Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1847/22.2T8STR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
ABUSO DE DIREITO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: SOCIAL
Sumário: Sumário elaborado pela relatora:
I. O ónus de impugnação previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil tem de ser cumprido nas conclusões do recurso.

II. Já os ónus previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do referido artigo 640.º podem ser cumpridos nas alegações do recurso.

III. Não configura uma situação de abuso de direito, designadamente na modalidade “venire contra factum próprium”, a recusa por parte da seguradora, em continuar a prestar tratamentos, assistência e em assumir outras responsabilidades, depois de durante alguns meses os ter prestado na sequência duma participação de alegado acidente de trabalho, por ter chegado à conclusão que não ficou provada a verificação do acidente participado, desde que a atuação da seguradora não comporte riscos para a saúde do assistido.

IV. O conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: um espacial – o local de trabalho – outro temporal - o tempo de trabalho – e, por último, um causal – o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença.

V. De acordo com a regra geral prevista no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, cabe ao trabalhador, ou ao beneficiário legal, a prova dos elementos que integram o conceito de acidente de trabalho.

Decisão Texto Integral: P. 1847/22.2T8STR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1


I. Relatório


Na presente ação emergente de acidente de trabalho em que é sinistrado AA e entidade responsável a seguradora Crédito Agrícola Seguros -Companhia de Seguros Ramos Reais, S.A., foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo:


«Pelo exposto, em conformidade com as disposições legais e fundamentos citados, julga-se improcedente a ação intentada por AA e, por conseguinte, absolve-se CRÉDITO AGRÍCOLA SEGUROS – COMPANHIA DE SEGUROS DE RAMOS REAIS, S.A., dos pedidos contra si formulados.


Custas pelo Autor – art. 527.º do CPC.


Registe e notifique.»


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O sinistrado recorreu, concluindo:


«1. A Recorrida, quer através da Participação de Acidente de Trabalho, de 23/11/2021, quer pela voz da testemunha BB, sua representante, em telefonema que diz ter feito para os seus Serviços Centrais, em Lisboa, na altura da participação, teve conhecimento dos factos articulados pelo Recorrente nos artigos 13º e 14º da p.i., pelo que, face à sua não impugnação e não podendo alegar, como o fez, que desconhecia esses factos nem obrigação tinha de os conhecer, deveriam os mesmos ter sido dado como provados.


2. É que o Recorrente, aquando da Participação do Acidente de Trabalho, relatou à representante da Recorrida, BB, o que sucedeu nesse dia, tendo ela, por seu próprio punho, preenchido o formulário da Participação, onde constam, na sua pág. 3 os factos relativos às circunstâncias do acidente, suas circunstâncias e consequências.


3. Sendo regra basilar do ónus de impugnação a de que o réu, ao contestar, “deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” (nº 1 do art. 574º”), significa que não vale como tal, a posição assumida pela Recorrida quando, no artº 2º da sua contestação, muito comodamente, se limitou a declarar que impugnava os factos vertidos nos artºs 13º e 14º da p.i., por desconhecer se os mesmos correspondiam à verdade, pois desconhecia-os os factos neles expressos, e não tinha obrigação de saber! (por não constituírem factos pessoais seus, ou de que deva ter conhecimento)”.


4. Ora, a Recorrida, optou, na sua contestação, por apenas dizer não, permitindo-se dizer desconhecer e não ter obrigação de saber sobre factos que a sua própria representante, BB, pelo seu punho fez constar da Participação de Acidente de Trabalho e que o Autor, enquanto homem sério e humilde, aceitou subscrever.


5. Perante esta opção da Recorrida, que nunca podia passar despercebido à Mma. Juíza, tinham, ao abrigo do disposto no artigo 574º, n.º 2, do Código de Processo Civil, de serem admitidos por acordo, devendo passar a constar do elenco dos factos provados o que o Autor alegou nos artigos 13º e 14º da sua p.i.


6. Tendo optado a Mma. Juíza fazer o caminho no sentido de absolver a Ré, deixou claro que o fez olvidando de forma clara a posição da Ré quanto aos factos que foram alegados pelo Autor na sua p.i.


7. Factos relevantes que ocorreram em circunstâncias que a sentença valorizou negativamente, exarando-se que “nenhuma prova feita quanto ao modo como o A. Se terá lesionado”, reforçado pelo lapidar “sendo que qualquer das testemunhas inquiridas na audiência final presenciou o alegado evento descrito pelo A.”.


8. Independentemente disso, a testemunha CC, que, segundo a sentença, e bem, depôs de “forma séria e isenta”, referindo-se à deslocação do Apelante para reparar um seu trator, deixou bem claro do seu depoimento que o Recorrente “foi lá mudar uma embraiagem no trator. Foi o serviço que ele foi lá fazer.”, pois “o trator estava a ganhar muitas mudanças” , “o trator não estava a embraiar bem e ele foi lá reparar” e, finalmente, referindo-se ao peso da embraiagem, que “Ainda pesa algum peso, vinte, trinta quilos”.


9. Mais acrescentou a testemunha CC que o Recorrente lhe disse “que se tinha aleijado lá a desmanchar o trator” e que “Sim…que se tinha aleijado e que quando estava a desmanchar aquilo”.


10. Ora, se a testemunha depôs “de forma séria e isenta”, porque motivo a Mma. Juíza aceitou apenas como verdade uma parte do seu depoimento, a parte em que disse que o Autor foi reparar o trator, não acolhendo o mesmo relativamente à embraiagem e ao peso saquela?


11. Se a Mma. Juíza que considerou ter a testemunha CC deposto “de forma séria e isenta”, que razões houve para não considerar como verdadeiro o facto do Recorrente ter ido reparar a embraiagem do trator, quando essa declaração foi feita, naturalmente no decorrer da sua inquirição? E ignorar que ele disse que a embraiagem era uma peça pesada, com cerca de 20/30 quilos?


Teria sido esquecimento? Distração?


12. A Mma. Juíza não justificou o motivo de o ter feito, sendo que o depoimento foi todo ele sereno, credível e coerente teria de ser considerado na sua totalidade, pelo que, também por isso, devem ser dados como provados.


13. Por sua vez, a testemunha DD, mulher do Recorrente, que, depôs, segundo a sentença, “de jeito espontâneo e simples ”e“ de modo seguro e lógico”, declarou, nesse dia em que foi reparar o trator , que o Recorrente, ao chegar a casa contou-lhe das dores no ombro, “que se tinha magoado ao pegar numa das peças e que lhe doía um braço”, “que pegou num…uma embraiagem, se não estou em erro, de um trator e que aquele era muito pesado e ele estava sozinho e deve ter dado um mau jeito”, que “Naquele dia ele estava muito queixoso”.


14. Também este depoimento a Mma Juíza desconsiderou, sem, contudo, justificar o motivo de tal, contrariando o que disse na sentença quando se referiu ao depoimento da testemunha como sendo “de jeito espontâneo e simples ”e“ de modo seguro e lógico”.


15. A Mma. Juíza diz na sentença, “não se ter evidenciado como é que o Autor se terá lesionado, baseando-se, para isso, no facto de “ “Ninguém presenciou qualquer evento do qual possam ter resultado as lesões identificadas pela Junta Médica” e nos relatórios do RX de 29/10/2021, dando como provado o mesmo (Facto 9), o relatório da ecografia de 29/10/2021, dando, também, como provado (Facto 10).


Contudo, a Mma. Juíza ignorou, ostensivamente, o principal meio de diagnóstico dos autos e na sequência do qual os clínicos decidiram operar o Recorrente: a ressonância magnética realizada, em 29/11/2021, no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa que, necessariamente, deveria constar dos Factos Provados.


16. Ora, nesse relatório que a sentença ignora, diz-se: “No estudo por nós efetuado, verificamos rotura completa que se admite recente do tendão supra-espinhoso com retração do coto tendinoso…”. Dúvidas não há de que houve um evento traumático que causou a rotura do tendão, contrariando a tese da Recorrida e que a sentença acolhe de que nada aconteceu de novo e o que os exames confirmavam, simplesmente, que já havia antes “alterações degenerativas do tendão da longa porção do bicípite braquial direito e artrose acrómio-clavicular e rotura dos tendões do supraespinhoso e do infraespinhoso direito”. Ora, sendo verdade que já existiam essas alterações degenerativas que correspondem ao que se chama tendinite, tal não conflitua ou é incompatível com as lesões recentes que corresponderam à “lesão completa” do tendão. Doutro modo, a ser como a Recorrida diz e que o Tribunal acolheu, o Recorrente não poderia trabalhar.


17. Por outro lado, deveria a sentença ter valorado de modo distinto, a Perícia realizada no Gabinete Médico Legal, cujas conclusões nem sequer refere mas importa aqui exarar: “Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano”.


Isso também a sentença não transcreve, desvalorizando-a.


18. Tendo optado a Mma. Juíza fazer o caminho no sentido de absolver a Ré, deixou claro que o fez olvidando de forma clara a posição da Ré quanto aos factos que foram alegados pelo Autor na sua p.i., factos relevantes que ocorreram em circunstâncias que a sentença valorizou negativamente, exarando-se que “nenhuma prova feita quanto ao modo como o A. Se terá lesionado”, reforçado pelo lapidar “sendo que qualquer das testemunhas inquiridas na audiência final presenciou o alegado evento descrito pelo A.”, como se, para um facto ter acontecido, será necessário alguém o ter presenciado para, depois, contar.


19. Não se entende esta opção do julgador. Ou, será que faz parte da livre apreciação da prova que o Autor como homem sério, simples e humilde não entendeu?


20. O princípio da livre apreciação da prova, consignado no nº 5 do artº 607 do CPC, não significa arbitrariedade do juiz na apreciação das provas, impondo que essa apreciação se estribe em critérios da experiência comum, da lógica do “bónus pater famílias” , bem como nos conhecimentos técnicos e científicos.


21. Daí que, também por isso, devem ser dados como provados os artºs 13º e 14º da p.i..


22. Quanto à data do acidente de trabalho, importa começar por dizer que o Recorrente, desde o primeiro momento, ou seja, desde que se deslocou à agência bancária da Caixa Agrícola, em Local 1, para fazer a participação do sinistro, que declarou não se lembrar da data exata do mesmo, situando-o na primeira quinzena do mês de Setembro, aliás, como foi dado com provado na sentença, embora o tenha precisado que mais para o dia 20 desse mês.


23. Esse espaço temporal foi o que declarou à testemunha BB, representante da Recorrida que, de imediato referiu ao A. Ser um tempo bem posterior ao sinistro, colocando dúvidas sobre a aceitação da participação por parte da Recorrida, de tal modo que, por sua iniciativa, telefonou para os Serviços Centrais da mesma, em Lisboa, relatando a situação. Daí, segundo ela declarou em sede de Audiência de julgamento, disseram-lhe para o Recorrente fazer uma carta a pedir desculpa pela demora na participação, devendo pedir que aceitassem a mesma.


24. Foi a própria testemunha que elaborou a carta no seu computador, onde se diz, a terminar, “agradeço a aceitação da abertura de processo ocorrido a 01/10/2021”, querendo, decerto, dizer que o acidente ocorrera a 1. Na Participação do Acidente de Trabalho, consta, também, como data do mesmo, o dia 1 de Outubro de 2021.


25. Ora, sabendo nós que a testemunha CC disse que o Recorrente se deslocara às suas instalações, para o arranjo da embraiagem do trator em “setembro, para aí, finais de setembro”, “Sei que foi para o final de Setembro”; tendo presente que “No dia 27/09/2021, o Autor contactou com a sua médica de família, queixando-se de dores nos ombros, mais no direito, tendo-lhe prescrita a realização de ecografia de partes moles e RX aos ombros (Facto 8 dos Factos Provados), porque haveria ele de dizer à representante da Recorrida, aquando da participação do acidente, que este tivera lugar a 1 de Outubro de 2021?


26. Nenhum sentido fazia essa alteração de data, por parte do Recorrente, pois uma certeza ele tinha: o acidente fora em data anterior a 27/09/2021, data em que havia contactado a sua médica.


27. No depoimento da testemunha representante da Recorrida, BB, esta veio dizer que “Ele foi fazer uma participação, já bastante posterior à data do acidente. Tanto que teve alguma dificuldade em precisar a data do mesmo”, confirmando ter sido ela a escrever a carta que acompanhou a Participação, explicando o porquê da carta declarando que “eu acho que isto foi a própria companhia que pediu uma justificação do porquê do atraso na abertura”, porquanto “Nós falámos com a companhia e que havia aqui alguma necessidade de esclarecer o porquê da demora na participação.”


28. A audição do depoimento da testemunha, pelo seu conteúdo, pelo modo como se expressou, pelas duvidas que ela própria assumiu, só pode significar que, perante a notícia do acidente, já ocorrido havia mais de dois mês, face aos documentos médicos que lhe foram presentes pelo Recorrente, os relatórios dos exames prescritos pela médica deste, com data de 29/10/2021, ela receou aceitar a participação e, por isso, quis aconselhar-se com os Serviços Centrais que lhe disseram para escrever aquela carta, colocando a data de 1/10/2021 como sendo a do sinistro. E o Recorrente, na sua boa fé assinou.


29. Aliás, a testemunha, ao sugerir essa data que ela própria escreveu por seu punho na participação, como, também, escreveu no seu computador, sabia bem que essa data não era verdadeira pois sabia da consulta e dos exames efetuados. Sabia que a data de 01/10/2021 era mentira!


30. Assim se explica a existência da carta junta com a participação, pelo que deveria ter sido dado como provado que a data de 01/10/2021 aposta na participação e na carta que a acompanha, foi sugerida e escrita pela testemunha BB, representante da Recorrida, retirando-se a alínea b) os Factos não provados.


31. Importa, ainda, salientar que o Recorrente deslocou-se ao balcão da Caixa Agrícola para fazer a participação, acompanhado de sua esposa, DD, tendo estado sempre presente junto do seu marido, e depôs que “Não havia datas certas, não se lembravam, E a senhora disse que, pelas datas que ele mais ou menos lhe estava a dar, ela disse, só se nós pusermos aqui dia 1. E foi o que ela fez.”, sendo que quando fala em “senhora” refere-se à testemunha BB.


32. Aliás, realça-se, ainda, que a instâncias da Ilustre Advogada da Recorrida, “a testemunha DD, “em jeito espontâneo e simples”, assim a qualifica a Mma. Juíza na sentença, à pergunta “a questão de se fixar o dia 1 de Outubro foi por sugestão do seu marido ou da funcionária?”, respondeu, de imediato, “Foi da funcionária, doutora.” E quando a Ilustre Advogada continuou “E os senhores, sabendo que provavelmente não teria sido no dia 1, concordaram em assinar um papel com o dia 1 de Outubro. Vocês acharam-se confortáveis com isso?”, a testemunha respondeu “sim”, seguindo-se, ainda, outra pergunta em jeito de comentário ou censura: “Vocês acharam-se confortáveis com isso?”, que mereceu a resposta da testemunha DD: “Nem confortável, nem desconfortável, porque a senhora disse: alguma data temos que pôr aqui. E então, entre as datas que mais ou menos o meu marido supôs que tivesse sido, e que tivesse acontecido, a senhora decidiu um, e a gente disse está bem.”. Nessa altura a Mma. Juíza perguntou se concordaram com isso, obtendo a resposta: “Claro. A senhora escreveu., o que suscitou nova pergunta da Ilustre Advogada: Tem a certeza disso? Logo veio a resposta da testemunha “Absoluta.


33. Em reforço da posição assumida pelo Recorrente quanto à data de 01/11/2021 aposta na participação e carta que a acompanhou, é revelador o depoimento prestado pela testemunha Ana Rita Vieira, entre o minuto 14:18 e 16:03 que a instâncias da Ilustre Advogada da Recorrida, e respondendo à pergunta “E a data escolhida foi, de alguma forma, alguma sugestão sua?”, disse:” Eu deduzo que o senhor, junto da lembrança que tinha das dores ou dos médicos, tenha encontrado a data. Não terá sido influenciada por nós, até porque não temos qualquer vantagem em alterarmos as datas dos processos.” A Ilustre Advogada da Recorrida continuou: “Pronto, mas só para esclarecer, porque tinha essa memória de que que o senhor não sabia precisar a data”, respondendo a testemunha: “Sim, sim. Mas não me recordo como é que chegamos a esse dado, como ele chegou a essa data.” A Sra. Advogada insistiu: “Tem ideia que não foi por sugestão sua…é isso?” “Sim, sim eu penso que não” respondeu a testemunha, o que mereceu que a Ilustre Advogada reagisse: “Pensa que não? Então como é que é isso?” . Nesta altura a testemunha balbuciou: ”Nós não…nós não…” e sem deixar terminar a frase, a Ilustre Advogada, manifestamente agastada e irritada com a testemunha, reagiu:” Nós, não!! Mas o senhor disse-lhe…sei la…foi para aí um mês…teria sido no mês de outubro…”.


O modo como a testemunha respondeu, as hesitações, a utilização do plural…nós…chegamos,,.a linguagem nada assertiva, reforçam a certeza de que a iniciativa de colocar a data de 01/10/2021 pertenceu à representante da Recorrida, a testemunha BB.


34. Infelizmente, a Mma. Juíza assim não o entendeu mas o Recorrente entende que tal matéria deve ser levada aos factos provados.


35. Tomando em atenção os seguintes factos:


a) Em 23/11/2021, o Recorrente fez a participação do acidente, fazendo acompanhar do respetivo formulário da mesma com a carta datada desse dia 23, em que ele pedia desculpa pela demora na participação e solicitava a aceitação da participação, tendo entregue, nesse momento, os dois relatórios, datados de 29/10/2021, referentes aos exames prescritos pela sua médica de família, documentos esses que comprovavam que o acidente de trabalho tinha ocorrido antes do dia 1 de Outubro.


b) Nesse dia 23/09/2023, a Recorrida passou a ter conhecimento do sinistro, mandando-o a médico da sua confiança no dia seguinte, prestando-lhe assistência médica.


c) Por iniciativa dos médicos da Recorrida, o Recorrente foi sujeito a uma operação cirúrgica, no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, em Lisboa. No dia 6 de Janeiro de 2022.


d) Em 28/01/2022, ou seja, 67 (sessenta e sete) dias após a participação do acidente, o A. Recebeu em sua residência um avaliador, a mando da Recorrida, que recolheu o relato do acidente de trabalho.


e) Entre a data da participação do acidente e esse dia 28 de janeiro de 2022, nunca a Recorrida contactou o Recorrente, fosse por que meio fosse, mandou-o operar na Hospital da Cruz Vermelha sem questionar o Recorrente se estaria de acordo, nunca lhe colocou a questão da eventualidade dele ter de suportar quaisquer custos.


f) O Recorrido continuou a receber os tratamentos médicos estipulados pelos clínicos contratados pela Recorrida até que, em 14 de Março de 2022, ou seja, 111 (cento e onze) dias após a participação do acidente, por carta, a seguradora veio dizer ao Recorrente que a parir dessa data fazia cessar a assistência que lhe vinha prestando, por não reconhecer o acidente de trabalho.


A atuação da Recorrida, assumindo a assistência ao Recorrente, inclusive ao mandar operar no Hospital da Cruz Vermelha, para passados 111 (cento e onze) dias vir dizer que, afinal, não considerava ter existido o acidente de trabalho, é, manifestamente, um abuso de direito, revelando má-fé da mesma, o que deveria ter sido considerado pelo Tribunal na sua decisão.


36. E esse abuso de direito e má-fé da Recorrida mais claramente se manifestam quando esta justifica a sua decisão, nesta altura, após ter realizado as suas averiguações. O que, lamentavelmente, foi acolhido pela Mma. Juíza quando , na sentença, vem ao encontro do alegado pela Recorrido, ao dizer que o facto de manter a assistência ao Recorrente decorria do imperativo legal imposto pelos artigos 15º e 24º do DL nº 143/99, de 30-04, alegando que “não configurando uma situação de abuso de direito, designadamente na modalidade dum venire contra factum proprium , a recusa por parte da seguradora em continuar a prestar tratamentos, assistência e em assumir outras responsabilidade, depois de durante alguns meses os ter prestado na sequência duma participação de alegado acidente de trabalho feita pelo lesado se que após averiguações da seguradora esta considerou que o circunstancionalismo factual em que ocorreu o evento, não era apto a caracterizar o acidente como de trabalho”


37. Não disse, no entanto, a Mma. Juíza, tal como a Recorrida, quais as diligências por esta realizadas que justifiquem o lapso de 11 dias entre a participação do acidente e a sua decisão, pois, na verdade, nos autos existe, tão somente uma única “averiguação”, se é que tal qualificação se pode dar à deslocação do perito avaliador, no dia 28 de Janeiro de 2022, a casa do Recorrente, para ouvir, mais uma vez, o que ele relatara aquando da participação!


38. Não referiu a Recorrida, porque nada fez, qualquer diligência ou averiguação, durante o período que mediou entre 23/11/2023 e 28/01/2022, tendo aceite uma participação em que ficara exarado ter o acidente ocorrido no dia 1/10/2023, o que sabia não corresponder à verdade para tanto tempo depois negar a existência do acidente de trabalho! Só por manifesto abuso de direito e clara má-fé se pode entender a atuação da Recorrida.


39. Incompreensivelmente a sentença acolheu, sem hesitar, o alegado pela Recorrida, quando decisão diversa era expectável, atendendo à não existência de qualquer diligência, o que foi confirmado pela testemunha EE, gestora de risco da Recorrida que, no seu depoimento, justificou a ida do perito avaliador, dizendo que “numa fase inicial não nos apercebemos da documentação que vinha anexa à participação em que já havia uma documentação anterior a dia 1 de outubro e quando, analisado o processo já passado algum tempo, verificando-se esta situação, procedeu-se então à averiguação para se apurar efetivamente, tendo acontecido um acidente de trabalho ou não, e em que data é que o mesmo teria ocorrido ou não “. DE seguida, continuou, depondo:” Existe uma fase de instrução de processos. Existe esta fase de instrução de processos, neste caso em concreto, foi feita mais tarde devido ao facto de, na altura, logo quando fizeram a participação, não nos termos apercebido da existência daquele documento.”. Ora, segundo a testemunha, “só em janeiro é que nos apercebemos da documentação”, ou seja mais de dois meses depois da participação é que se deram conta de que os primeiros relatórios relativos ao RX e ecografia prescritos pela médica de família do Recorrente, já estavam juntos com essa mesma participação!


40. A sentença passa por cima de tão relevantíssimo depoimento, em que a própria testemunha reconhece grave negligência ao dizer “No caso em concreto, o que aconteceu desta forma é de lamentarmos”, equivalente à confissão de que a Recorrida foi manifestamente negligente, abusou da boa-fé do Recorrente, vindo, depois, por carta de 5 de Maio de 2022, a exigir ao Recorrente o reembolso de toas as despesas realizadas com ele, incluindo o montante despendido na intervenção cirúrgica!


E a sentença tudo isso aceita, sem hesitar, sem uma palavra crítica de censura!


41. Sabendo a Mma. Juíza todos os factos constantes dos autos, sabendo da inércia da Recorrida que nada fez, nada averiguou durante meses, deveria concluir que, com o seu comportamento, prolongando, por meses, uma resposta ao A. Quanto ao pedido de aceitação da participação, aceitou, tacitamente, com o seu silêncio, a participação, considerando irrelevante o desconhecimento da data concreta do mesmo. Era isso que se esperava que fosse dito na sentença.


42. A sentença acolheu, acriticamente, repetimos, a posição da Recorrida, ao vir dizer que nenhum evento traumático aconteceu, pois os danos registados nos exames a que foi submetido, já existiam em data anterior ao ocorrido, ou seja: para a Recorrida, como para a Mma. Juíza, o facto do Recorrente, em data anterior ao sinistro já existirem “alterações degenerativas do tendão da longa porção do bicípite braquial direito e artrose acrómio-clavicular e rotura dos tendões do supraespinhoso e do infraespinhoso direito”.


Ora, admitindo que o Recorrente já apresentava alterações degenerativas, a chamada tendinite, nada legitimava a Recorrida e o Tribunal virem negar que a rotura dos tendões supraespinhoso e infraespinhoso já existissem, pois a ser assim, o Recorrente não poderia trabalhar. A existir esta situação clínica, o Recorrente impossibilitado estaria de exercer a sua atividade profissional.


43. O que, no sinistro aconteceu foi a rotura completa à direita , o que não mereceu a análise crítica da sentença, que, de igual modo, fez uma avaliação errada do decidido pela Junta médica, em 15/05/2024 que, a resposta ao quesito 1 em que se perguntava se, de acordo com os exames junto aos autos, o Recorrente apresentava alterações degenerativas importantes ao nível do ombro direito, respondeu: “Sim, do tendão da longa porção do bicípite braquial direito e artrose acrómio.clavicular (de acordo com a ressonância magnética do ombro direito de 29/11/2021, o que significa que os Senhores Médicos Peritos se louvaram no relatório da ressonância realizada no Hospital da Cruz Vermelha, que a sentença ignorou, e onde o médico diz admitir ter sido recente a lesão.


44. A sentença ignorou, repete-se, as conclusões da Junta Médica, designadamente a resposta ao Quesito 2 que perguntava “Perante o evento descrito pelo Autor, resultou alguma lesão etiológica traumática”, que teve a seguinte resposta:” Sim. Rotura dos tendões do supraespinhoso e do infraespinhoso direito”


Os Senhores Médicos Peritos, que ouviram o Recorrente narrar o sucedido nas instalações do seu cliente, aquando da reparação do trator, não tiveram dúvidas de responder afirmativamente que desse evento resultaram as lesões traumáticas sofridas por ele., facto que a sentença ignora e, desse modo, lhe permitiu decidir o contrário, decisão essa ao arrepio do que os médicos, unanimemente, acordaram.


45. A sentença não se encontra devidamente fundamentada, ignorou um documento relevantíssimo para a decisão, a ressonância magnética realizada em 29/11/2021, e não fez uma correta avaliação quer do exame médico-legal e forense quer doas conclusões (respostas aos quesitos) da Junta Médica.


46. A terem sido devidamente analisados e valorados todos os documentos, bem como apreciados, objetivamente os depoimentos prestados pelas testemunhas, a decisão seria contrária ao decidido, pelo que a sentença terá, necessariamente de ser revogado, dando-se total razão ao Recorrente, condenando-se a Recorrida no pedido.


Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que condene a Recorrida em conformidade com os pedidos.»


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Contra-alegou a seguradora, propugnando pela improcedência do recurso.


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A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.


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O processo subiu à Relação e o Ministério Público emitiu parecer favorável à confirmação da sentença recorrida.


Não foi oferecida resposta.


O recurso foi mantido nos seu precisos termos.


Foi elaborado o projeto de acórdão e colhidos os vistos legais.


Cumpre, em conferência, apreciar e decidir.


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II. Objeto do Recurso


É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).


Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:


1.ª Impugnação da decisão de facto.


2.ª Abuso de direito por parte da seguradora.


3.ª Verificação de um acidente de trabalho.


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III. Matéria de Facto


A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:


1. AA exerce a profissão de mecânico auto, como trabalhador independente.


2. Em 01 de junho de 2018 o Autor subscreveu um seguro de acidentes de trabalho na Agência da Caixa de Crédito Agrícola, de Local 1, a que foi atribuído o número de Apólice n.º ..., pela retribuição anual de € 9.310,00.


3. No dia 23/11/2021, o Autor participou à Ré a ocorrência de um sinistro reportando-o às 10h30 do dia 01/10/2021. No seguimento da referida participação, a Seguradora prestou assistência médica ao Autor desde o dia 24/11/2021 e até ao dia 14/03/2022, através de, pelo menos, 9 consultas médicas, 30 sessões de fisioterapia, 1 intervenção cirúrgica ao ombro direito e diversos exames complementares de diagnóstico.


4. E pagou ao Sinistrado € 10.714,28, a título de incapacidades temporárias; € 7.044,85, a título de despesas médicas e € 81,81, a título de despesas de transporte.


5. Por carta datada de 14/03/2022 remetida ao Autor, a Seguradora declinou qualquer responsabilidade pelo evento, porque “não ficou provada ocorrência de acidente em tempo e local de trabalho, bem como lesão decorrente do mesmo”.


6. No dia 30/10/2023, realizada Tentativa de Conciliação na fase conciliatória dos autos, a mesma não se mostrou viável porque a R. declarou o seguinte: “não aceita qualquer ocorrência de acidente de trabalho em data indeterminada e não aceita a lesão traumática relacionada com acidente de trabalho. De acordo com o exame legal o trabalhador não consegue identificar o dia exato do alegado acidente, mas um dia aproximado e hipotético, o que não se concebe. Assim, não aceita o resultado do exame legal e nada se aceita liquidar. Aceitam a existência de uma apólice de seguro nº 02322227 celebrada com o trabalhador sinistrado em que se encontra transferido o salário de € 665,00 x 14m/ano, ou seja, o salário anual de € 9 310,00 (nove mil trezentos e dez euros).”


7. Em data não concretamente apurada, mas depois do dia 15 do mês de setembro do ano de 2021, o Autor deslocou-se às instalações da empresa “Henrihorta - Produção e Comercialização Agrícola, Lda.”, em Local 2, para acorrer a uma reclamação relativa ao mau funcionamento dum trator que em julho de 2021 havia reparado.


8. No dia 27/09/2021, o Autor contactou a sua médica de família, queixando-se de dores nos ombros, mais no direito, tendo-lhe sido prescrita a realização de ecografia de partes moles e RX dos ombros.


9. Do relatório do RX realizado aos ombros, datado de 29/10/2021, resulta o seguinte: ”O estudo radiológico dos ombros sob incidência de frente em posição neutra, não mostra estreitamento significativo das interlinhas gleno-umerais, nem alterações da morfologia e estrutura dos elementos ósseos visualizados” .


10. Da ecografia realizada ao ombro direito, resulta o seguinte: “No estudo ecográfico do ombro direito observa-se diminuição do espaço articular acrómio-umeral e também da espessura da coifa dos totadores por rotura aparentemente total do tendão do supra-espinoso. Os restantes elementos musculo-ligamentares estão íntegros, observando-se, no entanto, diminuição da ecogenicidade do tendão da longa porção do bicípete, aspeto a favor da tendinite. Discreta coleção líquida subacromial. Não identificamos calcificações intra, ou peri-articulares” .


11. O Autor apresenta alterações degenerativas do tendão da longa porção do bicípite braquial direito e artrose acrómio-clavicular e rotura dos tendões do supraespinhoso e do infraespinhoso direito.


12. Após a Ré ter cessado a assistência ao Autor, este, em viatura própria, deslocou-se a Lisboa, ao Hospital da Cruz Vermelha para consultas e para realização de uma ressonância magnética no dia 11/06/2022, suportando os custos da deslocação.


13. O Autor pagou a quantia de € 270,00 pela realização da referida ressonância.


14. O Autor pagou a quantia total de € 140,00 pelas duas consultas médicas realizadas nos dias 12/05/2022 e 23/06/2022, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, no valor de € 70,00 cada.


15. Bem assim deslocou-se de sua residência para a o CMM-Centro Médico de Local 3, 30 dias, para efetuar, ali, 30 sessões de fisioterapia, entre os dias 09/09/2022 e 21/11/2022.


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E julgou como não provados os seguintes factos:


a. Que para proceder à reparação referida em 7., o Autor teve de retirar a embraiagem do trator em causa, peça que pesa cerca de 50 kls e, no momento em que procedia a essa tarefa, sentiu um “estalar” no ombro direito, provocado pelo peso do mesmo, notando que algo havia sucedido.


b. Que a data, como correspondente à ocorrência do sinistro, aposta na participação referida em 3., tenha sido sugerida pela funcionária da Agência de Local 1 da Caixa de Crédito Agrícola.


c. Que o Autor se deslocou a Local 3, conforme instruções recebidas da Ré, em viatura própria por 31 vezes, sendo uma vez para consulta e 30 para as sessões de fisioterapia.


d. Que o Autor, nas deslocações referidas em 12. e 15., tenha despendido o valor global de € 1.114,10.


e. Que o Autor gastou o montante de € 40,00 nas suas deslocações obrigatórias por ordem do Tribunal.


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IV. Impugnação da decisão de facto


O recorrente impugna a decisão fáctica.


É consabido que a impugnação da decisão da matéria de facto constitui uma prerrogativa do recorrente.


Todavia, o legislador civil (e o legislador laboral, por subsidiariedade de aplicação do regime), sujeitou-a a determinadas condições.


O artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, prescreve o seguinte:


«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b. Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.


3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.»


Sobre as exigências/condições impostas por esta norma, refere António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129: «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.».


A Jurisprudência tem sustentado que o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tem de ser cumprido nas conclusões do recurso (ou seja, o recorrente tem de especificar nas conclusões do recurso os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados).


Já os ónus previstos nas alíneas b) e c) podem ser cumpridos na parte do recurso em que se apresentam as alegações.


Ora, no concreto recurso, o recorrente, em sede de conclusões, apenas impugna, especificamente, os factos alegados nos artigos 13.º e 14.º da petição inicial (pugnando para que os mesmos sejam dados como provados) e a alínea b) dos factos não provados (que entende que deve ser dada por provada), pelo que, reconhecendo-se que os demais ónus se mostram cumpridos nas alegações, o conhecimento da impugnação será restrito à matéria concretamente impugnada nas conclusões.


Quaisquer outros pontos da petição inicial que o recorrente pretendesse impugnar não foram especificamente indicados nas conclusões, razão pela qual a impugnação não pode ser admitida quanto aos mesmos.


Apreciando, então.


O artigos 13.º e 14.º da petição inicial têm o seguinte teor:


«13º


Como a dor no ombro direito se foi intensificando, acabando por o impedir de continuar a trabalhar, o Autor, no dia 27 de Setembro de 2021, contactou, telefonicamente, o Centro de Saúde de Local 4, tendo falado com a sua médica de família, a quem se queixou de fortes dores no ombro direito que o incapacitavam para o trabalho.


14º


Esta, face às queixas apresentadas, e mesmo sem observar o Autor, prescreveu-lhe a realização de ecografia de partes moles (ombro direito) e RX dos ombros.»


Ora, uma simples leitura dos factos provados permite-nos concluir que no ponto 8 consta, em parte, o que foi alegado nos citados artigos da petição inicial.


Dito de outro modo, já resulta provado, no dito ponto 8, que no dia 27 de setembro, o Autor (recorrente) contactou a sua médica de família, a quem se queixou de dores no ombro direito, tendo-lhe sido prescrita a realização de ecografia de partes moles e RX dos ombros.


Logo, a impugnação desta materialidade deixa de fazer sentido porque já resulta provada (recorde-se que o objetivo da impugnação era que levar esta factualidade para o elenco dos factos assentes).


O que sobra, assim, é o seguinte: o contacto com a médica de família deveu-se ao facto da dor no ombro direito se ter intensificado, acabando por impedir o Autor de trabalhar; o contacto foi feito telefonicamente para o Centro de Saúde de Local 4; o Autor queixou-se à médica que as dores o incapacitavam de trabalhar; os exames de diagnóstico mencionados no ponto 8 foram prescritos sem que a médica tivesse observado o Autor.


Contudo, a materialidade sobrante é absolutamente inócua para a boa decisão da causa, porque da mesma não é possível extrair qualquer consequência jurídica.


O que de relevante havia sido alegado nos artigos 13.º e 14.º da petição inicial, foi selecionado pelo tribunal a quo e até foi dado como provado, o que vai de encontro à pretensão do recorrente.


Assim sendo, e porque atento o disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil, o tribunal não se deve pronunciar sobre factos inócuos para a decisão da causa, decide-se não tomar conhecimento da impugnação dos artigos 13.º e 14.º da petição inicial no que respeita aos factos remanescentes, uma vez que tal conhecimento se traduziria num ato perfeitamente inútil para a solução do pleito, o que se mostra proibido por lei.


Prosseguindo.


Consta da alínea b) dos factos não provados:


«Que a data, como correspondente à ocorrência do sinistro, aposta na participação referida em 3., tenha sido sugerida pela funcionária da Agência de Local 1 da Caixa de Crédito Agrícola.»


Pretende o recorrente que a factualidade mencionada passe para o elenco dos factos provados.


Todavia, depois de ouvida toda a prova testemunhal produzida em julgamento entendemos que a decisão da 1.ª instância não poderia ter sido outra.


Passamos a explicar porquê.


As testemunhas FF e EE não revelaram qualquer conhecimento direto ou indireto do facto em causa, pois não presenciaram a conversa tida entre o Autor e a funcionária da Agência de Local 1 da Caixa de Crédito Agrícola, nem tomaram conhecimento da mesma por qualquer via indireta, mas relevante.


Quanto à testemunha BB, a dita funcionária, a mesma não afirmou que tenha sido ela quem sugeriu que fosse colocada na participação a data de 01-10-2021 como data do acidente. O que se deduz do seu depoimento, espontâneo e credível, é que o Autor quando falou com ela para participar o acidente não sabia em que data o mesmo tinha ocorrido. Conversaram e a data escolhida, que não foi por si influenciada como declarou, foi indicada pelo Autor, não se recordando de como é que ele chegou a tal data.


Ou seja, não resultou deste depoimento que tenha sido a testemunha quem sugeriu a data a indicar para a ocorrência do sinistro.


A testemunha GG, esposa do Autor, afirmou que o acompanhou ao balcão da Caixa de Crédito Agrícola para participar o acidente e que o seu marido, de facto, não sabia a data em que tinha ocorrido o evento, pelo que, entre possíveis datas que indicaram à funcionária, esta sugeriu o dia 1 de outubro e eles concordaram.


Sucede que este depoimento está isolado, pois não foi produzida qualquer outra prova (testemunhal ou documental) que o corroborasse.


Como tal, é uma prova frágil, que não permite alcançar um juízo de elevada probabilidade sobre a ocorrência do facto


Consequentemente, bem andou o tribunal a quo ao considerar que não existia suporte probatório sólido para dar o facto impugnado como provado.


Destarte, resta-nos concluir pela improcedência da decisão fáctica.


*


V. Do alegado abuso de direito


Sustenta o recorrente que a atuação da seguradora, que assumiu inicialmente a assistência médica ao recorrente e mais tarde negou a existência de um acidente de trabalho, constitui abuso de direito e má-fé.


A questão foi assim apreciada na sentença recorrida:


«(…) da participação de um acidente de trabalho decorre para a seguradora a obrigação de prestar os cuidados de saúde imediatos e de proceder ao tratamento do sinistrado, face a estatuído nos artigos 15.º e 24.º do DL n.º 143/99, de 30-04, não obstante poder estar em dúvida a caracterização do acidente como de trabalho; não configurando uma situação de abuso de direito, designadamente na modalidade dum venire contra factum próprium, a recusa por parte da seguradora em continuar a prestar tratamentos, assistência e em assumir outras responsabilidades, depois de durante alguns meses os ter prestado na sequência duma participação de alegado acidente de trabalho feita pelo lesado se que após averiguações da seguradora esta considerou que o circunstancialismo factual em que ocorreu o evento, não era apto a caracterizar o acidente como de trabalho e por via disso, informou o autor que a partir de então não se responsabilizava pelo sinistro e não lhe prestaria mais assistência, como, de resto, sucedeu no caso em apreço.»


Ainda que a menção ao Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, seja incompreensível, uma vez que este diploma legal foi revogado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (doravante LAT) e o alegado acidente se reporte a 2021, o essencial da fundamentação mantém-se à luz deste último diploma legal.


Efetivamente, decorre da conjugação dos artigos 87.º e 26.º da LAT o que decorria da conjugação dos artigos 15.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 143/99.


Todavia, porque no caso que nos ocupa estamos perante um trabalhador independente também importa considerar o artigo 184.º da LAT, o artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de maio, e o artigo 17.º da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes, publicada no Diário da República de 07-01-2000, 2.ª série.


Com especial interesse, estipula esta última norma mencionada:


«1 - A prestação de socorros urgentes, ou a comunicação do acidente de trabalho às entidades competentes, nunca significará reconhecimento pela seguradora da sua responsabilidade.


2 - O pagamento de indemnizações ou outras despesas não impedirá a seguradora de, posteriormente, vir a recusar a responsabilidade relativa ao acidente quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas o justificarem. Assistirá ainda à seguradora, neste caso, o direito de reaver tudo o que houver pago.»2


O que se infere do mencionado quadro legal é que perante a participação da ocorrência de um acidente de trabalho, é imposto à seguradora, para a qual se ache transferida a responsabilidade, que assuma as obrigações inerentes à entidade empregadora e também as suas próprias, nomeadamente a obrigação de proceder ao imediato tratamento da saúde do sinistrado, ainda que possa ter dúvidas sobre a caracterização do acidente como de trabalho, o que não impedirá a seguradora de, posteriormente, vir a recusar a sua responsabilidade relativa ao acidente participado.


Portanto, a prestação inicial da assistência médica não pode gerar qualquer expetativa para o sinistrado de que a seguradora já não lhe comunique, mais tarde, que declina a responsabilidade pelo acidente por, na sequência de averiguações realizadas, ter chegado à conclusão que não se apurou a verificação do acidente de trabalho participado.


Salienta-se que no vertente caso, pelo que se apurou, a seguradora tratou da saúde do recorrente, ou seja, não ocorreu qualquer interrupção abrupta da prestação, com risco para a saúde do recorrente, da assistência médica necessária ou dos tratamentos, pelo que não se aplica a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-10-2023 (Proc. n.º 19691/20.0T8PRT.P1.S1) ou do acórdão do mesmo tribunal de 12-02-2009 (Proc. n.º 09A073), publicados em www.dgsi.pt.


Antes se aplica, no nosso entender, a jurisprudência defendida no acórdão da Relação de Évora de 26-06-2008 (Proc. n.º 1330/08-3), acessível em www.dgsi.pt, que embora se refira à legislação anterior, mantém atualidade, e no qual se escreveu:


«I – Da participação de um acidente de trabalho decorre para a seguradora para a qual se ache transferida a responsabilidade, desde logo a obrigação de prestar os cuidados de saúde imediatos e de proceder ao tratamento do sinistrado, (art. s 15º e 24º do DL n.º 143/99) não obstante poder estar em dúvida a caracterização do acidente como de trabalho. A prestação deste cuidados e o pagamentos dos tratamentos não obsta a que a seguradora venha a declinar a sua responsabilidade quando um quadro circunstancial superveniente o justifique, podendo até reaver o dispendido – cfr artº 17º da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes, publicada no dia 07/01/2000 no DR II Série.


II - Não configura uma situação de abuso de direito, designadamente na modalidade dum “venire contra factum próprium”, a recusa por parte duma seguradora em continuar a prestar tratamentos, assistência e em assumir outras responsabilidades, depois de durante alguns meses os ter prestado na sequência duma participação de alegado acidente de trabalho feita pelo lesado se que após averiguações da seguradora esta considerou que o circunstancialismo factual em que ocorreu o evento, não era apto a caracterizar o acidente como de trabalho e por via disso, informou o autor que a partir de então não se responsabilizava pelo sinistro e não lhe prestaria mais assistência.»


Enfim, a atuação da seguradora recorrida que inicialmente prestou a assistência médica necessária e, mais tarde, declinou a responsabilidade pela reparação do participado acidente, sem que se indicie que a posição assumida comportasse riscos para a saúde do recorrente, não constitui uma situação de abuso de direito (designadamente na modalidade venire contra factum próprium) ou de má-fé.


Pelo exposto, improcede o recurso quanto à questão analisada.


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VI. Do alegado acidente de trabalho


A 1.ª instância não reconheceu a existência de um acidente de trabalho, estribando-se na seguinte fundamentação:


«Regressando ao caso dos autos, não tendo o Autor provado, como lhe incumbia, que a lesão evidenciada no seu ombro direito ocorreu no local e tempo de trabalho, isto é, quando,


no exercício da sua profissão de mecânico auto, nas instalações da empresa “Henrihorta - Produção e Comercialização Agrícola, Lda.”, em Local 2, estava a reparar um trator, nos termos do disposto no artigo 8.º e 10.º, n.º 1 da LAT, a contrario, o Autor não goza da presunção legal relativa ao nexo de causalidade ente o evento e a referida lesão e, por conseguinte, não está demonstrada a ocorrência de um acidente de trabalho. Ou seja, não se provou que a lesão observada no Autor foi causa direta e necessária de um qualquer evento sofrido no seu local de trabalho.


Pelo que, o direito do Autor à reparação pelos alegados danos mostra-se excluído.»


O recorrente alega que sofreu um acidente de trabalho.


Analisemos.


Estatui o artigo 8.º, n.º 1, da LAT que é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.


Assim, o conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: um espacial – o local de trabalho – outro temporal - o tempo de trabalho – e, por último, um causal – o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença.


Recorrendo às palavras de Victor Ribeiro, in Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Rei dos Livros, 1984, pág. 219 e seguintes: «acidente de trabalho é pois uma cadeia de factos em que cada um dos respetivos elos estejam entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem que resultar da relação de trabalho; como a lesão, perturbação ou doença, terão que resultar daquele evento; e, finalmente, a morte ou incapacidade para o trabalho deverão filiar-se causalmente na lesão, perturbação ou doença».


De acordo com a regra geral prevista no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, cabe ao trabalhador, ou ao beneficiário legal, a prova dos elementos que integram o conceito de acidente de trabalho.


Importa ainda destacar o artigo 10.º, n.º 1, da LAT que prescreve que a lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior - o artigo 9.º da LAT diz respeito à extensão do conceito de acidente de trabalho – presume-se consequência de acidente de trabalho.


Resulta deste artigo que a presunção iuris tantum estabelecida é uma presunção de nexo de causalidade, pelo que o sinistrado, ou o beneficiário legal, não fica isento de provar o próprio evento causador das lesões – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-06-2017 (Proc. n.º 919/11.3TTCBR-A.C1.S1); Acórdão da Relação de Évora de 11-07-2013 (Proc. n.º 159/10.9TTEVR.E1); e Acórdão da Relação do Porto de 30-05-2018 (Proc. n.º 1718/16.1T8TMTS.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.


Por último, importa salientar o disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LAT que estipula que a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada.


Todavia, infere-se deste preceito legal que a predisposição patológica não exclui o direito à reparação desde que se tenha verificado um acidente de trabalho.


Dito de outro modo, a caracterização da situação como acidente de trabalho é um pressuposto deste artigo.


Exposto, pois, o quadro legal essencial, foquemos agora a nossa atenção nos factos provados.


- o recorrente exerce a profissão de mecânico auto, como trabalhador independente (ponto 1);


- no dia 23-11-2021 participou à seguradora com a qual havia celebrado seguro de acidentes de trabalho a ocorrência de um acidente ocorrido no dia 01-10-2021, pelas 10h30m (pontos 2 e 3);


- em data não concretamente apurada, mas depois do dia 15 do mês de setembro do ano de 2021, o recorrente deslocou-se às instalações da empresa “Henrihorta - Produção e Comercialização Agrícola, Lda.”, em Local 2, para acorrer a uma reclamação relativa ao mau funcionamento dum trator que em julho de 2021 havia reparado (ponto 7);


- no dia 27-09-2021, contactou a sua médica de família, queixando-se de dores nos ombros, mais no direito, tendo-lhe sido prescrita a realização de ecografia de partes moles e RX dos ombros (ponto 8);


- do relatório do RX realizado aos ombros, datado de 29-10-2021, resulta o seguinte: ”O estudo radiológico dos ombros sob incidência de frente em posição neutra, não mostra estreitamento significativo das interlinhas gleno-umerais, nem alterações da morfologia e estrutura dos elementos ósseos visualizados” (ponto 9);


- da ecografia realizada ao ombro direito, resulta o seguinte: “No estudo ecográfico do ombro direito observa-se diminuição do espaço articular acrómio-umeral e também da espessura da coifa dos totadores por rotura aparentemente total do tendão do supra-espinoso. Os restantes elementos musculo-ligamentares estão íntegros, observando-se, no entanto, diminuição da ecogenicidade do tendão da longa porção do bicípete, aspeto a favor da tendinite. Discreta coleção líquida subacromial. Não identificamos calcificações intra, ou peri-articulares” (ponto 10);


- o recorrente apresenta alterações degenerativas do tendão da longa porção do bicípite braquial direito e artrose acrómio-clavicular e rotura dos tendões do supraespinhoso e do infraespinhoso direito (ponto 11).


Ora, não ressalta dos factos apurados, desde logo, que o recorrente tenha sofrido qualquer evento externo, súbito e violento, em local e tempo de trabalho, que lhe tenha causado, diretamente ou indiretamente, lesão corporal ou perturbação funcional. Designadamente, não logrou o mesmo demonstrar que no exercício da sua profissão, quando se deslocou às instalações da empresa “Henrihorta - Produção e Comercialização Agrícola, Lda. para acorrer à reclamação de mau funcionamento de um trator que havia reparado em julho de 2021, sofreu qualquer lesão.


Nesta conformidade, não ficou demonstrado que o recorrente sofreu um acidente de trabalho, como bem decidiu a 1.º instância.


Consequentemente, também nesta parte, terá de improceder o recurso.


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Concluindo, o recurso improcede na totalidade.


O recorrente é responsável pelas custas do recurso – artigo 527.º do Código de Processo Civil.


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VII. Decisão


Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.


Custas do recurso pelo recorrente.


Notifique.


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Évora, 9 de abril de 2025


Paula do Paço


Emília Ramos Costa


Filipe Aveiro Marques

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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques↩︎

2. Sublinhado da nossa responsabilidade.↩︎