Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
24789/21.4T8LSB.E1
Relator: ANTÓNIO FERNANDO MARQUES DA SILVA
Descritores: PER
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
CRÉDITO LITIGIOSO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- a aprovação de plano de regularização no âmbito do PER, plano este em que não foi contemplado o crédito litigioso que se discute em acção declarativa, não provoca a extinção da instância nesta acção declarativa, ainda que o plano preveja genericamente a extinção de todas as acções declarativas pendentes.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. A presente acção foi intentada por AA contra Wacouche – Gestão e Participação em Investimentos, Lda., formulando os seguintes pedidos:


A) Deve ser declarado que a declaração de resolução do contrato de empreitada, efectuada pela R., é inválida;


B) Deve a R. ser condenada a indemnizar a A., nos termos do disposto nos arts. 798,º, 801.º, 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil, a quantia de € 508.760,50 (quinhentos e oito mil, setecentos e sessenta mil e cinquenta euros) de capital a título de indemnização emergente de responsabilidade contratual por danos patrimoniais causados, acrescendo juros de mora à taxa legal até integral pagamento;


C) Deve a R. ser condenada, nos termos do disposto nos arts. 496.º e 494.º do Código Civil, a efectuar o pagamento ao A., de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo A., face à conduta culposa da R., em valor a fixar pelo Tribunal e que se requer não inferior a €10.000,00 (dez mil euros), acrescidos de juros de mora à taxa legal até integral pagamento;


D) Deve a R. ser condenada a pagar ao A., os juros de mora sobre as quantias peticionadas, desde a data do seu vencimento, até integral e efectivo pagamento.


Fez assentar a sua posição no incumprimento, em sentido amplo, de contrato de empreitada celebrado entre as partes (sendo o A. o dono da obra), e que a R. pretendeu resolver.


A R. contestou, deduzindo excepções e impugnando a versão do A.. Deduziu ainda reconvenção, na qual formulou o seguinte pedido:


ser o Autor condenado a pagar ao Réu a quantia de € 88.183,94, a titulo de indemnização por danos patrimoniais, e a quantia nunca inferior a € 10.000,00 (dez mil euros) a titulo de indemnização por danos não patrimoniais.


Fundou a pretensão reconvencional na resolução, lícita, por si operada, e nos danos que tal lhe originou.


O processo prosseguiu, com a apresentação de réplica e resposta e vicissitudes processuais especialmente atinentes à junção de documentos e à realização de perícia.


Por ser do conhecimento do tribunal a pendência de processo especial de revitalização (PER) da R., foi determinada a junção de certidão da sentença homologatória do plano de revitalização.


Junta a certidão, foram as partes notificadas para «se pronunciarem sobre eventual inutilidade superveniente da lide (parcial)».


A R. opôs-se à extinção, afirmando que o crédito reclamado pelo A. não foi reconhecido no PER.


O A. também se pronunciou pelo prosseguimento dos autos por o seu crédito não ter sido reconhecido.


Foi depois proferida a seguinte decisão:


O Autor AA intentou em 25.10.2021, a presente acção de processo comum, contra a Ré Wacouche – Gestão e Participação em Investimentos, Lda., ambos mi nos autos, peticionando a condenação desta, no pagamento àquele, de quantia global de € 518.760,50 (quinhentos e dezoito mil, setecentos e sessenta euros e cinquenta cêntimos), a título de indemnização, por danos patrimoniais e danos não patrimoniais, pelo incumprimento contratual atinente a contrato de empreitada entre ambos celebrado em 11.08.2018, resolvido unilateralmente pela Ré, em 26.10.2020, quantia essa acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal e até integral pagamento.


Já a Ré, veio por contestação de 21.02.2022, nos art.ºs 198º e ss., aduzir pedido reconvencional de condenação do Autor no pagamento à Ré de € 98.183,94 (noventa e oito mil, cento e oitenta e três euros e noventa e quatro cêntimos), a título de indemnização, por danos patrimoniais, englobando danos emergentes e lucros cessantes, e ainda, danos não patrimoniais, art.ºs 207º, 213º e 221º, pelo incumprimento contratual imputado ao Autor do contrato de empreitada, supra e pela atuação do Autor, com apresentação de queixa-crime, infundada, contra si.


No decurso dos autos, por despacho de 9 de outubro de 2024, foi dado conhecimento às partes da pendência de Processo Especial de Revitalização da Ré, com junção de certidão da Sentença Homologatória do Plano, com menção do seu trânsito em julgado.


Não foi atempadamente proferido despacho de suspensão da instância, conforme art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE, e durante um período de quatro meses, porque aos autos não foi dado conhecimento, anteriormente, desse PER, e da decisão proferida ao abrigo do disposto no art.º 17º-C, n.º 5 do CIRE, datada de 11.01.2024.


Tendo sido comunicada aos autos a Sentença homologatória do Plano de Revitalização entretanto proferida, com menção do seu trânsito em julgado, com data de 12 de julho de 2024, extraída dos autos que sob o n.º 7/24.2T8STR, foram instaurados em 29 de dezembro de 2023, e correm termos pelo Juízo de Comércio de Santarém, deste Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, J1, foi dela dado conhecimento às partes para se pronunciarem, ante o que dispõe o art.º 17º-F, n.º 11 do CIRE, sobre eventual extinção (parcial) da lide, o que fizeram por requerimentos de 18 e 19 de novembro de 2024.


Ambas as partes pugnaram pelo prosseguimento dos autos.


Dispõe o citado art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE que: “A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade”.


Por sua vez, dispõe o art.º 17º-F, n.º 11 do CIRE que. “A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal”.


Dado que a presente acção, intentada em 25 de outubro de 2021, visava como supra identificado, a cobrança de quantias pecuniárias e a reconvenção aduzida, visava igualmente a cobrança de quantias pecuniárias, independentemente do mérito da causa, a utilidade que para o Autor e para a Reconvinte pudesse advir da mesma, seria de ser ressarcido dos créditos de que se arroga.


Todavia, com a aprovação e homologação do plano de revitalização, a presente acção extinguiu-se, tanto mais que não foi contemplada no PER, que assim não podia prever a sua continuação, e o PER em causa vincula ainda o Autor, enquanto credor, apesar de não ter reclamado o seu crédito, conduzindo à extinção total desta instância, conforme art.º 277º do CPC, o que determino.


E total, porque por lapso se mencionou a extinção parcial da instância, em antecedente despacho, mas o pedido reconvencional é dependência da acção em que é intentado, e logo não pode ser conhecido enquanto meio de compensação de crédito.


Nem se diga, como o Autor pugna, que existe jurisprudência defendendo o prosseguimento dos autos.


O citado aresto, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12.12.2023, no Processo n.º 12831/20.QTSNT.S1, e relatado por Exmo. Juiz Conselheiro Ferreira Lopes, menciona “A homologação do plano de recuperação vincula todos os credores, mesmo o credor que não participou nas negociações se o respectivo crédito deva considerar-se um crédito constituído, isto é, emergente de uma obrigação já existente à data da instauração do PER (art.º 17º-F, n.º 6 do CIRE, na redacção da Lei nº 16/2012”, pois consabidamente o pedido mantém-se, conforme art.ºs 259º e 260º ambos do Código de Processo Civil.


As custas devidas a juízo, ficam a cargo de Autor e Ré, em partes iguais (cfr. art.º 536º, n.º 1 do CPC).


Registe e notifique.


Desta decisão interpôs a R. recurso, formulando as seguintes conclusões:


I. A decisão recorrida padece de erro de julgamento, erro de interpretação e aplicação do direito.


II. A decisão recorrida julgou extintos os presentes autos em razão do plano de revitalização aprovado e homologado no PER da ré, ora recorrente, mas, com o devido respeito, sem razão,


III. Ora, os presentes autos prendem-se com créditos litigiosos, que, naturalmente, a invocada norma, pelo tribunal a quo, que prevê: “A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal” não é de aplicação no sentido de vir a extinguir os presentes autos.


IV. Ao aplicar-se aquele normativo como aplicou o tribunal a quo o resultado para as partes seria o de: a) a ré ter de liquidar uma indemnização ao autor sem possibilidade de defender-se, de provar que a mesma é indevida; b) ao passo que o autor veria o montante do seu pedido reduzido em virtude do pedido reconvencional da ré sem possibilidade também de defender-se.


V. Ora, naturalmente, que o direito não acolhe este entendimento do tribunal a quo, sob pena de subtração total, às partes, em litigio, do seu direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, pelo que a interpretação da norma no sentido em que o tribunal a quo interpretou é inconstitucional por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.


VI. Note-se que a norma ínsita no n.º 11 do artigo 17.º - F do CIRE faz referência a créditos constituídos à data da prolação de despacho de nomeação de Administrador Judicial Provisório e, nos presentes autos, não nos encontramos perante créditos constituídos, ou pelo menos, não de forma plena, uma vez que os mesmos se encontram condicionados à ocorrência de um evento que, in casu, se consubstanciava na prolação de decisão judicial, a qual não veio a ser proferida, em razão da decisão de que ora se recorre. Pelo que o plano de revitalização da ré aprovado e homologado judicialmente será de se aplicar à relação materialmente controvertida objeto dos presentes autos só no caso que a ré vir a ser condenado ao pagamento de uma qualquer quantia ao autor. Antes desse evento, estaríamos perante tão-somente um crédito sob condição.


Não foi apresentada resposta.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar se existe fundamento de extinção da instância.


III. Os factos relevantes mostram-se descritos no relatório elaborado (a partir dos dados documentados do próprio processo) relatório, relevando ainda o seguinte:


Do plano de regularização aprovado consta, quanto aos credores privilegiados e aos credores comuns, que:


O Plano de regularização: Propõe-se o pagamento de 100% do capital em dívida (a consolidação da divida é à data do trânsito em julgado da sentença da homologação do plano de recuperação) em 8 anos, com um período de carência total de seis meses e taxa de juro Euribor a 1 ano, acrescido de spread de 1,50%.

(...)

Pagamento em prestações de valor igual e sucessivas, vencendo-se a primeira após o sexto mês àquele em que se verifica a homologação do Plano de Recuperação.


Possibilidade de amortização antecipada do plano nos moldes infra referidos, isto é na clausula de salvaguarda de regresso de melhor fortuna.


Consta ainda daquele plano que:


Com o trânsito em julgado da sentença de homologação deste plano de recuperação extinguem-se todas as acções (de natureza declarativa e executiva) em curso contra a empresa WACOUCHE - GESTAO E PARTICIPAÇAO EM INVESTIMENTOS, LDA. à excepção das dívidas da Segurança Social e da Fazenda Nacional.


IV.1. A decisão recorrida parte dos seguintes postulados:


i. a utilidade que para o Autor e para a Reconvinte pudesse advir da mesma, seria de ser ressarcido dos créditos de que se arroga.


ii. o PER vincula o A., enquanto credor, apesar de não ter reclamado o seu crédito e a acção não está contemplada no PER, que não previu a sua continuação.


E daí retira a conclusão de que tal determina a extinção da instância, quanto à pretensão do A., conforme o art. 277º do CPC (mas sem indicar qual o preciso fundamento normativo que, de entre o elenco legal, funcionaria no caso).


O problema é que dos postulados, na singeleza com que são expostos, não se segue, manifestamente, o resultado alcançado. E não se vê que este resultado possa ser sustentado com outros fundamentos.


2. A extinção da instância apenas ocorre, em princípio ou como regra [1], nas hipóteses previstas no art. 277º do CPC. Tal extinção constitui um efeito legal que decorre de certo facto, elencado naquele art. 277º, que a fundamenta. Estes fundamentos podem ter uma origem legal (derivando directamente da lei) ou convencional (assentando na vontade de ambas ou de uma das partes, vontade que a lei acolhe).


3. Do ponto de vista legal, inexiste previsão normativa que, fora do quadro daquele art. 277º do CPC, suporte a extinção da instância.


Existia a previsão contida no art. 17º-E n.º1 do CIRE, nas versões pregressas, e da qual resultava, quanto às acções para cobrança de dívidas contra o devedor, que estas se deveriam extinguir logo que fosse aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.


A menção às acções para cobrança de dívida levou a que se discutisse se tal norma visava apenas acções executivas ou também acções declarativas. Esta segunda solução, pese embora notória divisão de opiniões, parecia ter alguma preponderância na jurisprudência. A actual redacção da norma [2] (norma, aliás reproduzida na decisão recorrida) alterou, porém, os termos da questão, eliminando qualquer referência a um efeito extintivo de acções declarativas [3]. Pelo que deixou de existir directo fundamento legal para a solução adoptada.


4. Ainda de um ponto de vista legal, restaria a previsão geral do art. 277º do CPC, relevando em particular a sua al. e).


Esta norma determina a extinção da instância quando sobrevenha a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide.


O regime assenta na constatação da falta de interesse ou utilidade processual na prossecução de uma lide que não teria qualquer significado prático pois, em virtude de modificações dos termos da questão controvertida, uma decisão de mérito não poderia alcançar o resultado prático visado com o pedido (impossibilidade) ou a determinação judicial desse resultado seria redundante por já ter sido alcançado ou satisfeito por outra via (inutilidade).


Pese embora persista ainda alguma flutuação na fixação das fronteiras entre impossibilidade e inutilidade, pode, de forma mais analítica mas sempre em jeito genérico, sustentar-se que a inutilidade ocorre por via da satisfação extrajudicial do interesse visado na acção, e que a impossibilidade surge quando, por motivo atinente ao sujeito (extinção do sujeito, sem sucessão admissível) ou ao objecto do processo (desaparecimento do objecto da pretensão, absolutamente infungível), ou atinente à causa (extinção de um dos interesses por via distinta da sua satisfação, v.g. por confusão), se torna inviável a prossecução do processo (que fica privado de sentido útil).


Quanto à impossibilidade, teria que decorrer do plano, ou do seu regime legal, um efeito que se repercutisse no objecto do processo, nos termos expostos (v.g. por confusão de titularidades), inviabilizando a sua continuação (e já que nenhum efeito sobre os sujeitos ou a causa do processo se consegue antecipar). O que se não vislumbra que ocorra.


No que toca à inutilidade superveniente da lide, esta supõe que o interesse visado pelo A. tenha obtido satisfação no quadro do plano de regularização aprovado. Atendendo ao pedido formulado, a pretensão do A. consistia em ver reconhecido um direito de crédito (indemnizatório) derivado de contrato celebrado com a R.. Tal reconhecimento não encontra qualquer eco no plano de regularização aprovado.


Com efeito:


- o plano de regularização não faz qualquer referência concreta à existência de acções pendentes contra a R., nem por isso, obviamente, toma qualquer atitude concreta e precisa quanto à resolução dos litígios inerentes a acções pendentes (mormente quanto à presente acção) - coisa diferente da previsão genérica infra considerada.


- o A. não figura como credor nas listagens publicitadas no Citius, sinal de que o seu crédito não foi reclamado nem, por isso, atendido em termos gerais (como os demais créditos reclamados) no processo.


- a situação do A. foi completamente omitida naquele plano, que nenhuma referência lhe faz, pelo que também não foi, de forma específica e independentemente daquela reclamação, objecto de qualquer ponderação ou disposição.


Pelo que o processo não lhe respeita em concreto, não regulando, neste sentido estrito, a sua situação.


E o regime do PER não conduz a resultado distinto.


Assim:


- o PER visa o estabelecimento de negociações entre o devedor e os seus credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização (evitando a sua insolvência) - art. 17-A n.º1 do CIRE.


- a reclamação de créditos tem uma estrutura muito simplificada (reclamação, elaboração de lista provisória, reclamação e decisão judicial sumária) e sujeita a prazos muito curtos, destacando-se a ausência de uma verdadeira discussão e instrução contraditória de qualquer litígio relativo a créditos sobre a empresa (art. 17º-D n.º2 a 5 do CIRE). Esta reclamação tem uma finalidade exclusivamente intraprocessual: visa facilitar aos credores a intervenção nas negociações e, em particular, definir os credores que intervêm na votação do plano, concorrendo por essa via para a definição dos quóruns necessários (art. 17º-D n.º1 e 5 a 7 e art. 17º-E do CIRE). O facto de o juiz poder contabilizar créditos impugnados desde que entenda existir uma probabilidade séria de estes serem reconhecidos (art. 17º-F n.º5 do CIRE) também tende a revelar o carácter meramente instrumental e não definitivo da reclamação e sua decisão. Por isso se diz que a decisão final do PER ou a decisão sobre impugnações de créditos reclamados não formam caso julgado sobre os créditos relevantes, constituindo esta decisão sobre as reclamações mera decisão incidental, com efeitos apenas no âmbito do PER. E, quanto à decisão final, esta nem avalia os créditos nem, inerentemente, sobre eles decide, não podendo por isso ter nessa parte qualquer valor de caso julgado [4]. O que significa que o PER não tem uma pretensão determinativa dos créditos oponíveis à empresa.


- simetricamente, o PER também não tem efeitos preclusivos quanto aos créditos não reclamados, não impedindo a sua invocação fora do processo e perante o devedor, nem envolve, como regra, qualquer avaliação sobre eles. Esta asserção, além de inerente à finalidade do PER e ao efeito limitado da reclamação de créditos no seu âmbito, é expressamente colhida da regra segundo a qual a decisão de homologação (do plano de recuperação) vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações (art. 17º-F n.º11 do CIRE), pois, obviamente, os credores que não reclamaram o seu crédito só se podem considerar vinculados porque o seu crédito continua a ser oponível ao devedor.


- acresce que o plano de regularização é, em regra, um plano de cumprimento dos créditos sobre o devedor. Visa-se, nele, consolidar os créditos e regular o seu cumprimento de forma que favoreça a recuperação do devedor. E assim foi no caso, em que as medidas propostas (e aprovadas) visam, quanto aos credores não institucionais, proceder ao pagamento integral dos créditos mas com novo prazo, em prestações com período de carência inicial, e com nova taxa de juros comum.


- nada impede, na verdade, que o plano (que se tende a qualificar como uma transacção sui generis [5]) inclua estipulações sobre créditos litigiosos discutidos em juízo (as quais valeriam como cláusulas da transacção). Mas, além do mais, não é o que ocorre no caso, onde inexistem estipulações específicas e concretas sobre créditos litigiosos (mormente o crédito do A.).


- deste contexto decorre com clareza que a aprovação do plano não envolve, só por si ou por natureza, qualquer efeito relevante sobre a existência ou extensão do crédito litigioso (art. 579º n.º3 do CC) discutido em acção declarativa pendente. O efeito que lhe opõe é apenas aquele que deriva das suas estipulações concretas. No caso, isso significa que o plano se pode repercutir na forma de cumprimento do crédito reclamado pelo A., caso seja acertada a sua existência. Mas este cumprimento é questão subsequente ao seu acertamento judicial e que, por isso, se não repercute sobre a possibilidade ou utilidade da demanda judicial.


Donde inexistir, por este ponto de vista (plano aprovado, à luz do CIRE, face ao crédito do A.) qualquer causa de impossibilidade ou inutilidade da acção, que justifique a extinção da instância. A posição original e essencial do A., e da R., mantém-se, com ou sem o PER e o plano de regularização nele aprovado. O A. continua a reclamar um crédito indemnizatório, que a R. contesta, sendo a acção o meio ajustado à dilucidação do conflito (art. 1º e 2º do CPC).


5. Restaria a possibilidade de se prever convencionalmente a extinção da instância (através do plano e da sua eficácia vinculativa externa, derivada do citado art. 17º-E n.º11 do CIRE).


E, na verdade, o plano de regularização prevê que Com o trânsito em julgado da sentença de homologação deste plano de recuperação extinguem-se todas as acções (de natureza declarativa e executiva) em curso contra a empresa WACOUCHE - GESTAO E PARTICIPAÇAO EM INVESTIMENTOS, LDA. à excepção das dívidas da Segurança Social e da Fazenda Nacional - previsão a que, contudo, a decisão recorrida nenhuma referência faz, pelo que não estaria no seu horizonte de avaliação.


Trata-se de previsão algo críptica, no sentido de que o seu sentido não é fácil de alcançar, no contexto do regime do CIRE e do próprio plano de regularização.


Quanto a este plano de regularização, porquanto se trata de afirmação final que não foi discutida ou explicitada em momento nenhum do plano, ficando por perceber o seu fundamento, origem ou exacto alcance. Aliás, indicia-se claramente que se trata de cláusula inspirada na redacção original do citado art. 17º-E n.º1 do CIRE, mas sem avaliação crítica ou sentido próprio. Tanto assim que a previsão surge apenas no último número do plano (no seu momento final, pois), número este denominado «efeitos da sentença homologatória do plano», e número em que, no essencial, se afirmam ou ressalvam efeitos derivados da lei (derivados do art. 217º n.º1 ou do citado art. 17º-F n.º11 do CIRE, ou do CPPT). O que fragiliza a previsão, indiciando que não se lhe pretendia atribuir um sentido inovador extintivo, mas apenas espelhar efeitos que da lei resultariam por força da aprovação do plano.


De qualquer modo e no que ao regime do CIRE respeita, a esta previsão literal decorrente do plano não se podia atribuir um efeito extintivo da presente acção. Porquanto:


- o CIRE, como já se viu, deixou de contemplar qualquer efeito extintivo automático de acções pendentes. Manteve essa previsão extintiva no PEAP (art. 222º-E n.º1 do CIRE) mas apenas, e em termos claros, para acções executivas [6], excluindo assim dessa extinção as acções declarativas [7]. O que daqui se retira é, ao menos, a ideia de que o CIRE reconheceu a falta de racionalidade de tal extinção automática e indiscriminada das acções declarativas.


- o regime do CIRE dá aos credores (e ao devedor) poderes para discutir os créditos, mas não para extinguir acções pendentes. Esta extinção sujeita-se a um regime legal específico, mormente de extinção da instância (citado art. 277º do CPC), que os credores (e o devedor), não podem por via do plano alterar. A referida natureza convencional (transacção) do plano autoriza estipulações processuais, mas estas terão que adequar-se às estipulações do CPC (v.g. concreta transacção ou desistência da instância) ou às condições gerais postas pelo direito (sendo o direito de acção um direito fundamental do credor impedido de agir em auto-defesa). Já não podem usar o plano como causa ad hoc atípica de extinção de indiscriminadas acções.


- mesmo no regime pregresso, o que o plano podia fazer era, perante o efeito extintivo previsto na lei, afastar este efeito, prevendo a continuação da acção. O que significa que, nesse regime, o poder de o plano intervir na relação processual tinha origem legal (não assentando apenas na vontade dos intervenientes), e, sobretudo, funcionava apenas num sentido positivo, tendente à manutenção da relação processual. Já não tinha o plano um poder legal extintivo de relação processuais. No fundo, aquela possibilidade de intervenção (mantendo a acção) significava, para as acções declarativas, que o crédito litigioso discutido na acção pendente continuava a ser controvertido, que não era reconhecido no plano (pela empresa devedora). Subjacente à extinção das demais acções estava, diversamente, a ideia de que o plano retirava sentido útil à acção. Assim, a previsão devia valer apenas para as acções em que se discutissem créditos que foram contemplados no plano. Por isso que mesmo perante aquela previsão extintiva das acções pendentes acabou por prevalecer o entendimento que recusava tal efeito extintivo nos casos em que o plano não envolvia o reconhecimento do crédito discutido em juízo, e que assim continuava controvertido ou litigioso [8]. Em último termo, a eliminação da regra legal deixou claro que a aprovação do plano não provoca um efeito extintivo generalizado das acções declarativas; e que este efeito depende dos princípios ou regras gerais, mormente dos efeitos do plano sobre cada crédito litigioso que contempla. Simetricamente, não contemplando o plano o crédito, mantém-se o litígio e a acção, nada justificando a sua extinção: o plano não pode dispor da acção quando não regula o crédito nela discutido.


- o que se deixou exposto sobre o sentido do PER e a sua regulação legal também revela que ao plano, ou aos credores (que votam aquele), não atribui o regime do PER poderes para excluir de forma definitiva um crédito litigioso. Podem impugná-lo ou recusar o seu reconhecimento, mas isso não equivale a uma decisão definitiva sobre a existência do crédito, não privando o credor do seu direito de acção. Por isso que também não podem proibir, ou extinguir, acções judiciais que o discutam.


- atribuir-se valor operativo a uma previsão como a descrita no caso, prevendo uma extinção genérica e indiscriminada de acções declarativas [9], sem suporte racional no próprio plano (sem o plano estabelecer efeitos que justificassem aquelas extinções), violaria o princípio da igualdade (art. 194º, ex vi do art. 17º-F n.º7, do CIRE) por a extinção da acção, atinente apenas a alguns credores, ser arbitrária, não se fundando em razões objectivas.


- acrescem as aporias que a previsão causa: se não é legalmente proibida a instauração de acções declarativas (dada a nova redacção do art. 17º-E n.º1 do CIRE, que seguramente as exclui de tal proibição), não se vê como se poderia admitir que o plano, sem razões, determinasse a sua extinção indiscriminada; e se o plano não tem efeito preclusivo quanto aos créditos não reclamados (ou não reconhecidos), como se indicou já, não se compreende que pudesse o plano impedir a continuação das acções onde tais créditos se discutissem.


- adita-se ainda que a razão de ser do regime, quanto à proibição de instauração de acções executivas e à suspensão das acções pendentes, se prende com a salvaguarda do património do devedor (na pendência do PER), essencial para a sua recuperação económica. Efeito a que a extinção das acções declarativas nada acrescenta, pelo que a previsão do plano também não encontra suporte, ainda que indirecto, na norma legal.


- a aplicação da previsão do plano em causa, mesmo abstraindo dos obstáculos expostos, levaria a resultados incongruentes e mesmo absurdos: extingue-se a acção sem se regular o crédito litigioso, significando que tal apenas obrigaria, sem ganhos para ninguém e com prejuízos para todos (incluindo partes na acção, tribunal, e mesmo credores pois os gastos com a repetição da acção não beneficiam a capacidade de pagar da empresa), a repetir a acção (e porquanto a extinção da acção não se confunde com a extinção do direito, nem esta extinção poderia daquela derivar, nem poderia, sequer, derivar do plano [10]).


Assim, a eliminação da regra extintiva legal e as razões expostas confortam a ideia de que a sorte das acções (no caso interessam as acções declarativas) é dependência do plano e dos seus efeitos: é aquilo que do plano resulta quanto ao crédito litigioso que pode condicionar a continuação da acção. E é nesse sentido que a previsão em causa pode valer. Sendo que como o crédito do A. não foi reconhecido no plano (ou pela R.), nenhum fundamento existe, mesmo a partir daquela previsão, para extinguir a instância.


Aliás, não deixa de se notar que é o próprio devedor que, mesmo face ao plano aprovado, sustenta a subsistência desta acção.


6. Como fundamento da exclusão do relevo do art. 17º-F n.º11 do CIRE, a R. sustenta que os créditos não estariam constituídos, ou não plenamente (estariam sob condição), uma vez que dependem de decisão judicial. Pretenderia assim, aparentemente, excluir a presente acção do âmbito do PER e do plano de regularização aprovado. O argumento não colhe. O crédito nasce com os seus factos constitutivos (máxime ilícito contratual e dano) e não com o seu acertamento judicial. A decisão judicial não é constitutiva. Como assinalou o Ac. do STJ proc. 12831/20.QT8SNT.S1 (de 12.12.2023), um crédito litigioso não é um crédito constituendo. E, adiante-se, também não é um crédito sob condição.


7. Inexiste, pois, fundamento para pôr termo à acção.


8. Quanto à instância reconvencional, foi extinta por se considerar que «o pedido reconvencional é dependência da acção em que é intentado, e logo não pode ser conhecido enquanto meio de compensação de crédito.».


A afirmação suscita alguma perplexidade. Desde logo porque na reconvenção se não deduz, nem aflora em momento algum, alguma pretensão compensatória (que o tribunal também não conhece oficiosamente), o que se compreende pois a R. entende que o direito reclamado pelo A. não existe (e também não deduz qualquer compensação a título subsidiário). A constituir a compensação o objecto da reconvenção, a asserção poderia ser correcta (pois a compensação dependeria, na verdade, da afirmação do crédito do A. e, eliminando-se a discussão deste crédito, ficaria o funcionamento da compensação prejudicada). Mas, como a reconvenção não visa essa compensação mas apenas o reconhecimento de um crédito próprio sobre o A., inexistia qualquer relação de dependência que justificasse a extinção da instância reconvencional. E, sem essa relação de dependência (ou prejudicialidade) e como refere T. de Sousa, a extinção da instância reconvencional só pode ocorrer através de um dos modos previstos no art. 277º do CP, que se não vislumbra ocorrerem (sendo que a reconvenção não é, em si, dependente por natureza da acção: a sua autonomia está, aliás, consagrada em regras como as que decorrem dos art. 47º n.º6 ou 286º n.º2 do CPC). Não existia assim, logo à partida, fundamento para extinguir a instância reconvencional.


Como, porém, a acção também deve prosseguir, a solução fica definitivamente excluída.


9. Como a R. tem interesse na discussão conjunta da situação, definindo a sua situação no confronto do crédito e contra-crédito, evitando novas reclamações e perturbações, admite-se a sua legitimidade recursiva ampla.


10. O art. 527º n.º1 do CPC contempla duas regras de responsabilização tributária. Uma primeira, principal, responsabiliza quem deu causa à acção (ou recurso). Não é aplicável no caso já que o recurso não radica na posição de alguma das partes, não sendo aliás nenhuma negativamente afectada na sua esfera jurídica. Uma segunda, parte da inexistência de vencimento para onerar quem tirou proveito da acção (ou recurso). No caso, existe vencimento da recorrente, o que também exclui esta regra (a qual, aliás, tem em vista outro tipo de situações, como a divisão de coisa comum). Deve, assim, considerar-se que se trata de situação em que legalmente fica prejudicada a condenação em custas, por não corresponder a situação em que a condenação é devida. Embora, por inexistir taxa de justiça adicional a pagar nem encargos, tal tem apenas efeitos no âmbito das custas de parte, de que a taxa paga pelo recorrente fica excluída, e também, no caso, quanto ao pagamento do remanescente da taxa de justiça, igualmente prejudicado (art. 14º n.º9 do RCP, extensivamente considerado).


V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida.


Sem custas.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).


Relator:


António Fernando Marques da Silva


Adjuntos:


Sónia Kietzmann Lopes


José António Moita

1. Não cabe nesta sede discutir o carácter absoluto, ou não, da afirmação. Seguro é que a lei pode criar causas ad hoc de extinção da instância.↩︎

2. Versão dada pela Lei 9/2022, de 11.01, aplicável ao PER em causa atenta a data da instauração do processo (29.12.2023, segundo a decisão recorrida).↩︎

3. E tornou também muito duvidoso que a própria suspensão da instância seja aplicável às acções declarativas, pese embora existam já decisões nesse sentido [o sentido da alteração legal, o disposto nos art. 17º n.º2 al. c) e 222º-E n.º1 do CIRE, e a própria epígrafe actual do art. 17º-E (suspensão das medidas de execução) parecem depor contra a suspensão das acções declarativas].↩︎

4. V. Ac. do STJ proc. 3266/17.3T8BRG.E1.S1, de 27.11.2019, ou Maria do Rosário Epifânio O Processo Especial de Revitalização, Almedina 2015, pág. 33.↩︎

5. V., por todos (com amplas indicações de jurisprudência e doutrina), R. Pinto, Pareceres e consultas, AAFDL Editora 2024, pág. 751 e ss..↩︎

6. Discute-se se esta regra valeria para o PER (mormente por força do art. 17º-A n.º3 do CIRE), mas em solução sempre limitada às acções executivas.↩︎

7. E mesmo nas acções executivas deveria restringir-se a extinção às execuções por créditos afectados pelo plano (V. Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, Almedina 20215, pág. 591).↩︎

8. V.g. Ac. do STJ de 18.09.2018, proc. 190/13.2TBVNC.G1.S1, do TRP de 03.03.2016, proc. 596/11.1TVPRT.P1 ou do TRG proc. 2807/22.9T8VCT.G1 de 22.06.2023; v. também assim Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina 2018, pág. 392, ou Artur Dionísio Oliveira, Os Efeitos Processuais do PER e os Créditos Litigiosos, III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina 2015, pág. 223.↩︎

9. Previsão tão ampla que abrangeria não apenas acções relativas a créditos como acções relativas a bens, caso em que as objecções substantivas à solução seriam ainda mais intensas.↩︎

10. Pode recusar-se, no PER, o reconhecimento do crédito, mas tal não significa que este seja eliminado, definitivamente recusado ou extinto.↩︎