por iniciativa própria porque “ganhava pouco”, sendo que tem vivido, maioritariamente, a expensas dos familiares.

16º Em agosto de 2021 o arguido encontrava-se na situação de desempregado e residia juntamente com 5 irmãos, no … - …, …, em casa proveniente da herança dos progenitores, ambos falecidos.

17º A habitação possui eletricidade, mas não tem saneamento básico, pelo que as necessidades fisiológicas são efetuadas na rua.

18º Dos quatro irmãos com que o arguido reside, todos mais velhos, apenas um se encontra ativo profissionalmente, trabalhando no ramo agrícola como indiferenciado, e os outros três encontram-se reformados.

19º A economia do agregado é gerida pela irmã, M, que recebe dos irmãos a quantia de 300,00€/mês.

20º O arguido mantém adição etílica de longa data, que não reconhece, não possuindo motivação para efetuar tratamento especializado.

21º O arguido aparenta défice de competências cognitivas.

22º O relacionamento entre a fratria é conflituoso, devido aos consumos abusivos de álcool do arguido e de outro irmão.

23º Na zona de residência não são apontados ao arguido comportamentos violentos, que existem apenas entre os irmãos.

24º Quanto aos tempos livres, o arguido não mantém qualquer tipo de ocupação positiva, deambulando, maioritariamente pela aldeia, e consumindo bebidas alcoólicas nos cafés.

25º Revela reduzida capacidade para identificar os valores e os bens jurídicos violados com os comportamentos em juízo.

Dos antecedentes criminais do arguido:

26º O arguido foi condenado por decisão proferida em 14 de outubro de 2021 no processo n.º 40/20.3GBVVC do Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa, transitada em julgado em 15 de novembro de 2021, na pena de prisão de 01 ano e 06 meses, suspensa na execução por igual período, pela prática de um crime de incêndio florestal em 12 de agosto de 2020.

B) Factos não provados

O tribunal considera que da discussão da causa e com relevância e interesse para a decisão da mesma não resultaram não provados quaisquer factos.

Consigna-se que os demais factos descritos na acusação e que não constem do elenco dos factos provados e do elenco dos factos não provados, não foram considerados pelo tribunal por conterem expressões jurídico-conclusivas e, por isso, insuscetíveis, de prova, ou por se tratarem de factos irrelevantes para a decisão.

C) Motivação da decisão da matéria de facto

A seleção da factualidade assente resultou da análise crítica, à luz das regras da experiência comum e do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, das declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial (sendo que em audiência de julgamento o arguido exerceu o seu direito ao silêncio), do depoimento credível, desinteressado e isento das testemunhas, e do teor dos documentos juntos aos autos, que foram levados a contraditório e não foram impugnados.

Passemos a concretizar.

A prova de que no dia 10 de agosto de 2021, às 19,55 horas, o arguido se encontrava a cerca de 100 metros da Estrada Nacional n.º…, junto ao acesso à Herdade …, em …, trazendo consigo uma caixa de fósforos, resultou em primeira linha das declarações do arguido prestadas em primeiro interrogatório judicial, momento em que assumiu quase a totalidade dos factos, com exceção da intenção de atear o fogo.

Com efeito, declarou o arguido que no dia 10 de agosto de 2021 saiu de casa pelas 19,55 horas e dirigiu-se a …, a pé, onde ia beber café, tendo passado junto à Herdade …, local onde decidiu parar para fumar um cigarro.

Continuou o arguido explicando que tinha uma caixa de fósforos no bolso da camisa e que utilizou um desses fósforos para acender um cigarro.

Perante o conteúdo destas declarações, que não nos suscitam qualquer estranheza por ser um comportamento normal, e da prova que de seguida passaremos a analisar, é possível colocar o arguido na data, hora e local, constantes da acusação, assim como é possível colocar o arguido na posse da caixa de fósforos que foi apreendida.

Na verdade, a prova do trajeto que o arguido faz de forma apeada entre a sua residência e o centro da localidade de …, mais concretamente a prova de que nesse trajeto circula pela berma da Estrada Nacional n.º …, passando junto à Herdade …, resultou também da imagem retirada da aplicação Google Maps, que se encontra a fls. 18 e faz parte integrante do auto de inspeção judiciária elaborado pela Polícia Judiciária, junto a fls. 2 a 20.

Mais resultou do depoimento da testemunha J, inspetora da Polícia Judiciária, que afirmou ter sido quem elaborou a referida inspeção bem como o respetivo auto, cujo teor confirmou em audiência de julgamento, e que referiu que a sua deslocação ao local teve lugar no dia seguinte ao da ocorrência do incêndio.

Já a testemunha JJ, empregado de BB, que se encontra a explorar o terreno ardido na qualidade de rendeiro, referiu ter visto o arguido nas circunstâncias de tempo e de lugar em análise, o que aconteceu por se ter ali deslocado após ter recebido, ao final da tarde, uma chamada avisando-o de que havia fumo vindo da Herdade ….

Explicou a testemunha que quando recebeu tal telefonema estava a trabalhar na Herdade do …, sendo que se deslocou de imediato para a Herdade …, que dista cerca de 1,5 km, o que fez em veículo automóvel e tendo demorado cerca de 5 minutos.

Disse ainda JJ que quando chegou ao local confrontou-se com o arguido, que estava sozinho e com um balde vazio na mão, a andar de um lado para o outro, tendo-lhe dito para se ir embora, o que este fez, pelo que, e também porque o arguido reconheceu que foi mandado embora do local por JJ, o que acatou, se deu como provado que o arguido apenas abandonou o local do incêndio quando foi interpelado por JJ.

Porém, declarou também o arguido em sede de primeiro interrogatório judicial que após acender o cigarro com o fósforo, apagou o mesmo, soprando na sua direção, e atirou-o para chão, para a zona alcatroada, onde efetivamente caiu, a cerca de um metro do limite da herdade.

Mais disse o arguido que após ter atirado o fósforo para o chão, virou as costas e seguiu o seu caminho em direção a …, mas que, tendo apenas percorrido cerca de dois metros, olhou para trás e viu fumo e labareda.

Por fim, referiu que foi tentar apagar o incêndio com um ramo de eucalipto, tendo-se inclinado, e que foi nesse momento que a caixa de fósforos caiu do bolso da camisa, esclarecendo que não conseguiu apagar o incêndio.

Esta versão do arguido não foi, no entanto, atendida pelo tribunal, na medida em que a mesma não faz sentido em face das regras da experiência comum, e porque a demais prova produzida, vista no seu conjunto, nos leva a alcançar conclusão diversa, ou seja, que o arguido atirou o fósforo na direção da zona de pasto e fê-lo com a intenção de atear o incêndio, o que conseguiu, pois o fogo progrediu de imediato no sentido do caminho alcatroado para o interior da herdade.

Com efeito, caso o arguido tivesse atirado o fósforo para a zona alcatroada, tendo em conta a pequena dimensão do mesmo, apenas alguns centímetros que ardem rapidamente, e a distância do limite da herdade que o arguido disse ter o mesmo caído, cerca de um metro, não é de todo possível que a zona de pasto fosse atingida.

Por outro lado, pela testemunha JJ foi referido que quando chegou ao local onde o incêndio começou a única pessoa que ali se encontrava era o arguido e que este estava com um balde na mão, mas este estava vazio, o que significa que o arguido não estava a adotar medidas adequadas a apagar o incêndio, nomeadamente usando água, levando-nos a concluir que ateou o fogo e que pretendia que o fogo se propagasse e causasse um incêndio, o que conseguiu.

Deu-se como provado que o arguido sabia que no local se encontravam fardos de palha, alguns armazenados, bem como animais e maquinaria agrícola, por força das declarações que prestou, no sentido de ter visto no local um trator velho e fardos de palha, sendo que em relação aos animais disse que os mesmos estavam longe, do depoimento de JJ, que afirmou que no local se encontravam efetivamente os fardos, os animais e alfaias agrícolas, e que quem passa na estrada consegue ver o que está no monte porque nada impede a vista, em conjugação com o teor das imagens juntas a fls. 3 a 13, de onde resulta que a herdade apenas está cercada com uma vedação baixa e de arame, que permite ver o que está no seu interior.

Mas ainda que assim não fosse, sempre as regras da experiência comum nos levariam a tal conclusão considerando que o arguido afirmou que já trabalhou na herdade (há alguns anos) e porque reside a poucas centenas de metros da mesma e ali passa frequentemente no trajeto que faz entre a sua casa e … e no regresso a casa, pelo que sabe que na herdade se fazem trabalhos agropecuários e, em consequência, ali existem máquinas, animais e fardos para a alimentação destes, o que sucede, aliás, em todas as explorações agropecuárias.

A prova de que o incêndio ateado pelo arguido consumiu cerca de 0,0156 hectares de pasto e alguns fardos de palha, resultou do depoimento das testemunhas JJ, F e J, que viram o local após o incendio, e das fotos juntas aos autos.

A prova de que caso o incêndio se tivesse propagado aos restantes fardos de palha, aos animais e à maquinaria agrícola (o que foi possível, só não tendo acontecido por intervenção de terceiros, que não o arguido, conforme adiante se explicará), e que tudo tinha um valor superior a 10.000,00€, resultou do depoimento de JJ, que declarou que no local se encontrava uma carrinha para transporte de animais, cerca de 400 fardos de palha, valendo entre 25,00€ e 50,00€ cada consoante a dimensão, diversos animais como burros, porcos, vacas e touros, estes dois últimos a valerem entre 2.500,00€ e 3.000,00€, montantes que são do seu conhecimento por ser encarregado da herdade.

A isto acresce o facto de o arguido ter reconhecido, em declarações, que o trator que se encontrava o local valia cerca de 10.000,00€, desconhecendo o valor dos restantes bens que ali se encontravam.

O tribunal considerou provado que após ter provocado o incêndio o arguido abandonou a caixa de fósforos junto a um poste de eletricidade existente no local (e não que caiu do bolso da camisa do arguido sem este se aperceber), com base no depoimento das testemunhas JJ, F e J, conjugado com as regras da experiência comum, das fotos juntos aos autos a fls. 38 e do auto de exame direto junto a fls. 57/58.

JJ e F disseram que a dado momento, no decurso do combate ao incêndio, viram uma caixa de fósforos no solo, na zona de mato onde o incêndio teve o seu início, a cerca de 20/30 centímetros do alcatrão, mas esclarecendo que não viram o arguido na posse de qualquer caixa de fósforos.

Mais esclareceu JJ que de imediato alertou os militares da Guarda Nacional Republicana que se encontravam no local, tendo estes procedido à apreensão da referida caixa de fósforos, conforme auto de apreensão junto a fls. 39, sendo a caixa visível nas fotografias juntas a fls. 38 e 64 a 66.

E explicou a testemunha J que concluiu que a caixa apreendida foi colocada no local já após o início do incêndio dado que se encontrava quase intacta, só com uma pequena parte queimada, conforme resulta, aliás, do auto de exame direto junto a fls. 57/58, o que não aconteceria caso tivesse sido colocada/caído no local no momento em que o incêndio foi ateado, pois neste caso a caixa teria ardido.

Este depoimento, faz sentido em face das regras da experiência comum que nos dizem que a natureza infamável dos fósforos faria com que estes, se colocados juntos à fonte de calor, entrariam em ignição, o que não aconteceu.

A prova de que o incêndio só não tomou outras proporções devido à intervenção rápida dos funcionários da herdade e dos bombeiros de … resultou do depoimento de JJ, de F e do documento do Corpo de Bombeiros de … junto a fls. 60 e 61.

Por JJ foi dito, conforme já se referiu, que foi para o local mal foi avisado da existência de fumo e, ali chegado, começou a combater o fogo com extintores, sendo sua preocupação evitar que o armazém fosse atingido porque ali se encontravam vários fardos de palha que seriam perdidos e poderiam tornar o incêndio incontrolável.

Também a testemunha F referiu que quando avistou fumo vindo da herdade dirigiu-se para a mesma na companhia do filho, sendo que quando ali chegaram viram a testemunha JJ a tentar apagar o fogo com um extintor e a tentar que este não atingisse o palheiro, tarefa em que o ajudou.

Mais esclareceu esta testemunha que apesar destas tentativas só foi possível apagar o fogo com a intervenção dos bombeiros, que ali chegaram alguns minutos mais tarde.

Por outro lado, do documento junto a fls. 60/61 resulta que às 19,58 horas do dia 10 de agosto de 2021 foi recebido pelos bombeiros de … um alerta de incêndio no Monte do …, …, com as coordenadas geográficas lon. -… e lat. … tendo a saída dos veículos para o combate ao fogo ocorrido às 19,59 horas, ou seja, um minuto depois do alerta, e a chegada ao local ocorrido às 20,14 horas.

Considerando que às 19,55 horas do dia 10 de agosto estava calor, o que foi referido pela testemunha JJ (que referiu que estava “muito” calor), e J (que se estribou na informação que lhe foi prestada pelos serviços de proteção civil), este facto não podia passar despercebido ao arguido, assim como não podia o arguido deixar de reparar que o tempo também estava seco, com pouca humidade, ao contrário do que afirmou quando prestou declarações, onde negou que estivesse calor e que o tempo estava seco.

Ou seja, mesmo não sabendo que, em concreto, a temperatura média do dia em causa foi de 34º C e a taxa de humidade relativa de 17%, e que o concelho de … se encontrava na classe 3 – Risco de Incêndio elevado, não podia o arguido deixar de saber que estava calor e pouca humidade, circunstâncias que seriam apreensíveis pelo homem médio colocado na concreta posição do arguido, razão pela qual se deu este facto como provado, em conjugação com a informação meteorológica do Comando Nacional de Emergência e Proteção Civil relativa ao dia 10 de agosto de 2021, junta a fls. 70 a 74, e a informação diária n.º 221/2021 do Comando Distrital de Operações de Socorro de …, com os avisos meteorológicos do distrito de …, junta a fls. 75 a 77.

E o mesmo se diga quanto ao facto de os matos e pastagens se encontrarem secos, pois o verão já ia adiantado e tal circunstância era visível por qualquer pessoa que passasse no local, conforme resulta das fotografias juntas a fls. 6 a 13, e desse modo também não poderia passar despercebido ao arguido, tanto mais que, conforme admitiu, passava no local com frequência.

Em conjugação com a prova acabada de analisar, o tribunal teve igualmente em consideração o teor dos documentos juntos a fls. 21 a 23 - auto de notícia, a fls. 24 - relatório de ocorrência de fogo elaborado pela GNR, a fls. 25 - relatório do SGIF, e a fls. 33 a 36 - relatório técnico de inspeção judiciária elaborado pela GNR, de onde resulta uma dinâmica dos factos em tudo semelhante ao que acima ficou descrito e que consta nos factos provados.

A prova dos factos relativos ao elemento subjetivo da conduta adotada pelo arguido, resultou da ponderação de toda a factualidade objetiva dada como provada, com as regras de experiência comum.

Quanto à vontade do arguido de provocar incêndio no mato e terreno, reiteramos o que atrás afirmámos a este propósito, ou seja, que o arguido quis atear o fogo, o que conseguiu, e fê-lo de forma livre e consciente.

Por outro lado, era inevitável que o homem médio colocado na posição do arguido representasse como possível que o fogo que ateou se propagasse aos bens existentes no local, o que o arguido representou.

Com efeito, atendendo ao facto de a palha ser um material altamente inflamável, e que o elevado calor e baixa humidade que naquele dia 10 de agosto de 2021 se fazia sentir no local, potenciam o risco de fogo e de alastramento do mesmo, e atendendo ainda a que o arguido ateou o fogo num local isolado, não podia este deixar de representar como possível que ao chegar um fósforo aceso ao pasto rasteiro e seco da herdade e sem ninguém no local que apagasse, as chamas iriam propagar-se rapidamente aos bens ali existentes ou poderiam criar o perigo de tal ocorrer, causando prejuízos, conformando-se com estes factos.

Não fora alguém, por mero acaso, diga-se, ter dado conta do fumo, e permitido que terceiros acorressem ao local e iniciassem de imediato manobras de combate ao incêndio, e os bens valiosos ali existentes teriam ardido.

A ilicitude de tal conduta é social e amplamente conhecida, não podendo o arguido, como qualquer cidadão colocado na posição do homem médio, deixar de o saber, tendo sempre agido de forma livre e voluntária.

A prova dos factos respeitantes às condições pessoais, económicas e sociais do arguido resultou do teor do respetivo relatório junto a fls. 271 a 274, elaborado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, entidade terceira e desprovida de qualquer interesse nos autos.

No que respeita aos antecedentes criminais do arguido o Tribunal atendeu ao teor do respetivo certificado de registo criminal, junto aos autos a fls. 277/278”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Do disposto no artigo 138º, nº 4, do C. P. Penal.

Alega o recorrente que a testemunha JJ visualizou, na audiência, o “auto de inspeção judiciária” (constante de fls. 02 a 20 dos autos), o qual contém depoimentos de testemunhas prestados antes da audiência de discussão e julgamento e cuja leitura em tal audiência não é legalmente permitida.

Na opinião do recorrente, a testemunha JJ não podia ser confrontada com essa “peça do processo” (uma vez que a mesma contém “declarações” que constituem “prova proibida” - por não ser admissível a sua leitura e exame em audiência -).

Assim, e na visão do recorrente, o artigo 138º, nº 4, do C. P. Penal, é inconstitucional “quando interpretado no sentido de o conceito de peças do processo abranger os autos com declarações que constituem prova proibida por não ser admissível a sua leitura e exame em audiência, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5, da CRP”.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “Regras da inquirição”, estabelece o artigo 138º, nº 4, do C. P. Penal: “quando for conveniente, podem ser mostradas às testemunhas quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, instrumentos com que o crime foi cometido ou quaisquer outros objetos apreendidos”.

Analisada a ata da audiência de discussão e julgamento onde se faz menção à audição da testemunha JJ (sessão da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 20-01-2022), verifica-se que a testemunha JJ (que esteve no local do incêndio e ajudou no combate ao mesmo) foi confrontada - para melhor poder identificar o local dos factos e descrever tudo o que ali presenciou e observou na altura do incêndio em causa - com diversas fotografias juntas aos autos e colhidas naquele local (fotografias constantes do relatório técnico de inspeção judiciária elaborado pela autoridade policial competente, e relatório no qual se procurou reconstituir a dinâmica dos factos delitivos em apreço).

Ou seja, à testemunha JJ foram exibidas fotografias constantes do “auto de inspeção judiciária” (as fotografias exibidas estão juntas de fls. 06 a 14 do processo), auto este que contém, além de declarações de diversas pessoas, as referidas fotografias.

Esse confronto da testemunha JJ com as fotografias em causa (juntas de fls. 06 a 14 dos autos, repete-se) foi requerido pelo Ministério Público, no decurso da audição de tal testemunha na aludida sessão da audiência de discussão e julgamento (que teve lugar no dia 20-01-2022), requerimento que foi deferido pelo Tribunal de primeira instância.

Foi só com as referidas fotografias que a testemunha JJ foi confrontada, e não com depoimentos ou declarações de quem quer que seja, sendo ainda que as fotografias foram tiradas ao local dos factos (pela Polícia Judiciária) e a nada mais.

Por conseguinte, não vislumbramos, minimamente, que o confronto da testemunha JJ com as fotografias juntas de fls. 06 a 14 do processo possa enfermar de ausência de cobertura legal ou padeça de uma interpretação normativa inconstitucional.

Pelo contrário: esse confronto possui a cobertura legal dada pelo artigo 138º, nº 4, do C. P. Penal, em interpretação que não constitui qualquer violação das “garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5, da CRP”.

Face ao exposto, e de forma manifesta, o recurso do arguido é de improceder nesta primeira vertente.

b) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Alega-se na motivação do recurso que, tendo ficado provado, apenas, que o arguido representou como possível que as chamas se propagassem aos bens aí existentes, haverá que apurar se se conformou, ou não, com essa possibilidade.

Assim, e no entendimento do recorrente, o acórdão sub judice enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Cabe decidir.

No acórdão recorrido deu-se como provado o seguinte (factos dados por assentes sob os nºs 11 e 12):

- “O arguido quis agir, como agiu, com o propósito concretizado de provocar incêndio no mato e terreno agrícola onde se encontrava, o que quis e conseguiu, representando como possível que as chamas se propagassem aos bens aí existentes, que eram de valor elevado, o que apenas não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade”.

- “O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

O arguido vem condenado como autor material de um crime de incêndio florestal agravado, previsto no artigo 274º, nºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.

Porque nos encontramos perante um crime de perigo comum (esta é a epígrafe do Capítulo III, do Título IV, do Livro II do Código Penal - onde se encontra integrado o crime de incêndio -), conveniente se torna para a decisão da questão agora em apreciação tecer algumas considerações (ainda que resumidas) sobre esta categoria de crimes.

O ponto crucial destes crimes (crimes de perigo) reside no facto de que condutas cujo desvalor da ação é de pequena monta se repercutem, muitas vezes, num desvalor de resultado de efeitos amiúde catastróficos.

Ou seja, o que está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo.

Por outras palavras: a lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstrato) para que, dessa forma, o tipo legal esteja preenchido.

Ora, a esta luz, e no caso destes autos, podemos afirmar que o perigo (a possibilidade ou a probabilidade de lesão do bem jurídico tutelado) é o elemento essencial, e, nessa vertente, ficou provado que o arguido atuou com dolo direto (o “arguido quis agir, como agiu, com o propósito concretizado de provocar incêndio no mato e terreno agrícola onde se encontrava, o que quis e consegui”).

Nos crimes de perigo há também que distinguir entre crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Nos primeiros, o perigo, a perigosidade da ação, é presumido juris et de jure. Nos segundos, o perigo, concebido como situação perigosa, surge como evento típico, destacado da ação.

No crime destes autos (incêndio florestal), estamos perante um crime de perigo concreto, pelo que o tipo subjetivo do ilícito pelo qual o arguido vem condenado ficou preenchido com o cometimento doloso do incêndio com dolo do perigo criado.

Ou seja, ficou demonstrada e dada por assente a existência de um nexo causal entre a ação do arguido e a situação perigosa criada, sendo certo que o arguido agiu com dolo direto, quer na ação desenvolvida, quer na situação de perigo que criou.

Por conseguinte, e ao contrário do invocado na motivação do recurso, o acórdão revidendo não enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal), ao considerar que apenas ficou provada a circunstância de o arguido ter representado como possível que a chamas se propagassem aos bens ali existentes, mas não se tendo apurado nada sobre se o arguido se conformou ou não com essa possibilidade.

Com efeito, e repete-se, o arguido não foi condenado a título de dolo eventual, mas, isso sim, a título de dolo direto, estando preenchidos todos os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo legal do crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 274º, nºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.

Em suma: o arguido não foi condenado por ter agido com dolo eventual (nessa situação teria de ser feita a prova de que o arguido se conformou com a produção do resultado), tendo o arguido atuado, isso sim, com dolo direto (propósito de incendiar e de causar perigo para a destruição do mato e do terreno agrícola onde se encontrava).

Por isso, não sendo a factualidade vertida no acórdão recorrido insuficiente para a decisão de direito, tal acórdão não padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Improcede, assim, e também nesta vertente, o recurso do arguido.

c) Da impugnação alargada da matéria de facto.

Impugnando a factualidade dada como provada no acórdão revidendo, e no corpo da motivação do recuso (artigos 5º e 6º), o recorrente alega apenas o seguinte:

- “Na realidade, o arguido não atuou com vista a causar um incêndio”.

- “Por isso, o pressuposto objetivo da causação normativamente orientada não está preenchido”.

Por sua vez, nas conclusões extraídas da motivação do recurso (2ª conclusão), o recorrente escreve:

- “O pressuposto objetivo da causação normativamente orientada não está preenchido, isto é, o arguido não atuou com vista a causar um incêndio”.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “Motivação do recurso e conclusões”, estabelece o artigo 412º, nºs 1 a 4, do C. P. Penal:

“1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a) As normas jurídicas violadas;

b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Ora, na presente situação, lendo o corpo da motivação do recurso e as conclusões (que, neste segmento recursivo, se deixaram acima transcritos na íntegra), verifica-se que o recorrente não só não cumpriu as exigências normativas contidas no artigo 412º, nºs 3 e 4, do C. P. Penal (não especificou os pontos de facto que considera incorretamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida), como, mais do que isso, não aduziu quaisquer fundamentos para a afirmação genérica que apresentou (segundo a qual “não atuou com vista a causar um incêndio”), ou seja, não deu cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal.

Dito de outro modo (talvez mais simples): o recorrente defende que “não atuou com vista a causar um incêndio”, mas não avança com qualquer argumento nesse sentido (sendo certo que o acórdão revidendo trata esse assunto de modo exaustivo e devidamente fundamentado).

Ou seja, na motivação do recurso não vêm invocados argumentos, não estão aduzidas razões, existindo, isso sim, uma completa ausência de fundamentos para a pretensão recursiva consistente em dever considerar-se que o arguido “não atuou com vista a causar um incêndio”.

Assim sendo, a impugnação alargada da matéria de facto constante da motivação do presente recurso não constitui um ato que seja processualmente válido, por total falta de inteligibilidade e de concludência da própria impugnação (não estão enunciados especificamente os fundamentos do recurso neste segmento), e, além disso, por completa ausência de menção às provas concretas que demonstram o invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto.

Por conseguinte, e nesta parte, o recurso interposto pelo arguido é manifestamente de improceder.

d) Da determinação da medida concreta da pena.

Alega o recorrente que a pena aplicada é excessiva, sendo desajusta à culpa do agente e às exigências de prevenção, por não ponderação da singularidade do ato de deflagração praticado, da atuação ainda durante o dia, da exígua área ardida, da influência do consumo de álcool na conduta perpetrada e da ausência de antecedentes criminais.

Há que decidir.

O crime de incêndio florestal praticado pelo arguido é punido, em abstrato, com pena de prisão situada entre 3 anos (limite mínimo) e 12 anos (limite máximo da moldura penal abstrata).

Dentro desta moldura penal abstrata, o arguido foi condenado, no acórdão revidendo, na pena de 4 anos de prisão.

Cabe-nos averiguar e decidir da correção desta fixação da medida concreta da pena.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim o delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, tradução da 2ª edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), em asserção perfeitamente consonante com os princípios basilares do direito penal português, “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada”.

Mais refere o mesmo autor (ob. citada, pág. 101) que “a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, escreve ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103): “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

À luz dos anteriores considerandos, e retomando o caso concreto destes autos, há que atender aos seguintes elementos essenciais:

- O grau de culpa, sendo que o arguido agiu com dolo direto (a modalidade mais intensa da culpa).

- O grau de ilicitude, que é mediano (o incêndio florestal em causa não teve graves consequências para o proprietário do terreno atingido).

- As exigências de prevenção geral, que são aqui muito relevantes (note-se, por um lado, que os factos delitivos em apreço ocorreram em pleno mês de agosto, num momento em que as condições atmosféricas, tal como resulta da matéria de facto dada por provada no acórdão revidendo, eram propícias a que um simples fogo facilmente provocasse um incêndio de grandes proporções, e, por outro lado, que o crime cometido é, claramente, gerador de justificado alarme social e de compreensível sentimento de insegurança na população).

- As exigências de prevenção especial, que não são despiciendas, face aos antecedentes criminais do arguido (o arguido possui uma condenação criminal anterior, pela prática de um crime de incêndio florestal) e olhando à circunstância de o arguido não assumir a prática dos factos, não interiorizando o desvalor da sua conduta e apresentando uma versão totalmente absurda sobre o modo de ocorrência dos factos.

- Há que atender também à condição social, à personalidade e às condições de vida do arguido, sendo certo, nesta matéria, que o arguido possui exíguos hábitos de trabalho e tem uma clara adição ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas (adição de longa data e que o arguido não releva - designadamente não possuindo motivação para efetuar tratamento especializado -).

Ponderados todos os apontados elementos, na sua globalidade complexiva, entendemos que a pena aplicada em primeira instância (4 anos de prisão) se mostra totalmente ajustada, adequada e proporcional.

Ou seja, nenhum elemento, isoladamente considerado ou em conjugação com outros, impõe, justifica ou aconselha uma qualquer compressão da pena fixada no acórdão revidendo (4 anos de prisão), a qual, por um lado, não ultrapassa o limite da culpa do arguido, e, por outro lado, é inteiramente idónea a satisfazer as necessidades de prevenção (geral e especial) que no caso se fazem sentir.

Assim sendo, e também neste último segmento (relativo à determinação da medida concreta da pena), o recurso do arguido não merece provimento.

Olhando a tudo o que ficou dito, o recurso interposto pelo arguido é totalmente de improceder.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 24 de maio de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Gilberto da Cunha