Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ACÁCIO ANDRÉ PROENÇA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO INCIDENTE DE REMIÇAO CAPITAL DE REMIÇÃO DEPÓSITO AUTÓNOMO PRESCRIÇAO A FAVOR DO ESTADO | ||
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Data do Acordão: | 01/16/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇAO | ||
Área Temática: | DIREITO DO TRABALHO-ACIDENTES DE TRABALHO | ||
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Sumário: | I. É nulo, por falta de fundamentação de facto e de direito, o despacho judicial que se limite a declarar prescritas a favor do Estado determinadas importâncias depositadas nos autos. II. Correspondendo as importâncias depositadas a capital de remição de uma pensão decorrente de acidente de trabalho não é legalmente possível declarar tal prestação perdida a favor do Estado enquanto não decorrer o prazo de prescrição estabelecido na Lei de Acidentes de Trabalho. III. Mesmo considerando apenas como depósitos autónomos realizados no processo as importâncias em causa também não se verificam os requisitos legalmente estabelecidos, mormente temporais, para declarar prescrito o direito à respectiva devolução e, logo, declarar perdido o respectivo montante a favor do Estado. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora: No Tribunal de Trabalho de Évora correu termos uma acção especial emergente de acidente de trabalho movida por BB, por si e em representação de seus filhos CCe DD, respectivamente esposa e filhos do sinistrado de morte EE, contra a Companhia de Seguros FF e GG, que culminou na condenação desta a pagar ao Autores, além do mais, em conjunto, a pensão anual de € 7.625,00, a partir de 28/05/2005, actualizável, pagável em 14 prestações, repartida em cada mês pelos Autores que nesse momento mantenham o direito à pensão, de acordo com as regras definidas no artº 20º, nº 1, al.s a) e c) da Lei nº 100/97 de 13/09, na respectiva proporção; a seguradora FF foi também condenada, mas a título meramente subsidiário, a pagar à Autora BB a pensão anual e vitalícia de € 1.974,00 e aos Autores CC e DD a pensão anual e temporária de € 1.316,00 a cada um deles. Foi, entretanto, declarada a insolvência da Ré GG, na sequência do que a seguradora FF passou a assegurar o pagamento das pensões em que foi subsidiariamente condenada e o Fundo de Acidentes de Trabalho passou a pagar as pensões na parte que era da exclusiva responsabilidade da insolvente. Em 23/08/2010 a beneficiária BB veio requerer a remição da respectiva pensão, tendo sido deferida a respectiva remição parcial (despacho de fls. 429 dos autos), na sequência do que a beneficiária viria a receber o capital de remição parcial de € 11.497,80, sendo € 6.945,82 pagos pela seguradora FF e € 4.551,98 pagos pelo Fundo de Acidentes de Trabalho. Entretanto, por decisão de 18/10/2010, foi declarado caduco o direito à pensão por parte dos beneficiários CC e DD e consequentemente extinta a responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho e da seguradora FF pelo respectivo pagamento (vide fls 10 e 11 do incidente de caducidade apenso). Na sequência de tal decisão veio a beneficiária BB, em 23/03/2011, apresentar novo requerimento (fls 449 dos autos) invocando que, face à caducidade da pensão dos filhos, a pensão da requerente aumentou retroactivamente e requerer que a remição seja feita tendo em conta a totalidade da pensão, o que foi deferido mas mantendo-se a remição parcial nos termos anteriormente determinados (despacho de fls. 462 dos autos). Em 25/05/2011, procedeu-se ao cálculo apurando-se um capital de remição parcial de € 10.761,18, sendo € 6.500,83 a cargo da seguradora FF e € 4.260,35 a cargo do Fundo de Acidentes de Trabalho (fls. 473 dos autos). Foi tentada a entrega do capital de remição em 28/11/2011 (auto de fls 490) e em 8/05/2012 (auto de fls 499), o que não foi conseguido por falta de comparência da beneficiária bem como do seu mandatário judicial. Na sequência disso, o digno magistrado do Ministério Público determinou que quer a seguradora FF quer o Fundo de Acidentes de Trabalho fossem notificados para em 10 dias procederem ao depósito à ordem dos autos e que os autos aguardassem por um ano que as quantias fossem reclamadas, notificando-se a beneficiária e respectivo mandatário que, caso não fossem reclamadas nesse prazo, intentar-se-ia acção para declarar a prescrição daquelas quantias a favor do Estado. A seguradora FF procedeu ao depósito da quantia de € 6.367,15 em 16/05/2012 (fls 502) e o Fundo de Acidentes de Trabalho ao depósito da quantia de € 4.172.80 em 11/05/2012 (fls 507). Em 5/06/2013, sem que dos autos resulte qualquer outro procedimento, o sr juiz exarou o seguinte despacho: “Como se promove declaro prescritos a favor do Estado os montantes não reclamados e constantes de fls. 499 dos autos”. Inconformado com o assim decidido veio o Fundo de Acidentes de Trabalho recorrer para esta Relação rematando a respectiva alegação com as seguintes conclusões: 1. O Mmº Juiz proferiu o seguinte despacho: “Como se promove declaro prescritos a favor do Estado os montantes não reclamados e constantes de fls. 499 dos autos.” 2. Os montantes em causa correspondem ao capital de remição parcial calculado a favor da beneficiária BB. 3. Contudo, do despacho proferido não resulta qualquer fundamento de facto ou de direito que justifique a decisão proferida, pelo que tal despacho é nulo nos termos do artº 668º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil. 4. Ainda que não se considere tal nulidade, não pode o recorrente FAT conformar-se com a prescrição a favor do Estado dos montantes devidos à beneficiária, nomeadamente porque não se encontra legalmente prevista a prescrição a favor do Estado de prestações emergentes de acidente de trabalho. 5. Até porque o Estado não é credor nem beneficiário do capital de remição em causa. 6. A haver prescrição, os montantes depositados terão de ser devolvidos às entidades responsáveis pelo seu pagamento, ou seja, seguradora e FAT e nunca o Estado. 7. Como tal, não existindo qualquer fundamento legal, não poderá o montante devido à beneficiário BB a título de capital de remição parcial ser declarado prescrito a favor do Estado, devendo antes ser devolvido a quem está obrigado ao seu pagamento. Termina pedindo o provimento do recurso, com revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que defira a pretensão do recorrente. Respondeu o Ministério Público para pugnar pela confirmação do despacho recorrido na seguinte base: por um lado, o FAT não teria legitimidade processual para recorrer pois que o que foi declarado prescrito não foi o direito ao capital de remição mas o dinheiro depositado, pelo que só a beneficiária teria legitimidade para recorrer; por outro lado, porque a decisão recorrida se traduz num mero despacho sequencial a uma infindável série de diligências para que o dinheiro depositado fosse levantado pelo respectivo titular, não se verifica qualquer nulidade nem há lugar a qualquer devolução. Admitido o recurso os autos subiram a esta Relação e foram presentes à Exma Procuradora Geral Adjunta que emitiu douto parecer no sentido de que ocorre a arguida nulidade de falta de fundamentação da decisão recorrida e, de qualquer forma, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, porquanto não ocorreu prescrição das prestações e respectivo capital de remição, com determinação das diligências reputadas eficazes com vista a entrega do capital de remição. Tal parecer foi notificado aos demais intervenientes processuais e não mereceu qualquer resposta. Mostram-se colhidos os vistos dos senhores juízes adjuntos. Cumpre apreciar e decidir. Como se vê das conclusões da respectiva alegação, que delimitam o objecto do recurso, são essencialmente duas as questões colocadas pelo recorrente: por um lado, o despacho recorrido seria nulo por falta de fundamentação; por outro lado, o mesmo despacho careceria de qualquer fundamento legal. O Ministério Público na 1ª instância, na respectiva resposta, coloca ainda a questão da falta de legitimidade processual do Fundo de Acidentes de Trabalho para recorrer. Quanto a esta última questão, o digno magistrado do Ministério Público assume uma peculiar postura: como o que foi declarado prescrito foi o dinheiro depositado e não o direito ao capital da remição, só a beneficiária deste capital teria legitimidade para recorrer. Porém, a Exma Procuradora Geral Adjunta nesta Relação veio superar tal alegação para afirmar a legitimidade do FAT. E não poderia ser de outro modo. Efectivamente, o FAT, criado pelo DL nº 142/99 de 20/04, foi chamado aos presentes autos para, face à insolvência da entidade empregadora responsável, garantir aos beneficiários o pagamento das prestações a estes devidas (artº 1º, nº 1, al. a) do referido diploma e artº 39º, nº 1 da Lei nº 100/97 de 13/09), ficando sub-rogado nos direitos e privilégios dos beneficiários na medida dos pagamentos efectuados (artº 5º-B, nº 1 do referido DL). Foi nessa qualidade que o FAT pagou à beneficiária BB determinado capital resultante da remição parcial da sua pensão e, depois, depositou à ordem dos autos, ainda para preenchimento desse capital recalculado, a importância que viu declarada prescrita a favor do Estado; e, como nos parece óbvio, tem um interesse manifesto em que seja assegurado que o capital por ele depositado chegue ao seu destino ou regresse à sua disponibilidade se tal não for possível. Seja pela qualidade em que foi chamado aos autos seja pelo interesse que tem no destino do capital depositado, resulta manifesta a legitimidade do FAT quer para estar nos autos quer para recorrer das decisões que lhe sejam desfavoráveis (artº 680º, nº 2 do CPC). Vejamos, agora, as questões postas no recurso. No que respeita à nulidade do despacho recorrido constatamos que o recorrente, além de a arvorar como fundamento do recurso, a argui também, embora sucintamente, no requerimento de interposição de recurso, pelo que consideramos respeitada a exigência formal a que alude o nº 1 do artº 77º do CPT e, por isso, conheceremos de tal arguição. Consistiria a arguida nulidade na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artº 668º, nº 1, al. b) do CPC). As causas de nulidade de sentença, que vêm tipificadas no nº1 do artº 668º, nº1 do CPC, são extensíveis aos próprios despachos (artº 666º, nº 3 do CPC). No que respeita à arguida causa de nulidade tem-se entendido que só a falta absoluta de motivação integra tal fundamento de nulidade. Nesse sentido, vide Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pag.140; Lebre de Freitas, in Código Processo Civil, pag.297; Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, pág.s 221/222; Conselheiro Rodrigues Bastos, in "Notas ao Código de Processo Civil", III, pag.194). Também nesse sentido se orientou a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como exemplificativamente pode ver-se dos Ac. do STJ de 8/4/1975, in BMJ 246/131, Ac. da Rel. de Lisboa de 10/3/1980, in BMJ 300/438, Ac. da Rel. do Porto de 8/7/82, in BMJ 319/343, Ac. da Rel. de Coimbra de 6/11/2012, P. 983/11.5TBPBL.C1 e Ac. da Rel. de Évora de 20/12/2012, P. 5313/11.3YYLSB-A.E1, estes disponíveis em www.dgsi.pt. Esse é também o entendimento que perfilhamos. Da simples leitura do despacho recorrido, resulta manifesto que ele não contém qualquer fundamentação seja ela de facto seja de direito. A prescrição está associada ao decurso do tempo de que a lei faz depender a aquisição ou extinção de direitos. Ora, o despacho recorrido, ao declarar prescritos a favor do Estado os montantes depositados, não refere nem o prazo nem o fundamento jurídico a que se atendeu para declarar verificada a prescrição nem mesmo porque considera o Estado beneficiário de tal prescrição. Ainda poderia encontrar-se alguma fundamentação ao ser utilizada no despacho a expressão “como se promove”, que inculca a ideia que o magistrado do Ministério Público algo teria expressado nesse sentido e a que o sr. juiz tivesse aderido. Porém, vasculhando o processo, não encontramos qualquer promoção do Ministério Público na qual invoque algum fundamento para o efeito; apenas no termo lavrado a fls 499 dos autos, este magistrado, além de determinar o depósito à ordem dos autos e que os autos aguardassem por um ano a reclamação das quantias depositadas, ordenou a notificação da “beneficiária e seu mandatário que, caso as mesmas não sejam reclamadas nesse prazo, intentar-se-á acção para declarar a sua prescrição a favor do Estado”. Não há, no entanto, notícia de que tal acção tenha sido interposta. Há, pois, que reconhecer e declarar que se verifica a arguida nulidade do despacho recorrido. Porém, o reconhecimento e declaração da nulidade do despacho em causa, não obsta a que se conheça do objecto da apelação (artº 715º, nº 1 do CPC), pelo que este tribunal, posto que o processo reúna elementos para o efeito, não pode deixar de se pronunciar sobre a existência ou não de fundamento legal para declarar a prescrição das quantias depositadas a favor do Estado, questão que o recorrente também coloca no recurso. Ora, os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas pela lei de acidentes de trabalho (no caso, a Lei nº 100/97 de 13/09, ainda ao caso aplicável) são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis (artº 35º da referida Lei), regime este também aplicável ao capital de remição. Porém, as prestações estabelecidas por decisão judicial no domínio da referida Lei prescrevem no prazo de cinco anos a partir da data do seu vencimento; tal prazo, no entanto, não começa a correr enquanto os beneficiários não tiverem conhecimento pessoal da fixação das prestações (artº 32º, nºs 2 e 3 da Lei nº 100/97). Ora, como flui dos autos, o capital de remição em causa foi calculado em 25/05/2011 (vide termo de fls 473 dos autos) e desconhece-se mesmo se a beneficiária BB foi pessoalmente notificada de tal cálculo ou até das datas designadas com vista à entrega desse capital. É, assim, manifesto que à data da prolação do despacho recorrido (5/06/2013) não estava prescrita a prestação em causa. Por outro lado, a declaração de prescrição de direito a pensões está sujeita a um processo próprio (vide artº 151º do CPT) que não se vê tenha sido observado no caso dos autos. Acresce referir que não existe qualquer disposição legal que permita declarar perdidas a favor do Estado prestações judicialmente estabelecidas a favor de beneficiários em acidentes de trabalho, enquanto não decorrerem os prazos legalmente estabelecidos que permitam declarar tais prestações extintas por prescrição. Mesmo considerando os montantes depositados como simples depósitos autónomos (pois que assim foram efectuados – vide fls 602/603 e fls 506/507 dos autos), independentemente da causa que lhes deu origem, haveria que atender ao estabelecido no artº 159º da Lei nº 3-B/2010 de 28-04-2010 (norma esta também sistematicamente inserida nos posteriores Orçamentos do Estado: vide artº 169º da Lei nº55-A/2010 de 31/12, artº 200º da Lei nº 64-A/2011 de 30/12 e artº 160º da Lei nº 66-B/2012 de 31/12) nos termos do qual “o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos judiciais, independentemente do regime legal ao abrigo do qual tenham sido constituídos os depósitos, prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular for, ou tenha sido, notificado do direito a requerer a respectiva devolução, salvo se houver disposição em contrário em lei especial” (nº 1), sendo que “as quantias prescritas nos termos do número anterior consideram-se perdidas a favor do IGFIJ, IP” (nº 2). Porém, também não estão reunidos os pressupostos estabelecidos em tal regime, mormente temporais, que permitiriam declarar perdidas a favor do referido organismo as importâncias depositadas nos autos. É assim que, por absoluta falta de cobertura legal e afrontar mesmo as normas supra referidas, sempre o despacho recorrido terá de ser revogado, procedendo o recurso. O incidente de remição, no qual o despacho recorrido foi proferido, terá de prosseguir os seus regulares termos, o que compete ao tribunal recorrido determinar. * Termos em que acordam os juízes na Secção Social desta Relação em declarar nulo o despacho recorrido e, conhecendo da apelação, revogar esse mesmo despacho, prosseguindo o incidente de remição os seus regulares termos.Sem custas. * Évora, 16 de Janeiro de 2014 (Acácio André Proença) (José António Santos Feteira) (Paula Maria Videira do Paço) |