Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2770/13.7TAPTM.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: PESSOA COLECTIVA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
CÁLCULO
Data do Acordão: 12/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:

i) os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, da qual são afastados os órgãos sociais. Nos restantes aspectos, particularmente os criminais, a representação da insolvente continua a pertencer aos seus órgãos sociais, gerentes ou administradores.

ii) a declaração de insolvência de uma sociedade não a faz desaparecer, mantendo a sua personalidade jurídica e a sua capacidade judiciária. E são os seus órgãos que respondem pela matéria crime.

iii) as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (artigo 5.º do CSC), a declaração de insolvência da sociedade é causa da sua dissolução (artigo 141.º do CSC), mas a sociedade só se considera extinta pelo registo do encerramento da liquidação (artigo 160º, n. 2 do mesmo CSC e art 3º, n. 1, al. t) do CRC, Código do Registo Comercial.

iv) mesmo após a sua extinção, “o respectivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada” – artigo 127º, n. 2 do Código Penal.

v) assim, o administrador de insolvência não representa no processo penal a sociedade insolvente arguida, sendo esta representada pelos representantes legais existentes à data da declaração de insolvência, mantendo-se os mesmos em funções após aquela declaração nos termos do disposto no art. 82.º, n.º 1 do CIRE.

vi) a celebração pelo administrador da insolvência do contrato de mandato forense só pode transmitir os poderes de que dispunha, os relativos à defesa do activo e da recuperação do passivo da massa insolvente referidos nos artigos supra citados.

vii) como meros participantes processuais, o administrador de insolvência e os intervenientes no processo de insolvência têm legitimidade processual face à al. d) do nº 1 do artigo 401º do C.P.P. para virem discutir os pontos de carácter patrimonial que os afectam directamente, designadamente têm legitimidade para se insurgirem em sede de recurso contra o apuramento dos factos e a condenação cível da arguida insolvente! Mas não têm legitimidade para discutir a pena criminal imposta.

viii) é algo ousado que quem não tem um interesse directo, concreto e próprio na discussão da pena criminal tenha a possibilidade de discutir a pena através de um sofisma que faz equiparar “pena criminal” a “débito contabilístico”. Isto é, logicamente, a equiparação de “pena criminal” e “débito contabilístico” assenta numa falácia lógica de falsa analogia, conhecida falácia indutiva, assumindo a similitude das duas realidades para permitir a aplicação do regime de um ao falso analógico.

ix) as penas criminais a impor às pessoas colectivas, se em alguns casos diversas das impostas aos cidadãos comuns, assumem-se - com nuances particularistas - como integradas no unificado objectivo penal dos fins das penas, como consequências jurídicas do crime, sendo a pena de multa penal uma pena principal de natureza pecuniária.

x) a reivindicação de que «afastando-se a legitimidade do Administrador de Insolvência para recorrer da pena de multa a que a Sociedade em Liquidação foi condenada, põe-se em causa a função do Administrador de Insolvênca consistente em prover à conservação e frutificação dos direitos da insolvente, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica – artº 55º, nº 1, b) do CIRE» corresponde à vindicação de que o direito penal e os fins das penas não são aplicáveis às pessoas jurídicas, designadamente às sociedades e que a existência do administrador de insolvências é razão suficiente para que as penas sejam equiparadas a débitos comerciais.

xi) O facto “representação de uma sociedade” não expõe necessariamente uma representação jurídica, podendo referir-se a uma “representação” de facto.

xii) a ausência de um valor nos factos provados não encerra, por si, insuficiência factual se esses factos permitem uma decisão por simples raciocínio aritmético. (sumário elaborado pelo relator)

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Central Criminal de Portimão- correu termos o processo comum colectivo supra numerado pelo qual são arguidos:

- J…, divorciado, com a profissão de médico, residente na Rua …, portador do cartão de cidadão n.º …, emitido pelo Estado Português.

- M…, divorciada, com a profissão de farmacêutica, residente na …, portadora do cartão de cidadão n.º …, emitido pelo Estado Português.

- "Farmácia …, Unipessoal Lda – Em Liquidação", sociedade por quotas, com sede na Rua …, portadora do NIPC …,

Estes foram pronunciados pela prática, em co-autoria material e concurso efectivo:

- o arguido J… como co-autor material, na forma consumada e em concurso efectivo na prática de um crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal e de um crime de falsificação de documento (agravado), p. e p. no artigo 256.º, n.ºs 1 alíneas a), d) e e), 3 e 4, por referência aos artigo 255.º, alínea a) e 386.º alínea a), todos do Código Penal.

- a arguida M… como co-autora material, na forma consumada e em concurso efectivo na prática de um crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal e de um crime de falsificação de documento (agravado), p. e p. no artigo 256.º, n.º 1 alíneas a), d) e e) e 3, por referência aos artigos 255.º, alínea a), 386.º, alínea a) e 28.º, n.º 1, todos do Código Penal.

- a arguida "FARMÁCIA…, UNIPESSOAL LDA – EM LIQUIDAÇÃO" como co-autora material, na forma consumada e em concurso efectivo na prática de um crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 11.º, n.º 2, 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal e de um crime de falsificação de documento (agravado), p. e p. no artigo 11.º, n.º 2, 256.º, n.º 1 alíneas a), d) e e) e 3, por referência aos artigos 255.º, alínea a), 386.º, alínea a) e 28.º, n.º 1, todos do Código Penal.


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A Administração Regional de Saúde do Algarve formulou em Pedido de Indemnização Civil peticionando a condenação solidária dos demandados J…, M… e "FARMÁCIA …, UNIPESSOAL LDA – EM LIQUIDAÇÃO", a pagarem à ARS do Algarve o montante de 74.026,95 € (setenta e quatro mil e vinte e seis euros e noventa e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa supletiva legal de juros civis, desde a data da notificação do presente pedido de indemnização até integral pagamento.

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O tribunal recorrido veio, por acórdão de 6 de Março de 2019, a decidir julgar o despacho de pronúncia parcialmente procedente, e, em consequência, condenou:

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o arguido J…:

- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

- Pela prática de um crime de falsificação de documento agravada, previsto e punido pelos artigos 256º, n.º 1, alínea a) d) e), n.º 3 e n.º 4, do Código Penal na pena de 3 (três) anos;

- Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares acabadas de indicar, condenamos o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, a qual suspendemos na sua execução por igual período de tempo sujeita ao pagamento, solidário, do Pedido de indemnização civil no mesmo prazo através de depósito nos autos.


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a arguida M…,

- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), a pena de 4 (quatro) anos de prisão;

- Pela prática de um crime de falsificação de documento agravada, previsto e punido pelos artigos 256º, n.º 1, alínea a) d) e) e n.º 3, do Código Penal a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses ;

- Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares acabadas de indicar, condenamos a arguida na pena única de 5 (cinco) anos de prisão a qual suspendemos na sua execução por igual período de tempo sujeita ao pagamento, solidário, do Pedido de indemnização civil no mesmo prazo através de depósito nos autos.


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a arguida «Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação»,

- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), a pena de 550 dias de multa;

- Pela prática de um crime de falsificação de documento agravada, previsto e punido pelos artigos 256º, n.º 1, alínea a) d) e) e n.º 3, do Código Penal a pena de 300 dias de multa;

- Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares acabadas de indicar, condenamos a arguida na pena única de 700 (setecentos) dias de multa à razão diária de 100 (cem) euros, o que perfaz um total de €70.000,00.

Julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e condenou:

Os arguidos/demandados J… e M… no pagamento, solidário, à demandante ARS do Algarve, a título de indemnização por danos patrimoniais, da quantia de € 52.314,20 (cinquenta e dois mil trezentos e catorze euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros de mora, às taxas legais dos juros civis, vencidos e vincendos, desde a notificação até integral pagamento;

A arguida/demandada «Farmácia …, Unipessoal, Lda. – Em liquidação» no pagamento, solidário, à demandante ARS do Algarve, a título de indemnização por danos patrimoniais, da quantia de € 24.676,34 (vinte e quatro mil seiscentos e setenta e seis euros e trinta e quatro cêntimos) acrescida dos juros de mora, às taxas legais dos juros civis, vencidos e vincendos, desde a notificação até integral pagamento;

Absolveu os demandados do restante pedido.

Condenou os arguidos na taxa de justiça de 6 (seis) U.C. e nas demais custas do processo.

Condenou os intervenientes nas custas do pedido de indemnização civil em razão do decaimento, sem prejuízo das isenções a que estão sujeitos.


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Inconformados, interpuseram recurso:
- arguida MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE FARMÁCIA …, UNIPESSOAL, LDA,
- G…, Lda. NIPC …, com sede em …, e
- JR… NIF …, casado, com domicílio em …,

com as seguintes conclusões:

A. O Acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova, no que toca aos pontos de facto (98), (105) e (125), uma vez que da prova produzida e aliás da conjugação dos pontos de facto provados, impõe-se a alteração destes pontos de facto.

B. No ponto (98) foi dado como provado que A arguida M… pelo menos no período temporal compreendido entre os anos 2010 e 2014 foi proprietária (conjuntamente com o seu marido e ora arguido J…) das farmácias “…” e “Farmácia … Unipessoal Lda – Em Liquidação”.

C. Mais à frente, foi dado como provado, também que, (105) No início do ano de 2010, os arguidos J… e M…, por si e esta última também na qualidade de representante da sociedade “Farmácia …, Unipessoal, lda – Em Liquidação” desenvolveram um esquema fraudulento com vista a locupletarem-se indevidamente com montantes monetários à custa do Serviço Nacional de Saúde.

D. Foi igualmente dado como provado que (99) A Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação foi constituída em 02.02.2011.

E. Se a Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação foi constituída em 02.02.2011, e o esquema fraudulento teve lugar a partir do início de 2010 em tanto a Farmácia “…” como na Farmácia …, não pode ser considerado provado que a arguida M… foi proprietária entre 2010 e 2014 da “Farmácia …, Unipessoal Lda – Em Liquidação”,

F. Não se pode considerar assente que no início do ano de 2010, a arguida M… na qualidade de representante da sociedade “Farmácia …, Unipessoal, lda – Em Liquidação” desenvolveu um esquema fraudulento.

G. A Sociedade só passou a ter existência jurídica no dia 02.02.2011, mais de um ano após ter sido iniciado os factos em causa.

H. O ponto de facto 98 deverá ter a seguinte redacção: A arguida M… é farmacêutica (com inscrição activa na Ordem dos Farmacêuticos desde 10 de Julho de 1987) e pelo menos no período temporal compreendido entre os anos 2010 e Fevereiro de 2011 foi proprietária (conjuntamente com o seu marido e ora arguido J…) da farmácia “…” sita na … da farmácia ”…”, sita na Rua …. A partir de Fevereiro de 2011 continuou a explorar até 2014, enquanto proprietária (conjuntamente com o seu marido), a referida farmácia “…” e a partir de então a farmácia ”…” passou a ser explorada pela Sociedade “Farmácia …, Unipessoal, lda, com sede na Rua …. A arguida M… foi durante este período de tempo a sendo directora Técnica da Farmácia … e teve o poder de direcção, ainda que não técnica da Farmácia de ….

I. O ponto de facto 115 deverá ter a seguinte redacção: No início do ano de 2010, os arguidos J… e M…, desenvolveram um esquema fraudulento com vista a locupletarem-se indevidamente com montantes monetários à custa do Serviço Nacional de Saúde. A partir de Fevereiro de 2011 a arguida M…, desenvolveu o referido esquema fraudulento, também na qualidade de representante da sociedade “Farmácia …, Unipessoal, lda.

J. O ponto de facto n. 125. dá como provado que o arguido J… em concertação de esforços e ideias com a arguida M…, esta última por si e em representação da sociedade Unipessoal, Lda.” Prescreveu um conjunto de receitas médicas, em que o valor total da comparticipação do SNS apurado e do inerente prejuízo para o Estado foi de € 52.314,20.

K. O ponto de facto devia distinguir qual o valor total das comparticipações indevidas feitas por meio da Farmácia Porches, quais foram feitas por meio Farmácia …, antes de constituída a Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda. e quais foram feitas por meio Farmácia …, já depois de constituída a Sociedade.

L. A decomposição deste valor, salientando quais os valores que dizem respeito ao prejuízo causado directamente pela arguida M… e os que dizem respeito ao prejuízo causado pela arguida M… em nome e no interesse colectivo da Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda., terá determinante relevo, na determinação do valor da indemnização civil, mas também, na determinação da medida da pena da arguida Sociedade.

M. O ponto de facto 125, deverá, pois, ter a seguinte redacção Em termos globais, no período temporal compreendido entre os anos 2010 a 2013, o arguido J… em concertação de esforços e ideias com a arguida M…, esta última por si e em representação da sociedade Unipessoal, Lda.” prescreveu um conjunto de receitas médicas que abaixo se discriminam, em que o valor total da comparticipação do SNS apurado e do inerente prejuízo para o Estado foi de € 52.314,20 (cinquenta e dois mil, trezentos e catorze euros e vinte cêntimos), correspondente à comparticipação daquele no pagamento das receitas em causa, sendo que deste valor total correspondem € 27.637,86, a comparticipações em receitas comunicadas por intermédio da Farmácia …, a € 3.643,13 a comparticipações em receitas comunicadas por intermédio da Farmácia … antes do dia 02.02.2019 e € 21.033,21 a comparticipações em receitas comunicadas por intermédio da Farmácia … depois do dia 02.02.2019 .

N. Pelo crime de burla qualificada, ambos os arguidos singulares foram condenados a uma pena de Prisão que representa 50% da pena máxima prevista para o crime em causa - pena de Prisão de 4 anos (suspensa).

O. A arguida Sociedade foi condenada a uma pena de multa de 550 dias, o que representa 57,29% da pena máxima prevista na moldura penal aplicável.

P. Pelo crime de falsificação de documento agravada, o arguido J… foi condenado a uma pena de Prisão que representa 60% da pena máxima prevista para o crime em causa e a arguida a uma pena de Prisão que representa 50% da pena máxima prevista.

Q. Pelo mesmo crime, a arguida Sociedade foi condenada a uma pena de multa de 300 dias, o que representa 50% da pena máxima prevista na moldura penal aplicável.

R. As penas aplicadas à arguida Sociedade não tomaram em conta os critérios que a lei penal manda tomar, violando, assim, os artigos 90º-B, 71º e 90-D do Código Penal.

S. O artigo 90º-B do Código Penal, estabelece um paralelo entre a pena de prisão do agente singular que comete o crime em nome e no interesse colectivo da Pessoa Colectivo, com o fim ligar a pena em que o agente singular é condenado e aquela em que a pessoa colectiva é, uma vez que estarão em causa, os mesmos factos, culpa e ilicitude.

T. Se a agente singular for condenada pela prática de outros factos e crimes, para além daqueles que foram perpetrados em nome, e no interesse da Pessoa Colectiva, que a medida da pena da pessoa colectiva seja equivalente – através do critério do nº 1 do artigo 90º-B do Código Penal – e menos ainda, superior.

U. Para o cálculo do cúmulo das penas, o Tribunal a quo, atribuiu à arguida Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda. uma pena de multa 100 dias superior à pena equivalente a que a arguida singular foi condenada.

V. No cálculo da medida da pena da arguida Sociedade, impõe-se que seja tido em conta que a arguida singular praticou os factos que conduziram a esta condenação não só “em representação” da Sociedade Farmácia …, mas também em nome próprio.

W. Os valores dos prejuízos causados pelos crimes/benefícios indevidos e a quem são estes prejuízos/benefícios imputáveis deve ter reflexo no cálculo da medida das penas.

X. Se o total do valor das comparticipações indevidas é € 52.314,20 e deste valor € 3.643,13 dizem respeito a comparticipações indevidas pagas à Farmácia … antes da Constituição da Sociedade e € 27.637,86 dizem respeito a comparticipações indevidas pagas à Farmácia …, o valor imputável à Sociedade arguida é de € 21.033,21, que corresponde a praticamente 40%.

Y. Nos termos do nº 4 do artigo 90º-B a pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º.

Z. O do nº 1, do artigo 71º do CP, a determinação da medida da pena (...) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2, que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (...)

AA. Se o prejuízo/benefício ilegítimo com causa nos actos praticados “ao abrigo” da Sociedade Farmácia Sousa Pires representa 40% do valor total – ao passo que o valor prejuízo/benefício ilegítimo alcançado em “nome próprio” foi de 60%, a medida da pena não pode deixar de tomar em conta esta proporção.

BB. Sendo certo que o benefício económico indevido não chegou a reflectir-se na arguida sociedade, que foi declarada insolvente por sentença proferida a 19.08.2013.

CC. Se considerarmos que a arguida M… foi condenada a uma pena de Prisão de 4 anos (48 meses) pela prática de um crime de burla qualificada, a arguida Sociedade não deveria ser condenada a uma pena de multa superior a 192 dias (40% de 480 dias de multa).

DD. Se considerarmos que a arguida M… foi condenada a uma pena de Prisão de 2 anos e seis meses (30 meses) pela prática de um crime de falsificação agravada, a arguida Sociedade não deveria ser condenada a uma pena de multa superior a 120 dias (40% de 300 dias de multa).

EE. Tomando o cúmulo jurídico em que a arguida M… foi condenada, de cinco anos (60 meses) de prisão, então a Sociedade Farmácia … não deve ser condenada a mais de 240 dias de multa (40% de 600 dias)

FF. O artigo 71º do Código Penal manda, ainda, atender às necessidades de prevenção e as necessidades de prevenção especial para a arguida Sociedade, que não mais estará sob o controlo da arguida M…, que nunca mais praticará actos em nome e no interesse colectivo desta Sociedade, são inexistentes, justificando a absolvição da arguida Sociedade.

GG. Caso não se absolva a arguida, deverá ser a pena de multa substituída por prestação de caução de boa conduta, que tendo em conta que a pena de multa não deverá superar os 240 dias o valor não deverá ser superior a € 24.000,00 (240 dias x € 100,00), por um prazo não superior a 2 anos.

HH. O Tribunal a quo, no cômputo dos valores indevidamente comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde, atendeu aos valores que o foram por meio da Farmácia …, mas não aos valores que o foram pela Farmácia …, enquanto titulada directamente pela arguida M…, que, como já se viu, ascendem a € 3.964,24.

II. O valor a que a arguida sociedade deve ser solidariamente condenada a pagar, deverá ser o valor resultante da dedução ao valor total de € 52.314,20, dos valores de € 27.637,86 e € 3.964,24, o que totaliza o valor de € 21.033,21.

JJ. O Acórdão recorrido violou os artºs 90º-B, 90º-D e 71º do Código Penal devendo esta ser parcialmente revogada e substituído por Acórdão que absolva a Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda..

KK. Caso assim não se entenda, que seja substituído por Acórdão que condene a arguida Farmácia …, Unipessoal, Lda. à pena total (em cúmulo jurídico) de 240 dias de multa, à taxa diária de € 100,00 por dia, substituída por caução de boa conduta de valor não superior a € 24.000,00 pelo período de 2 anos.

LL. O valor do pedido de indemnização civil a que foi solidariamente condenada a pagar, deverá, no caso da Sociedade, ser reduzido a € 21.033,21, (vinte e um mil trinta e três euros e vinte e um cêntimos).

Nestes termos deverá ser dado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, ser o Acórdão recorrido parcialmente revogado e substituído por Acórdão que absolva a arguida Farmácia …, Unipessoal, Lda. ; caso assim não se entenda ser o Acórdão recorrido parcialmente revogado e substituído por Acórdão que condene a arguida Farmácia …, Unipessoal, Lda. à pena total (em cúmulo jurídico) de 240 dias de multa, à taxa diária de € 100,00 por dia, substituída por caução de boa conduta de valor não superior a € 24.000,00 pelo período de 2 anos.


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Respondeu o Digno Procurador junto do Tribunal da Comarca de Faro concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a sentença recorrida, concluindo:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

3- São as conclusões que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu todo e segundo o que preceituam os arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal, entre outros preceitos legais.

5- A recorrente não tem antecedentes criminais.

6- No que respeita ao "erro notório na apreciação da prova”, invocado pela recorrente, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias”. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P. Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova.

7- Analisado o douto Acórdão recorrido não se deteta qualquer erro notório, nem nenhum dos outros vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal.

8- Deve manter-se a toda a matéria de facto dada como provada no Douto Acórdão.

9- A arguida impugna a medida da pena e diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”.

10- Ou ainda como se diz no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:” II - Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP. III - Dentro deste limite, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, in www.dgsi.pt, Proc. nº 315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.

11- Sucede que os factos cometidos pela arguida são graves, provocaram alarme social e existem imperativos de prevenção geral e especial a salvaguardar.

12- Teve o Tribunal “a quo” em linha de conta para a escolha e medida da pena aplicada à arguida todos os critérios referidos nos artigo 90º-B, 90º-D e 71º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a pena única de 700 dias de multa à razão diária de 100 euros, o que perfaz 70.000 € (setenta mil euros), em sintonia com a culpa do arguido, e sem ter olvidado a sua ressocialização.

13- Não padece o Douto Acórdão de nenhum vício ou nulidade, dos previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis atinentes ao Direito Europeu, Constitucional e Criminal.

14- Deve o Douto Acórdão manter-se, na íntegra.


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A Exmª. Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer defendendo a manutenção do decidido.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.

Em 03-10-2019 lavrou-se o seguinte despacho preliminar:

Recurso próprio, tempestivo e recebido na forma devida.
A documentação junta tem justificação para demonstração da legitimidade e do interesse em agir.
Os três recorrentes têm legitimidade e interesse em recorrer quanto a parte das matérias tratadas no recurso, isto é, a matéria de facto e de natureza civil, patrimonial, digamos.
Quanto à matéria das penas impostas apenas a arguida “Sociedade …, Unipessoal” tem essa legitimidade.
Mas quanto a esta sociedade o recurso foi interposto com poderes de representação limitados pois que a procuração junta aos autos a fls. 4535 foi subscrita pelo administrador judicial e, nos termos do nº 4 do artigo 81º do CIRE «O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência». E tão só.
E as penas, não obstante com natureza pecuniária, não são “efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência” mas uma manifestação do ius imperii estatal.
Por isso que o recurso dos interessados meramente civis seja parcialmente rejeitado quanto às penas impostas à “Sociedade , Unipessoal”. Com o objecto delimitado desta forma em atenção a considerandos que atendem à legitimidade e à falta de representação, nada obsta ao seu conhecimento, mantendo-se o efeito que lhe foi atribuído.
Aos vistos dos Exmºs Desembargadores Presidente da Secção e adjunto e, em seguida, à conferência no dia 05-11-2019.


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Reclamaram os recorrentes deste despacho para a Conferência, como segue:

4. Com o devido respeito, os Recorrentes não podem concordar, nem se conformam com a interpretação defendida na decisão sumária, não devendo o recurso ser rejeitado quanto ás penas impostas à Sociedade …, Unipessoal.
5. A decisão de que se reclama, sem o dizer expressamente – mas referindo-se aos Recorrentes como interessados meramente civis –, equipara os Recorrentes a partes civis.
6. A legitimidade das partes civis para recorrer também lhes é reconhecida por lei, nos termos da alínea c) do nº 1, do artº 401º do CPP, sendo certo que o âmbito do recurso das partes civis fica, naturalmente limitado à parte das decisões contra cada uma proferidas, que se circunscreve a questões relativas a responsabilidade civil.
7. Ora, os Recorrentes fundamentaram a sua legitimidade na alínea d) do nº 1, do artº 401º do CPP, e não na alínea c) do mesmo preceito, por terem a defender um direito afectado pela decisão.
8. Esse direito é afectado, não só pela condenação no pagamento de uma indemnização, mas sobretudo pela pena de multa a que a Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação foi condenada.
9. Os Recorrentes defenderam a sua legitimidade no Recurso da Decisão condenatória, tanto na parte civil, como na parte penal, justificando que:
i. A condenação da arguida Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação, vem afectar directamente o património em que consiste a Massa Insolvente desta Sociedade, em primeira linha, e em segunda linha o principal credor da arguida JR… e bem assim, a Sociedade que se tornará titular da totalidade da Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda., a Sociedade Comercial por Quotas G…, Lda.
ii. A condenação da arguida Sociedade reflecte-se unicamente a nível patrimonial, responsabilizando-a pelo pagamento de um valor total de € 94.676,24, sendo € 70.000,00 referente à pena de multa e € 24.676,24 a indemnização civil.
iii. A multa a que a arguida Sociedade foi condenada e o montante de indemnização civil a que foi condenada a pagar solidariamente, afectarão directamente o património da Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda., que presentemente constitui a massa insolvente da Sociedade, administrada pelo Administrador Judicial; irá reflectir-se já no acervo da Sociedade após o encerramento do processo de insolvência, que está eminente, afectando por isso o património de uma Sociedade titulada por uma nova sócia, que aderiu a um plano de insolvência no pressuposto de uma situação patrimonial à data estabilizada e que esta condenação vem agora por em causa; e afectará a capacidade da Sociedade recuperada poder reembolsar o seu principal credor JR…, que promoveu o referido plano de Insolvência, com pressupostos que a decisão recorrida, veio agora por em causa
10. Para facilidade de referência recorda-se que a arguida Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação foi condenada pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, nº 2, alínea a), a pena de 550 dias de multa; pela prática de um crime de falsificação de documento agravada, previsto e punido pelos artigos 256º, nº 1, alínea a), d), e) e nº 3 do Código Penal a pena de 300 dias de multa; operando o cúmulo jurídico das penas parcelares na pena única de 700 dias de multa à razão diária de 100 (cem) euros, o que perfaz um total de € 70.000,00. A mesma arguida foi, ainda, condenada no pagamento solidário, à demandante ARS do Algarve, a título de indemnização por danos patrimoniais, da quantia de € 24.676,24, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até ao integral pagamento.
11. A pena em que foi condenada é pena de multa, e ascende a montante superior praticamente três vezes ao valor da indemnização a que foi condenada pagar.
12. A pena aplicada à Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação tem inegável natureza patrimonial, não obstante ser manifestação do ius imperii estatal, afectando, por isso, os direitos dos Recorrentes.
13. É que, a aplicação da pena, quando fosse concretizada, iria já afectar a Recuperada Farmácia …, Lda, sob nova gerência e cujo capital acabou detido por outras entidades, que aliás foram credoras da Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação,
14. E que tomaram a decisão de recuperação da empresa com base em pressupostos que não incluíam a condenação da Sociedade em Liquidação neste processo.
15. Acresce que, afastando-se a legitimidade do Administrador de Insolvência para recorrer da pena de multa a que a Sociedade em Liquidação foi condenada, põe-se em causa o a função do Administrador de Insolvênca consistente em prover à conservação e frutificação dos direitos da insolvente, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica – artº 55º, nº 1, b) do CIRE,
16. O que deixaria na exclusiva disposição da única sócia e gerente à data da declaração da Insolvência a possibilidade de pôr em causa a decisão condenatória proferida contra a Sociedade, que sendo co-arguida e co-condenada, numa situação que é de, pelo menos, conflito de interesses.
17. Recorde-se que a arguida M… praticou factos, que levaram á sua condenação, por intermédio da Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda., em clara situação de desconsideração de personalidade jurídica societária, obtendo para si os proveitos de tal actividade, o que resultou evidenciado da situação de insolvência em que deixou a sociedade unipessoal que constituiu.
18. E tendo em conta, que à data da interposição do Recurso, já havia transitado em julgado a sentença que homologou o plano de recuperação da Sociedade Farmácia Sousa Pires, a verdade é que nem a co-arguida e co-condenada M… teria já legitimidade para representar a Sociedade em sede de Recurso,
19. Sendo certo que ainda que tivesse tal legitimidade, certo seria que não o faria, sabendo que a propriedade da Sociedade era já de terceiros.
20. Esta situação atípica da Sociedade Farmácia …, em que a sua representação já não pode ser exercida legalmente, ou no limite legitimamente, pela anterior gerência, mas ainda não o pode, em rigor, ser exercida pela nova gerência, existindo a hipótese de intervenção do Administrador de Insolvência, não pode impedir que as entidades que serão efectivamente afectadas pela decisão condenatória da mesma recorram em toda a extensão na parte que é desfavorável à Sociedade Farmácia ….
21. Foi para situações atípicas ou menos típicas que a alínea d) do nº 1, do artº 401º do CPP veio permitir o Recurso por aqueles que tiverem a defender um direito afectado pela decisão, pelo que a legitimidade dos Recorrentes no presente recurso não pode ser negada nem limitada a apenas uma parte.
22. Consequentemente deverá ser admitido o recurso dos ora Recorrentes, também, quanto às penas impostas à Sociedade Farmácia ….
Termos, em que, deverá ser recebida a presente Reclamação e a mesma decidida em sede de Conferência, admitindo-se o Recurso interposto em toda a sua extensão.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. O Ministério da Saúde é o departamento governamental que tem por missão definir e conduzir a política nacional de saúde, garantindo uma aplicação e utilização sustentáveis dos recursos.
2. Na prossecução da sua missão, é atribuição do Ministério da Saúde, para além de outras, exercer, funções de regulamentação, planeamento e financiamento, em relação ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).
3. O Ministério da Saúde prossegue as suas atribuições, nomeadamente, através de serviços integrados na administração directa do Estado, de organismos integrados na administração indirecta do Estado e de outras estruturas e de entidades integradas no sector empresarial do Estado.
4. A administração indirecta do Estado inclui as Administrações Regionais de Saúde (ARS), que prosseguem atribuições do Ministério da Saúde, sob a superintendência e tutela do respectivo ministro, tendo por missão garantir à população da respectiva área geográfica de intervenção o acesso à prestação de cuidados de saúde, adequando os recursos disponíveis às necessidades, bem como cumprir e fazer cumprir políticas e programas de saúde na sua área de intervenção.
5. Entre outras, é atribuição das ARS afectar recursos financeiros às instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde integrados ou financiados pelo SNS.
6. O funcionamento das várias ARS é similar no que concerne à recepção, conferência e pagamento do receituário enviado pelas farmácias para comparticipação do Estado nos custos dos medicamentos.
7. O Serviço Nacional de Saúde é constituído por um conjunto de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde, que tem como objectivo a efectivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na protecção da saúde individual e colectiva, assegurando o direito à saúde a todos os cidadãos.
8. Integram o SNS todos os serviços e entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde, designadamente os agrupamentos de centros de saúde, os estabelecimentos hospitalares, independentemente da sua designação, e as unidades locais de saúde.
9. No âmbito do SNS, a comparticipação do Estado no preço dos medicamentos é variável, de acordo com diferentes escalões:
· No escalão A a comparticipação do Estado é de 95% do preço de venda ao público dos medicamentos;
· No escalão B a comparticipação do Estado é de 69% do preço de venda ao público dos medicamentos;
· No escalão C a comparticipação do Estado é de 37% do preço de venda ao público dos medicamentos;
· No escalão D a comparticipação do Estado é de 15% do preço de venda ao público dos medicamentos.
10. A comparticipação do Estado no preço dos medicamentos integrados no escalão A é acrescida de 5% e, nos escalões B, C e D é acrescida de 15%, para os pensionistas cujo rendimento total anual não exceda 14 vezes o valor do salário mínimo nacional.
11. Consequentemente, para os pensionistas que se encontrem nestas situações, as comparticipações do escalão A passam a ser de 100%, as comparticipações do escalão B, de 84%, as comparticipações do escalão C, de 52% e as comparticipações do escalão D atingem os 30%.
12. Os beneficiários deste regime especial de comparticipação (pensionistas que auferem pensões de montante não superior ao salário mínimo nacional) têm de fazer prova dessa sua qualidade através de documento emitido pelos serviços oficiais competentes.
13. Sempre que a prescrição se destine a pensionistas abrangidos pelo regime especial de comparticipação acima referido, deve ser impressa na receita, junto dos dados do utente, a sigla “R”.
14. Ainda assim, a comparticipação no preço do medicamento pode ser restringida a determinadas indicações terapêuticas, fixadas no diploma que estabelece a comparticipação.
15. Nestes casos, o médico prescritor tem de indicar na receita, de forma expressa, o diploma que prevê a comparticipação em causa.
16. Por outro lado, a comparticipação do Estado no preço de medicamentos utilizados no tratamento de determinadas patologias ou por grupos especiais de utentes é objecto de regime especial e diferentemente graduada em função das entidades que o prescrevem ou dispensam.
17. Sempre que a receita se destine a um doente abrangido por um regime especial de comparticipação, conforme acima descrito, deve ser impressa na receita, junto dos dados do utente, a sigla “O”.
18. A decisão sobre os pedidos de comparticipação dos medicamentos é da competência do Ministro da Saúde.
19. A avaliação dos medicamentos para efeitos de inclusão na lista de comparticipações pelo SNS, rege-se por critérios de natureza técnico-científica.
20. Anualmente, a lista dos medicamentos comparticipados pelo SNS é editada pelo INFARMED e publicada no Diário da República.
21. Os utentes do SNS apenas beneficiam de comparticipação quanto aos medicamentos prescritos em receita médica de modelo aprovado por despacho do Ministro da Saúde.
22. O Estado comparticipa igualmente os medicamentos receitados pelos médicos privados, desde que o utente apresente o respectivo Cartão de Identificação de Utente do SNS, para que possa ser identificada a receita.
23. São beneficiários do SNS:
a) Todos os cidadãos portugueses;
b) Os cidadãos nacionais de Estados membros das comunidades europeias;
c) Os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal em condições de reciprocidade, e os cidadãos apátridas residentes em Portugal.
24. Os medicamentos são receitados pelos médicos, no âmbito da sua actividade profissional.
25. Para o efeito, o médico procede ao atendimento, consulta e exame dos pacientes com vista à realização de diagnóstico sobre o seu estado clínico.
26. Tal acto médico culmina, se for caso disso, com a prescrição do tratamento adequado ao diagnóstico efectuado, através de receita médica, e com o esclarecimento do paciente sobre a posologia, doseamento e alerta sobre eventuais efeitos secundários do tratamento.
27. Por receita médica, entende-se o documento através do qual são prescritos, por um médico ou, nos casos previstos em legislação especial, por um médico dentista ou por um odontologista, um ou mais medicamentos determinados.
28. Até 28 de Fevereiro de 2011, a receita médica podia ser preenchida de forma manual ou informaticamente.
29. O modelo de receita médica, em suporte de papel pré-impresso, era exclusivo da “Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A.”, e de utilização obrigatória para todos os prescritores de medicamentos no âmbito do SNS.
30. O modelo de receita manual era extensível não só à prescrição pública mas também à privada.
31. Em cada receita médica podiam ser prescritos até quatro medicamentos distintos, sem contudo, ultrapassar um total de quatro embalagens por receita.
32. Sempre que o médico prescritor considerasse haver motivos para autorizar ou não autorizar a dispensa de um medicamento genérico em vez do medicamento prescrito, deveria assinalar esta sua decisão na receita no local próprio para o efeito.
33. Do mesmo modo, se a receita médica fosse destinada a um doente abrangido por um regime especial de comparticipação, tal indicação devia ser assinalada manualmente na receita pelo médico prescritor, se não fosse possível a impressão informatizada daquela.
34. No caso de o doente ser beneficiário de um subsistema ou de um seguro de saúde, era obrigatório o preenchimento manual ou informático do campo relativo à entidade financeira responsável pelo pagamento da comparticipação.
35. Se a prescrição fosse dirigida a um doente pensionista que auferisse um rendimento total anual não superior a 14 vezes o valor do salário mínimo nacional e não fosse possível a impressão informática da receita médica, deveria ser aposta no local próprio, pelos serviços respectivos, a vinheta de cor verde identificativa da unidade de saúdes.
36. As receitas médicas para terem validade, tinham obrigatoriamente de ter preenchido os seguintes campos:
a) O número da receita e sua representação em código de barras;
b) O local de prescrição e sua representação em código de barras, sempre que aplicável;
c) A identificação do médico prescritor, com a indicação do nome e especialidade médica, número da cédula profissional e respectivo código de barras;
d) O nome e número de utente, incluindo a letra correspondente, constantes do cartão de utente do SNS ou número de beneficiário e sua representação em código de barras sempre que aplicável;
e) A indicação da entidade financeira responsável e do regime especial de comparticipação, se aplicável;
f) A designação do medicamento, sendo esta efectuada através da denominação comum internacional (DCI) ou nome genérico para as substâncias activas em que existam medicamentos genéricos autorizados;
g) A dosagem, forma farmacêutica, número de embalagens, dimensão das embalagens e posologia;
h) A data da prescrição.
37. No caso de preenchimento manual da receita médica, a sua validação dependia ainda da aposição da vinheta identificativa do médico prescritor e da assinatura deste, bem como, quando aplicável, da vinheta da unidade prestadora de cuidados de saúde.
38. Quando a receita médica fosse preenchida informaticamente, a sua validação dependia da aposição dos códigos de barras relativos à identificação do médico prescritor e à unidade prestadora de cuidados de saúde, bem como da assinatura do médico.
39. O registo da distribuição do receituário, ao nível dos principais centros de prescrição – centros de saúde, hospitais, instituição particular de segurança social - é efectuado apenas por local de distribuição e não por médico.
40. A receita médica “manual” era válida por 10 dias úteis a contar da data da sua emissão, sem prejuízo do regime especial das receitas renováveis ou de se verificar que os medicamentos prescritos se encontravam esgotados, facto esse que tinha de ser consignado expressamente na própria receita.
41. As denominadas receitas médicas renováveis estavam sujeitas às seguintes condições de validade adicionais:
a) Só podiam ser objecto de 2 renovações (num total de 3 vias);
b) Tinham uma validade máxima de 6 meses;
c) Eram constituídas por um original e duas cópias, quando emitidas em suporte de papel;
d) Eram constituídas por três exemplares impressos, quando preenchidas em suporte informático.
42. São susceptíveis de ser prescritos através de receita médica renovável os medicamentos que se destinem a determinadas doenças ou tratamentos prolongados e que possam, no respeito pela segurança da sua utilização, ser adquiridos mais de uma vez, sem necessidade de nova prescrição médica.
43. Após 1 de Março de 2011, data a partir da qual passou a ser obrigatória a prescrição de medicamentos por via electrónica, foi definido um novo modelo de receita médica.
44. Assim, por regra, a partir daquela data, a receita electrónica passou a ser emitida de forma exclusivamente informática, sem prejuízo de, numa fase inicial, ter de ser materializada, isto é impressa.
45. Existem vários tipos de receitas:
a) RN – receita de medicamentos;
b) RE – receita especial (psicotrópicos e estupefacientes);
c) MM – receita de medicamentos manipulados;
d) MD – receita de produtos dietéticos;
e) MDB – receita de produtos para o autocontrolo da diabetes mellitus;
f) OUT – receitas de outros produtos (ex. produtos cosméticos, fraldas, sacos de ostomia, etc.).
46. Em cada receita electrónica podem ser prescritos até 4 medicamentos distintos, com o limite máximo de duas embalagens por medicamento sem, contudo, se ultrapassar o total de quatro embalagens por receita.
47. Sempre que a prescrição se destine a um pensionista cujo rendimento total não exceda 14 vezes o salário mínimo nacional, deve ser impressa a sigla «R» na receita materializada, junto dos dados do utente.
48. Quando a receita electrónica se destinar a um doente abrangido por um regime especial de comparticipação de medicamentos utilizados no tratamento de determinadas patologias ou utilizados por grupos especiais de utentes, a menção ao despacho que consagra o regime que abrange o utente deve ser impressa na receita electrónica, no campo relativo à designação do medicamento, devendo ainda ser impressa, na receita materializada, a sigla «O», junto dos dados do utente.
49. A receita electrónica só é válida se incluir os seguintes elementos:
a) O número da receita, constituído por 19 dígitos, atribuído pelo Sistema Central de Prescrições ou, em casos excepcionais, pelo software de prescrição;
b) O local de prescrição, que é de preenchimento automático pelo software de prescrição;
c) A identificação do médico prescritor, com a indicação do nome profissional, especialidade médica, se aplicável, número da cédula profissional e contacto telefónico, que é de preenchimento automático pelo software de prescrição;
d) O nome e número de utente e, sempre que aplicável, de beneficiário de subsistema;
e) A entidade financeira responsável – pelo pagamento ou comparticipação dos medicamentos da receita;
f) O regime especial de comparticipação dos medicamentos, representado pelas siglas «R» e ou «O», se aplicável;
g) A designação do medicamento, sendo esta efectuada através da denominação comum da substância activa, da marca e do nome titular da autorização de introdução no mercado;
h) O código do medicamento representado em dígitos;
i) A dosagem, forma farmacêutica, dimensão da embalagem, número de embalagens e posologia;
j) A identificação do despacho que estabelece o regime especial de comparticipação de medicamentos, se aplicável;
k) A data de prescrição, preenchida automaticamente pelo software de prescrição;
l) A assinatura, manuscrita ou digital, do prescritor.
50. A receita electrónica materializada deve ainda conter códigos de barras relativos ao seguinte:
a) O número da receita;
b) O local de prescrição;
c) O número da cédula profissional;
d) O número de utente e, sempre que aplicável, de beneficiário de subsistema;
e) O código do medicamento.
51. A receita electrónica é válida pelo prazo de 30 dias a contar da data da sua emissão.
52. Podem ser emitidas receitas electrónicas renováveis, até ao número máximo de três vias por receita, sendo o prazo de validade de cada via de 6 meses contados desde a data de prescrição. Nesse tipo de receitas deve constar a indicação “1.ª via”, “2.ª via” e/ou “3.ª via”.
53. Só os profissionais registados no Portal de Registo de Prescritores são reconhecidos pelo Sistema Central de Prescrições, pelo que apenas estes podem emitir receitas electrónicas comparticipáveis pelo SNS.
54. Os medicamentos das receitas manuais prescritas continuaram a ser comparticipados após a entrada em vigor do regime da prescrição electrónica, desde que a receita se encontrasse dentro do prazo de validade (10 dias para a receita convencional e 6 meses para a receita renovável).
55. Com o novo regime da prescrição electrónica, a prescrição manual passou a ser possível apenas em situações excepcionais, nomeadamente nos seguintes casos:
a) Falência informática;
b) Prescrição no domicílio;
c) Profissional com volume de prescrição igual ou inferior a 50 receitas médicas por mês;
d) Inadaptação comprovada do prescritor.
56. O novo modelo da receita médica manual (a utilizar apenas nas situações atrás referidas), assim como os modelos de vinheta, são exclusivos da Imprensa Nacional – Casa da Moeda e a sua aquisição é feita através do Portal de Requisições de Vinhetas e Receitas (PRVR), disponível para os prescritores e instituições públicas e privadas.
57. Mantém-se a obrigatoriedade de aposição de vinhetas nas receitas manuais.
58.Não é permitida mais do que uma via da receita manual e para que seja válida, o prescritor deve incluir os seguintes elementos:
a) A identificação do local de prescrição ou respectiva vinheta, se aplicável;
b) A vinheta identificativa do prescritor;
c) A especialidade médica e o contacto telefónico;
d) A identificação da excepção que justifica a utilização da receita manual;
e) O nome, o número de utente e o número de beneficiário;
f) A entidade financeira responsável;
g) O regime especial de comparticipação de medicamentos, representado pelas siglas R e /ou O;
h) A identificação do medicamento;
i) A justificação técnica;
j) A identificação do despacho que estabelece o regime especial de comparticipação dos medicamentos;
l) A data da prescrição;
m) A assinatura do prescritor.
59. Desde o início do ano de 2013 que o Ministério da Saúde disponibilizou o portal das vinhetas e receitas (https://requisicoes.min-saude.pt/ACSS/), onde os médicos e locais de prescrição podem requisitar a nova versão das vinhetas e receitas.
60. Esta nova versão das vinhetas é impressa centralizadamente pela INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda e inclui uma série de novos mecanismos de segurança, nomeadamente a numeração das vinhetas e a existência de um holograma.
61. Até essa data, porém, cada ARS encomendava a impressão dos modelos de receituário a tipografias, sendo as requisições feitas em triplicado e o original remetido à tipografia.
62. As vinhetas dos médicos, de cor rosa, e as dos centros prescritores, de cor rosa (regime geral) ou de cor verde (regime especial), eram impressas a laser.
63. Os centros prescritores requisitavam as vinhetas de ambos os tipos ao serviço informativo da respectiva ARS, a quem também eram dirigidas as requisições dos médicos particulares.
64. A impressão das vinhetas era efectuada em papel próprio adquirido, por concurso, a tipografias.
65. Salvo casos de força maior, devidamente justificados, os medicamentos sujeitos a receita médica só podem ser dispensados ao utente nela indicado ou a quem o represente.
66. Para adquirir os medicamentos que lhe foram prescritos, o utente dirige-se à farmácia, onde entrega a receita, ou o respectivo documento impresso, no caso de prescrição electrónica.
67. No ato de aviamento das receitas o utente tem de confirmar obrigatoriamente os medicamentos que lhe foram dispensados, apondo a sua assinatura na receita médica (ou no recibo de dispensa de medicamentos).
68. Quando o utente não sabe ou não pode assinar, a assinatura é feita a rogo, com a indicação da pessoa que assina, que pode ser o farmacêutico ou um seu colaborador.
69. Se não for o utente identificado na receita a deslocar-se à farmácia para adquirir os medicamentos, mas antes uma terceira pessoa, é esta que procede à confirmação do fornecimento efectuado, através da aposição da sua assinatura no verso da receita.
70. Na prática, contudo, não é, muitas vezes, confirmada pela farmácia a identidade de quem “representa” o utente no aviamento da receita (v.g., a indicação do nome e do número do bilhete de identidade e outros elementos de contacto), sem que daí decorra qualquer penalização legal para a farmácia em causa.
71. É ao farmacêutico ou ao seu colaborador que incumbe datar, assinar e carimbar a receita, para além de indicar o preço total de cada medicamento, o valor total da receita e o valor da comparticipação do Estado, bem como colar na receita a etiqueta destacável das embalagens dispensadas ou, em alternativa, imprimir naquela informaticamente os respectivos códigos identificadores.
72. Quando for dispensado um medicamento genérico em vez do medicamento prescrito, a receita deverá igualmente ser assinada pelo utente ou por quem o represente.
73. Compete ainda às farmácias proceder à verificação física das prescrições, designadamente, conferir se existem rasuras na receita no que toca às quantidades e à denominação dos medicamentos prescritos, ou se houve lugar a aditamentos desconformes com a letra do médico e a validade da receita.
74. No princípio de cada mês, as farmácias reúnem todas as receitas aviadas com prescrição de medicamentos comparticipados pelo SNS e relativas ao mês anterior e remetem-nas ao Centro de Conferência de Facturas, para conferência e pagamento das comparticipações devidas.
75. Desde Março de 2010, a conferência do receituário remetido mensalmente, até então às ARS, pelas farmácias de Portugal Continental encontra-se centralizada no Centro de Conferências de Faturas, doravante CCF, estrutura criada pela “Administração Central do Sistema de Saúde I. P.” (ACSS).
76. O CCF é responsável por gerir e assegurar todas as actividades relacionadas com o processamento de conferência de facturas, desde a sua recepção até ao correto apuramento dos valores devidos pelo SNS às farmácias, bem como o arquivo dos respectivos suportes documentais.
77. Através do portal electrónico do CCF, disponibilizado pela ACSS, é possível aceder aos documentos electrónicos pertinentes ao processo de conferência, podendo aquele ser ainda utilizado para comunicações electrónicas.
78. Assim, cada farmácia envia ao CCF, até ao dia 10 do mês seguinte ao do seu aviamento, as receitas médicas onde foram prescritos medicamentos comparticipados dispensados a beneficiários do SNS que não estejam abrangidos por nenhum subsistema.
79. No mesmo passo, as farmácias remetem igualmente ao CCF a factura mensal respectiva, em dois exemplares, correspondente ao valor mensal da comparticipação do Estado no preço de venda ao público (PVP) dos medicamentos dispensados.
80. Se, por qualquer motivo, a factura mensal não cumprir os necessários requisitos, o CCF dá conta desse facto à farmácia, mantém em seu poder a documentação associada à referida factura e suspende a sua contabilização e validação, até à recepção de nova factura mensal, corrigida, que deverá ser recebida até 60 dias após a data da verificação pelo CCF da irregularidade da factura originária.
81. No CCF, as receitas são digitalizadas e sujeitas a um processo de conferência onde é verificado se a dispensa está de acordo com a prescrição e se os valores das comparticipações aplicados estão correctos, analisando-se, designadamente, as substituições dos medicamentos, os preços e as comparticipações devidas.
82. Quando se verifiquem desconformidades nas receitas, erros ou diferenças nos documentos conferidos, o CCF disponibiliza ou envia à farmácia os seguintes documentos:
a) Uma relação-resumo contendo o valor das desconformidades;
b) A justificação das desconformidades;
c) As receitas, as facturas, a relação-resumo de lote e os verbetes de identificação de lote que correspondem às desconformidades.
83. As receitas a que tenha sido atribuído um valor de erro superior a € 0,50 (cinquenta cêntimos) são marcadas para devolução à farmácia, não sendo pagas na totalidade.
84. Logo que concluída a operação de validação do receituário e das facturas, o CCF envia ou disponibiliza no portal do CCF à respectiva ARS, para efeitos de validação e pagamento das comparticipações, os seguintes elementos:
a) Informação mensal das facturas recebidas;
b) Resultado da conferência;
c) Notas de crédito e notas de débito recebidas.
85. No dia 10 do mês seguinte ao do envio da factura mensal, o Estado, através da ARS competente, procede ao pagamento do valor da factura mensal entregue no mês anterior e informa a ARS em causa do montante transferido, do valor da factura, das eventuais rectificações a crédito ou a débito, da data da transferência e do número de identificação bancária para onde esta foi efectuada.
86. Todavia, a análise efectuada pelo CCF apresenta fragilidades, designadamente porque não procede ao cruzamento dos dados dos utentes, constantes das receitas, com a base de dados dos utentes (doravante designada BDU) por forma a confirmar se:
a) Os utentes são efectivamente beneficiários do SNS ou de outros subsistemas de saúde aos quais devam ser debitados os encargos com medicamentos;
b) Os utentes são beneficiários do regime especial de comparticipação em função dos seus rendimentos;
c) Os utentes já tinham falecido à data de aviamento do respectivo receituário.
87. Acresce que o CCF não tem acesso a uma base de dados nacional de médicos, eventualmente elaborada pela Ordem dos Médicos, pelo que não consegue:
a) Assegurar que os médicos identificados nas receitas estão efectivamente inscritos na Ordem dos Médicos;
b) Identificar a especialidade do médico em questão, apesar de se tratar de um elemento fulcral na medida em que existem regimes especiais de comparticipação que apenas podem ser concedidos se os médicos prescritores possuírem as especialidades definidas;
c) Verificar se o médico, à data de emissão do receituário, não havia falecido ou se se encontra apto para prescrever.
88. Estas debilidades do sistema de controlo interno de emissão e aviamento de receituário médico, por via manual ou electrónica, no exercício público ou privado da medicina, facilitam o aproveitamento abusivo e irregular do SNS por terceiros, em detrimento dos utentes.
89. Em Setembro de 2012 a criação da Unidade de Exploração de Informação do Centro de Conferências de Facturas, doravante UEI-CCF, veio permitir que a análise de situações de erro, até então feita por receita, passasse igualmente a ser efectuada por grupo de receitas (tendo em atenção o comportamento do prescritor e da farmácia), possibilitando deste modo a detecção de situações até à data ignoradas, e que passaram a ser consideradas no processo de conferência.
90. Todos estes factos eram conhecidos dos arguidos J… e M… em geral, que tinham vastos conhecimentos sobre o funcionamento do S.N.S. e das A.R.S., atrás descrito.
91. Com efeito, os arguidos J… e M… trabalhavam no meio médico e/ou farmacêutico.
92. O arguido J… é médico, assistente graduado de medicina geral e familiar com o número mecanográfico da Ordem dos Médicos …, sendo certo que, para o exercício daquela actividade, celebrou com o Estado Português – Ministério da Saúde em 15 de Março de 1978, um contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.
93. No período temporal compreendido entre os anos de 1982 a 2014 exerceu as aludidas funções de médico, ao abrigo do supra referido contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado no Centro de Saúde de … e na extensão de saúde de …, facto este que, era do perfeito conhecimento da arguida M….
94. Exerceu igualmente medicina privada, no período temporal compreendido entre o ano de 1982 e até Maio de 2011, em consultório próprio localizado em Silves.
95. No âmbito das aludidas funções, competia-lhe, como a qualquer outro médico, praticar actos médicos, nomeadamente proceder ao atendimento, consultas e exame dos utentes e realizar diagnóstico sobre o seu estado clinico, bem como prescrever medicação adequada ao diagnóstico efectuado de acordo com as terapêuticas disponíveis ou em conformidade com o registo existente no serviço médico para efeitos de prescrição de medicação continuada.
96. E, no exercício dessa mesma actividade, era-lhe vedado prescrever terapêuticas que não visassem o interesse directo do doente a seu cargo, e/ou que tivessem como objectivo o seu interesse financeiro ou de terceiros.
97. Devendo prescrever medicamentos no respeito pelo seu uso racional, no interesse dos doentes e da saúde pública.
98. A arguida M… é farmacêutica (com inscrição activa na Ordem dos Farmacêuticos desde 10 de Julho de 1987) e pelo menos no período temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2014 foi proprietária (conjuntamente com o seu marido e ora arguido J…) das farmácias «…», sita na Rua … e «Farmácia …, Unipessoal Lda – Em Liquidação», com sede na Rua …, sendo Directora Técnica da Farmácia … e tendo o poder de direcção, ainda que não técnica, na Farmácia de ….
99. A «Farmácia …, Unipessoal, Lda – Em Liquidação» é uma sociedade por quotas que desde a sua constituição (ocorrida no dia 02/02/2011) e até à presente data tem como gerente e única sócia a arguida M…, sendo o objecto daquela o seguinte: «comércio a retalho de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, cosméticos e de higiene.»
100. O exercício da actividade farmacêutica tem como objecto essencial a saúde e o bem-estar do doente e do cidadão em geral, devendo os farmacêuticos pôr o bem-estar dos indivíduos à frente dos seus interesses pessoais ou comerciais.
101. E, no exercício da sua actividade, é-lhe vedado estabelecer conluios ou praticar actos susceptíveis de causarem prejuízo a terceiros, designadamente ao Estado.
102. Compete, em especial, ao director técnico de uma farmácia, assumir a responsabilidade pelos actos farmacêuticos praticados na farmácia e assegurar que a gestão económica da farmácia não interfere com qualquer acto farmacêutico, nomeadamente, com a dispensa de medicamentos ou produtos de saúde.
103. Por outro lado, cabe-lhe ainda verificar e assegurar o cumprimento das regras deontológicas, bem como dos princípios e deveres da actividade farmacêutica dentro da respectiva farmácia.
104. Os arguidos J… e M… foram casados um com o outro, sob o regime da comunhão de adquiridos, no período temporal compreendido entre 31 de Julho de 1976 e 3 de Julho de 2013.
105. Neste contexto, desde data não concretamente apurada mas que se situa no início do ano de 2010, os arguidos J… e M…, por si e esta última também na qualidade de representante da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda – Em Liquidação», desenvolveram um esquema fraudulento com vista a locupletarem-se indevidamente com montantes monetários à custa do Serviço Nacional de Saúde.
106. Com efeito, de forma concertada e de acordo com plano previamente delineado, os arguidos J… e M… decidiram tirar proveito dos conhecimentos que tinham sobre as fragilidades do SNS e das ARS, assim como, do facto do primeiro exercer funções públicas, desenvolvendo o esquema adiante referido.
107. Tal esquema, em síntese, consistiu no seguinte: o arguido J…, aproveitando a sua condição de médico e o facto de exercer esta actividade tanto no seu consultório privado, como no referido Centro de Saúde … e na extensão de …, possuía conhecimento dos dados pessoais relativos a cidadãos utentes do S.N.S.
108. Aproveitando-se de tal conhecimento no período temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2013, o arguido J…, passou a emitir em nome de diversos utentes do S.N.S. receitas forjadas, na medida em que eram passadas sem o conhecimento dos utentes, não se destinando tampouco a estes.
109. Sendo que, tais receitas eram relativamente a medicamentos comparticipados pelo S.N.S. sobretudo em percentagens iguais ou superiores a 90%, em nome de utentes do S.N.S., a maior parte dos quais tinham aquele como seu médico de família ou eram seus pacientes no consultório privado onde também exerceu medicina.
110. Alguns desses medicamentos prescritos nas aludidas receitas forjadas e com forte comparticipação por parte do S.N.S. foram os seguintes:
111. Após a emissão das sobreditas receitas, as mesmas eram entregues pelo arguido J… à sua (à data dos factos) esposa e ora arguida M….
112. A arguida M…, por seu turno, recebeu as aludidas receitas forjadas e inseriu as mesmas directamente no registo de facturação de vendas das aludidas farmácias de que era proprietária sem passar pelo registo de vendas e, por conseguinte, sem movimentação de stocks.
113. Posteriormente, a arguida M…, remetia o receituário forjado ao Ministério da Saúde – Centro de Conferência de Facturas para comparticipação respectiva sem que houvesse lugar à dispensa efectiva dos medicamentos prescritos.
114. Dessa forma, os arguidos J… e M… obtiveram avultados proventos, acarretando, inerentemente, um enorme prejuízo patrimonial para o Estado Português – Serviço Nacional de Saúde.
115. Concretizando melhor, as finalidades comuns dos arguidos J… e M… eram as seguintes:
a) Emissão de receitas médicas forjadas passadas em nome de utentes do SNS com prescrição de medicamentos seleccionados em função da elevada comparticipação do SNS no seu pagamento, em regra, igual ou superior a 92%;
b) Inserção dessas receitas directamente no registo de facturação de vendas das aludidas farmácias «… «…» sem passar pelo registo de vendas e, por conseguinte, sem movimentação de stocks;
c) Pagamento pelo SNS, através da ARS do Algarve, da parte do preço dos medicamentos correspondente à respectiva comparticipação, solicitada pelas farmácias ao Ministério da Saúde – Centro de Conferência de Facturas;
d) Obtenção consequente de lucros indevidos, resultantes da comparticipação da ARS do Algarve no pagamento dos medicamentos atrás referidos e correspondentes a essa comparticipação.
116. A concretização destas finalidades implicava para os arguidos J… e M… o seguinte:
a) Seleccionar, um conjunto de medicamentos comparticipados pelo SNS, sobretudo ao nível dos escalões A e B, ou seja, cujo preço de venda ao público é pago por aquela entidade num montante compreendido entre os 69% e os 100%;
b) Identificação dos utentes em nome dos quais as receitas deveriam ser prescritas;
c) Providenciar pela emissão de receituário médico em nome de utentes do SNS, sendo que, aquelas eram passadas sem o conhecimento dos utentes, não se destinando tampouco a estes;
d) Inserção dessas receitas na facturação das aludidas farmácias, sem passar pelo registo de vendas;
e) Confirmar fraudulentamente que as receitas haviam sido aviadas, assim como haviam sido entregues os medicamentos em causa aos utentes respectivos no momento, através da aposição de uma assinatura ou rúbrica nos recibos relativos à venda dos medicamentos prescritos receitas, como se dos utentes identificados nas receitas médicas ou pessoas em sua legítima representação se tratasse;
f) Internamente, nas farmácias «…» e «…», enviar ao CCF até ao dia 10 do mês seguinte à data que fraudulentamente se fazia constar como sendo a do dia em que as mesmas haviam sido aviadas, as receitas médicas onde estavam prescritos os medicamentos comparticipados e falsamente dispensados a beneficiários do SNS;
g) Juntamente com as receitas aviadas, remeter também ao CCF a factura correspondente ao valor da comparticipação do Estado no P.V.P. daqueles medicamentos e assim lograr o seu pagamento indevido pela ARS;
i) Visar exclusivamente a entrada directa das receitas onde eram prescritos medicamentos na facturação das farmácias «…» e «…», onde eram introduzidas as receitas no sistema informático dos estabelecimentos e seguidamente remetidas ao CCF e às ARS, para pagamento da comparticipação respectiva, sem que houvesse lugar à dispensa efectiva dos medicamentos prescritos
117. A selecção dos medicamentos a prescrever, para serem posteriormente aviados e transaccionados, era feita tendo essencialmente por base um conjunto de medicamentos comparticipados pelo SNS ao nível dos escalões A e B, cujo valor de PVP fosse pago por aquela entidade num montante compreendido entre os 69% e os 100%.
118. Outra das tarefas indispensáveis à concretização dos objectivos dos arguidos J… e M… era a selecção dos utentes do SNS em nome de quem eram emitidas as receitas médicas.
119. A escolha dos utentes incidia preferencialmente sobre aqueles que beneficiavam do regime especial de comparticipação de medicamentos, identificados com as letras “R” e “O” inscritas na parte superior direita da receita, uma vez que estes utentes /beneficiários têm acesso a um conjunto alargado de medicamentos com elevada comparticipação do SNS.
120. A prescrição do receituário era feita pelo arguido J… sem prévia existência de qualquer acto médico que o justificasse e, bem ainda, sabendo que aquele não se destinava aos utentes em nome de quem as receitas eram emitidas.
121. Para a emissão de receitas, o arguido J… tinha em seu poder vinhetas com a sua identificação como médico prescritor, bem como impressos de receitas e vinhetas relativas aos diversos locais de prescrição onde exercia funções.
122. Aqueles documentos eram-lhe entregues em razão da sua actividade profissional, para usar na prescrição de medicação aos pacientes que efectivamente consultasse.
123. Todavia, o arguido J… utilizava indevidamente tais elementos oficiais de trabalho, dotados de fé pública, desviando-os em boa parte para a prescrição de receitas médicas nas condições supra mencionadas.
124. O médico e ora arguido J…, segundo análise efectuada pelo Ministério da Saúde através da Unidade de Exploração de Informação (UEI) à sua prescrição, por reporte ao período compreendido entre Fevereiro de 2010 e Junho de 2013, verificou o seguinte:
· O valor percentual de 56% corresponde ao valor total de S.N.S. do médico J… que provém do Centro de Saúde de … – Sede;
· O médico J… no período em análise pela UEI, foi o maior prescritor, em valor SNS, na farmácia «…», onde apresenta um valor médio de SNS por receita superior a €65,00 sendo o segundo maior prescritor, em valor SNS, na farmácia «…», onde apresenta um valor médio de SNS por receita superior a €65,00;
· Cinco dos dez medicamentos do top de medicamentos prescritos pelo médico J… na farmácia «…», apresentam uma taxa de comparticipação superior a 90%;
· Seis dos dez medicamentos do top prescritos pelo médico J… na farmácia «…» apresentam uma taxa de comparticipação superior a 90%.
125. Em termos globais, no período compreendido temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2103, o arguido J… em concertação de esforços e ideias com a arguida M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal Lda» prescreveu o conjunto de receitas médicas que abaixo se discriminam, em que o valor total da comparticipação do SNS apurado e do inerente prejuízo para o Estado, foi de €52.314,20 (CINQUENTA E DOIS MIL TREZENTOS E CATORZE EUROS E VINTE CENTIMOS), correspondente à comparticipação daquele no pagamento das receitas em causa.
126. Assim e, pela forma descrita, os arguidos J… e M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda», locupletaram-se indevidamente com o valor de €52.314,20.
127. Sendo que a totalidade das receitas forjadas foram passadas pelo arguido J…, o qual, por seu turno, as entregava à arguida M….
128. Nessa fase, a arguida M…, confirmava a recepção dos medicamentos prescritos no receituário forjado, como se dos utentes identificados nas receitas médicas, ou pessoas em sua legítima representação se tratassem.
129. Fazia-o, normalmente apondo rúbricas, ou ordenado aos funcionários que trabalhavam nas farmácias em causa que o fizessem (dizendo-lhes que o utente em causa se teria esquecido de rubricar), nas receitas, no local onde constavam os dizeres «Declaro que foram dispensados as embalagens de medicamentos constantes da receita», como se aquelas tivessem sido efectuadas pelos utentes identificados nas receitas médicas, ou pessoas em sua legítima representação.
130. Os arguidos J… e M… sabiam que aquela comprovação era necessária para posterior envio da receita e comprovativo de venda ao CCF para recebimento do valor dos medicamentos pelo SNS.
131. Após a inserção das vendas fictícias, pela arguida M…, no sistema de facturação das sobreditas farmácias, esta, enviava ao Centro de Conferência de Facturas até ao dia 10 do mês seguinte ao do seu aviamento, as receitas médicas onde estavam prescritos os medicamentos comparticipados e alegadamente dispensados a beneficiários do S.N.S.
132. Juntamente com as receitas forjadas remetia também ao Centro de Conferência de Facturas a factura correspondente ao valor da comparticipação do Estado no preço de venda ao público daqueles medicamentos logrando assim obter o seu pagamento indevido pela ARS do Algarve.
133. Assim, os funcionários da ARS do Algarve, convictos de que os medicamentos haviam sido efectivamente prescritos aos utentes inscritos nas receitas e a eles se destinavam, deram ordem para pagamento às farmácias dos montantes que nelas constavam.
134. Tal pagamento foi efectivamente concretizado pela ARS do Algarve através de transferência bancária para a conta indicada pela arguida M….
135. Os arguidos J…, este enquanto médico no exercício de funções públicas, e M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda» agiram sempre em comunhão de esforços e união de vontades para praticarem os factos acima descritos, em ordem a obter, como efectivamente aconteceu, um enriquecimento que sabiam ser ilegítimo.
136. Agiram em conjunto, por ser a melhor forma de levarem a cabo os interesses e fins comuns a que se propunham, traduzidos, na obtenção do referido enriquecimento, ilegítimo.
137. Os arguidos J…, este enquanto médico no exercício de funções públicas, e M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda» sabiam, ao fabricar e usar os modelos de receituário da ARS, as vinhetas de médico e de centros prescritores e códigos de barras, na prossecução do mesmo plano acima referido, que os mesmos não tinham correspondência com a realidade e que punham em causa a credibilidade que eles merecem enquanto tais.
138. Não ignoravam também que, com as suas condutas, prejudicavam o Estado, em benefício próprio.
139. Os arguidos J…, este enquanto médico no exercício de funções públicas, e M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda» sabiam ainda que as vinhetas de médicos e dos centros prescritores são documentos que só podem ser emitidos pelos serviços da Administração Regional de Saúde e que, com as suas condutas, punham em causa a fé pública que os mesmos possuem para a generalidade das pessoas e que causavam prejuízo ao Estado.
140. O arguido J…, enquanto médico no exercício de funções públicas, ao preencher e usar os modelos de receituário, apondo neles as vinhetas, como se os mesmos tivessem sido regularmente emitidos para tratamento de doentes, sabia que estavam a fabricar documentos não correspondentes com a realidade.
141. Do mesmo modo, actuaram para que os funcionários do CCF e da ARS do Algarve que receberam as receitas para comparticipação, convictos de que estas tinham sido regularmente emitidas, tivessem pago as comparticipações requeridas.
142. Agiram com a intenção concretizada de induzir em erro a ARS do Algarve e de, através do artifício atrás descrito, levar aquela a entregar-lhes, a título de comparticipações de vendas de medicamentos, quantias monetárias a que sabiam não ter direito, o que conseguiram.
143. Os serviços da ARS apenas procederam ao pagamento das referidas quantias a título de comparticipações, por estarem convictos de que as mesmas se destinavam ao pagamento de comparticipações pela prescrição válida e regular de medicamentos a utentes do SNS.
144. Os arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente, assim como, sabiam perfeitamente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
145. Pela prática dos factos acima descritos, ao arguido J…, por despacho do Senhor Inspector-Geral das Actividade em Saúde, no âmbito dos autos de processo disciplinar n.º 1/2014-DIS, foi aplicada “a pena disciplinar de demissão ao assistente graduado da carreira médica de medicina geral e familiar do Centro de Saúde de …, J…, com o nível remuneratório 58 e o posicionamento remuneratório 3.ª, cessando assim, o respectivo contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com efeitos a dia 17 de Junho de 2014.”

Mais se provou:
146. Os arguidos não possuem antecedentes criminais.
147. Filho único de um casal de professores de Olhão, o arguido J… beneficiou de um processo educativo normativo e de um adequado contexto socio-familiar familiar em Faro, local onde passou a sua infância e adolescência. Realizou um trajecto escolar regular, entrou para a Faculdade de Medicina em Lisboa, terminando este curso em 1978.
V… fez a especialização clínica na área da saúde pública e medicina familiar, entre Lisboa e Faro, ingressando como médico no Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 1982. Trabalhou mais de 30 anos em Centros de Saúde no Algarve, a maior parte do tempo em …, onde chegou a ser Director e também exerceu clínica privada num consultório na cidade de ….
Em 2014 e na sequência deste processo judicial foi afastado do SNS mas ainda não se aposentou, estando agora a trabalhar como clínico em regime de prestação de serviços.
No campo familiar é de referir que V… casou aos 24 anos com a co-arguida M… mas não tiveram filhos biológicos, vindo a adoptar dois irmãos, o P… e a Mar…, hoje com 33 e 30 anos de idade, sendo o arguido avô de 2 netos.
Após um longo matrimónio o arguido divorciou-se em 2015, referindo um outro relacionamento afectivo.
À data dos factos que estão na origem deste processo (2010/13) V… ainda estava casado com a co-arguida C…, mas mencionou ter-se mantido sempre afastado das farmácias de … e …, cuja propriedade e gestão pertenceu em exclusivo à sua ex-mulher.
No presente o arguido reside sozinho num apartamento de tipologia T2 na cidade de …, habitação registada em nome da ex-mulher, com a qual tem despesas mensais da ordem dos 600 euros. Mantêm contactos regulares com os filhos e com a ex-mulher, embora sobretudo por assuntos relacionados com a sua neta de 5 anos.
J… tem 66 anos de idade e refere encontrar-se a aguardar a sua aposentação do SNS mas mantêm-se profissionalmente activo, trabalhando em regime de prestação de serviços para empresas privadas de saúde. Recebe cerca de 20 €/hora, já esteve ao serviço alguns meses em unidades de saúde nos Açores e agora presta trabalho como médico na região do Alentejo, apresentando um quadro económico equilibrado.
Indivíduo sociável e de bom trato pessoal, J… tem como hobby a leitura e colaborou durante cerca de 3 anos numa rubrica semanal na Costa d’Oiro, uma antena de rádio de inspiração católica em ….
Este processo judicial teve um impacto negativo na actividade laboral de J…, mas o arguido continuou a exercer a sua profissão de médico. Quando confrontado com os factos e o teor da acusação neste processo, J… revela noção dos bens jurídicos em causa e compreende a intervenção do sistema de justiça, mas não identifica na actividade clínica qualquer comportamento que tenha consubstanciado a prática de um ilícito criminal.
148. Oriunda de um meio familiar da classe média da cidade de Faro, a arguida M… é filha única de um professor do ensino secundário e de uma doméstica, tendo crescido na capital algarvia numa envolvente familiar normativa, enquadrada por uma boa situação económica.
A arguida teve um percurso escolar adequado, terminou o ensino secundário no Liceu e estudou na Escola do Magistério Primário durante cerca de 2 anos, sem concluir esta formação. Aos 22 anos optou por entrar para o curso de Farmácia na Universidade Clássica de Lisboa, licenciando-se em 1987.
Após um estágio no Hospital de Faro M… esteve em Barcelona 1 ano e especializou-se em farmácia hospitalar no Algarve, só abrindo a sua Farmácia … em … por volta de 1990.
Posteriormente a arguida instalou um posto de venda de medicamentos na freguesia de …, que passou depois a ser a Farmácia …, gerindo estes dois estabelecimentos até ao ano de 2014, altura em esta actividade cessou por falência do negócio, após a realização de obras de ampliação da farmácia de …, um investimento avultado que endividou M…. Durante cerca de 5 anos e em paralelo com esta actividade, a arguida também foi docente no Instituto Piaget em ….
Nesta fase mais recente a arguida ainda trabalhou cerca de um ano na farmácia … (entretanto adquirida pela Farmácia A…), depois ficou sem trabalho e ainda recebeu subsídio de desemprego até se reformar no princípio deste ano.
No plano familiar M… contou sempre com o apoio incondicional dos seus progenitores, ambos já falecidos, casou em 1976 com o médico J…, co-arguido neste processo, vivendo inicialmente na zona de Faro antes de se fixarem no concelho de …. Adoptaram 2 filhos, P…. e Mar…, dois irmãos hoje já com 33 e 30 anos de idade, sendo a arguida avó de 2 netos. A arguida divorciou-se por mútuo acordo em 2015 após conhecimento de uma relação extra-conjugal do marido que já durava há alguns anos.
À data dos factos que estão na origem deste processo (2010/13) M… ainda estava casada com o co-arguido e era proprietária de duas farmácias, em … e …. No momento presente a arguida tem a cargo a sua neta L…, de 5 anos, numa moradia em …, habitação registada em nome do ex-marido. Mantêm contactos regulares com os filhos e com o ex-marido, embora com este sobretudo sobre assuntos relacionados com a sua neta.
M… está aposentada desde o início deste ano com uma pensão de 760€, mas recebe também uma quantia mensal superior a 1.100€ do Montepio Nacional da Farmácia, o que lhe permite ter uma situação económica relativamente estável, ainda que pague a prestação da casa ao banco e outros encargos relacionados com a falência.
Este processo teve um impacto significativo junto de M…, com reflexos negativos na imagem social e profissional da arguida. Atenta a sua formação e experiência de vida pessoal e laboral, M… revela noção dos bens jurídicos em causa protegidos por lei, mas não identifica na sua prática profissional qualquer conduta que tenha consubstanciado a prática de um ilícito penal.
***

B.1.2 - Factos não provados.

Que a arguida M… tenha sido a Directora Técnica da Farmácia de … em todo o período compreendido nos anos de 2010 a 2013.
No período compreendido temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2103, o arguido J… em concertação de esforços e ideias com a arguida M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal Lda.» prescreveu o conjunto de receitas médicas que abaixo se discriminam locupletaram-se indevidamente com o valor.


***

B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:

«Dispõe o artº 374º, nº 2 do CPP, na parte em que estabelece os requisitos da fundamentação da decisão da matéria de facto, que “a fundamentação” deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de factos (…) que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Deste modo, passamos a fazer uma exposição concisa, mas completa, dos motivos que levaram o Tribunal a dar como provados e como não provados os factos supra referidos, indicando os meios de prova que serviram para formar a convicção dos colectivo de julgadores e fazendo o seu exame crítico, cabendo neste, a razão de ciência das testemunhas (em que o Tribunal se baseou), a forma como depuseram e a sua relação com o litígio, os tipos de documentos em que o Tribunal se baseou, seu valor e origem, bem como o valor, origem e credibilidade da demais prova que acudiu à formação da convicção dos julgadores, sem esquecer o recurso às regras da experiência comum.
Evitaremos reproduzir o teor da prova, na sua íntegra, uma vez que, tal não constitui requisito legal para a fundamentação da decisão da matéria de facto, sendo o seu conteúdo sindicável, não por via da motivação da decisão da matéria de facto, sim pela leitura dos documentos e relatórios periciais e pela audição das gravações dos depoimentos prestados.
No que concerne aos factos provados, baseou-se o Tribunal no depoimento das testemunhas arroladas pelas acusações, e documentos juntos aos autos e bem assim no depoimento dos próprios arguidos.
Na verdade,
O arguido J… negou a prática dos factos ilícitos, referindo ser usual passar receitas aos utentes que pedissem receituário na recepção do centro de saúde sem necessidade de os consultar. Não tinha sequer grande conhecimento das comparticipações dos medicamentos e presumia que os utentes precisassem dos mesmos ainda que não os visse. Segundo palavras suas, renovava as receitas de boa-fé. Nega peremptoriamente ficar com qualquer montante da venda de medicamentos até porque não obstante estar casado com a co-arguida, há muito que se encontram separados de facto, apenas falando sobre os filhos e netos. Antigamente as receitas precisavam de vinhetas, as quais eram apostas pela funcionária do centro de saúde. Passava cerca de 20 receitas por dia aos utentes e trabalhava cinco dias por semana.
Tendo em atenção a faixa etária dos utentes que acedem ao centro de saúde, normalmente as doenças mais frequentes seria diabetes, AVC, tensão arterial e doenças do foro mental, pelo que era normal passar mais medicamente relacionados com essas doenças.
A arguida M… refere não ter sido a Directora Técnica da Farmácia de … e serem falsas as acusações que lhe fazem. Não efectuada qualquer receituário e nem sequer atendia clientes. Nunca efectuou qualquer levantamento das contas das farmácias e apenas deu ordens para que preenchessem devidamente as receitas para as mesmas não viessem devolvidas. Nunca falou com o marido em termos profissionais pois encontravam-se separados de facto há mais de 20 anos, muito embora vivessem na mesma casa.
A testemunha A…, Perita Financeira da PJ, confirmou a análise dos ficheiros que lhe foram fornecidos através do Excel de fls. 789, sendo que com base em tal ficheiro indicou quais eram os medicamentos com interesse para a investigação.
A testemunha C…, Directora Financeira da ARS do Algarve, referiu nas suas funções não lhe passar pelas mãos nem prescrições nem facturação dos medicamentos prescritos. Referiu que depois de 2010 a facturação passou para o centro de conferências de facturas, o qual tinha acesso às facturas. Tal organismo situava-se na Maia e a depoente não tinha acesso directo. Esse organismo remete o ficheiro da listagem das facturas para serem pagas.
A testemunha R…, Presidente da Comissão de Farmácias, que trabalhou entre 2010 e 2013 no Núcleo de Monitorização e analise de medicamentos, referiu ter sido feita uma sinalização sobre o receituário do medico em causa, uma vez que a media nacional era muito inferior ao receituário do arguido. Por exemplo, o arguido receitou 357 embalagens de Lozartan (medicamento para a tensão arterial) durante um mês. Acresce que o arguido receitava mais medicamentos de segunda e terceira linha que a media dos médicos, isto porque em 2011 existiam normas gerais de orientação para tratamento da doença.
A testemunha I…, Coordenadora da Unidade de Gestão do Centro de Conferencias de Facturas, confirmou o teor da analise da prescrição de receitas emitidas efectuadas pelo Ministério da Saúde de fls. 100 a 131, sendo que foi feito com base nos dados recolhidos no Centro de Conferencia de facturas.
A testemunha A…, Inspector que instruiu o processo que culminou no despedimento do arguido da ARS, relatou o processo disciplinar.
A testemunha C…, auxiliar de acção farmacêutica na Farmácia … entre 2010-2013, referiu que a arguida M… estava na Farmácia quase todos os dias, sendo que igualmente atendia clientes. A arguida era a única que dava ordens e nunca via o arguido na farmácia. Não sabe se a sua patroa (ora arguida) recebia qualquer salario. Estava a cargo da depoente a conferencia de receituário a fim de confirmar se as receitas tinham assinatura do utente, o carimbo da farmácia e a data, pois se não estivessem corretas vinham devolvidas e não eram pagas. A Dr. M… pedia para verificarem o receituário até porque por vezes os funcionários dispensavam medicamentos não exactamente prescritos. Por vezes faltava a assinatura dos utentes e eram os próprios funcionários que apunham uma assinatura, pois eram ordens da arguida e tinham conhecimento que as receitas sem a assinatura do utente viram devolvidas. Igualmente fazia a conferencia do receituário trazido da farmácia de … pelo funcionário. Respondeu igualmente que a arguida M… Nunca lhe deu, directamente, quaisquer maços de receitas. Não sabe como era efectuado o pagamento das receitas e apenas trabalhava na farmácia em horário parcial.
A testemunha N…, Director Técnico da Farmácia de … durante cinco anos, iniciou por referir que ainda tem problemas com a arguida pois que a mesma ainda lhe deve dinheiro por uma indemnização por despedimento. Exerceu funções como farmacêutico adjunto em … entre os anos de 2005-2010 e como Director Técnico na Farmácia de … entre os anos de 2010-2014. Refere que no exercício das suas funções foram poucas as receitas do Dr. J… que lhe passaram pelas mãos. A arguida sempre lhe deu ordens mesmo enquanto era Director Técnico da Farmácia de …. Referiu que os stocks de medicamentos são accionados através do registo de vendas, ou seja, através do programa de vendas da farmácia quando o medicamento é vendido a um cliente, com a emissão da factura, é dada baixa automática desse medicamento no stock da farmácia.
A testemunha O…, contabilista das Farmácias em causa, referiu não ter verificado nada de anormal nas contas da sociedade.
A testemunha de defesa, J…, Médico e colega do arguido no Centro de Saúde de …, referiu que à data dos factos, as receitas tinham um código e a assinatura do medico, caso contrario não eram validas. Cada receita podia conter quatro medicamentos diferentes no máximo e duas caixas por cada medicamento. Acrescentou ainda que todos os utentes tinham necessariamente que passar pelo administrativo para serem inscritos quer fossem para consulta quer apenas para pedidos de medicamentos não presenciais.
A testemunha de Defesa, Jo…, Médico e colega do arguido no Centro de Saúde de …, referiu que quando o sistema de receitas passou a ser informatizado foram distribuídos os códigos de cada medico sendo que foram-lhes entregues pelos administrativos. Acrescentou ainda que todos os médicos teriam o mesmo numero de pacientes por dia que seria uma media de 18/20 consultas diárias. Quando se tratava de pedidos de receitas não presenciais, existia igualmente uma ficha de inscrição do utente com o pedido de emissão de receituário. Referiu que só passava os medicamentos se tivesse conhecimento que o utente os tomava normalmente e por isso teria que estar na ficha do mesmo.
A testemunha de Defesa, Ci…, Farmacêutica e amida da arguida, referiu que pensa que a arguida dava aulas no Instituto Piaget e sabe que existia uma funcionaria na Farmácia em que a arguida confiava. Referiu que, na sua farmácia, as receitas são juntas em molhos de 30 e enviadas para o CCF e eles – se tudo estiver bem – enviam o dinheiro. Por vezes, os utentes esqueciam de assinar as receitas/facturas e a depoente apunha uma rubrica para as mesmas não virem devolvidas.
A testemunha de Defesa, Em…, utente do medico arguido, referiu que por vezes ia ao Centro de Saúde e pedia receitas de medicamentos que não era para ela. Porem, questionada, respondeu que quando pedia receitas que não eram para a própria, tinha que entregar a identificação do utente com os respectivos pedidos de medicamentos, pois não lhe passavam em seu nome.
A testemunha de Defesa, Ca…, Administrativa no Centro de Saúde de … entre 2011/2012, referiu qualquer pedido de medicamentos de utentes não presentes era inscrito na ficha de utente.
A testemunha de Defesa, MJ…, Assistente Técnica no CS …, referiu que os utentes que iam pedir receituário eram sempre registados no sistema e pagavam igualmente a taxa moderadora. Mais acrescenta que todos tinham uma palavra passe para o sistema e que a mesma era pessoal, pelo que nem ela nem ninguém tinha conhecimento das PW dos médicos, nem a própria dava a sua PW aos outros.
A testemunha de Defesa, Fil… Farmacêutica aposentada, referiu que o procedimento normal de todas as farmácias era assinarem as receitas quando não estavam assinadas. Questionada, referiu que não conheceu outra actividade à arguida para além da farmácia e nunca teve conhecimento de outros farmacêuticos na farmácia da arguida.
A testemunha de defesa, P…, Farmacêutico e colega da arguida, referiu igualmente que podiam assinar pelo cliente quando este não tinha assinado, porem disse que apunha a palavra «pelo utente». Confrontado com isso, acabou por admitir que verificou igualmente que existiam funcionários que assinavam em vez do utente e não «pelo utente». No que se reporta à gestão da farmácia da arguida nada sabe, sendo que sempre que tinham reuniões entre farmácias era a arguida que representava a farmácia de Lagoa e a Farmácia de Porches. Porem acha que a farmácia de … teve um Director Técnico mas não sabe quando.
A testemunha de Defesa, Da…, referiu que ia buscar a receita dos medicamentos para a mãe e o Dr. J… passava. Porem, referiu igualmente que se deslocava ao balcão de atendimento e que dava o cartão da mãe pois os medicamentos eram para ela. Sabe que o Dr. Passava sempre os medicamentos mais baratos para ela.
A testemunha de Defesa, Go…, economista que fez a assessoria à Farmácia …, referiu ter feito uma Inspecção Tributaria em Abril de 2014, ou seja, anteriormente à declaração de insolvência e que se reportava a 2011/2013, constatando que a mesma tinha um passivo maior que o activo.
Por seu turno foram ouvidos os utentes cujas facturas estão em causa sendo que,
As testemunhas/utentes …, referiram nunca terem ido à Farmácia … nem à Farmácia de … ou nem que sequer as conhecem pelo que nunca aviaram quaisquer receitas nessas mesmas farmácias e garantem que igualmente não pediram a ninguém para o fazer.
Na verdade, a esmagadora maioria das testemunhas referidas são pessoas idosas que viviam em Silves e que raramente saiam da cidade. Acresce que na sua maioria iam à Farmácia … ou … em Silves, pois que tinham cartão de associado e por isso mesmo tinha desconto nos medicamentos. Estes depoimentos foram claros, espontâneos e peremptórios no que se refere a nunca terem ido a tais farmácias ou porque nunca tiveram necessidade, ou porque nem sequer tem forma de se deslocar para fora da cidade ou porque nem sequer as conhecem.
Por sua vez, a testemunha L….
Finalmente, foram lidas ao abrigo do disposto no artigo 356º, n.º 2, alínea b), n.º 4 e n.º 5 do CPP, porquanto os intervenientes processuais não mostraram qualquer oposição, as declarações das testemunhas Mi…, H…, A… e S… uma vez que o Tribunal teve noticia do seu falecimento, sendo que da leitura se retira que os mesmos nunca foram às farmácias em causa e não reconhecem as receitas com que foram confrontados.
No que se reporta à prova documental, o Tribunal teve em atenção mais concretamente:
I Volume:
Fls. 68/70: Informação da ARS a referir que o arguido J…. s prescreveu, no mês de Maio de 2011, 374 embalagens de «Lozartan+HCTZ» (quatro vezes mais do que a média dos meses anteriores e posteriores.
Fls. 72: Evolução mensal da Prescrição de «Lozartan+hidroclorotiozida» do arguido entre Janeiro de 2010 e Novembro de 2012;
Fls. 100 e seguintes: Documento elaborado pela ARS e confirmado pela testemunha I… a analisar a evolução da prescrição das receitas do arguido com as farmácias de … e de … – ….
Neste documento poder-se-á ler a fls. 107 que a prescrição de receitas do arguido são manifestamente superiores nas farmácias … e de … que nas restantes farmácias,
Ou seja,
Conclui-se da analise que,
Ficando provado que a grande maioria das testemunhas arroladas em audiência de discussão e julgamento e doentes/utentes do médico/arguido referiram que o arguido era de facto seu medico de família e que lhes prescreviam receitas, porém em cerca de 90% dos casos, as testemunhas/utentes referem que aviaram as mesmas nas Farmácias de Silves e de Armação de Pera pois eram as mais próximas dos centros de saúde e residiam nessa localidade. Assim sendo, teria o Tribunal que concluir com toda a segurança (face às regras de experiencia comum) que as farmácias de Silves (nomeadamente Farmácia … e Farmácia …) e as farmácias de Armação de Pera (nomeadamente Farmácia … e Farmácia …) seriam as que teriam um peso maior do prescritor/arguido.
No entanto, o que se verifica – através de tal documento em analise – é que o prescritor ora arguido tem um peso maior, aliás, muito maior, nas farmácias propriedade da co-arguida, sua mulher à data da pratica dos factos. Em números concretos, verifica-se que o peso do prescritor arguido na Farmácia … é de 25,1% e na Farmácia de … é de 35,8% em comparação com a Farmácia … (Silves) que é de 5,8% ou a Farmácia …l (Silves) que é de 5,3% ou mesmo com a Farmácia … (Armação de Pera) que é de 4,9%, onde face à prova testemunhal deveria ser muito superior.
Fls. 109: Quadro com os valores dos maiores médicos subscritores de receitas na Farmácia …, onde se verifica que o arguido é o segundo maior prescritor (o que desde logo se estranha, porquanto a maior parte dos utentes do arguido nem sequer conhecem aquela farmácia), sendo que igualmente é o medico que apresenta maior valor médio por receita a ser pago pelo SNS.
De uma leitura do quadro que agora se encontra em analise, podemos constatar que muito embora haja outro medico que ocupa a primeira posição (Dr. G… que exerce funções no Centro de Saúde de … que tem a extensão de …), esse mesmo medido prescreveu 6865 receitas, num valor para o SNS de €141.365,63 e o arguido prescreveu 1985 receitas num montante para o SNS pagar de €130.040,63.
Em suma, muito embora os valores pagos pelo SNS sejam semelhantes entre os dois médicos, não olvidemos que o medico ora arguido prescreveu apenas 29% da totalidade das receitas do outro medico em analise.
Fls. 113: Quadro onde é referido os dez medicamentos principais prescritos pelo arguido junto da Farmácia de …e onde se verifica que seis dos dez medicamentos mais prescritos pelo arguido têm uma taxa de comparticipação superior a 90%.
Fls. 125: Quadro que apresenta os principais médicos prescritores da Farmácia Sousa Pires (em Lagoa) e onde se pode constatar que o médico arguido se apresenta no primeiro lugar com a prescrição de 5233 receitas, sendo que a Médica que se encontra em segundo lugar (Dra. Maria Lucinda Santos – que presta serviços no CS Lagoa) a médica que se encontra em terceiro lugar (Dra. Olinda Rollo – que igualmente presta serviço no CS de Lagoa) prescreveram 3276 e 3662 receitas, respectivamente.
Ademais, o valor pago pelo SNS sobre os medicamentos prescritos pelo arguido naquela farmácia é o quadruplo de qualquer um dos valores pagos pelas receitas prescritas pelos médicos que se encontram em 2º e 3º lugar.
Fls. 129: Quadro dos principais medicamentos do prescritor/arguido nas Farmácias em causa, onde se constata que dos dez medicamentos mais prescritos pelo arguido, cinco apresentam uma taxa de comparticipação superior a 90%.
Fls. 192: Relatório Final do processo disciplinar instaurado ao arguido pela IGA Saúde.
Volume II (…)
…Em concreto e em suma, no que se reporta aos primeiros factos provados, até ao facto 90, tratando-se de factos que são genéricos e de funcionamento do SNS, da ARS, o Tribunal socorreu-se da vasta prova documental que se encontra junto aos autos e legislação respectiva.
O facto 90, advém de toda a prova que foi feita e bem assim à luz das regras de experiencia comum, os arguidos necessariamente teriam que ter um vasto conhecimento do funcionamento do SNS tendo em atenção as suas profissões que efectivamente exerciam.
O facto 98, advém igualmente da prova documental e bem assim de toda a prova testemunhal que vai no sentido de a arguida M… exercer a direcção de facto na Farmácia de …. Isto mesmo é referido tanto pelo Director Técnico, N… (disse receber ordens directas dela) como pelos colegas da própria arguida e testemunhas de defesa que sabiam que ela tinha duas farmácias e que era ela que representava as duas farmácias em reuniões tidas sobre assuntos farmacêuticos.
A partir do facto numero 105, os mesmos resultaram provados com base na cabal prova documental e testemunhal já supra explanada (…)

Cumpre conhecer.

Sabendo-se que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, os recorrentes suscitaram as seguintes questões:

a) A invocação de parcial erro notório na apreciação da prova dos factos dados como provados em 98, 105 e 125 – conclusões A a M;

b) A medida da pena da arguida sociedade - conclusões N a GG;

c) O valor da indemnização a pagar pela sociedade arguida - conclusões HH a LL.

Por despacho inicial do relator foi decidido que os três recorrentes tinham legitimidade e interesse em recorrer quanto a parte das matérias tratadas no recurso, isto é, a matéria de facto e de natureza civil, patrimonial, mas que não tinham legitimidade e representação para discutir em recurso a matéria das penas impostas, pelo que o recurso foi parcialmente rejeitado quanto às penas impostas à “Sociedade …, Unipessoal”.

Os recorrentes reclamaram nos termos já constantes do relatório. E por aqui se impõe começar a análise dos autos.


*

B.2 – Questão prévia - A reclamação pela não aceitação de recurso quanto à medida da pena da sociedade arguida.

B.2.1 – Os recorrentes/reclamantes são a (1) Massa insolvente da sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda, (2) G…, Lda., NIPC…, e (3) JR… NIF …, intervenientes no processo de insolvência. E a arguida Massa insolvente surge representada pelo administrador judicial.

Ora, face ao estatuido no artigo 82.º ns. 1 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pelo Dec-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência e durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:

a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;

b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;

c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.

E, nos termos do disposto no art. 81º, ns. 1 e 4 do mesmo Código da Insolvência, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, o qual assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.

Daqui decorrem, de forma transparente, duas consequências: que os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, da qual são afastados os órgãos sociais; e que nos restantes aspectos, particularmente os criminais, a representação da insolvente continua a pertencer aos seus órgãos sociais, gerentes ou administradores.

Esta é posição unânime da jurisprudência, de que é exemplo claro e suficientemente explícito o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-06-2014 (proc. 2140/06.3TAAVR-A.C1, sendo relatora a Desemb. Elisa Sales) quando fundamenta nos seguintes termos:

«Portanto, após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.
“Quando assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência - relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência -, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos”.
Tem sido unânime a jurisprudência a este propósito. Assim, neste sentido, entre outros:
- Ac. RC de 28-9-2011 no proc. 123/09.0IDSTR.C1,
- Ac. RL de 12-10-2011 no proc. 674/08.4IDLSB-A.L1-3
- Ac. RG de 9-9-2013 no proc 131/08.9TAFLG-A.G1
- Ac. RE de 15-10-2013 no proc. 33/10.9IDEVR.E1
- Ac. RP de 4-6-2014 no proc. 16285/09.4IDPRT.P2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Deste modo, dado que a representação do administrador da insolvência se circunscreve aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, quanto aos demais aspectos, designadamente os que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta) a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes (tratando-se de sociedade anónima, aos seus administradores) – n.º 2 do art. 82º do CIRE.»

Desta forma é ajustado afirmar que são os órgãos societários pré-existentes à extinção que representam a sociedade e não o nomeado administrador da insolvência por ser dado assente que a declaração de insolvência de uma sociedade não a faz desaparecer, mantendo a sua personalidade jurídica e a sua capacidade judiciária. E são esses órgãos que respondem pela matéria crime.

E aqui é bem necessário ter presente que o recurso à previsão do nº 1 do art. 127º do Código Penal para fazer analogia entre a morte da pessoa singular e a pessoa colectiva não é já viável dada a previsão legal hoje muito precisa quanto à extinção da pessoa colectiva.

Assim, “as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”, nos termos do artigo 5.º do CSC (Código das Sociedades Comerciais), a declaração de insolvência da sociedade é causa da sua dissolução (artigo 141 do CSC), mas a sociedade só se considera extinta “mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação” nos termos do artigo 160º, n. 2 do mesmo CSC e art 3º, n. 1, al. t) do CRC (Código do Registo Comercial).

E, mesmo após a sua extinção, “o respectivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada” – artigo 127º, n. 2 do Código Penal.

E, assim, o administrador de insolvência não representa no processo penal a sociedade insolvente arguida, sendo esta representada pelos representantes legais existentes à data da declaração de insolvência, mantendo-se os mesmos em funções após aquela declaração nos termos do disposto no art. 82.º, n.º 1 do CIRE.

E como o administrador apenas assume a representação para os efeitos de carácter patrimonial que digam respeito à insolvência, a celebração por si do contrato de mandato forense só pode transmitir os poderes de que dispunha, os relativos à defesa do activo e da recuperação do passivo da massa insolvente referidos nos artigos supra citados.

Logo, a Massa insolvente não está aqui representada como arguida.

Ora, o nosso Código de Processo Penal, na versão temporária em vigor, apresenta na sua Parte I e no correspondente Livro I, sob a designação de sujeitos do processo como sendo o juiz e o tribunal, o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal, o arguido e o seu defensor, a vítima, o assistente e as partes civis.

Ou seja, os recorrentes/reclamantes não cabem em qualquer das indicadas qualidades de “sujeitos do processo”, sequer a arguida “Massa insolvente” que aqui apenas surge representada pelo administrador da insolvência para efeitos meramente patrimoniais relativos a esse processo de insolvência.

São, pois, os recorrentes meros participantes processuais com poderes limitados. Mas pretendem discutir também a pena aplicada à arguida. Essa a questão a resolver.


*

B.2.2 – Como meros participantes processuais não lhes é vedado ter legitimidade processual. Isto é, ninguém negou aos recorrentes a legitimidade para virem discutir os pontos de carácter patrimonial que os afectam directamente. E muito menos os afirmámos partes civis que obviamente não são.

Tanto assim é que o processo seguiu para conferência para tratar de conhecer de questões suscitadas pelos recorrentes e que foram aceites pelo despacho liminar, as de pendor exclusivamente patrimonial que cabem nos poderes de acção do administrador da insolvência.

Recentremos a questão. É explícito o artigo 401.º do C.P.P., com a epígrafe «Legitimidade e interesse em agir» na afirmação de que:

1 - Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

Este artigo é de enorme relevância na consagração das figuras da legitimidade (subjectiva) para recorrer e do interesse em agir, enquanto pressuposto objectivo no âmbito do recurso. Também assume enorme relevância na delimitação dos poderes recursivos de cada um dos sujeitos e dos participantes processuais.

Dele decorre que as várias alíneas do nº 1 vão restringindo a área de actuação de quem tem legitimidade para recorrer, desde o Ministério Público, cuja possibilidade subjectiva para o recurso em nada se vê limitada e até ultrapassa o que seria naturalmente expectável numa pura ordem processual penal acusatória (“ainda que no exclusivo interesse do arguido”) e para o qual se prefigura o interesse em agir como única limitação possível, seguindo-se o arguido e o assistente com plena legitimidade quanto às decisões – e apenas essas – que “contra eles” são proferidas. Da mesma limitação (o “contra cada uma” das partes civis) sofrem, as partes civis, mas aqui com maior restrição pois que nem quanto à totalidade dos pedidos cíveis podem pugnar.

E acaba aqui a delimitação da legitimidade recursiva dos “sujeitos processuais”. Os próximos possíveis actores no processo são todos meros “participantes ou intervenientes processuais” e cabem todos na al. d) do nº 1 do preceito. São «aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias» e os que «tiverem a defender um direito afectado pela decisão». O caso dos autos diz respeito à segunda parte desta alínea.

Por isso que a parte do recurso que foi aceite por este tribunal não partiu do pressuposto que os recorrentes eram partes civis. Esta é conclusão tirada pelos reclamantes nos pontos 4 a 7 da sua reclamação mas que não corresponde ao dito por este tribunal. A expressão utilizada pelo tribunal no despacho foi “interessados meramente civis”, expressão que, não sendo errada, se admite sofrer de alguma imprecisão.

Os reclamantes nem sequer são partes civis, se o fossem seriam sujeitos processsuais, algo que se disse já não serem.

Assim, como meros participantes processuais e não partes civis, tinham legitimidade para se insurgirem em sede de recurso contra o apuramento dos factos e a condenação cível da arguida insolvente! E o tribunal respondeu afirmativamente a essa questão, admitindo parcialmente o recurso. E através do saber se o seu invocado direito tinha sido “afectado pela decisão”. Ou seja, através da segunda parte da al. d) do nº 1 do artigo 401º do C.P.P.

Também respondeu negativamente à mesma questão da legitimidade – e com base na mesma alínea - mas quanto à pena criminal imposta. Desta forma o despacho afirmou que os recorrentes não tinham – nem têm - legitimidade, enquanto meros participantes processuais e à luz da previsão da al. d) indicada para vir discutir a pena criminal.

Desta forma, a primeira barreira para a aceitação do recurso quanto à pena criminal - ainda em sede de legitimidade – é o esclarecer o que seja ter sido “afectado pela decisão”.

Gonçalves da Costa (Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Almedina, 1988, pag. 414) é claro na sua delimitação desta alínea d): «v.g., o defensor nomeado poderá recorrer da decisão que fixa a remuneração referida no artigo 66º, 5; o detido nos termos e para os fins dos arts. 116º-2 e 254°, al. b, quando não seja arguido ou assistente, que esses têm já reconhecida a sua legitimidade no artigo 401°-1, al. b, poderá recorrer da decisão que ordene a detenção».

Vinício Ribeiro, por seu turno, anota (Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 2008, pag. 873) que esta alínea d) «consagra um direito de recurso para aqueles – que podem ser meros intervenientes processuais (testemunhas. Peritos, etc.) – que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código (v. g. artigo 116.°, nº, 1 e 2 e artigos 513.° e ss. – exempIos fornecidos por José Gonçalves da Costa, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina. 1989. Pág. 413) ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão (costuma ser apontado pela doutrina o caso do defensor nomeado relativamente à sua remuneração – artigo 66º, nº 5; mas também pode recorrer a instituição bancária, embora mero interveniente processual acidental, afectada por decisão proferida no âmbito do segredo bancário)

Tem-se entendido em sede de tentativa de conceptualização que “ser afectado pela decisão” é ser directamente afectado pela decisão. Logo, a questão – neste ponto concreto – consiste em saber se os recorrentes foram afectados pela decisão.

Na parte aceite do recurso os recorrentes foram afectados directamente pela decisão na medida em que a condenação com natureza civil cível fez acrescer o passivo da massa insolvente, razão pela qual foi parcialmente aceite o seu recurso.

E quanto à pena os recorrentes não foram afectados directamente. É que, note-se, os recorrentes não foram condenados nestes autos. Neste processo penal aplicou-se uma pena que, enquanto realidade jurídica em nada afecta os credores da insolvência. Só a expressão monetária da pena escolhida se reflecte indirectamente na massa insolvente.

Um relance pelos artigos 90º-A a 90º-M do Código Penal dá-nos uma ideia clara da diversidade das penas criminais aplicáveis às pessoas colectivas e a noção clara de que se deve impor a ideia de que deve ser vedado a qualquer “interessado” - que não sejam o Ministério Público e o assistente (limitado pelo concreto interesse a invocar) – vir discutir uma pena criminal com base na ideia de que uma pena de multa é equivalente a um débito contabilístico.

É claro que a arguida Massa Insolvente Farmácia … foi directamente afectada pela decisão na medida em que foi condenada numa pena de multa, mas não tem poderes de representação adequados à prossecução deste propósito. O administrador de insolvência não tem poderes de representação para – pela arguida – vir discutir a pena imposta. E se tivesse nunca seria aceite a sua legitimidade pela al. d) do artigo 401º do C.P.P. mas sim pela al. b) do preceito, como arguida.

Desta forma e em síntese conclusiva, os recorrentes não têm legitimidade, à luz da al. d), do n. 1 do C.P.P. para discutir a pena imposta à arguida já que esta os não afecta directamente.

Tal pena é acto que apenas os afecta indirectamente e não por referência à sua qualidade intrínseca de “pena criminal” mas sim enquanto débito contabilístico.


*

B.2.3 – A possibilidade de recorrer da pena criminal imposta em determinado processo é tema que já foi muito glosado e que, com origem histórica numa visão radical do princípio da oficialidade, ainda hoje - mesmo nas posições mais abertas às interpretações actualistas - centra em exclusivo a controvérsia sobre a possibilidade de discutir a pena criminal na figura do assistente, como se torna claro nos acórdãos do STJ após a prolação do Assento n.º 8/99 que atestou: «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».

Reproduzamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2009 (proc. 09P0579, rel. Cons. Souto de Moura):

II – (…) a realização dos fins das penas é de interesse público, e está ao serviço, mesmo no caso dos crimes semi-públicos e particulares, de toda a comunidade. Não é uma pretensão que se identifique só ou prevalentemente com o interesse da vítima, do ofendido, ou de quem os represente. Daí que, desse carácter público do ius puniendi, se tenha que fazer eco o próprio processo penal. (…)
VII - Enquanto que a legitimidade do assistente se avalia para efeito de recurso, à partida, face ao seu posicionamento no processo perante a decisão proferida, assumindo pois um carácter mais subjectivo e formal, o interesse em agir resultará da análise da pretensão do recorrente, em concreto, quando confrontada com a respectiva necessidade ou indispensabilidade para fazer vingar um direito ou interesse seu. Em matéria de legitimidade averiguamos quem pode recorrer, e no domínio do interesse em agir apreciamos que interesse tem a pessoa que quer recorrer, em interpor aquele concreto recurso. É dizer, averiguamos se o direito ou interesse prosseguido pelo assistente é atendível para o efeito, tendo em conta o respectivo estatuto processual e, no limite, aquilo que se pretende com a punição. (…)
IX - O sancionamento penal dos delinquentes satisfaz um interesse colectivo que compete ao MP prosseguir. Não existe um direito pessoal público do assistente a um certa punição, como única forma de reparação moral sua, de tal modo que lhe fosse permitido exigir determinada prestação do tribunal na satisfação desse desiderato. Prestação que se cifraria numa decisão, em que se considerassem provados certos factos, que implicassem certa qualificação, e a aplicação de certa pena, pretendida pelo assistente.
X - Se a punição do arguido está dominada por um interesse público, não pode competir ao assistente ser ele o intérprete do interesse colectivo, designadamente se conflituar com a posição assumida a esse respeito pelo MºPº. No que contende com o cerne do ius puniendi do Estado, o assistente não pode pois deixar de estar subordinado ao MP.
XI - Daí que, sempre que o assistente pretenda recorrer desacompanhado do MP, não interesse tanto discriminar as situações em que terá um interesse em agir relevante (na linha do assento, concreto e pessoal), mas tão só excluir da possibilidade de recurso aquelas situações em que o assistente se confina ao interesse geral da justiça da punição do delinquente, porque esse é um interesse colectivo, e não pessoal, seu. Assistente que nestes autos, sublinhe-se nem sequer foi vítima do crime. (…)

Isto dito para o assistente por maioria de razão se aplica a intervenientes processuais que não foram condenados nos autos nem pretendem em concreto a defesa de interesses comunitários relativos à pena, sim interesses contabilísticos redutíveis ao processo de insolvência.

Ora, se o assistente – um sujeito processual com mais amplos poderes do que meros participantes processuais - se vê compelido a “demonstrar um concreto e próprio interesse em agir” para poder recorrer da fixação da natureza e medida da pena criminal imposta nos autos, é algo ousado – pelo menos é original - que quem não tem um interesse directo, concreto e próprio na discussão da pena criminal tenha a possibilidade de a discutir com base num enviesar, num envesgar, de conceitos através de um sofisma que faz equiparar “pena criminal” a “débito contabilístico”. Isto é, logicamente a equiparação de “pena criminal” e “débito contabilístico” assenta numa falácia lógica de falsa analogia, conhecida falácia indutiva, assumindo a similitude das duas realidades para permitir a aplicação do regime de um ao falso analógico.

Porquanto é isso que os recorrentes reclamam: a natureza de “pena criminal” do quantitativo condenatório é desprezável; na sua visão não passa esse quantum de pena de uma realidade económica expressa em moeda com um significado contabilístico negativo e significado económico ruinoso para o acordado na insolvência.

E aqui, com o respeito que é devido a participantes processuais que se viram numa situação que pode ser comercialmente compreensível na sua parcial surpresa (já que não era de todo inesperada), não se pode abrir a porta a situações da vida real societária e comercial que tornariam letra morta o disposto no artigo 401º do C.P.P. e colocariam qualquer um a discutir penas em recursos avulsos com fundamentos que não dizem directamente respeito aos fins das penas, sim à contabilidade societária.

Pense-se, por exemplo, em casos que em termos de redução a conceitos e situações jurídicas se equiparam ao caso sub iudicio:

- o merceeiro do bairro que vem insurgir-se contra a pena imposta ao vizinho que o impede de pagar a dívida que este tem no seu estabelecimento;

- o vendedor de veículos automóveis que cede a viatura para um test drive a um potencial comprador “acelera” que, logo após, é apanhado pelo radar de uma força policial em excesso de velocidade que, possesso pelo risco corrido, vem insurgir-se contra a branda pena aplicada;

- o mesmo exemplo mas com a variante de o comprador “emprestar” o veículo a companheiro alcoolizado.

Aqui o limite é a nossa imaginação que, o relator confessa, não abunda.

Assim, não é possível – por falta de legitimidade – a um interveniente em processo de insolvência vir discutir a pena criminal imposta.


*

B.2.4 – A situação exposta na sua reclamação sob 18º a 20º, a representação da sociedade arguida pós extinção – se existente – não foi colocada em primeira linha ao tribunal recorrido pelo que não pode agora este tribunal estar a decidir um recurso com base em factos que desconhece ou a reiniciar o julgamento em segunda instância de matérias que deveriam ter sido devidamente esclarecidas antes da decisão sob recurso.

De qualquer forma quer-nos parecer que a situação dos reclamantes se agravaria caso já tivesse ocorrido a situação de extinção societária.

Quanto aos restantes motivos de inconformidade o que ressalta da posição dos recorrentes nos autos é simples: não querem a pena, não porque isso os afecte directamente ou porque esteja mal determinada, mas apenas porque isso aumenta o passivo. Isso é patente em várias expressões da sua reclamação. Note-se:

9. Os Recorrentes defenderam a sua legitimidade no Recurso da Decisão condenatória, tanto na parte civil, como na parte penal, justificando que:

i. A condenação da arguida Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação, vem afectar directamente o património em que consiste a Massa Insolvente desta Sociedade, em primeira linha, e em segunda linha o principal credor da arguida JR… e bem assim, a Sociedade que se tornará titular da totalidade da Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda., a Sociedade Comercial por Quotas G…, Lda.

ii. A condenação da arguida Sociedade reflecte-se unicamente a nível patrimonial, responsabilizando-a pelo pagamento de um valor total de € 94.676,24, sendo € 70.000,00 referente à pena de multa e € 24.676,24 a indemnização civil.

iii. A multa a que a arguida Sociedade foi condenada e o montante de indemnização civil a que foi condenada a pagar solidariamente, afectarão directamente o património da Sociedade Farmácia …, Unipessoal, Lda., que presentemente constitui a massa insolvente da Sociedade, administrada pelo Administrador Judicial; irá reflectir-se já no acervo da Sociedade após o encerramento do processo de insolvência, que está eminente, afectando por isso o património de uma Sociedade titulada por uma nova sócia, que aderiu a um plano de insolvência no pressuposto de uma situação patrimonial à data estabilizada e que esta condenação vem agora por em causa; e afectará a capacidade da Sociedade recuperada poder reembolsar o seu principal credor JR…, que promoveu o referido plano de Insolvência, com pressupostos que a decisão recorrida, veio agora por em causa

12. A pena aplicada à Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação tem inegável natureza patrimonial, não obstante ser manifestação do ius imperii estatal, afectando, por isso, os direitos dos Recorrentes.

13. É que, a aplicação da pena, quando fosse concretizada, iria já afectar a Recuperada Farmácia …, Lda, sob nova gerência e cujo capital acabou detido por outras entidades, que aliás foram credoras da Farmácia …, Unipessoal, Lda – em Liquidação,

14. E que tomaram a decisão de recuperação da empresa com base em pressupostos que não incluíam a condenação da Sociedade em Liquidação neste processo.

Fica evidenciada a supra dita equiparação da pena criminal a passivo contabilístico.

Mas fica também evidenciada a falta de interesse em agir.

Esta questão da falta de interesse em agir deixa de ter relevo na medida em que se concluiu já inexistir legitimidade dos reclamantes para recorrer. Mas não queremos deixar os argumentos aduzidos na reclamação sem resposta para se não criar a ideia de improcedência por razões formais.

Digamos que no entender dos reclamantes a multa penal resulta numa excessiva onerosidade com o efeito consequencial de o negócio proposto no processo de insolvência pelo credor de segunda linha se revelar insatisfatório.

Será um caso de a obrigação se tornar, após a sua constituição (o quem nem sequer é um dado assente), excessivamente onerosa para o devedor, restando este numa situação de saber se ele continua ou não vinculado ao seu cumprimento, situação discutível quanto ao saber se a excessiva onerosidade da obrigação pode constituir causa de liberação, total ou parcial, do devedor. Logo, na visão dos reclamantes discutir a pena tem a enorme vantagem de ser a primeira via para reduzir a “obrigação” excessivamente onerosa, pelo menos.

Temos assim cumprido o ciclo pretendido pelos reclamantes: Pena criminal = Débito = Dívida = Passivo = Onerosidade = Legitimidade do administrador de insolvência para discutir a pena criminal = Exclusão ou diminuição da Pena. Mas então é para isto que servem as penas? Para serem reduzidas, subordinadas, a conceitos contabilísticos?

Societas delinquere potest é assunção clara e inegável do actual ordenamento penal português, vd o artigo 11º do Código Penal, princípio com tendência a aprofundar-se e a alargar-se no concreto judiciário.

E nas várias teorias que se perfilam, as pessoas colectivas são capazes de acção e culpa (Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes”, Germano Marques da Silva, Verbo, 2009, 162 a 204).

De outra banda, as penas criminais a impor às pessoas colectivas, se em alguns casos diversas das impostas ao cidadão comum, assumem-se - com nuances particularistas - como integradas no unificado objectivo penal dos fins das penas, como consequências jurídicas do crime, sendo a pena de multa penal uma pena principal de natureza pecuniária. A este propósito é muito claro o artigo 90º-A do Código Penal.

E tendo tal presente, para além da memória dos critérios de escolha e determinação das penas a impor – aqui às pessoas colectivas, ditas pessoas jurídicas em contraposição com as pessoas físicas - fica algo deslocada a reivindicação de que (reclamação em 15) «afastando-se a legitimidade do Administrador de Insolvência para recorrer da pena de multa a que a Sociedade em Liquidação foi condenada, põe-se em causa a função do Administrador de Insolvênca consistente em prover à conservação e frutificação dos direitos da insolvente, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica – artº 55º, nº 1, b) do CIRE

Isto corresponde à vindicação de que o direito penal e os fins das penas não são aplicáveis às pessoas jurídicas, designadamente às sociedades e que a existência do administrador de insolvências é razão suficiente para que as penas sejam equiparadas a débitos comerciais.

E significa, em termos teoréticos que a época do homo economicus saiu da idade da ditadura e passou à idade do totalitarismo, com a devida vénia a Hannah Arendt.

É claro que esta visão das coisas, transposta para as pessoas físicas – que também podem ser declaradas insolventes - no que às penas diz respeito, abre possibilidades até aqui inimagináveis. Já vemos arguidos condenados, pessoas físicas, a correr em direcção aos processos de insolvência – depois de se desfazerem formalmente de bens vários – com o intuito de convencer os administradores de insolvência a irem aos processos-crime peticionar o desaparecimento das penas de multa e outras com o argumento do prejuízo directo e evidente para a massa insolvente, seja pelo aumento do passivo (multas e custas), seja pela impossibilidade de fazer acrescer o activo (a pena de prisão, por exemplo).

E as consequências serão assombrosas. A mais simples reside no clássico punitur quia peccatum est. Hoje, como se sabe, o pecado está desacreditado e o punitur vai a caminho.

Recordemos de forma simples e resumida que os fins das penas são um objectivo comunitário claro e que “as respostas dadas ao longo de muitos séculos ao problema dos fins da pena – seja pela ciência do direito penal, seja pela teoria do Estado ou pela própria filosofia – reconduzem-se a duas (rectior, a três) teorias fundamentais: as teorias absolutas, de um lado, ligadas essencialmente às doutrinas da retribuição ou da expiação; as teorias relativas, de outro lado, que se analisam em dois grupos de doutrinas: as doutrinas da prevenção geral, de uma parte, as doutrinas da prevenção especial ou individual, de outra parte” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, pag. 44).

A pena surge como instrumento de retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do crime ou como instrumento de prevenção, como “instrumento político-criminal destinado a actuar (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efectividade da sua execução … forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal.” (idem, pags. 50-51).

Em nenhuma das variantes se prefigura a contabilidade de uma insolvente e um acordo de insolvência para a sua transmissão como critério determinante da escolha e medida da pena a ser peticionada por interveniente a quem o Código de Processo Penal não reconhece legitimidade – nem interesse em agir – para pretender alterar a pena, desprezando em absoluto os seus fins.

Por outro lado, se o Ministério Público, titular da acção penal, se mostra desinteressado na alteração da pena imposta, que valor mais alto esgrimem os reclamantes para sustentar a sua posição? O “inesperado” débito resultante da pena num processo que se fez anunciar! É pouco!

Razões que conduzem ao indeferimento da reclamação.


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B.3 – A matéria de facto

B.3.1 - As contradições e ilogicidades apontadas pelos recorrentes centram-se em aspectos particulares da redacção dada aos factos provados em 98º, 99º, 105º e 125º, invocando-se apenas os próprios termos da decisão recorrida.

Ou seja, há – na perspectiva dos recorrentes - uma pura e simples invocação de erro notório na apreciação da prova patente por si na leitura do texto da decisão recorrida. Aliás há dois pontos de facto que se estabelecem como instantes de insatisfação dos recorrentes, um dizendo respeito à concatenação dos factos 98º, 99º e 105º, outro que diz respeito à titularidade dos valores referidos no ponto 125º. Esses dois pontos serão analisados em sequência.

O primeiro ponto é apresentado pelos recorrentes como um real “erro notório na apreciação da prova”, aquele que se oferece como “o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum”.

No caso e na sequência da própria alegação dos recorrentes constata-se que nos factos provados 98º, 99º e 105º se afirma:

98. A arguida M… é farmacêutica (com inscrição activa na Ordem dos Farmacêuticos desde 10 de Julho de 1987) e pelo menos no período temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2014 foi proprietária (conjuntamente com o seu marido e ora arguido J…) das farmácias «…», sita na Rua … e «Farmácia …, Unipessoal Lda – Em Liquidação», com sede na Rua da … sendo Directora Técnica da Farmácia … e tendo o poder de direcção, ainda que não técnica, na Farmácia de ….

99. A «Farmácia …, Unipessoal, Lda – Em Liquidação» é uma sociedade por quotas que desde a sua constituição (ocorrida no dia 02/02/2011) e até à presente data tem como gerente e única sócia a arguida M…, sendo o objecto daquela o seguinte: «comércio a retalho de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, cosméticos e de higiene.»

105. Neste contexto, desde data não concretamente apurada mas que se situa no início do ano de 2010, os arguidos J… e M…, por si e esta última também na qualidade de representante da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda – Em Liquidação», desenvolveram um esquema fraudulento com vista a locupletarem-se indevidamente com montantes monetários à custa do Serviço Nacional de Saúde.

Parece, assim, que a redacção dos factos 98º e 105º ficaria exposta a um vício de facto de conhecimento oficioso.

Mas não nos surge como evidente que se trataria de um erro notório na apreciação da prova, sim de uma possível contradição insanável entre factos provados, designadamente entre o facto provado sob 98º [«é uma sociedade por quotas que desde a sua constituição (ocorrida no dia 02/02/2011)» e os factos provados sob 99º [«e esta última também na qualidade de representante da sociedade «Farmácia Sousa Pires, Unipessoal, Lda»] e 105º [«entre os anos de 2010 a 2014 foi proprietária (conjuntamente com o seu marido e ora arguido José Pires) das farmácias «Porches», sita na Rua Direita, n.º 9, R/c, em Porches e «Farmácia Sousa Pires, Unipessoal Lda»]

Assim – e não estando em dúvida a data de constituição da sociedade – a matéria em causa só apresenta um problema de redacção para evitar a atribuição de uma representação jurídica de uma sociedade ainda não constituída, como bem sugerem os recorrentes.

Mas será esse o problema? Em lado algum os factos referem uma representação jurídica, sim uma “representação” da sociedade. Logo, a questão transita para outra sede: será que o termo “representante” constante do facto 99ª se limita e tem que ser entendido exclusivamente como “representação jurídica”?

Apesar de não parecer haver nos autos – e desde o seu início - grande preocupação com o Código das Sociedades Comerciais (CSC) e com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - CIRE - (Dec-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março), certo é que o termo “representante” também pode ser entendido como abrangendo “representantes de facto”.

Note-se que o CIRE se refere a “administradores, de direito ou de facto” quando o termo administradores é habitualmente um conceito de direito. E outras normas se referem a esta dicotomia, ainda no CIRE quando no artigo 49º, n. 1, al. c) se “refere a “administradores, de direito ou de facto”, assim como o artigo 227º do Código Penal que prevê a insolvência dolosa e expressamente se refere a “quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efetiva”.

Trata-se do conhecido problema dos “gerentes (ou “administradores”) de facto”, muito discutido na jurisprudência portuguesa, principalmente a propósito do RGIT.

Desta forma a questão central passa a ser a distinção entre a gestão ou a adminstração ou a gerência de direito ou de facto, sendo irrelevante a terminologia utilizada. Relevante será o encarar o termo como uma mera questão terminológica que encerra a questão central: agiu-se de iure em termos de enquadramento legal no cumprimento dos formalismos societários ou agiu-se de facto além desses formalismos? A questão deve ser tratada infra a propósito do último ponto a abordar, o quantum indemnizatório.

Agora resta concluir que, encarado o termo “representante” numa mera perspectiva de acção de facto nem há erro notório na apreciação da prova, nem contradição insanável entre factos provados. E, assim sendo, não existe qualquer contradição na existência de uma “representação de facto” de uma sociedade que só posteriormente será constituída.

Aliás a este respeito tenha-se presente o artigo 19º, ns. 2 e 3 do CSC quanto à assunção de obrigações societárias antes da sua constituição.

O problema com os indicados factos surge na medida em que há uma nítida confusão entre “farmácias” e a “propriedade de farmácias”. A designação das farmácias é clara: farmácia “…” e “…”. A propriedade é coisa distinta e é aí que surge posteriormente a sociedade com a firma “Farmácia …, Unipessoal, Ldª”, com o acrescento “Em liquidação” a ajudar à confusão (esta matéria inclui-se na análise do quantum indemnizatório a analisar no último ponto).

Mas daqui não decorre a existência de um erro notório na apreciação da prova ou contradição entre factos provados pelo que improcedente se mostra a primeira razão de desacordo dos recorrentes.

Quanto à confusão entre farmácias e sua propriedade – principalmente quanto ao facto 98º - é fácil a sua compreensão, não se justificando qualquer alteração factual, como se verá infra.


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B.3.2 – O segundo ponto de descontentamento dos recorrentes aponta para a necessidade de desdobrar os valores do facto provado sob 125 em função das despesas feitas ou na farmácia de … ou na de …, esta em duas parcelas consoante a comparticipação (o acto ilícito que a tal levou) tenha ocorrido antes ou depois da constituição da sociedade, isto na versão dos recorrentes.

O facto provado 125 reza:

125. Em termos globais, no período temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2103, o arguido J… em concertação de esforços e ideias com a arguida M…, esta última por si e em representação da sociedade «Farmácia …, Unipessoal Lda» prescreveu o conjunto de receitas médicas que abaixo se discriminam, em que o valor total da comparticipação do SNS apurado e do inerente prejuízo para o Estado, foi de € 52.314,20 (cinquenta e dois mil trezentos e catorze euros e vinte centimos), correspondente à comparticipação daquele no pagamento das receitas em causa.

A seguir, mas no âmbito do mesmo facto provado, segue-se uma extensa tabela com a identificação de utentes, receitas, datas e valores, com identificação das farmácias – … e … – onde se processou a suposta despesa e sequente comparticipação.

Ora, analisando a referida tabela não podemos deixar de concordar com os recorrentes: se as supostas despesas para o Estado estão referidas na tabela por referência a duas farmácias não pode o texto supra do facto 25 reportar todas as comparticipações a uma só farmácia.

Mas será isso que ocorre? Não nos parece! A confusão supra referida tem efeitos sequenciais.

Não que a redacção do facto esteja errada, mas gera natural confusão pois uma leitura apressada dirá que toda a despesa foi feita ou é referente à farmácia … quando aquilo que o facto refere é que o arguido … prescreveu o conjunto de receitas médicas que abaixo se discriminam… e a farmácia com a nova firma apenas surge pela necessidade de introduzir a conduta da arguida no acto ilícito como representante da dita farmácia. Isto é, há uma vírgula a menos (a seguir a “Ldª”) e um facto a mais (a representação pela arguida) no mesmo suposto facto único, o 125º, a gerar confusão e a implicar posteriores operações aritméticas.

Mas, realmente, não há um vício de facto, ocorrendo antes a explanação de um facto múltiplo que, por si, é insuficiente e que exige posteriores raciocínios aritméticos, que se poderiam evitar se estivessem já incluídos no facto provado 125º.

Dito de forma mais específica, a tabela de valores inclui as despesas relativas às duas farmácias quando apenas uma delas é arguida e demandada cível pelo que para apurar dos factos relativos a essa farmácia, a …, haverá que muito concretamente apurar o montante global das comparticipações que nela tiveram origem, sem olvidar que o conjunto de todas as comparticipações – de ambas as farmácias – são factos essenciais à imputação dos factos a ambos os arguidos, pessoas físicas, enquanto a responsabilidade da arguida farmácia … se limita aos valores processados aos seus balcões, sendo irrelevantes os valores processados na farmácia …. Duas realidades, portanto, a resultar do mesmo facto.

Além disso aquela inclusão (dos valores parcelares que conduzem ao total) faria acrescer a vantagem de não esquecer, no momento da decisão final, que nem todas as despesas podem ser imputadas a uma só farmácia.

Logo, pergunta imediatamente sequente se impõe: esqueceu-se o tribunal dessa realidade?

A resposta é negativa. O tribunal quando conhece do pedido cível condena os arguidos J… e M… solidariamente num montante igual, 52.314,20 € (que corresponde ao montante global do facto 125º), mas reduz a condenação da arguida «Farmácia …, Unipessoal, Ldª» ao valor de 24.676,34 €, correspondente às duas parcelas indicadas pelos recorrentes, 3.643,13 € a somar a 21.033,21 €.

Isto demonstra que não existe no facto 125º um vício de facto que corresponderia a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas apenas uma incompletude do raciocínio necessário à decisão final, aqui expresso num razoamento aritmético. A decisão o atesta!

Preferível seria que a acusação tivesse incluído no facto os valores indicados pelos recorrentes, que melhor permitiriam uma explanação dos factos de forma mais clara e sistemática, facilitando o trabalho do tribunal e de quem lê a decisão, mas os elementos constantes da tabela ali incluída no facto 125º contêm todos os elementos que permitem a indicada raciocinação (sem prejuízo de se reconhecer o excelente trabalho na dedução da acusação, claramente difícil).

Isto é, a ausência de um valor nos factos provados não encerra, por si, insuficiência factual se os elementos já constantes dos factos provados permitem uma decisão segura. Dito de forma diversa, a necessidade de operar um raciocínio aritmético não significa uma insuficiência factual.

É, portanto improcedente a segunda razão de inconformidade dos recorrentes, na medida em que os valores que pretendem incluir no facto 125º se deduzem por simples cálculo aritmético.


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B.4 – O valor da indemnização

Neste ponto a argumentação dos recorrentes assenta em parte relevante nos raciocínios já anteriormente por si expressos a propósito da pena, concretizados nas conclusões HH, II e LL, como segue:

HH. O Tribunal a quo, no cômputo dos valores indevidamente comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde, atendeu aos valores que o foram por meio da Farmácia …, mas não aos valores que o foram pela Farmácia …, enquanto titulada directamente pela arguida M…, que, como já se viu, ascendem a € 3.964,24.

II.O valor a que a arguida sociedade deve ser solidariamente condenada a pagar, deverá ser o valor resultante da dedução ao valor total de € 52.314,20, dos valores de € 27.637,86 e € 3.964,24, o que totaliza o valor de € 21.033,21.

LL. O valor do pedido de indemnização civil a que foi solidariamente condenada a pagar, deverá, no caso da Sociedade, ser reduzido a € 21.033,21, (vinte e um mil trinta e três euros e vinte e um cêntimos).

A pretensão dos recorrentes assenta na ideia de que a farmácia e a sociedade “…” não são responsáveis pelos actos praticados pela gerente e responsável técnica em data anterior à constituição da sociedade unipessoal.

Haveria assim três parcelas do valor global constante do facto provado sob 125 que, segundo os recorrentes e o tribunal recorrido seriam:

- um total de 52.314,20 € para os valores de ambas as farmácias;

- uma parcela de 27.637,86 € para os valores processados através da farmácia …;

- uma parcela de 3.643,13 € para os valores processados através da farmácia … antes da formal constituição da sociedade “farmácia …, Unipessoal”;

- uma parcela de 21.033,21 € para os valores processados através da farmácia… após a formal constituição da nova sociedade proprietária.

Daqui resultaria que a sociedade Farmácia …, Unipessoal, Ldª, apenas seria responsável – e esse seria o limite da sua condenação – por um montante de 21.033,21 €, correspondendo os 3.643,13 a uma responsabilidade directa da arguida M….

Haveria, em consequência deste reconhecimento, de alterar a condenação dessa sociedade arguida, reduzindo a condenação cível de 24.676,34 € para os indicados 21.033,21 €.

Este raciocínio olvida duas realidades.

Desde logo que a arguida M… não processou as comparticipações em nome próprio mas sim em nome – necessariamente – de uma farmácia pois que se assim não fosse estaríamos face a um crime impossível: o Estado não comparticipa medicamentos fornecidos pessoalmente por licenciados em farmácia.

Isto é, a arguida M… agiu através de uma farmácia – forma vinculada de actuação ilícita - de que era gerente e proprietária. E, no caso, a farmácia por si escolhida foi a farmácia …. Poderia ter escolhido a outra de que também era proprietária (facto provado 98º, na afirmação de que os arguidos, médico e farmacêutica, eram proprietários das duas farmácias antes da constituição da sociedade “Farmácia …, Unipessoal, Ldª”). Fez, pois, uma opção de gestão jurídicamente vinculante.

Depois, que a arguida ao processar as receitas e as comparticipações através da farmácia … estava a agir como representante de direito dessa farmácia, mesmo sabendo como não podia deixar de saber, que iria ser constituída uma nova sociedade que assumiria a propriedade da farmácia.

Ou seja, a arguida era à data representante de direito de ambas as farmácias e poderia vincular qualquer delas (facto provado 98º - «A arguida M… (…) e pelo menos no período temporal compreendido entre os anos de 2010 a 2014 foi proprietária (conjuntamente com o seu marido e ora arguido J…) das farmácias «…», sita na Rua … e «… Farmácia …,Unipessoal Lda – Em Liquidação», com sede na Rua da …, sendo Directora Técnica da Farmácia … e tendo o poder de direcção, ainda que não técnica, na Farmácia de …»).

E vincular enquanto representante de direito, que não apenas de facto, até ao dia 01-02-2011.

É claro que aqui, como supra se afirmou, o único facto que deve ser melhor explicitado é que a farmácia, antes de pertencer à nova sociedade se não designava como “Farmácia …, Unipessoal” e muito menos em liquidação, mas já era identificada como farmácia ….

E quanto à nova sociedade o facto 99º é claro na afirmação de que a «Farmácia S…, Unipessoal, Lda – Em Liquidação» “é uma sociedade por quotas que desde a sua constituição (ocorrida no dia 02/02/2011) e até à presente data tem como gerente e única sócia a arguida M……”.

Ou seja, quer antes quer depois da constituição da nova sociedade a arguida M… tinha poderes de direito para vincular ambas as sociedades proprietárias da farmácia … e fazê-las processar a comparticipação.

Por isso não se pode raciocinar, como o fazem os recorrentes, como se tivesse existido um hiato temporal e jurídico antes da constituição da sociedade «Farmácia …, Unipessoal, Lda – Em Liquidação» de que a arguida gerente fosse pessoalmente responsável. Ela agiu em nome e representação das sociedades proprietárias da farmácia …, vinculando-as.

E mesmo que assim não fosse – o tal conveniente e imaginado vazio temporal e jurídico – a nova farmácia responderia pelas dívidas contraídas porquanto a sua gerente de direito a partir de 02-02-2011 teria agido como gerente de facto da novel sociedade de que a arguida viria a ser a única representante de direito.

Aqui é de notar que, com excepção de duas receitas com datas de 2010, em Maio e Novembro, (receitas 344 780 694 e 334 532 260, de M…, referidas na tabela do facto 125 a fls. 4.379, 38 do acórdão recorrido), todas as receitas têm datas de Janeiro e de Fevereiro de 2011, imediatamente antes da constituição formal da nova sociedade. E, também por isso, mesmo que faltasse a representação de direito sempre a actuação de facto da arguida M… – futura gerente da nova sociedade – a vincularia.

Por isso que bem andou o tribunal recorrido ao incluir no montante do pedido cível as quantias processadas antes da constituição da nova sociedade.

É, assim, improcedente o último motivo de insatisfação dos recorrentes.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal de Relação de Évora em:

i. - declarar improcedente a reclamação apresentada;

ii. - negar provimento ao recurso.

Custas por cada um dos recorrentes com 6 (seis) Ucs de taxa de justiça.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 03 de Dezembro de 2019

João Gomes de Sousa (relator)

António Condesso