Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA FILOMENA SOARES | ||
Descritores: | FURTO CRIME DE NATUREZA PARTICULAR | ||
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Data do Acordão: | 02/04/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - Para que o crime de furto simples assuma natureza particular, não basta o “valor diminuto” da coisa furtada, necessária é, também, a verificação cumulativa da pretensão de “utilização imediata” da coisa subtraída ilicitamente e da indispensabilidade da coisa para satisfação de uma necessidade do agente ou do seu cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau, ou com ele viver em condições análogas às dos cônjuges. II - Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o Tribunal deve preferir uma pena não privativa da liberdade sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa não privativa da liberdade se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição. O juízo de adequação e suficiência da pena privativa ou não privativa da liberdade dependerá, assim, de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do sentimento jurídico da comunidade.
III – No crime de furto simples, a substituição da pena de multa por admoestação não se justifica por se mostrar insuficiente, por defraudar as expectativas comunitárias, no que à prevenção geral respeita, considerando a existência de um sentimento de intranquilidade decorrente do desrespeito pela propriedade alheia. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª subsecção) do Tribunal da Relação de Évora: I No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 92/16.0 NJLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo Local Criminal de Beja, mediante acusação do Ministério Público, sem apresentação de contestação, foi submetido a julgamento o arguido JCT, (devidamente identificado a fls. 249), e por sentença proferida e depositada em 07.11.2018, foi decidido: “(…) o Tribunal julga a acusação deduzida pelo Ministério Público parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: A. Absolve o arguido, JCT, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal; B. Condena o arguido, JCT, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal na pena especialmente atenuada de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), perfazendo o total de 420 € (quatrocentos e vinte euros); C. Condena o arguido, JCT, no pagamento das custas criminais do presente processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidades de Conta – art. 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e art. 8.º, n.º 8 e Tabela III do RCP. (…)”. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões: “1. O arguido vinha acusado da prática de dois crimes de furto, p.p. pelo artº 203º nº 1 do CP. 2. Foi absolvido de um dos crimes e condenado pelo furto da importância de € 25 (vinte e cinco euros). 3. A queixa foi apresentada perante a Polícia Judiciária Militar, pela ofendida. 4. Porém, o valor em causa integra o conceito de valor diminuto, conforme o disposto no artº 202º al. c) do Código penal. 5. Pelo que nos termos do artº 207º nº 1 al. b) do Código Penal, teria que a ofendida ter-se constituído assistente e ter sido deduzida acusação particular. 6. O que não aconteceu. 7. E, sendo necessária acusação particular, não tinha o Ministério Publico legitimidade para exercer a acção penal, artºs 48º e 50º do Código do Processo Penal. 8. Pelo que deveria o recorrente ter sido absolvido. No entanto e por mera cautela sempre se dirá o seguinte: 9. O recorrente é primário. 10. O valor em causa € 25 (vinte e cinco euros) é diminuto. 11. A ofendida foi ressarcida do valor em causa. 12. Pelo que, atento o disposto no artº 47º nº 1 do Código Penal, nada obsta a que a pena de multa a aplicar ao recorrente seja próxima do seu limite mínimo, senão mesmo o seu limite mínimo de 10 dias. 13. Ou até mesmo uma admoestação nos termos do artº 60º do Código penal. Nestes Termos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, deve o arguido ser absolvido do crime de furto, pela falta de legitimidade do Ministério Público. Ou, caso, assim não se entenda, deve ser aplicada ao arguido a pena de multa pelo mínimo, 10 dias, ou pena de admoestação. Nesta conformidade, dando provimento ao recurso, farão V. Exªs a costumada JUSTIÇA!”. Admitido o recurso [cfr. fls. 281], notificados os devidos sujeitos processuais, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto, nos seguintes termos: “1° - Inconformado com a douta sentença proferida nos presentes autos e que o condenou pela prática de um crime de Furto, p. e p. pelo art..º 203°, n.º 1 do Código Penal, vem o arguido dela interpor o presente recurso pugnando pela sua absolvição ou pela redução da pena que lhe foi aplicada alegando, em síntese, que a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 48° e 50° do Código de Processo Penal e o art..º 47°, n.º 1 do Código Penal. 2° - Entende o recorrente que os factos por cuja prática foi condenado apropriação da quantia de 25,00 € pertença de CA - integra a previsão legal do art.° 207°, n.º 1, alínea b) do Código Penal atento o valor diminuto da coisa apropriada face ao disposto no art..º 202°, alínea c) do Código Penal, pelo que dependendo o procedimento criminal de acusação particular o Ministério Público não tinha legitimidade para deduzir acusação contra o arguido. 3° - Contudo, esquece o recorrente que o disposto no art..º 207°, n.º 1, alínea b) do Código Penal estatui vários requisitos cumulativos, a saber, o valor diminuto da coisa apropriada, que a coisa apropriada se destine a uma utilização imediata e que essa utilização imediata seja indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos seus familiares elencados na alínea a) da mesma norma. 4° - Ora, como resulta da matéria dada como provada na douta sentença, que o recorrente não impugna, não se apurou que a quantia de 25,00 € que o arguido retirou e fez sua se destinasse à satisfação imediata e indispensável de uma sua necessidade ou de um seu familiar, aliás, não se apurou sequer a que se destinava. 5º - Por todo o exposto é evidente que os factos praticados pelo arguido não integram a previsão legal do art..º 207°, n.º 1, alínea b) do Código Penal mas sim a do art..º 203°, n.º 1 do Código Penal, de natureza semi-pública e não particular, pelo que ao deduzir acusação contra o arguido o Ministério Público não violou o disposto no art..º 50° do Código de Processo Penal não assistindo qualquer razão o recorrente. 6° - O arguido foi condenado pela prática de um crime de Furto, p. e p. pelo art.° 203°, n.º 1 do Código Penal na pena especialmente atenuada de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de 6,00 €. 7° - Ponderada que foi a aplicação ao arguido de uma pena de multa e atentos os factos dados como provados a Mma. Juiz a quo procedeu, a nosso ver bem, à atenuação especial da pena prevista no art.° 206°, n.º 2 do Código Penal fixando a medida abstracta da pena de multa a aplicar entre 10 (dez) e 240 (duzentos e quarenta) dias. 8° - O recorrente insurge-se contra a medida da pena aplicada entendendo que a pena aplicada deveria ter sido a mínima prevista na Lei, ou seja, 10 (dez) dias de multa porque não tinha antecedentes criminais, a quantia furtada é de valor diminuto e nunca assumiu a prática do crime apesar de ter devolvido à ofendida a quantia furtada. 9° - Nenhum argumento consta das alegações de recurso que ponha em causa a decisão relativa à medida da pena, limitando-se o recorrente a manifestar a sua discordância e a sua opinião no sentido de considerar a pena aplicada exagerada. 10° - Dentro da medida abstracta da pena já especialmente atenuada, a pena aplicada foi justa, adequada e proporcional ao grau de ilicitude e à culpa do arguido não tendo sido violadas quaisquer normas legais. Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida na íntegra a douta sentença recorrida. Assim se fazendo JUSTIÇA!”. Remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer afirmando, em suma, “(…) adesão aos fundamentos de facto e de direito, enunciados e constantes da douta decisão recorrida, sendo que não se vislumbra nada de relevante e de decisivo que a consinta colocar em crise. Acompanhamos a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, a cujos argumentos nada mais se nos oferece acrescentar, com relevo para a apreciação e decisão do presente recurso. (…)”. Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais. Foi realizada a Conferência. Cumpre apreciar e decidir. II Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82). Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões aportadas ao conhecimento desta instância são as seguintes: (i) - Da (i)legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal em razão da natureza particular do crime de furto em que o arguido foi condenado, nos termos prevenidos nos artigos 203º, nº 1 e 207º, nº 1, alínea b), do Código Penal, e 48º e 50º, do Código de Processo Penal; (ii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na matéria de direito no tocante à dosimetria da pena de multa imposta ao arguido, em violação do disposto nos artigos 40º, 47º e 71º, do Código Penal e bem assim por não ter substituído a pena de multa imposta ou a impor por pena de admoestação, nos termos do estatuído no artigo 60º, do mesmo compêndio legal. III A sentença recorrida encontra-se fundamentada nos termos seguintes que se transcrevem na parte pertinente ao conhecimento do objecto do presente recurso: “(…) III. DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO: 3.1. Factos provados: Com relevo para a decisão da presente causa resultaram provados os seguintes factos: 1. No período compreendido entre as 18 horas do dia 13 de Setembro de 2016 e as 9 horas e 30 minutos, do dia 14 de Setembro de 2016, o arguido introduziu-se no interior do gabinete do ………., em Beja, área deste Juízo Local; 2. Aí chegado, o arguido retirou da carteira pertencente a CSTA a quantia de 25 €, que estava acondicionada no interior do saco de voo e apropriou-se da mesma; 3. O arguido agiu com o propósito, alcançado, de integrar no seu património a quantia em dinheiro supra referida, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade da sua dona; 4. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei; Mais se provou que: 5. O arguido devolveu à ofendida CA a quantia de 25 €, alguns meses após os factos, admitindo junto da mesma ter sido ele a retirá-la do seu saco; 6. O arguido é consultor de serviços na sociedade “…..r”, auferindo o salário mínimo nacional; 7. O arguido vive com os pais, em casa destes, não pagando renda de casa; 8. O arguido tem a seu encargo, até ao mês de Novembro de 2018, o reembolso de um empréstimo pelo montante de 280 €; 9. Como habilitações literárias, o arguido possui o 12.º ano de escolaridade completo. 10. O arguido não tem antecedentes criminais registados. * 3.2. Factos não provados: a) Em dia e hora não concretamente apurados do período compreendido entre os dias 25 de Novembro de 2016 e 4 de Dezembro de 2016, o arguido dirigiu-se ao……………., sito…., em Beja, área deste Juízo Local; b) Aí chegado, o arguido introduziu-se no seu interior e retirou material de liga de latão, nomeadamente: 270 unidades de calibre .50; 1175 unidades de calibre 9 mm; e 1354 unidades de calibre 7,62 mm; com o peso total de 70,879 kg; c) Após, abandonou o local fazendo seus os invólucros acima identificados, que posteriormente vendeu na sucateira ….. em Évora, pelo valor de 30 €; d) O arguido agiu com o propósito, alcançado, de integrar no seu património a quantidade de material de liga de latão supra referida, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu dono; IV. MOTIVAÇÃO: Nos termos dos artigos 97.º n.º 5 e 374.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame crítico e conexo da prova produzida em audiência de discussão e julgamento. Produzida a prova durante a audiência de julgamento, o julgador decidirá com base nas regras da experiência e de acordo com a sua convicção, apreciando as circunstâncias concretas dos factos. Como defende Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I volume, Coimbra; Coimbra Editora, 1974, pp. 202-203, a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade conformada pelo dever de perseguir a “verdade material”, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo. Concretamente o Tribunal sopesou, as declarações do arguido que se resumiram às suas condições pessoais, não tendo o mesmo prestado esclarecimentos sobre os factos. O Tribunal sopesou ainda os depoimentos das testemunhas CSTA, ÁJAF e JGGI, todos, militares em funções na …………….., em Beja, à data dos factos e da testemunha RMPB, trabalhador da sociedade “……………”. - Documentalmente, o Tribunal louvou-se no teor dos documentos: de fls. 69 e 70 – auto de apreensão e objecto apreendido; de fls. 118; de fls. 149 a 159 e 162-165 – facturas e documentos anexos e de fls. 240 - CRC do arguido. - Pericialmente, o Tribunal valorou os relatórios de fls. 78-85 e 87-93. * Do cotejo da prova por declarações e documental produzida, o Tribunal formou a sua convicção quanto à verificação dos factos considerados provados que aquela prova sustenta integralmente. Com efeito, pese embora o arguido não haja prestado declarações relativamente aos factos, ouvida a testemunha CA, deu a mesma nota das circunstâncias em que lhe foi subtraída a quantia dos autos, estando em serviço, nada data dos factos a testemunha (como oficial de dia à ….), o arguido (como primeiro cabo de dia à …..) e a primeiro Sargento M; deu nota de que tinha levantado dinheiro no dia anterior – do que atesta o documento de fls. 70 - e que, no dia seguinte quando o procurou na sua carteira, verificou que lhe faltava a quantia de 25€; esclareceu que ao edifício onde se encontrava a sua carteira só acediam, naquele momento, ela, o arguido e a primeiro Sargento M. A testemunha esclareceu que alguns meses após os factos, foi procurada pelo arguido que lhe disse que fora ele quem subtraíra o seu dinheiro e devolveu-lhe o montante em causa. A testemunha prestou um depoimento que se afigurou isento, credível e objectivo, sendo que, considerando tal depoimento, os documentos de fls. 70 e o relatório de fls. 78-85, o Tribunal convenceu-se da verificação dos factos descritos sob os pontos 1. e 2. dos factos provados. No que tange à autoria dos factos, o Tribunal formou a sua convicção, também pela ponderação do depoimento da testemunha CA de que resulta que o arguido assumiu essa autoria e a reparação do dano. O direito ao silêncio por parte do arguido, se bem que o não possa prejudicar, também não é de molde a beneficiá-lo perante a prova produzida, na sua presença e que, teve a oportunidade de refutar pessoalmente, o que optou por não fazer. Assim, face ao teor conjugado das circunstâncias dos factos e da assumpção da autoria dos mesmos por parte do arguido perante a testemunha, o Tribunal formou a sua convicção de que foi o arguido o autor da subtracção de 25 € a CA, entre as 18 horas do dia 13 de Setembro de 2016 e as 9 horas e 30 minutos, do dia 14 de Setembro de 2016, no interior do gabinete do ……………….. em Beja. A convicção do tribunal acerca da actuação livre, deliberada e conscientes e o conhecimento da ilicitude da conduta e de que agia contra a vontade do dono do montante subtraído resulta da ponderação das regras da experiência comum, tanto mais que ao arguido não é conhecida qualquer situação de afectação da vontade sendo pessoa medianamente sagaz, pelo que não podia ignorar a ilicitude e a punibilidade da sua conduta – que acabou por reparar mais tarde - tendo-se determinando, ainda assim, a praticá-la. Com base no depoimento da testemunha, o Tribunal deu ainda como provado o facto constante do ponto 5. dos factos provados. No que tange às condições pessoais e económicas do arguido, o Tribunal valorou o teor das suas declarações. No que concerne à ausência de aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal valorou o teor do CRC junto aos autos a fls. 240, analisado em sede de audiência de julgamento. * O Tribunal não logrou de se convencer de que o arguido haja retirado, do ……………….., em Beja, material de liga de latão, nomeadamente: 270 unidades de calibre .50; 1175 unidades de calibre 9 mm; e 1354 unidades de calibre 7,62 mm; com o peso total de 70,879 kg. Com efeito, nenhuma das testemunhas ouvidas, militares da ……………à data dos factos, ÁJAF e JGGI lograram de se referir ao arguido como tendo sido o autor daqueles factos. Pese embora tenham referido que só eles e o arguido teriam acesso ao Sector em causa, bem como a PM, em caso de emergência, foram ambos claros em afirmar, não só que não viram o arguido praticar os factos como que não o confrontaram com a autoria dos mesmos, e, se bem que ambos se apresentaram convencidos de que foi o arguido que os praticou, e até pessoalmente magoados com essa situação, essa convicção adveio para as testemunhas das diligências produzidas em sede de inquérito e em que, ouvido, o arguido terá admitido a autoria dos factos. Ora, ainda que assim seja, que o arguido haja admitido a autoria dos factos, essa admissão, porque feita ao abrigo de acto processual perante a PJM, não pode ser utilizada na sentença para fundamentar a convicção do Tribunal por força das regras processuais penais aplicáveis. Não se ignoram os elementos dos atinentes às pessoas com acesso ao local e que o arguido procedeu à venda de metais à sociedade …. contudo, ouvida a testemunha RB, referiu o mesmo que os materiais vendidos eram candeeiros partidos, torneiras, uma bateria, um bocado de ferro e um ou dois invólucros (que não soube descrever). Do depoimento desta testemunha não foi possível extrair, com a segurança que o processo penal exige e que se exige para a imputação de factos em sede de sentença, que o arguido tivesse vendido àquela Sociedade de reciclagem os invólucros a que se reportam os autos, não sendo possível extrair das facturas e documentos juntos aos autos de fls. 162 a 165 que o arguido tenha vendido tais invólucros – não só o peso constante das facturas não é de 70 kg, como o preço não corresponde ao indicado na acusação. Aliás, nem por recurso a tais facturas é possível fazer um juízo seguro segundo as regras de experiência comum, não só porque a testemunha RB não confirmou que o metal vendido fossem os invólucros dos autos, como porque, analisando as facturas de fls. 149 a 165 resulta que o arguido já vendia metal àquela sociedade desde Maio de 2015, pelo que não se verifica sequer um evento da vida do arguido que se possa afirmar fugir à “normalidade” anterior aos factos dos autos. Ao julgador impõe-se fundamentar a sua decisão não com base em rumores ou impressões ou convicções subjectivas, mas com base em elementos de prova dos que seja possível extrair uma conclusão de imputação, impondo-se-lhe nesse caminho demonstrar o caminho lógico que o conduziu àquela conclusão. Nos presentes autos, abstraindo da convicção pessoal das testemunhas e daquela que terá sido a posição do arguido em inquérito e que, sublinhe-se por essencial, não pode sustentar a convicção do julgador, nada existe de concreto senão os factos de que i) o arguido tinha acesso ao local de onde desparecerem os invólucros dos autos – de cuja quantidade e descrição, aliás, não há um único registo documental no processo – e ii) o arguido vendeu 23 kg de metal – concretamente torneiras, candeeiros, uma bateria, um pedaço de ferro e alguns invólucros - à sociedade SRE no dia 02.12.2016. Não existem elementos seguros que permitam ao Tribunal fazer a ponte entre estes elementos e o juízo de imputação da autoria da subtracção, uma vez que há demasiados “espaços em branco” no raciocínio que se impõe fazer e que os autos não permitem que se preencham. Como sustenta o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 12.03.2009 proferido no processo n.º 07P1769 e disponível em www.dgsi.pt: “III - O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.(…) V - Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.” Suscitando-se, assim, e pelos fundamentos melhor descritos, dúvidas acerca da verificação dos factos que constam da acusação e descritos sob as als. a) a c) do ponto 3.2. da Sentença, e por aplicação do princípio in dúbio pro reo, o Tribunal considera-os factos não provados e, bem assim, por decorrência lógica e necessária, como não provado o facto constante da al. d) do mesmo ponto. * (…) V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: Do crime de furto simples. (…) Condições de punibilidade A tipicidade, a ilicitude e a culpa constituem as categorias do crime, sendo que, com a sua verificação o facto, em regra, é também punível. Em sentido amplo, a punibilidade como fundamento da responsabilidade jurídico-penal do agente será assim a concorrência de facto, tipicidade, ilicitude e culpa. Em sentido estrito, as condições de punibilidade são as que se situam fora da ilicitude e da culpa, mas que concorrem para fundamentar concretamente a responsabilidade jurídico- penal. Elas serão condições positivas quando constituam factos que têm de se verificar para que o agente possa ser punido, por exemplo, a verificação das condições legais da punibilidade da tentativa para que o agente possa ser punido pelo facto tentado (art. 23.º do C. Penal). Serão condições negativas, quando a punibilidade do agente depende da sua não verificação, como seja o caso das causas de extinção da responsabilidade criminal (por exemplo, prescrição do procedimento criminal - arts. 118.º e seguintes C. Penal; prescrição da pena – arts. 122.º e seguintes C. Penal; morte do agente, amnistia, perdão genérico e indulto – art. 127.º C. Penal); da falta de condições de procedibilidade do procedimento criminal como a existência de queixa nos crimes semipúblicos ou de queixa e acusação particular nos crimes particulares; ou ainda de causas de isenção de pena, como a desistência de queixa, nos crimes semipúblicos e particulares – na situação vertente não se verificando a dupla condição prevista no art. 207.º, n.º 1 al. b) do Código Penal: “valor diminuto” e “utilização imediata e indispensabilidade à satisfação de uma necessidade do agente ou outrém previsto na Lei”, o crime assume a natureza de semi-público, tendo a ofendida manifestado, incluindo em julgamento, o propósito de prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido. Na situação dos autos, tomando por base as referências supra-expostas, mostram-se verificadas todas as condições de punibilidade do arguido pelos crimes que se lhe mostram imputados. * Face ao exposto, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude da conduta do arguido ou da sua culpa (como se referiu), mostrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos crimes em apreço, importa proceder à determinação da sanção penal a aplicar-lhe. * VI. Escolha e determinação da pena: 6.1. O crime de furto simples, que resulta provado ter o arguido praticado, é punido com pena de prisão [de um mês] até 3 anos ou com pena de multa [de 10 a 360 dias]. * 6.2. Em face da alternativa relativamente à natureza privativa ou não privativa da liberdade da pena abstractamente aplicável, importa desde logo, de acordo com os critérios do art. 70.º do C. Penal, operar a escolha da pena a aplicar ao caso concreto. Nos termos do art. 70.º do C. Penal, se ao crime foram aplicáveis, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o Tribunal deve preferir uma pena não privativa da liberdade sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa não privativa da liberdade se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição. A opção pela pena privativa da liberdade só se justificará quando tal for imposto pelos fins das penas – previstos no art. 40.º, n.º 1 do Código Penal: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Estes fins – comummente designados pela doutrina como prevenção geral positiva ou de integração e prevenção especial positiva ou de socialização traduzem respectivamente o reforço da consciência comunitária e do seu sentimento de segurança face ao atentado contra a vigência da norma penal e a necessidade de efectuar um raciocínio de prognose em relação aos efeitos da pena na futura conduta do Arguido em vista da sua ressocialização. O juízo de adequação e suficiência da pena privativa ou não privativa da liberdade dependerá, assim, de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do sentimento jurídico da comunidade, sendo alheias a esta escolha as considerações relativas à culpa do agente. * 6.3. Feita a opção pelo tipo de pena, importará ponderarem-se os factores que influem na determinação da medida da pena, atentos os critérios enunciados no art. 71.º do Código Penal. Na escolha e determinação da medida concreta da pena o tribunal deve atender à culpa do agente, que constitui o fundamento e o limite superior e inultrapassável da pena a aplicar, sob pena de, ultrapassando-o, se afrontar a dignidade humana do delinquente. O limite mínimo da pena concreta corresponderá à necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e às exigências de prevenção positiva ou de integração do agente. Como resulta da jurisprudência, por todos, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2009, Proc. 1246/08.9PASNT.L1., Relator: Pires da Graça, in www.dgsi.pt, a função da culpa no sistema punitivo reside na proibição de excesso, não sendo ela fundamento de pena, constitui o seu limite inultrapassável. A culpa será, assim o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas, estabelecendo o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. O critério e as circunstâncias do art. 71.º do C. Penal são os parâmetros, quer para a determinação da medida concreta proporcionalmente compatível com a prevenção geral, quer para identificar as exigências de prevenção especial, fornecendo ainda indicações objectivas para a apreciação e definição da culpa do agente. As exigências de prevenção geral são determinantes na fixação da medida da pena, face à necessidade de reafirmação da validade das normas, defendendo o ordenamento jurídico e assegurando segurança à comunidade, para que esta sinta confiança e protecção pela norma, apesar de violada. Porém tais valores têm de ser coordenados com as exigências de prevenção especial, quer no sentido de evitar a reincidência, quer na socialização do agente com vista a respeitar os valores comunitários fundamentais tutelados pelos bens jurídico-criminais. Atentas as finalidades e os limites da pena, as directrizes para a escolha da sua medida, são as fornecidas pelo art. 71.º do Código Penal, considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de ilícito, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente nas diversas alíneas do n.º 2 do citado preceito, como sejam: o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, a conduta anterior e posterior ao facto, as condições pessoais do agente, a ausência de predisposição para manter uma conduta lícita, quando manifestada no facto e a existência de antecedentes criminais. * 6.4. Como resulta da matéria dada como provada, a conduta do arguido reveste-se de uma ilicitude de grau médio/baixo, sendo o dolo directo. Militam em favor do arguido - o valor diminuto do montante subtraído; - a reparação integral da ofendida; - a integração profissional e familiar do arguido; - a ausência de antecedentes criminais; Militam em desfavor do arguido: - o grau de ilicitude dos factos, decorrente do modo da sua execução; - o deliberado desprezo pela propriedade alheia. No que tange às necessidades de prevenção geral, estas surgem com considerável intensidade no que aos crimes concerne, porquanto atentam contra o sentimento nuclear de normalidade na convivência social e de segurança da comunidade, bem como acarreta, o furto qualificado, consequências de instabilidade social, posto que atenta contra o sentimento nuclear de posse, de propriedade de domínio sobre os bens necessários à subsistência económica ou à vivência pessoal. No que, por seu turno, concerne às necessidades de prevenção especial, tais exigências revelam-se num grau médio/ baixo, face ao contexto dos factos à ausência de antecedentes criminais registados, à reparação operada e à integração profissional e familiar do arguido. Impõe-se, portanto, que ao arguido seja aplicada uma pena que não seja entendida como um perdão ou uma desvalorização da gravidade da sua conduta, atendendo à intensidade do dolo, e que coadune a vertente sancionatória da punição com o grau de necessidade da sua vertente dissuasora e ressocializadora no caso concreto. A ponderação da ausência de antecedentes criminais registados, da integração profissional e familiar do arguido, do montante objecto da subtracção e da reparação integral do dano por parte do arguido, permitem fazer concluir que a pena privativa da liberdade, na situação concreta seria desproporcionada e inábil para a salvaguarda das necessidades de prevenção geral e especial e à ressocialização do mesmo. Será, pois, a pena de multa aquela que, na situação concreta, ainda melhor satisfará aquelas necessidades. * A propósito da determinação da medida da pena importa verificar, se há lugar a uma atenuação especial da pena. Dispõe, com relevo, o art. 206.º, n.º 2 do Código Penal que: Quando a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem restituídos, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada. Na situação vertente, considerando que o arguido alguns meses após os factos e antes do início da audiência restituiu o montante de 25 €, subtraído a CA, considerando ainda que se encontra profissional e familiarmente inserido, entende-se que as necessidades de prevenção especial que no caso se fazem sentir são de molde a permitirem atenuação especial da pena, ao abrigo do disposto nos arts. 72.º, n.º 1 e 206.º, n.º 2 e nos termos do art. 73.º, todos, do Código Penal que dispõe: 1 - Sempre que houver lugar à atenuação especial da pena, observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável: (…) c) O limite máximo da pena de multa é reduzido de um terço e o limite mínimo reduzido ao mínimo legal; Assim e no que ao crime de furto simples concerne, partindo da moldura penal abstracta de 10 a 360 dias de multa, e considerando a atenuação especial da pena a que se vem de referir e que se há-de aplicar, conclui-se que a moldura penal abstracta da pena a aplicar ao arguido nos presentes autos, pela prática do crime de furto simples (art. 203.º, n.º 1 do Código Penal), é de 10 (dez) dias a 240 (duzentos e quarenta dias de multa. * 6.4. Ora, sopesando o supra-exposto, não perdendo de vista as necessidades de prevenção geral e especial patentes, e tendo em conta os limites abstractos resultantes dos arts. 203.º, n.º 1, 47.º, n.º 1 e 73.º, n.º 1 al. c), todos, do Código Penal, entende-se adequada e proporcional a aplicação ao arguido, da pena especialmente atenuada de 70 (setenta) dias de multa. * No atinente ao quantum diário da multa, dispõe o n.º 2 do art. 47.º do Código Penal que, o mesmo é fixado pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, entre 5 € e 500 €. Na fixação do montante diário da multa o Tribunal não pode, portanto, perder de vista, impondo-se que as concilie, por um lado a necessidade de que a multa consubstancie um sacrifício para o condenado, e uma verdadeira sanção, satisfazendo desta forma o restabelecimento da confiança da comunidade na validade da norma, e, por outro, a necessidade de que a pena não constitua um sacrifício insuportável para o arguido, tornando incompreensível e inaceitável a punição por parte desta e pondo em causa a sua própria execução. “o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 1997, in Acs. STJ, V, 3, 183). Considerando as condições pessoais do arguido, sem perder de vista as finalidades da pena, o Tribunal entende adequado fixar, à pena de multa aplicada, o quantitativo diário de 6 € (seis euros), perfazendo esta o total de 420 € (quatrocentos e vinte euros). (…)”. IV Se, como supra se deixou editado, o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação e o mesmo não coloca em crise, por qualquer forma, a decisão de facto assumida pelo Tribunal a quo, tal não prejudica que este Tribunal ad quem proceda à apreciação oficiosa dos vícios da decisão sobre matéria de facto, de harmonia com o estatuído no artigo 410º, nº 2, do Código Processo Penal, desde que resultem do texto da decisão recorrida ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do preceituado no nº 3, do citado artigo. Ora, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no mencionado preceito. A matéria de facto dada como provada é bastante para a decisão de direito, inexistem contradições insuperáveis de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se afigurando, por outro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detectável por qualquer leitor da decisão com formulação cultural média. Também não padece a sentença ou o processo de qualquer nulidade que não deva considerar-se sanada. Posto isto, importa apreciar a primeira questão, [(i)], suscitada pelo recorrente à apreciação deste Tribunal ad quem, da ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal ante a alegada natureza particular do crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal, por que o arguido foi condenado e face ao estatuído no artigo 207º, nº 1, alínea b), do mesmo compêndio legal. Funda o recorrente a sua pretensão na circunstância da coisa objecto de apropriação por banda do arguido ser de diminuto valor, nos termos prevenidos no artigo 202º, alínea c), do Código Penal e, por tal facto, o crime de furto simples revestir natureza particular, dependendo por conseguinte o procedimento criminal de acusação particular que, por não ter sido deduzida, importa a ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal nos termos dos artigos 48º e 50º, do Código de Processo Penal. Ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, é por demais evidente que não lhe assiste razão, pelas razões, aliás, já expendidas na decisão recorrida. Dispõe o artigo 207º, do Código Penal, sob o título “Acusação particular”, que: “1 - No caso do artigo 203.º e do n.º 1 do artigo 205.º, o procedimento criminal depende de acusação particular se: a) O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges; ou b) A coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem de valor diminuto e destinados a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a). 2 - No caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis ou animais expostos de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.” Como decorre claramente do texto legal, à afirmação da natureza particular do crime de furto simples não basta o “valor diminuto” da coisa furtada, necessária é, também, a verificação cumulativa da pretensão de “utilização imediata” da coisa subtraída ilicitamente e da indispensabilidade da coisa para satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos familiares indicados na alínea a), do mencionado preceito legal – v.g., entre outros, no mesmo sentido, Decisão sumária do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.09.2008, proferida no processo nº 7216/2008-3 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.11.2015, proferido no processo nº 174/14.3 SJPRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt. Ora, como se alcança da factualidade dada como provada na sentença recorrida, não se discutindo o incontornável “valor diminuto” da quantia monetária furtada pelo arguido - v.g. artigo 202º, alínea c), do Código Penal [inferior ao valor da unidade de conta, à data, no montante de € 102,00 (cento e dois euros)] -, nenhum dos restantes requisitos legais se verifica in casu. O arguido no uso do direito que lhe assiste não quis prestar declarações sobre o objecto da acção penal (cfr. artigo 343º, nº 1, do Código de Processo Penal) e, por conseguinte, não esclareceu que utilização e destino deu à quantia monetária de que se apropriou ilicitamente, como o Tribunal a quo, neste conspecto, nada logrou apurar sobre o modo ou o fim que o arguido deu à quantia que subtraiu. Vale o exposto por afirmar que o crime de furto simples por que o arguido foi condenado não reveste natureza particular e bem andou o Tribunal a quo em assim o afirmar, sendo, em consequência, improcedente a pretensão recursiva ora apreciada. Importa, agora, conhecer da segunda questão, [(ii)], aportada ao conhecimento desta instância pelo recorrente . Segundo o recorrente o quantum da pena de multa que lhe foi imposto deverá ser substancialmente reduzido, quiçá mesmo fixado no mínimo legal, porquanto se mostra fixado em violação do preceituado nos artigos 40º, 47º, e 71º, todos do Código Penal. Como se lê no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 22.04.2014, proferido no processo nº 291/13.7 GEPTM.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre “(…) também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico. O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da pena, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Assim, o recurso não visa, nem pretende aqui, eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1ª instância enquanto componente individual do acto de julgar. A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. (…)”. Ante o exposto e porque o recorrente não invoca argumento algum que não tenha sido sopesado na decisão recorrida e porque no processo de determinação da concreta pena de multa não se vislumbra nenhum desacerto, o decidido, a este propósito, na decisão recorrida não nos merece qualquer reparo. Destarte, sobre os critérios legais que importam à determinação da pena, perfunctoriamente, dir-se-á que face ao disposto no artigo 71º, nº 1, do Código Penal, na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, está o Tribunal vinculado a critérios definidos em função da culpa do agente e de exigências de prevenção, sendo que, na sua concreta determinação, deve ainda o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam ser consideradas a favor ou contra o agente, as quais se encontram elencadas, de forma não taxativa, nas alíneas a) a f), do nº 2, do citado preceito legal. Como elementos de referência, na determinação da medida da pena, contam-se o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e as respectivas consequências. Cumpre, ainda, referir que nos termos do nº 1, do artigo 40º, do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa – cfr. nº 2, do mesmo artigo. Seguindo os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., páginas 79 a 84, “Primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não obviamente num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança (...) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. (...) Afirmar que a prevenção geral positiva ou de integração constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de partida para a resolução de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz exactamente a convicção de que existe uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade), nomeadamente por exigências (acrescidas) de prevenção especial, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. É verdade porém que esta “medida óptima” de prevenção geral positiva não fornece ao juiz um quantum exacto da pena. Abaixo do ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem que perca a sua função primordial de tutela dos bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico –, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos. (...) Dentro da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de “defesa do ordenamento jurídico”) – devem actuar, em toda a medida possível, os pontos de vista de prevenção especial, sendo sim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A medida de necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vector mais importante daquele pensamento.”. Resta referir o princípio da culpa e o seu significado para o problema das finalidades das penas, seguindo o mesmo ilustre Professor, ob. e loc. supra citados. “Segundo aquele princípio, “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”. A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer considerações ou exigências preventivas (...). A função da culpa (...) é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”. Em suma, sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena – cfr. artigo 71º, do mesmo Código –, reproduzindo, uma vez mais, o Professor Figueiredo Dias, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 110 e 111, “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”. Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, atentando no que, neste conspecto, se consignou na decisão recorrida e supra se deixou transcrito, como circunstâncias (agravantes e atenuantes gerais) a ponderar, no quadro de uma moldura penal especialmente atenuada, urge afirmar que não se descortina ter o Tribunal a quo incorrido em violação das sobreditas regras legais, das regras da experiência e/ou desproporção da quantificação efectuada. Em consequência, atentos os factos julgados provados, o bem jurídico protegido pela incriminação e as circunstâncias indicadas na decisão recorrida, não se vê no conspecto sedimentado no Tribunal a quo qualquer margem para a pretextada alteração figurando-se a pena de multa imposta doseada em medida adequada aos factos apurados e ademais temperada com equilibrado critério, não afrontando os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas - cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa -, antes sendo adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassando a medida da culpa do arguido. Acresce que, também no tocante à reclamada aplicação ao arguido de pena de substituição de admoestação, nos termos do artigo 60º, do Código Penal, a factualidade dada como provada na decisão recorrida, na ausência de uma qualquer assunção do mal praticado e/ou expressão de contrição da conduta havida, não nos consente a afirmação de que a mesma se mostraria adequada às “finalidades da punição”, sejam as de prevenção especial de socialização, sejam maxime as de prevenção geral, nem a afirmação de que o arguido agiu no evento com uma culpa acentuada e consideravelmente diminuída. Porque assim, também esta pretensão recursiva está votada ao naufrágio. Em suma, de tudo o que se deixa exposto, somos do entendimento que a decisão recorrida não merece censura e o recurso interposto pelo arguido é, pois, totalmente improcedente. V Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do mesmo nas custas, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 (quatro) unidades de conta. VI Decisão Nestes termos acordam em: A) - Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido JCT e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos; B) - Condenar o recorrente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta. [Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)] Évora, _______________________________________ (Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares) ____________________________________ (José Francisco Moreira das Neves) |