Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | EDGAR VALENTE | ||
Descritores: | INSTRUÇÃO INADMISSIBILIDADE LEGAL REJEIÇÃO CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DO REQUERIMENTO | ||
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Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - O requerimento do arguido para abertura de instrução, ainda que não sujeito a formalidades especiais, tem que conter, em ordem às finalidades legais da instrução, desde logo e, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação pública (ou particular)- vd. o n.° 2 do artigo 287 do CPP. Daí que a discordância não se possa limitar (reduzir) à alegação de, por ex., não serem verdadeiros os factos narrados no libelo. Se assim fosse haveria uma paridade total entre o requerimento para a instrução e a contestação. Para poder ser o catalisador da fase da instrução, o requerimento apresentado pelo sujeito processual arguido tem que possuir um conteúdo que o comprometa decisiva e inexoravelmente com as finalidades legais da instrução. Quando assim não seja deverá o requerimento ser rejeitado por inadmissibilidade legal. II - Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente á narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. No Juízo de Instrução Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 118/24.4GBLGS, no qual, mediante despacho judicial, foi decidido não admitir o requerimento para abertura da instrução1 apresentado pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal. Inconformado com essa decisão, recorreu tal arguido, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição): “I - O recorrente AA, foi notificado do douto Despacho com a referência … proferido pelo Tribunal “a quo”, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º número 3 do Código de Processo Penal. II - O recorrente no requerimento de abertura de instrução que apresentou impugnou os factos que lhe são imputados, III - Requerendo como diligência instrutória a sua própria audição. IV - O recorrente negou a factualidade que lhe é imputada durante o inquérito e em sede de debate instrutório, após a sua audição demonstraria a inverdade do vertido na acusação. V - O recorrente deveria ser convidado ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução, em período temporal prévio à respetiva rejeição. VI - A interpretação normativa resultante da conjugação dos artigos 287.º números 2 e 3 do C.P.P. é inconstitucional no sentido de não ser admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo arguido que não contenha algum dos requisitos previstos no artigo 287.º número 2 do C.P.P., por violação de modo desproporcional das garantias de defesa do arguido contidas nos artigos 18.º e 32.º números 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. VII - Deverá ser dado provimento ao presente Recurso, revogando-se o Douto Despacho recorrido, e substituído por outro que admita o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo arguido, com as legais consequências.” Pugnando, em síntese, pelo seguinte: “TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.” O recurso foi admitido. Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que “não sofre o despacho recorrido qualquer gravame, devendo o recurso ser julgado totalmente improcedente.” O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer com o seguinte teor: “Sufragamos a fundada argumentação/posição do Ministério Público junto da 1ª instância pela sua correção jurídica e clareza, cujo teor aqui no essencial damos por reproduzido, bem se pronunciando acerca das questões a dirimir, sendo que qualquer adenda de substância seria despicienda, restando-nos acompanhá-la, em conformidade”. Procedeu-se a exame preliminar. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal2, sem resposta. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa: “O arguido AA, notificado da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, veio requerer a abertura da fase de instrução através do requerimento que antecede. No mesmo, e numa leitura desprendida de paternalismos, pode ler-se que o arguido apenas refere que não há indícios da prática do crime plasmado no libelo acusatório, limitando-se a invocar que “no dia 11 de Junho de 2024 não se deslocou a … conforme descrito na acusação”, que “desconhecia que o veículo automóvel de matrícula … continha os objectos descritos na acusação” e que “desconhece a proveniência dos objectos identificados no artigo anterior”. Conclui, negando a prática dos factos imputados [cfr. artigos 10.º a 13.º e 15.º daquela peça processual]. Quanto ao mais, isto é, no que tange às razões de facto ou de direito de discórdia relativamente à acusação, o arguido, com propriedade, nada diz, tendo, tão só, aludido à circunstância de ter 75 anos e exercer a profissão de pintor de automóveis e bate-chapas, comprando e vendendo automóveis e que tinha alugado o veículo de matrícula … a terceiros, inexistindo, por conseguinte, um esgrimir de argumentos relativamente à prova constante nos autos que determinariam a prolação de um despacho de não pronúncia. Consubstanciará um requerimento nestes moldes uma instrução validamente requerida? A resposta é negativa. O artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (…).” [negrito e sublinhado nosso] No sistema processual penal português a sindicância dos motivos imanentes a uma decisão de arquivamento do inquérito ou de acusação tem lugar através da fase de instrução, que é da competência de um juiz e tem cariz facultativo – ex vi artigo 286.º do Código de Processo Penal. A instrução, descrita nestes moldes, tem como finalidade saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento. Dir-se-á, na decorrência deste preceito legal, que o arguido, confrontado com uma acusação, solicita ao juiz de instrução criminal a comprovação judicial de ter sido deduzida uma acusação mediante a adução de argumentos demonstrativos do desacerto da decisão de acusar naquele concreto processo, à luz e por força dos elementos que nele, e nesse momento, então existiam. Não obstante o supra citado inciso normativo referir que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, tal não redunda, qua tale, numa arbitrariedade, pois em obediência às finalidades legais da instrução aquele requerimento tem de pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, o que fará mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o sujeitar a julgamento. Para que a comprovação judicial seja despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento da abertura da instrução, neste têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio a essa actividade: as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público (ou do assistente). E essa discordância não se pode reduzir à alegação de que “o arguido não praticou os factos descritos na acusação”, que “desconhecia que o veículo automóvel de matrícula … continha os objectos descritos na acusação” ou que “desconhece a proveniência dos objectos subtraídos”. A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre este se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar ou arquivar, tomada com base nos elementos que existiam. In casu, como vimos, tal não sucedeu, isto porque o requerimento para abertura da fase de instrução apresentado pelo arguido não contém qualquer razão de facto ou de direito de discordância relativamente à acusação deduzida pelo Ministério Público. O arguido, em rectas contas, limita-se a contestar a veracidade dos factos narrados na acusação [artigos 9.º a 15.º] ou empresta-lhes uma contraversão, algo que é completamente inócuo para uma fase de controlo indiciário. Nada refere sobre o inquérito ou o que neste se passou. Ora, sendo este o conteúdo do requerimento para a abertura da instrução cumpre desde já dizer que o mesmo é totalmente imprestável para permitir – ou servir de base – à actividade de comprovação com os contornos já referidos . Com efeito, o arguido não refere que elementos de prova não foram considerados pelo Ministério Público e que levariam a um juízo diferente do formulado; quais as diligências probatórias que, no seu entender, foram postergadas e, qua tale, a decisão final só poderia ser a de acusar; quais os meios de prova que não foram valorados (ou erroneamente valorados) pelo detentor da acção penal e que culminaram na prolação de um despacho de acusação “inquinado”? Nada disto é dito. Ou seja, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como neste caso sucede, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes de o acusado ter cometido o crime que nessa peça lhe é imputado, conforme o previsto no artigo 283, nºs 1 a 3 do Código de Processo Penal. Deve aqui relembrar-se, na esteira do autor que temos vindo a citar, que a “discordância não se possa limitar (reduzir) à alegação de, por ex., não serem verdadeiros os factos narrados no libelo. Se assim fosse haveria uma paridade total entre o requerimento para a instrução e a contestação. E qual seria a congruência endoprocessual deste modo de perceber as coisas?” Ora, a sede própria para a apreciação do ora invocado no requerimento de abertura de instrução será a ulterior fase processual de julgamento, sendo a contestação a que alude o disposto no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal o meio processual idóneo para o fazer (com vista, de harmonia com o disposto no artigo 341.º, alínea c) do Código de Processo Penal, à produção da prova indicada pelo arguido). Só com o requerimento de abertura de instrução obedecendo a tais requisitos ficará definido o objeto da instrução, cuja finalidade é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação. Convém não esquecer que a instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar a investigação feita no inquérito, devendo o requerimento que a inicia ser o mais concreto e específico possível quanto ao seu objecto. De facto, o requerimento sobre apreciação, de um lado, ignora as finalidades legais da instrução e, de outro, acaba por transmutar esta fase em um espaço típico do julgamento. Na síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.05.2021, “um requerimento que se limite a um simples «não fui eu que pratiquei os factos», ou «os artigos tais e tais da acusação são falsos», etc., não traduz a apresentação de razões de facto e de direito de discordância com o juízo realizado pelo Ministério Público vertido na decisão tomada e, da mesma forma, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de uma versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspecto crítico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais.” Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido não serve as finalidades da instrução. Servirá, como já referido, as finalidades do julgamento. Assim, e tal como preconizado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29.01.2014, “se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível (…) Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase de instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual arguido”. Em suma, no requerimento de abertura de instrução que apresenta, o arguido limitou-se a antecipar a fase de julgamento, contestando a acusação. Esta circunstância não é permitida por lei. Dispõe o n.º 3 do artigo 287.º que “o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”. E só é admissível instrução quando o requerimento obedeça aos requisitos supra enunciados. O arguido, como vimos, não dá cabal cumprimento ao disposto nas disposições legais supra descritas, pelo que a presente instrução não pode ser admitida.” 2 - Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. As questões a decidir no presente recurso são as seguintes: 1.ª questão – A existência (ou não existência) de fundamento legal de rejeição do RAI. 2.ª questão – Deveria ter sido formulado ao recorrente convite “ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução, em período temporal prévio à respetiva rejeição”? B. Decidindo. 1.ª questão – A existência (ou não existência) de fundamento legal de rejeição do RAI. Segundo o recorrente, o RAI que deduziu “não configura qualquer das causas de rejeição descritas no artigo 287.º número 3 do C.P.P.” Vejamos. Atento o disposto no art.º 287.º, n.º 2, o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar. Consta do RAI, no que interessa para a presente decisão (transcrição): “O Arguido foi acusado da prática de um crime de furto qualificado em autoria material, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º l e 204.º n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 3, por referência à alínea a) do artigo 202.º, todos do Código Penal. E não concorda com tal acusação tendo por fundamento as seguintes razões de facto e de direito. DA ACUSACÃO FORMULADA (…) 7. Tal acusação não corresponde à verdade. 8. O arguido não subtraiu os objetos supra identificados, conforme vem descrito na acusação em referência, (…) 9. O arguido tem 75 anos, exerce a profissão de pintor de automóveis e bate-chapas, comprando e vendendo automóveis. 10. No dia 11 de Junho de 2024 o arguido não se deslocou a … conforme descrito na acusação. 11. O arguido desconhecia que o veículo automóvel de matrícula … continha os objetos descritos na acusação. 12. O arguido desconhece a proveniência dos objetos identificados no artigo anterior. 13. O arguido tinha alugado o veículo de matrícula … a terceiros, 14. E foi comunicado ao arguido via telemóvel que fosse a … no dia 12 de Junho de 2024, buscar a referida viatura. 15. O arguido não subtraiu os objetos identificados na acusação, cujo ilícito lhe é imputado. 16. Não se tendo obtido, em fase de inquérito, indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos exigidos para aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. 17.Nestes termos, a prova produzida em inquérito, se produzida em audiência de julgamento, conduziria à absolvição do arguido Daniel Fonseca. 18.Como diligência instrutório requer-se que seja ouvido o arguido AA.” O objecto do processo que a acusação incorpora materializa-se numa unidade complexa3 que compreende uma questão de facto (a descrição dos factos imputados) e uma questão de direito (a indicação normativa, ou seja, mais especificamente, na indicação do crime imputado). É consequência necessária da estrutura acusatória do processo penal4 que cabe em exclusivo à entidade acusadora a definição rigorosa do respetivo objeto, ou seja, a conformação concreta da acusação, não sendo legalmente admissível qualquer interferência nesse labor, nomeadamente por parte do juiz. Foi intenção do legislador (de 1987) que “esta fase não deveria ser uma repetição do inquérito, nem uma antecipação do julgamento, mas apenas um instrumento de controlo judicial daquela decisão com que a investigação é encerrada.”5 Tal intenção cristalizou-se na redação do art.º 286.º, n.º 1, que reproduzimos e que se mantém inalterada: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” Já em 2008, refletia Nuno Brandão6, a realidade na vida judiciária evidenciava “uma instrução sacrificada a ritos processuais inúteis e, a expedientes processuais dilatórios e abusivos e que não raras vezes foi na prática transformada num simulacro de julgamento”, sendo que a passagem do tempo apenas aprofundou esta deturpação do nuclear escopo da instrução. Em 20147 foi proferido no TRP um seminal Acórdão sobre a rigorosa delimitação em concreto do âmbito da instrução, de que extraímos o seguinte significativo trecho, que integralmente subscrevemos: “[P]odemos extrair as seguintes proposições […] conclusivas: Primeira: A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar. Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc. Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe). Segunda: Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto, desde logo, o inquérito lato sensu. Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido). Quarta: A instrução configura unicamente um momento de ‘controlo” da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais. O pressuposto necessário para que o arguido possa requerer a abertura da instrução é que tenha sido objecto de uma acusação, vd. o artigo 287.°, n.° 1, al. a), do CPP. E por ter sido acusado e entender que não deve ser submetido a julgamento, o arguido irá suscitar a intervenção de um terceiro, o juiz de instrução, o que fará mediante a apresentação de um requerimento onde se contenham as suas razões de discordância, com o objectivo de demonstrar o desacerto da decisão de acusar naquele concreto processo, à luz e por força dos elementos que nele, e nesse momento, então existiam. Ora, para demonstrar o desacerto da decisão de acusar com que culminou o concreto processo onde foi acusado, o arguido terá que pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, o que fará mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o sujeitar a julgamento. O chamamento do juiz de instrução destinar-se-á, como vimos, apenas e tão são, a averiguar (comprovar) se, naquele concreto processo composto pelos mais diversos elementos, se comprova, ou não, o bem fundado (o acerto) do juízo que o Ministério Público efectuou com base nos mesmos e corporizado na decisão de acusar. A instrução configura, como é sabido, um puro momento de controlo de uma actividade pretérita e depende de um impulso de terceiro — o arguido. Este impulso concretiza-se mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução que não se pode limitar a contestar a acusação mas, ao invés, deve atacar os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou os meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii) ou mesmo o procedimento (latu senso) concretamente adoptado pelo Ministério Público ou pelo Assistente que culminou na prolação do despacho de acusação ou na dedução de acusação particular (iii). Assim, o requerimento do arguido, ainda que não sujeito a formalidades especiais, tem que conter, em ordem às finalidades legais da instrução, desde logo e, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação pública (ou particular)- vd. o n.° 2 do artigo 287 do CPP. Daí que a discordância não se possa limitar (reduzir) à alegação de, por ex., não serem verdadeiros os factos narrados no libelo. Se assim fosse haveria uma paridade total entre o requerimento para a instrução e a contestação. E qual seria a congruência endoprocessual deste modo de perceber as coisas? A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre este se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam. Ou, então, se tomada sem determinados elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a sua intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre a acusação, tornando a dedução desta, em face de tal omissão e por força desta, incompreensível, indevida, e sempre, em qualquer dos casos, processualmente desalicerçada ou injustificada. Assim, a discordância relativamente à acusação terá que passar necessariamente e a título meramente exemplificativo por tópicos como estes: - O que é que não foi feito no inquérito e por causa disso foi deduzida acusação? - O que se fez no inquérito não basta para deduzir acusação e porquê? - O que é que foi desatendido no inquérito e por assim ter sido a actividade culminou na dedução de acusação? - Que meios de prova colhidos no inquérito não foram valorados de todo, ou foram mal valorados e por assim ter ocorrido está o despacho final inquinado? - Que diligências ou provas deveriam, à evidência, ter sido realizadas ou recolhidas, e por tal não ter sucedido, não espanta que a decisão final fosse de acusar? - Qual foi o erro de subsunção jurídico-penal da factualidade imputada e quais são as consequências que desse erro se projectam sobre a finalidade intrínseca da instrução requerida pelo arguido, isto é, a sua não submissão a julgamento? - Quais foram os elementos que o Ministério Público não considerou e de onde resultaria que isto e aquilo não corresponde à verdade? - Quais foram as diligências que se realizaram e que acabaram desconsideradas, apesar da sua relevância, sem se saber porquê, com a dedução do despacho de acusação? Etc. Nisto consistem as razões de facto e/ou de direito a que alude o artigo 287.°, n.° 2, do CPP e que terão que advir da análise que o arguido realize sobrem o conteúdo do inquérito que culminou com a decisão de acusar, isto, obviamente, sem prejuízo das situações verdadeiramente patológicas que corrompam o próprio libelo como, por ex. se os factos aí descritos não constituírem crime. Razões de facto e de direito de discordância relativamente á decisão de acusar, afinal uma exigência do n.° 2 do artigo 287° do CPP que, sublinhamos, tem consequência(s) directa(s) sobre o conteúdo do requerimento que se apresenta para despoletar a fase da instrução. Há condições que o requerimento apresentado pelo arguido tem que conter, preencher ou observar para, afinal, ser prestável à funcionalidade a que vem votado. Tais condições são as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de acusar com o recorte e implicações para estas acima referidos, sendo certo que só definidas deste modo podem tais razões de discordância ser aptas a fundar os alicerces em que assentará a actividade de comprovação que se solicita ao juiz, só assim será possível, com efeito, concretizar as finalidades legais da instrução. É este o critério para sanear as razões, que servem para realizar a comprovação daquelas outras que, servindo para muitas outras coisas, não prestam, de facto, para esse efeito, não têm essa funcionalidade, sequer potencial. Donde, não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite: — A apresentar uma mera versão ou contraversão factual — ainda que espelho de uma intenção verosímil — totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada); — A repetir ou a completar o inquérito; — A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação); — A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade ‘nova” fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii); — A pretender antecipar a fase do julgamento isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento; — A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado. O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.° 2 do artigo 287.° com o n.° 4 do artigo 288.° ambos do CPP. Assim, sem inquérito ou sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar. Sublinha-se, de facto, que se a fase da instrução se caracteriza pela actividade de comprovação, se esta, por sua vez, consiste numa actividade de demonstração, de confirmação, atribuída a um terceiro (o juiz) e que tem por objecto o inquérito (como actividade) e o juízo do Ministério Público corporizado na decisão de acusar com que aquele findou, então será mister que o requerimento que se apresenta para abrir esta fase tenha que possuir um conteúdo concreto que se ligue umbilicalmente com o tipo de actividade que se vai desenvolver na instrução e, justamente por isso, se adeqúe às finalidades legais desta. Do exposto resultam já projecções ou reflexos vários sobre o tipo de razões de discordância relativamente à acusação, a que alude o artigo 287°, n.° 2, e que devem necessariamente constar do conteúdo do requerimento por meio do qual se pretende catalisar a comprovação judicial da decisão de acusar Serão as razões de discordância vinculada, como as definimos, de facto e/ou de direito relativamente á decisão de acusar. Daí que, ante a incontestada proibição da prática de actos inúteis, quando nada de relevante em ordem às referidas finalidades se diga no requerimento: para que servirá este? Para tudo com certeza, mas já não, efectivamente, e de fundo, para verificar se a decisão de acusar, surgiu de modo fáctico e regular como consequência da actividade desenvolvida no inquérito. De facto, nas situações em que a instrução e impulsionada pelo arguido o requerimento deste, ainda que não sujeito a formalidades especiais, deverá conter em ordem às finalidades da instrução, desde logo e ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação publica ou particular. Logo, um requerimento que se limite a um simples «não fui eu que pratiquei os factos», ou «os artigos tais e tais da acusação são falsos», etc., não traduz a apresentação de razões de facto e de direito de discordância com o juízo realizado pelo Ministério Público vertido na decisão tomada. Igualmente, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de urna versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspecto crítico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais. Relembra-se que o requerimento de abertura de instrução não é idêntico á contestação nem tem igual finalidade. Em síntese, só mediante um requerimento em que se respeite os conteúdos e limites assinalados pela finalidade legal da instrução se poderá levar a cabo a discussão sobre a actividade do MP corporizada no seu despacho acusatório, ou seja, só assim se poderá realizar a actividade de comprovação judicial da dedução de acusação por parte do MP, ou seja, só assim serão respeitadas as finalidades legais da Instrução. […] Concluindo: Para poder ser o catalisador da fase da instrução, o requerimento apresentado pelo sujeito processual arguido tem que possuir um conteúdo que o comprometa decisiva e inexoravelmente com as finalidades legais da instrução. Mas e quando assim não seja? Antecipando, deverá o requerimento ser rejeitado.” Do exposto flui, com meridiana clareza, que “a inadmissibilidade legal da instrução resulta não propriamente de uma norma-regra (art. 286.º/3), mas da correta compreensão e otimização dos princípios que caracterizam o processo penal pátrio.” 8 Podemos dizer que o conteúdo do RAI do ora recorrente não só não reflete qualquer dos tópicos que poderiam integrar uma fundada “discordância relativamente à acusação”, como até é um exemplo explícito de um dos “repositórios de razões de discordância” legalmente inadmissíveis, nos termos mencionados no acima reproduzido Acórdão. Com efeito, como se diz acertadamente na decisão recorrida, a discordância [em relação à decisão do Ministério Público] “não se pode reduzir à alegação de que “o arguido não praticou os factos descritos na acusação”, que “desconhecia que o veículo automóvel de matrícula … continha os objectos descritos na acusação” ou que “desconhece a proveniência dos objectos subtraídos”. A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre este se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar ou arquivar, tomada com base nos elementos que existiam. In casu, como vimos, tal não sucedeu, isto porque o requerimento para abertura da fase de instrução apresentado pelo arguido não contém qualquer razão de facto ou de direito de discordância relativamente à acusação deduzida pelo Ministério Público. O arguido […] limita-se a contestar a veracidade dos factos narrados na acusação [artigos 9.º a 15.º] ou empresta-lhes uma contraversão, algo que é completamente inócuo para uma fase de controlo indiciário.” Consequentemente, o RAI do arguido ora recorrente não visa, de forma alguma, sindicar a “decisão de deduzir acusação (…) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, antes traduzindo uma “mimetização antecipatória do julgamento na instrução”9, com evitação do julgamento numa situação que claramente exorbita do legal escopo que conforma esta fase processual. Assim, entendemos que no despacho recorrido se efetuou uma correta interpretação da lei, improcedendo, nesta parte, a pretensão recursória do recorrente. 2.ª questão – Deveria ter sido formulado ao recorrente convite “ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução, em período temporal prévio à respetiva rejeição”? A questão suscitada tem resposta jurisprudencial (comum e constitucional) pacífica e incontroversa, como consta dos seguintes arestos10: Acórdão do TC n.º 636/2011 de 20.1211: Ali se decidiu “[n]ão julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).” Inexistem quaisquer razões para, com as devidas adaptações, não aplicar este entendimento a RAI apresentado pelo arguido. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12.05.2005, DR I Série A de 04.11.2005: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente á narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.” Também aqui, com as devidas adaptações, não existem quaisquer razões para não aplicar este entendimento a RAI apresentado pelo arguido. Do exposto flui, com toda a clareza, que não há qualquer fundamento legal para formular um convite ao aperfeiçoamento do RAI que não cumpra as legais exigências. A questão é, assim, improcedente. 3 - Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (Processado em computador e revisto pelo relator) .............................................................................................................. 1 Doravante RAI. 2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa. 3 A. Castanheira Neves (in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 236) identifica o objecto do processo como “o caso jurídico concreto apresentado e a resolver”. 4 Cfr. art.º 32.º, n.º 5 da CRP. 5 Nuno Brandão, A Nova Face da Instrução in RPCC, Ano 18, n.ºs 2 e 3, página 232. 6 In Op. cit., página 233. 7 Em 29.01, proferido no processo n.º 1878/11.8TAMAI.P1 (relatora Maria do Carmo Silva Dias) disponível, como os demais mencionados sem indicação diversa, em www.dgsi.pt. 8 Pedro Soares de Albergaria in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2.ª edição, 2022, Almedina, página 1255. 9 Nuno Brandão in Op. cit., página 254. 10 Referidos na resposta ao recurso do MP em 1.ª instância. 11 Disponível no respetivo sítio institucional. |