Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
373/23.7T8TVR.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CAUSA DE PEDIR
REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
REGISTO
NULIDADE
Data do Acordão: 03/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
I. Numa ação de reivindicação, a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que deriva o direito real.

II. Incumbindo aos Autores a alegação e prova dos factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio por sua parte ou por parte dos seus antecessores, não bastando a invocação da aquisição derivada por via sucessória.

III. Deve ter-se por implicitamente invocada a usucapião quando na p.i. se mostrem alegados os correspondentes factos reveladores da aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião, ainda que a parte não tenha plasmado de forma expressa naquela peça processual que pretende invocar a usucapião.

IV. Deve ser declarada a nulidade do registo de aquisição do direitos de propriedade e ordenado o seu cancelamento quanto o mesmo teve por base declarações que não correspondem à verdade apurada em sede judicial, bem como documentos insuficientes para que o registo tenha sido lavrado nos termos em que o foi.

Decisão Texto Integral: Processo n.º 373/23.7T8TVR.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: T J Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Tavira

Apelante: AA e outros

Apelada: BB e outro




Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

1.ª Autora - AA, viúva,


2.ºs Autores - CC e marido DD,


3.º Autor - EE, viúvo,


intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum,


contra:


BB e marido FF.


Os Autores, com base na descrição fatual que consta da p.i. em relação à aquisição do direito de propriedade dos prédios que identificam, pediram que seja declarado e reconhecido que são donos e legítimos proprietários da totalidade do prédio identificado no artigo 7º, alínea a), da p.i. bem como são donos e legítimos proprietários, na proporção de metade, dos prédios identificados nas alíneas b) e c), do artigo 7º, da p.i. e, em consequência sejam os RR. condenados a:


A) Reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre a totalidade do prédio identificado no artigo 7º, alínea a), da p.i. e que se refere à descrição predial número ...163/20091022, da extinta freguesia de ..., concelho de ..., atualmente ...);


B) Reconhecer o direito dos Autores sobre metade dos prédios identificados no artigo 7º, alíneas b) e c), da p.i., a que corresponde as descrições prediais números ...108/20091022 e ...131/20091022, da extinta freguesia de ..., concelho de ..., atualmente ...);


C) Seja declarada a nulidade dos registos efetuados na Conservatória do Registo Predial de ..., em 22 de outubro de 2009 (22.10.2009), pela apresentação com o número Ap. 4019 de 2009/10/22, sobre os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ..., sob os números ...163/20091022, ...108/20091022 e ...131/20091022, da extinta freguesia de ..., atualmente ...), devendo ordenar-se o seu cancelamento e de todos os demais que sobre os mesmos imóveis venham a ser efetuados, condenando-se os Réus a reconhecer tal nulidade e consequências;


D) Mas caso assim não se entenda, no que tange aos prédios identificados nas alíneas b) e c), do artigo 7º, da p.i., deverá ser ordenado a retificação do registo desses prédios, por forma a retratar a realidade mencionada na alínea B), do petitório.


Os Réus não contestaram.


Nessa sequência, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 567.º, do CPC, consideraram-se confessados os factos articulados pelos Autores.


Foi concedido prazo para apresentação de alegações de direito, que os Autores ofereceram.


Após junção aos autos de vários documentos a solicitação do tribunal recorrido, em 03-07-2024 (Ref.ª 132739669), foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente absolvendo os Réus do pedido.


Inconformados, apelaram os Autores, defendendo a alteração parcial da decisão de facto e, de qualquer modo, a revogação da sentença dando procedimento aos pedidos formulados, apresentando para o efeito uma súmula das CONCLUSÕES nos seguintes termos:


«Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, deverá:


a) Proceder a impugnação da matéria de facto constante no ponto 24 dos factos provados na douta sentença recorrida, provando-se o facto tal como o mencionado no ponto 9 destas conclusões ou, subsidiariamente, conforme o mencionado no ponto 10.


b) Proceder o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos Recorrentes da totalidade do prédio identificado em a) do ponto 6 e a 1/2 dos prédios identificados nos pontos b) e c) do ponto 6 dos factos considerados provados


c) Proceder o pedido de declaração de nulidade dos registos efectuados na Conservatória do Registo Predial de ..., em 22 de outubro de 2009, pela Ap. N.º 4019 de 2009/10/22, sobre os prédios descritos na CRP de ... sob os números ...163/20091022, ...108/20091022 e ...131/20091022 da extinta freguesia de ..., concelho de ... e seu cancelamento.


Ou, caso se entenda que se verifica a nulidade por omissão da formalidade prevista no artigo 590.º


d) Deverá ser declarada a nulidade do processo a partir do termo do prazo para a apresentação de contestação pelos Réus, nomeadamente da douta sentença, com aproveitamento do requerimento e documentos juntos em 16/04/2024.»


Não foi apresentada resposta ao recurso.


II- FUNDAMENTAÇÃO

A. Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:


1.ª Questão - Impugnação da decisão de facto;


2.ª Questão - Da (im)procedência dos pedidos ou, subsidiariamente, da nulidade do processo a partir do termo do prazo da apresentação da contestação.


3.ª Questão – Da nulidade e cancelamento do registo referente aos prédios em causa nos autos.


B- De Facto


A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:


FACTOS PROVADOS


«1. Em ... de ... de 2003, faleceu sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, GG,


2. tendo-lhe sucedido, como seus únicos herdeiros, o cônjuge AA, aqui Autora, e seus filhos CC e EE, aqui Autores,


3. tudo conforme melhor consta da respetiva escritura de Habilitação Herdeiros, outorgada em 24 de novembro de 2022, exarada de folhas noventa a folhas noventa verso, do Livro de notas para escrituras diversas número duzentos e dezassete – A, do Cartório Notarial de ..., a cargo do Dr. HH, com o seguinte teor:


“(…) compareceu como outorgante:


CC, NIF ..., natural de ..., casada sob o regime da comunhão de adquiridos com DD (…)


E pela outorgante foi dito:


- Que no dia dezassete de março de dois mil e três, na freguesia de ...), concelho de ..., faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, GG, natural da mencionada freguesia de ...), onde teve a sua última residência habitual em ..., no estado de casado com AA, em primeiras e únicas núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros, por vocação legal:


a) o cônjuge sobrevivo, AA (…) viúva (…)


- e seus dois filhos:


b) CC, ela declarante, supra identificada; e


c) EE (…) atualmente divorciado (…)


- Que não existem outras pessoas que, segundo a Lei, possam preferir ou concorrer com os indicados herdeiros à sucessão do falecido.


(…)”.


4. Na sequência do decesso do dito GG foi instaurado, junto do Serviço de Finanças de ..., o respetivo processo de liquidação de Imposto sobre Sucessões e Doações, ao qual coube o nº ....


5. Por óbito do referido GG, esposo, pai e sogro dos AA., foram, em sede fiscal, relacionados diversos prédios e direitos prediais.


6. Entre esses referidos prédios e direitos prediais, foram relacionados os seguintes:


a) Na verba nº 2, da respetiva relação de bens, foi relacionado o prédio rústico, no sítio do P 1, que consta de terra de cultura com 3 laranjeiras, à data inscrito na matriz da extinta freguesia de ..., concelho de ..., sob o artigo ...663, atualmente inscrito na matriz sob o artigo ...369, da ...), concelho de ...;


b) Na verba nº 27, da respetiva relação de bens, foi relacionado o direito a metade (1/2) do prédio rústico, no sítio dos P 2, que consta de terra de pastagem, à data inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo nº ...802, da extinta freguesia de ..., concelho de ..., atualmente inscrito, na matriz predial da ...), concelho de ..., sob o artigo ...525;


c) Na verba nº 31, da respetiva relação de bens, foi relacionado o direito a metade (1/2) do prédio rústico, no sítio do P 3, que consta de terra de pastagem, à data inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo nº ...865, da extinta freguesia de ..., concelho de ..., atualmente inscrito sob o artigo ...581, da ...), concelho de ....


7. Em ... de ... de 2009, faleceu, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, II, no estado de viúvo de JJ, ele natural da freguesia de ...), concelho de ..., onde teve a sua última morada habitual em Sítio da ..., Caixa Postal 712-Z,


8. tendo deixado como sua única herdeira, sua filha, BB, a aqui Ré,


9. tudo conforme melhor consta no teor da respetiva escritura de Habilitação de Herdeiros outorgada em 20 de outubro de 2009, a folhas 28, do Livro 8- A, do Cartório Notarial de ..., a cargo do Dr. HH, com o seguinte teor:


“(…) compareceu como outorgante:


BB (…) casada com FF sob o regime da comunhão de adquiridos (…)


(…)


DECLAROU A OUTORGANTE:


- Que no dia ..., na freguesia de ...), concelho de ..., faleceu, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, II, no estado de viúvo de JJ, natural da freguesia de ...), concelho de ..., onde teve a sua última residência habitual no referido Sítio da ..., caixa postal 712-Z, tendo deixado como única herdeira, por vocação legal:


a) sua única filha, BB, ela declarante, supra identificada;


- Que não existem outras pessoas que, segundo a lei, possam preferir ou concorrer com os indicados herdeiros à sucessão do falecido.


(…)”.


10. O referido GG, esposo, pai e sogro dos Autores, havia comprado, em março de 1962, por compra não reduzida a escrito, o aludido prédio identificado na alínea a), do ponto 6º supra, a GG e sua mulher KK, residentes que foram no ..., da extinta freguesia de ..., concelho de ....


11. No ano de 1988 ocorreu o óbito de II, pai do referido GG marido da Autora AA.


12. Os Autores, e GG marido e pai daqueles, sempre utilizaram a totalidade do prédio identificado na alínea a) do ponto 6 supra, desde o ano de 1962,


13. pagando os respetivos impostos, lavrando e agricultando o terreno, cultivando, colhendo e fazendo seus os respetivos frutos, regando, podando e adubando as árvores de fruto, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, e, sempre, na convicção de que eram os seus proprietários plenos e exclusivos e que não lesavam direito de outrem,


14. o que vem ocorrendo desde março de 1962, até ao presente.


15. O avô dos Autores CC e EE, de nome II, durante mais de 50 anos sempre utilizou, na sua totalidade, os prédios identificados nas alíneas b) e c), do ponto 6º supra,


16. lavrando, agricultando o terreno e pagando os respetivos impostos,


17. cultivando, colhendo e fazendo seus os respetivos frutos,


18. o que sempre fez à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, e, sempre, na convicção de que era o seu proprietário exclusivo e que não lesava direito de outrem.


19. Por óbito do avô dos Autores CC e EE, de nome II, sucederam-lhe seus dois filhos, a saber:


a) GG, marido, pai e sogro dos Autores, e


b) II, pai da Ré BB e sogro do Réu FF.


20. A partir do óbito do falado II ocorrido em 1988, os seus dois filhos, identificados em 19 supra, passaram a utilizar, na proporção de metade para cada um, os prédios identificados nas alíneas b) e c), do ponto 6 supra.


21. E, por óbito destes são os Autores e Réus que utilizam, na proporção de metade para cada parte, os aludidos prédios identificados nas alíneas b) e c), do ponto 6 supra.


22. São os Autores e Réus e o GG, marido, pai e sogro dos Autores, e o II, pai da Ré BB, que vêm utilizando esses prédios identificados nas alíneas b) e c), do ponto 6 supra, pagando os respetivos impostos, lavrando e agricultando o terreno, cultivando, colhendo e fazendo seus os respetivos frutos.


23. Os factos referidos em 20 a 22, inclusive, sempre ocorreram à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, e, sempre, na convicção de que eram os seus proprietários e que não lesavam direito de outrem, o que vem ocorrendo desde o ano de 1988, até ao presente.


24. Por óbito de JJ, mãe da Ré BB, ocorrido em .../.../2008, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentada no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, foi relacionado metade dos prédios identificados nas alíneas b) e c) do ponto 6 supra. [Por procedência da impugnação da decisão de facto, a redação deste ponto passou a ser a seguinte: «Por óbito de JJ, mãe da Ré BB, ocorrido em .../.../2008, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentado no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, foi relacionado metade dos prédios identificados nas alíneas b) e c) e 50909/100000 do prédio identificado em a) do ponto 6 supra.»]


25. E, por óbito de seu pai, II, ocorrido em .../.../2009, a Ré BB relacionou no âmbito do processo de imposto de selo apresentado no Serviço de Finanças de ..., em 30/09/2009, ¾ dos prédios identificados nas alíneas a), b) e c) do ponto 6 supra.


26. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...163/20091022, da freguesia de ...), o prédio rústico situado em P 1, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...663.


27. Pela Ap. 4019 de 22/10/2009, encontra-se inscrita a favor da Ré BB, casada com FF no regime da comunhão geral, a aquisição do prédio referido no ponto 26, por sucessão hereditária de JJ e II.


28. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...108/20091022, da freguesia de ...), o prédio rústico situado em P 2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...802.


29. Pela Ap. 4019 de 22/10/2009, encontra-se inscrita a favor da Ré BB, casada com FF no regime da comunhão geral, a aquisição do prédio referido no ponto 28, por sucessão hereditária de JJ e II.


30. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...131/20091022, da freguesia de ...), o prédio rústico situado em P 3, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...865.


31. Pela Ap. 4019 de 22/10/2009, encontra-se inscrita a favor da Ré BB, casada com FF no regime da comunhão geral, a aquisição do prédio referido no ponto 30, por sucessão hereditária de JJ e II.


32. A Ré, em 22 de outubro de 2009, através da apresentação com o número 4019, daquela data procedeu, junto da Conservatória do Registo Predial de ..., ao requerimento de registo de inscrição de tais prédios, na totalidade, em seu nome, declarando na requisição do respetivo registo, em sede de “Outras declarações”, o seguinte:


“Declara que todos os prédios que pretende registar tem as descrições constantes na matriz. Estes prédios faz parte da herança aberta por óbito de JJ e marido II – ..., ...”;


e mais declarou, em sede de “Outras declarações”, que:


“Desconhece os 2ºs antepossuidores por ser facto ocorrido há muitos anos”.


33. Tais registos foram efetuados com base na escritura de habilitação de herdeiros, identificada em 9 supra, e em documento extraído dos processos sucessórios fiscais identificados em 24 e 25 supra, nos quais os prédios foram integrados. »


FACTOS NÃO PROVADOS


«1. A BB, por óbito de sua mãe JJ, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentado no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, relacionou metade dos prédios identificados nas alíneas a), b) e c) do ponto 6 supra.»

C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso


1.ª Questão - Impugnação da decisão de facto


Ponto 24 dos factos provados:


«24. Por óbito de JJ, mãe da Ré BB, ocorrido em .../.../2008, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentada no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, foi relacionado metade dos prédios identificados nas alíneas b) e c) do ponto 6 supra. »


Os Apelantes pretendem ver alterada a redação do ponto 24 dos factos provados, propondo duas redações, em alternativa:


«Por óbito de JJ, mãe da Ré BB, ocorrido em .../.../2008, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentado no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, foi relacionado metade dos prédios identificados nas alíneas a), b) e c) do ponto 6 supra.»


Ou,


«Por óbito de JJ, mãe da Ré BB, ocorrido em .../.../2008, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentado no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, foi relacionado metade dos prédios identificados nas alíneas b) e c) e 50909/100000 do prédio identificado em a) do ponto 6 supra.»


Para justificarem a alteração socorrem-se do doc. 7 junto com o seu requerimento de 16-04-2024 - participação às finanças por óbito de JJ, mãe da Ré, apresentada pelo cabeça de casal dessa herança, II, pai da Ré, na qual foi relacionada, entre outras, a verba n.º 183 referente ao prédio rústico inscrito na matriz predial ...663, da freguesia de ..., concelho de ..., tendo sido relacionado como quota-parte transmitida 50909/100000, e, ainda, e também fazendo parte do mesmo documento, a participação às finanças pela Ré, agora por óbito de seu pai, constando da relação de bens a verba n.º 183 referente ao referido prédio rústico, na quota-parte de ¾ (sendo ½ referente ao direito do falecido pai da Ré e ¼ do direito da Mãe da Ré).


Na fundamentação da decisão de facto sobre o ponto 24 dos factos provados consta o seguinte:


«O óbito da progenitora da Ré a que se alude no ponto 24 dos factos provados, encontra-se sustentado na certidão do assento de nascimento de JJ que constitui o documento 5 junto com o Requerimento com a Rfª 48634676.


A respeito do ponto 24 dos factos [não] provados, é somente tal matéria que encontra respaldo na certidão junta como documento 7 ao Requerimento com a Rfª 48634676, que inclui a documentação que instruiu a apresentação registral, entre ela a oriunda do processo fiscal para liquidação do tributo. Com realce, e também por essa via a falta de prova acerca do ponto 1 dos factos não provados, não foi a Ré BB quem surgiu como a participante ou quem relacionou os imóveis por óbito de JJ (antes, sim, o então viúvo II), e o não foi de ½ o direito relacionado sobre prédio identificado na alínea a) do ponto 6 supra (foi o direito na proporção de 50909/1000000).»


Vejamos.


Atento o disposto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPC, conjugado com o artigo 662.º do mesmo Código, e considerando que está em causa apenas a aferição de prova documental, importa analisar a pretensão impugnatória.


Começando, desde logo, por realçar que decorre da fundamentação da 1.ª instância o reconhecimento da incorreção da redação dada este ponto quando menciona que do documento consta que foi participado às finanças por óbito da mãe da Ré, uma quota ideal correspondente ao «direito na proporção de 50909/1000000», não se percebendo, assim, porque se atendeu ao teor da participação em relação aos prédios identificados nas alíneas b) e c) do ponto 6 dos factos provados e já não em relação ao prédio identificado na alínea a) do mesmo ponto 6.


Por outro lado, resultando da leitura do documento que efetivamente a participação em relação ao prédio da alínea a) do ponto provado 6 se reporta à referida quota ideal ou direito, e estando em causa neste ponto a participação às finanças por óbito da mãe da Ré (o ponto provado 25 reporta-se à participação por óbito do pai da Ré), encontra-se justificada a impugnação e o correspondente pedido de alteração da redação do ponto 24 nos termos da segunda alternativa proposta pelos impugnantes.


Nestes termos, procede a impugnação em relação ao ponto 24 dos factos provados que passa a ter a seguinte redação:


«Por óbito de JJ, mãe da Ré BB, ocorrido em .../.../2008, no âmbito da participação para efeitos de imposto de selo, apresentado no Serviço de Finanças de ..., em 13/06/2008, foi relacionado metade dos prédios identificados nas alíneas b) e c) e 50909/100000 do prédio identificado em a) do ponto 6 supra.»


Estabilizado o quadro factual, passemos, agora, à análise da segunda questão colocada no recurso.


2.ª Questão - Da (im)procedência dos pedidos ou, subsidiariamente, da nulidade do processo a partir do termo do prazo da apresentação da contestação.


A sentença recorrida julgou a ação improcedente absolvendo os Réus do pedido e, no que concerne, ao pedidos de reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios rústicos em causa nos autos (matriz ...163, denominado P 1; matriz ...108, denominado P 2, e matriz ...131, denominado P 3) fundamentou o decidido nos seguintes termos:


«(…) o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence – art. 1311º, nº 1, do Código Civil.


Quando o pedido tem uma natureza real, a causa de pedir que o terá que sustentar é o facto jurídico de que deriva o direito real – art. 581, º, nº 4, do N. Cód. P. Civil – pelo que, no caso, deverá sê-lo o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade.


A sua prova implica a demonstração de uma causa de aquisição originária do direito. Assiste ao reivindicante o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do demandado, de acordo com as regras gerais de distribuição do ónus da prova – art. 342º do Cód. Civil.


Sucede que, no caso, os Autores não demonstraram a ocorrência de qualquer facto aquisitivo do direito de propriedade (no todo ou na proporção de (1/2) sobre esses três prédios, seja na própria esfera dos Autores seja na esfera do referido GG (esposo, pai e sogro dos Autores), seja na esfera do II pai deste GG.


Como tal, não se pode concluir pela aquisição de tais prédios pelos Autores por sucessão por morte do GG.


Repara-se que, os Autores nunca chegaram a invocar a aquisição desses prédios por usucapião, seja a favor dos próprios Autores, seja pelo referido GG (esposo, pai e sogro dos Autores), seja pelo II pai deste GG.


Daí que se imponha a improcedência destes pedidos.»


Os Apelante não se conformam com tal decisão, entendendo que, apesar de nunca terem chegado a invocar a aquisição do direito de propriedade por usucapião, alegaram factos que vieram a ser dados como provados nos pontos 10 a 23 que revelam a aquisição originária do direito de propriedade sobre tais imóveis, o que levaria à procedência do pedido, pois a invocação do instituto (usucapião) em si mesmo não passaria de uma conclusão jurídica.


Ademais, acrescentam, se o tribunal entendesse que seria necessária a invocação da usucapião «ao nível da causa de pedir» não deveria ter decidido a improcedência da ação, sem antes ter convidado os Autores a suprir as eventuais irregularidades, insuficiências ou imprecisões da p.i., nos termos dos artigos 590.º, n.º 2, alínea b) e n.ºs 3 e 4, e artigo 265.º do CPC, e não o tendo feito, tal omissão corresponde à nulidade prevista no artigo 195.º do CPC, determinante da anulação dos termos subsequentes do processo após o termo do prazo da contestação, incluindo a sentença recorrida, sem prejuízo de se manter nos autos o requerimento e documentos apresentados em 16-04-2024.


Cumpre apreciar.


A questão decidenda exige que se analise qual a causa de pedir que sustenta os pedidos formulados nos autos no que concerne ao pedido de declaração do reconhecimento do direito de propriedade sobre os imóveis supra referidos, uma vez que a apreciação do pedido de nulidade do registo, ou da sua retificação, está dependente da procedência daquele.


Da leitura da p.i.. sai evidenciado que os Autores gizaram a sua pretensão seguindo estas grandes linhas de alegação:


- Em relação ao prédio rústico inscrito na matriz ...163, denominado P 1 (alínea a) do pedido), o falecido GG (respetivamente, marido da Autora, pai da 2.ª e 4.ª Autores e sogro do 3.º Autor) adquiriu por compra e venda (verbal, conforme os Autores esclareceram posteriormente), em 1962, sendo os vendedores GG e mulher KK (cfr. artigos 12.º e 13.º da p.i.).


Mas, para além disso, os Autores e o seu antecessor, o referido GG, sempre se arrogaram proprietários exclusivos do mesmo imóvel, nele praticando os atos possessórios que alegam nos artigos 16.º a 26.º da p.i.


Por outro lado, alegam que a Ré procedeu ao registo em seu nome tendo como causa a aquisição por via sucessória (morte dos pais), falseando, assim, o registo.


Pedem os Autores que sejam declarados donos e legítimos proprietários da totalidade deste imóvel e anulado o registo de aquisição a favor da Ré.


- Em relação ao prédio rústico inscrito na matriz ...108, denominado P 2, e ao prédio rústico inscrito na matriz ...131, denominado P 3 (alíneas b) e c) do pedido), alegam os Autores que adquiriam o direito a metade de cada um deles, por sucessão mortis causa do falecido GG (respetivamente, marido da Autora, pai da 2.ª e 4.ª Autores e sogro do 3.º Autor), o qual os havia adquirido também pela mesma via sucessão por morte de seu pai (II falecido em 1998).


Todavia também alegam os Autores que eles e o falecido GG (respetivamente, marido da Autora, pai da 2.ª e 4.ª Autores e sogro do 3.º Autor) exerciam posse sobre a ½ de cada um dos imóveis, como se fossem proprietários exclusivos dessa quota-parte, exercendo os correspondentes atos possessórios, que descrevem nos artigos 28.º a 45.º da p.i.


Também alegam que a Ré procedeu ao registo em seu nome tendo como causa a aquisição por via sucessória (morte dos pais), falseando, assim, o registo.


Pedem os Autores que sejam declarados donos e legítimos proprietários de ½ de cada um destes imóveis, e anulado o registo de aquisição a favor da Ré ou, a sua correção em conformidade com o respetivo direito.


Importa, pois, caraterizar a causa de pedir e pedido(s) desta ação.


Sendo consabido que no nosso ordenamento jurídico civilista vigora a teoria da consubstanciação, entendendo-se, assim, que a «causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer “fattispecie” jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, 191, vol. I, p. 208).


Desse modo, o demandante deve articular na p.i. os respetivos factos essenciais (também ditos constitutivos do direito invocado) que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação (cfr. artigo 5.º, n.º 1, e 551.º, n.º 1, alínea d), do CPC), não bastando a mera indicação de factos jurídicos abstratos.


Culminando com a formulação do(s) pedido(s)correspondentes e que enforma(m) o efeito jurídico que se pretende conseguir por via da ação, ou seja, a forma de tutela jurisdicional requerida para o direito subjetivo ou interesse legalmente protegido (cfr. artigo 10.º, n.º 1 a 4, 552.º, n.º 1, alínea e), e 581.º, n.º 3, do CPC).


Em face da alegação dos Autores, não nos suscita dúvidas que estamos perante uma ação de natureza real, de reivindicação, em que a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que deriva o direito o direito real (direito de propriedade) – artigo 581.º, n.º 4, do CC – e o pedido, o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinados imóveis, a que se adicionou o pedido acessório de nulidade/correção do registo predial.


Na ação de reivindicação, como decorre do artigo 13111.º do CC, os autores da respetiva ação têm de alegar (e provar) o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada (artigo 342.º, n.º 1, do CC), a qual tem de ser feita através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio por sua parte ou de qualquer dos seus antepossuidores.


Sendo que as formas de aquisição originária encontram-se taxativamente previstas na lei no artigo 1316.º do CC (usucapião, acessão ou ocupação).


Incumbe, por isso, aos Autores a prova do seu direito de propriedade, não bastando, na hipótese de aquisição derivada, como acontece com a sucessão mortis causa, que também invocam para demonstrar que herdaram os imóveis, porquanto a sucessão por morte (com ou sem partilha) não pode considerar-se como um ato constitutivo do direito de propriedade, mas apenas translativo do mesmo, de acordo com o princípio nemo plus juris ad alium transferre potest, havendo ainda necessidade de provar que o direito já existia no transmitente, facto esse, por vezes, difícil de alcançar, mas para o qual podem assumir excecional importância as presunções legais resultantes da posse, se esta for oponível ao detentor, e do registo, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1268.º do CC e 7.º do Código do Registo Predial.


No caso dos autos, não existem a favor dos Autores presunções derivadas do registo e apenas foi alegada a aquisição por compra e venda do prédio inscrito na 6163, ou seja, através de aquisição derivada por contrato por parte do falecido GG (respetivamente, marido da Autora, pai da 2.ª e 4.ª Autores e sogro do 3.º Autor) e, ainda assim, também foram invocados, de seguida, atos possessórios caraterizadores da aquisição originária por usucapião.


Desse modo, aparentemente, a intenção dos Autores foi a de alegarem a aquisição originária (usucapião) dos três prédios em causa nos autos, na totalidade em relação ao inscrito na matriz 6163 e na proporção de metade em relação aos inscritos nas matrizes 6108 e 6131.


O que aparenta sair evidenciado da alegação dos descritos os respetivos atos possessórios praticados pelos seus antecessores e pelos próprios. A alegação referente à aquisição por via sucessória, nessa perspetiva, parece apenas pretender elucidar o encadeamento dos atos relacionados com a aquisição originária.


Todavia, os Autores na p.i. nunca se referem expressamente à usucapião.


O que suscita a questão da invocação tácita ou implícita da usucapião, pelo menos, em termos jurídicos, porquanto em termos factuais não há qualquer dúvida que os factos essenciais à apreciação da aquisição prescritiva se encontram alegados.


Poderá o tribunal nestas circunstâncias levar em conta esses factos ainda que a parte não tenha expressamente invocado a usucapião?


A resposta a esta questão é positiva com base na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que já assim decidiu em situações semelhantes.


No Acórdão do STJ de 02-03-19991, lê-se a síntese do assim decidido nos seguintes termos:

«I - A usucapião considera-se invocada desde que se mostre alegado o complexo fáctico subjacente.

Tal invocação pode pois ser implícita ou tácita, se os factos alegados integrarem, de modo manifesto, os respectivos elementos ou requisitos constitutivos e revelarem a intenção inequívoca de fundar o seu direito na usucapião.»

Lendo-se na respetiva fundamentação:

«Temos para nós que a usucapião considera-se invocada, desde que se mostre alegado o complexo fáctico subjacente. Como já decidiu este Supremo, "a invocação da usucapião pode ser implícita ou táctica, sendo certo que, neste caso, deve o autor alegar factos que, clara e manifestamente, integrem os respectivos elementos ou requisitos e revelem inequivocamente a sua intenção de fundamentar na usucapião o seu direito" (Ac. de 10-04-84, BMJ 336, p.433).»

No mesmo sentido, no Acórdão proferido em 22-03-20182, o STJ voltou a pronunciar-se sobre a questão, lendo-se no sumário destes aresto:

«IV – A aquisição por usucapião não funciona “ipso iure”, sendo necessário que a mesma seja invocada, isto é, seja manifestada a vontade de usucapir o direito a que se refere a posse por quem tiver legitimidade para tal.

V – É desnecessário que a invocação, em processo judicial, dos factos reveladores da usucapião seja acompanhada do pedido do seu reconhecimento, bastando que esses factos integrem a causa de pedir de um outro pedido que a pressuponha ou sejam alegados como elemento integrador da legitimidade de quem na ação a invoca.»

Na fundamentação do assim decidido, lê-se o seguinte:

«É inequívoco que a usucapião, forma originária de aquisição de direitos reais de gozo através da sua posse por certo lapso de tempo, é facultada ao possuidor pelo art. 1287º e segs. do CC.

“É de notar (…) que o legislador, ao contrário do que se passava com o Código de 1867, não diz que pela posse se adquirem direitos, mas sim que a posse faculta ao possuidor a sua aquisição. A nova redacção provém do facto de a usucapião, para ser eficaz, necessitar de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (…)”[7]

O aproveitamento desta faculdade pode ter lugar, na verdade, por via judicial ou, também, extrajudicial, por força da remissão contida no art. 1292º para o art. 303º, também ambos do CC.[8]

Isto quer dizer que a aquisição por usucapião não funciona “ipso iure”, sendo necessário que a mesma seja invocada, isto é, seja manifestada a vontade de usucapir o direito a que se refere a posse[9] por quem tiver legitimidade para tal, o que é, indiscutivelmente, o caso de quem por essa via se torna titular do direito em causa.

Não restam dúvidas de que na p. i. o autor, aqui recorrente, invocou factos de onde extraiu a ocorrência de usucapião, em seu favor, sobre o prédio referido nos autos, mas não formulou, como se viu, o pedido de reconhecimento, pelo tribunal, desse facto jurídico, o que levou a que no acórdão recorrido se considerasse ineficaz a alegação dos correspondentes factos.

Entende-se que, quando extrajudicial, a invocação da usucapião não está sujeita a forma especial, para ela valendo o princípio da liberdade de forma, nos termos do art. 219º do CC, pelo que poderá ser expressa ou tácita[10].

Esta invocação é, pois, uma declaração negocial, que produz os seus efeitos sem necessidade de uma decisão judicial que valha como elemento constitutivo da correspondente aquisição. E, sendo assim, é desnecessário que a invocação, em processo judicial, dos factos reveladores da usucapião seja acompanhada do pedido do seu reconhecimento, bastando que esses factos integrem a causa de pedir da ação.

É óbvio que o interessado pode formular esse pedido, como pressupõe José Alberto Vieira quando escreve: “A invocação da usucapião pode ser feita judicial ou extrajudicialmente. Isto quer dizer, que o possuidor não precisa de recorrer ao tribunal para obter o efeito aquisitivo ligado à usucapião. A invocação extrajudicial da usucapião tem exactamente o mesmo valor da declarada por um tribunal competente.”[11] – sublinhados nossos.

Isto não quer dizer, porém, que a invocação judicial da usucapião tenha de ser feita através de uma ação onde, concomitantemente, se formule o pedido do seu reconhecimento, pois não há razões para excluir a possibilidade de essa invocação ser feita apenas através da alegação dos factos que a revelem e para servir como causa de pedir de um outro pedido que a pressuponha ou como elemento integrador da legitimidade de quem na ação a invoca.

Atente-se em que Pires de Lima e Antunes Varela[12] se limitam a referir, como condição para que o tribunal conheça da usucapião, a circunstância de os factos conducentes à usucapião serem articulados pelo interessado, reveladora de que quer aproveitar-se dos efeitos da mesma, sem que mencionem a necessidade de formulação do correspondente pedido de reconhecimento.»3

Afigura-se-nos que esta jurisprudência de aplica ao caso dos autos. Ou seja, apesar dos Autores não terem expressamente invocado a usucapião, ao alegarem factos reveladores da usucapião, basta essa alegação para que esses factos integrem a causa de pedir da ação.


Donde, não poderia o tribunal a quo deixar de apreciar os factos referentes ao funcionamento da usucapião e deles retirar as devidas consequências jurídicas.


Consequentemente, a questão subsidiária suscitada pelos Apelante (da nulidade do processo a partir do termo do prazo da apresentação da contestação) encontra-se prejudicada na sua análise (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).


Cabe, então, analisar se os Autores lograram provar, como lhes competia (artigo 324.º, n.º 1, do CC) os factos reveladores da aquisição por via da usucapião.


A usucapião enquanto forma de aquisição originária de direitos reais opera pela transformação de uma situação de facto ou de mera aparência numa situação jurídica em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa, ou seja, confere ao possuidor o direito real correspondente à sua posse, desde que esta, seja dotada de determinadas caraterísticas e se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei (artigo 1278.º do CC).


Como resulta do artigo 1251.º do CC, por contraposição ao artigo 1253.º do mesmo Código, a aquisição da propriedade por usucapião tem como pressuposto a existência de uma posse em nome próprio, não apenas com corpus, mas também com animus.


O corpus da posse traduz-se no «poder de facto» manifestado pela atividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigos 1251.º e 1252.º, n.º 2 do Código Civil).


Quanto ao animus possidendi, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a atividade em que o corpus se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.


Assim, sendo embora necessário o corpus e o animus, face ao disposto no n.º 2 do artigo 1252.º do CC, o exercício daquele fará presumir a existência deste, presumindo-se a mesma naquele que exerce o poder de facto, pois «Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º».


Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de pacífica, titulada, de boa-fé ou má-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.


A posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1262.º do CC); a posse pacífica, a adquirida sem violência (artigo 1261.º do mesmo diploma).


Quanto ao lapso temporal, varia consoante a posse é de boa ou má-fé, titulada ou não titulada, sendo considerada não titulada quando o negócio jurídico donde resultou a situação de posse é nulo por vício de forma, já que a lei prescinde apenas da validade substancial do negócio jurídico, não presumindo o título, cuja existência deve ser provada por aquele que o invoca (artigo 1259.º do CC).


A posse diz-se de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, ou seja, quando o possuidor ao começar a gozar a coisa atua na convicção de que não está a prejudicar outrem, presumindo-se a posse não titulada de má-fé, sendo o momento em que deve existir a boa-fé o da aquisição da posse (artigos1260.º do CC).


Por força do artigo 1296.º do CC, se não houver registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé.


Sendo que para efeitos da posse conducente à usucapião, não se torna necessário que aquela se mantenha durante os prazos determinados na titularidade do mesmo sujeito; quando tenha havido transmissão da posse, o sujeito pode juntar à sua a posse do seu antecessor ou antecessores. 4


No caso em apreço, os factos relevantes para a verificação de todos os elementos da posse boa para usucapir encontram-se vertidos nos factos provados nos n.ºs 10, 12 a 23.


Assim, em relação ao imóvel inscrito na matriz ...163 (P 1), após a sua aquisição em 1962, por GG (esposo, pai e sogro dos Autores), sempre o mesmo foi utilizado na totalidade, pelos adquirente e pelos Autores, desde aquela data até ao presente, nos termos que evidenciam a existência de corpus e animus, ou seja, de modo a revelarem atos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, com a intenção de exercerem o referido direito, de forma pública e pacífica (sem haver oposição de ninguém) e de boa-fé, por um largo lapso de tempo (no total, a posse ocorreu por mais de 60 anos à data da p.i), o que conduz à verificação dos requisitos da usucapião.


Também em relação aos imóveis inscritos na matriz ...108 (P 2) e na matriz ...131(P 3) ficou provado que já o avô dos 2.º e 3.º Autores, há mais de 50 anos, sempre utilizou este prédios, na totalidade, lavrando-os, agricultando-os, colhendo os seus frutos e pagando os respetivos impostos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ininterruptamente e sempre na convicção de que era seu proprietário exclusivo, não lesando o direito de ninguém.


Por sua morte, ocorrida em 1988, os seus filhos e sucessores (cfr. facto provado 19), e por óbito destes, têm sido os Autores e Réus quem utiliza, na proporção de metade para cada parte os referidos imóveis, nos termos que constam dos factos provados (cfr. pontos 22 e 23) também de molde a revelar a existência de corpus e animus, ou seja, de modo a revelarem atos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, com a intenção de exercerem o referido direito, de forma pública e pacífica (sem haver oposição de ninguém), e de boa-fé, por um largo lapso de tempo (no total, a posse ocorreu há mais de 90 anos, à data da p.i.), o que conduz à verificação dos requisitos da usucapião.


Verificam-se, assim, os requisitos da aquisição do direito de propriedade sobre os prédios em causa, por via da prova dos requisitos da usucapião.


Deste modo, o pedido dos Autores procede e devem ser julgados procedentes os pedidos formulados sobre as alíneas A) e B), impondo-se a revogação da sentença.


3.ª Questão – Da nulidade e cancelamento do registo referente aos prédios em causa nos autos.


Como decorre do facto provado 24 (redação dada após a impugnação da decisão de facto) e dos factos provados 25 a 33, encontram-se registados a favor dos Réus os imóveis em causa nos autos, na sua totalidade, verificando-se, assim, uma desconformidade entre os factos ora apurados e os referidos registos.


Invocam os Apelantes a nulidade dos registos por se terem baseado em documento falso, nos termos dos artigos 16.º, alínea b) e 17.º do Código de Registo Predial, não sendo tal nulidade suscetível de retificação nos termos do artigo 120.º e ss do mesmo Código.


Subsidiariamente, contudo, pugnam pela retificação dos referidos registos em relação aos imóveis acima identificados como P 2 e P 3.


Cumpre apreciar.


De acordo com o artigo 1.º do Código do Registo Predial, «O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário».


Não tendo o registo no nosso sistema, em regra, natureza constitutiva do direito, decorre do artigo 7.º a presunção de que o «direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.»


Todavia, a prevalência da realidade substantiva sobre a realidade registal constitui fundamento que permite ilidir a referida presunção ditada pelo registo definitivo.


A ilisão da presunção tabular pode resultar de vícios que afetam o registo e que podem ser a inexistência, a nulidade e a inexatidão.


No caso, está em causa, em primeira linha, a nulidade do registo e, subsidiariamente, a retificação por inexatidão.


A inexatidão do registo verifica-se quando o registo se mostra lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enfermar de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade, e pode ser retificada por averbamento (artigos 18.º, n.º 2, e 120.º e ss do Código de Registo Predial), passando o registo a considerar-se perfeito e inatacável.


Já a nulidade do registo encontra-se prevista no artigo 16.º do Código de Registo Predial.


Uma das causa de nulidade, tal como é invocado pelos Autores, encontra-se prevista na alínea b) do referido artigo 16.º, ou seja, o registo é nulo «Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova do facto registado.»


No caso, os registos em declarações que não correspondem à realidade apurada nestes autos, porquanto são conhecidos os antepossuidores e atuais possuidores dos imóveis. Por outro lado, os documentos apresentados (escritura de habilitação de herdeiros e documentos extraídos de processos sucessórios fiscais) não eram suficientes para se ter lavrado o registo nos termos em que foram lavrados.


Afigura-se, assim, estarem preenchidos os requisitos para a declaração de nulidade dos registos em causa nos autos (artigo 16.º, n.º 1, alínea b), do Código de Registo predial), o que pode ser declarado nesta ação.5


Nestes termos, procede o pedido de declaração de nulidade dos registos e, consequentemente, devem os mesmos ser cancelados, ficando, assim, prejudicada a apreciação do pedido de retificação dos registos formulado na alínea D) do petitório (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).


Responsabilidade tributária:


Não são devidas custas, porquanto os Réus não contestaram a ação, nem responderam ao recurso, inexistindo qualquer impulso processual por banda dos mesmos (artigo 529.º, n.º 2, do CPC).


Por outro lado, os Autores obtiveram vencimento de causa, pelo que não devem ser responsabilizados pelo pagamento de custas (artigo 527.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC), nem pelo critério subsidiário de quem tira proveito da causa (artigo 527.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC), considerando que, quer o critério da causalidade, quer o do proveito, encontram-se atualmente sujeitos ao princípio do pagamento de custas em função do impulso processual previsto no referido n.º 2 do artigo 529.º do CPC.6


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, julgam procedente a ação, nos seguintes termos:


a)- Condenam os Réus a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre a totalidade do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...163/20091022, da freguesia de ...), situado em P 1, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...663, declarando a nulidade do registo e ordenando, consequentemente, o cancelamento do registo de aquisição (Ap. 4019 de 22/10/2009), a favor da Ré BB, casada com FF no regime da comunhão geral, por sucessão hereditária de JJ e II.


b)- Condenam os Réus a reconhecer o direito de propriedade dos Autores, na proporção de metade, sobre o prédios rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...108/20091022, da freguesia de ...), situado em P 2, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...802, declarando a nulidade do registo e ordenando, consequentemente, o cancelamento do registo de aquisição (Ap. 4019 de 22/10/2009), abrangendo a totalidade, a favor da Ré BB, casada com FF no regime da comunhão geral, por sucessão hereditária de JJ e II.


c)- Condenam os Réus a reconhecer o direito de propriedade dos Autores, na proporção de metade, sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...131/20091022, da freguesia de ...), o prédio rústico situado em P 3, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...865, declarando a nulidade do registo e ordenando, consequentemente, o cancelamento do registo de aquisição (Ap. 4019 de 22/10/2009), abrangendo a totalidade, a favor da Ré BB, casada com FF no regime da comunhão geral, por sucessão hereditária de JJ e II.


Não são devidas custas.


Évora, 27-03-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


Susana Ferrão (1.ª Adjunta)


Sónia Moura (2.ª Adjunta)

_________________________________________________

1. Proferido no proc. n.º 98B1043 (Rel. Sousa Dinis), em www.dgsi.pt↩︎

2. Proferido no proc. n.º 48/15.0T8VNC.G1.S1 (Rel. Rosa Ribeiro Coelho), em www.dgsi.pt↩︎

3. As notas referidas no trecho do aresto transcrito correspondem ao seguinte:

[7] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, pág. 65.

[8] Cfr. ainda neste sentido, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª edição, pág. 237 e Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3ª edição, pág. 341-342.

[9] Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 422

[10] Cfr. obra citada na nota anterior, pg. 423 e, ainda, o acórdão do STJ de 27.4.2006, proc. 06B496, relator Pereira da Silva

[11] Cfr. obra citada na nota anterior, pág. 423

[12] Cfr. obra e volume citados, pág. 71-72↩︎

4. MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, ed. 1979, p. 681; no mesmo sentido, e expressamente para efeitos de invocação da usucapião, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, 5ª ed. p. 115 e 384.↩︎

5. Cfr. Ac. RE, de 28-03-2019, proc. n.º 1769/17.9T8STR.E1, em www.dgsi.pt↩︎

6. Neste sentido, cfr. fundamentação vertida no Ac. TC n.º 25/2024, proferido em 16-01-2024, disponível em www.tribunalconstitucional.pt↩︎