Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
503/18.0T9STR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país - e no ambiente em que se passaram os factos - não considera difamação, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora.
Nesta ordem de ideias, um facto ou um juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e/ou da consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável e de tal forma que a sociedade não lhe seja indiferente, reclamando a tutela penal para dissuasão e repressão desse comportamento.

Por outras palavras: a punição por crime de difamação pressupõe a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra ou consideração.

Por outro lado, e convém salientar-se, quando se pune um ato difamatório não se visa a proteção da suscetibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra ou da sua consideração (como atrás se disse).

Ou seja, a consideração como ofensivo, para efeitos penais, de um facto imputado a outrem, tem de basear-se em critérios objetivos, partindo das regras da lógica comumente aceite e do entendimento do Homem comum, não podendo estribar-se na “sensibilidade” subjetiva (maior ou menor) do próprio visado.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 503/18.0T9STR, do Juízo Local Criminal de Santarém (Juiz 1), e mediante pertinente sentença, foi decidido:

“A) Condenar o arguido FALCM como autor de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, e 184º, este referido ao artigo 132º, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de seis euros, o que perfaz a pena de multa de 1080 euros, que, caso não seja paga, poderá ser convertida em prisão subsidiária nos termos do artigo 49º do Código Penal.

B) Condenar o arguido nas custas da ação penal, com taxa de justiça de 3 Unidades e meia de Conta”.

*

Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“Da nulidade da Sentença

1 - A sentença a quo, muito embora contenha os factos provados e não provados, contudo é omissa na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

2 - Conclui-se pela nulidade da sentença, por omissão de um dos requisitos integrantes da fundamentação exigidos pelo nº 2 do artigo 374º do CPP, nomeadamente do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Do Erro Notório na Apreciação da Prova

3 - A sentença recorrida dá como provados, nos pontos 10 a 20, os factos alegados pelo Recorrente na sua contestação, os quais provam os factos imputados ao ofendido.

4 - Não obstante os factos provados nos pontos 10 a 20, a sentença recorrida ignora esses factos, para concluir que o Recorrente imputa condutas abstratas que se traduzem em juízos de desvalor sobre o ofendido.

5 - Também contrariando os factos vertidos nos pontos 10 a 20, conclui a sentença recorrida que o Recorrente não fez prova dos factos imputados ao ofendido.

6 - Nem, outrossim, pode considerar-se que o Recorrente tivesse sério fundamento para, em boa fé, reputar como verdadeiros os factos imputados ao ofendido, isto não obstante a abundante prova documental junta pelo Recorrente.

7 - Acresce que, a sentença recorrida também dá como não provados factos que, de acordo com as regras de experiência de um cidadão de cultura média, teriam de ser dados como provados.

8 - Nomeadamente que o ofendido adquiriu o imóvel por um valor muito e manifestamente inferior ao seu valor de mercado, isto considerando que o ofendido adquiriu o imóvel por metade do valor patrimonial (15.000,00€) e que o vendeu por 220.000,00€!!!

9 - Que o valor da aquisição do imóvel, propriedade da massa falida, causou prejuízo aos credores da massa falida, entre eles o Estado Português, neste caso Segurança Social e Autoridade Tributária.

10 - Por sua vez, deveria ser dado como não provado a matéria constante dos pontos 7 e 8, isto atendendo a que o Recorrente apenas quis denunciar, dar a conhecer, as suas dúvidas sobre a legalidade da atuação do ofendido, enquanto sócio-gerente e mandatário da sociedade comercial I, no que respeita à aquisição do imóvel, sobretudo depois de resultarem provadas as irregularidades havidas na cessão de créditos à cessionária I..

11 - A sentença enferma do vício elencado no artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, pois efetivamente há erro notório na apreciação da prova, por se verificar flagrante distorção de ordem lógica entre os factos provados e não provados.

Sem prescindir,

12 - O Recorrente fez prova dos factos imputados ao ofendido (pontos 10 a 20 dos factos provados).

13 - Os factos imputados ao ofendido constam de um requerimento subscrito pelo Recorrente, o qual constitui “resposta” ao alegado pelo ofendido na contestação apresentada no processo de que o Recorrente era Autor.

14 - Os factos provados e vertidos nos pontos 4, 5 e 6 não preenchem os elementos objetivos do crime de difamação agravado de que o Recorrente foi acusado e condenado.

15 - Foram, assim, violadas as normas dos artigos180°, nº 1, 184º, 188º, nº 1, alínea a), com referência ao 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal.

Termos em que, e nos mais de direito, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente pela prática dos factos constantes da acusação, com o que se fará Justiça”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se também no sentido da total improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, face às conclusões retiradas pelo recorrente da motivação do recurso, e em breve resumo, são três as questões a conhecer:

1ª - Saber se a sentença recorrida é nula, por não se encontrar devidamente fundamentada, nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal (nulidade essa prevista no artigo 379º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal).

2ª - Apreciar da existência de erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal).

3ª - Determinar se os factos dados como provados na sentença revidenda preenchem, ou não, os elementos objetivos do tipo legal de crime de difamação.

2 - A sentença recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados - e quanto à motivação da decisão fáctica):

“FACTOS PROVADOS:

1 – AFTM exerce a profissão de advogado, usando o nome profissional de ATM, com escritório na …, em ….

2 – AFTM foi mandatado pela sociedade comercial I, Ldª, para intervir em sua representação em qualquer ação judicial, entre as quais no Processo nº…, que corre os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Comércio de … (Juiz…).

3 - Em 29 de setembro de 2017, ATM foi notificado de um requerimento apresentado por FLCM.

4 - Com efeito, no dia 28 de setembro de 2017, no âmbito do aludido Processo nº …, o arguido FLCM apresentou requerimento por si subscrito e no qual, referindo-se ao ofendido ATM, profere as seguintes expressões: “as afirmações contidas no requerimento não são maioritariamente verdadeiras, antes fabricadas e ficcionadas pelo sócio-gerente da I, ATM, que, advogando em causa própria, conseguiu apoderar-se do património da empresa insolvente, de forma ilícita, ilegal e sem dispor de capital”.

5 - Mais refere o arguido, em tal requerimento, referindo-se a ATM que “o exemplo da sua forma de atuar é o recente ato praticado em conluio com a administradora da Insolvência DrªAVM, que, no dia 26 de setembro, entenderam arrombar as portas, mudar as fechaduras e furtar bens, tendo sido apresentada uma queixa-crime no DIAP”.

6 - Refere ainda o arguido, no aludido requerimento, e referindo-se, uma vez mais, a ATM, que é intenção do requerente colocar uma queixa-crime contra os sócios da «l», pelos insultos que são dirigidos no processo, participar à Ordem dos Advogados e ao Procurador da República, porquanto a venda dos bens é fraudulenta e prejudicou os credores, designadamente o Estado Português (Segurança Social e Autoridade Tributária), é por diversas razões ilegal, designadamente os bens foram vendidos por baixo valor ao advogado da empresa AM, ao arrepio do preceituado no artigo 579º.

7 - Ao atuar da forma descrita, pretendia o arguido denegrir a imagem de ATM, descredibilizando a sua atuação como advogado e como mandatário da sociedade comercial denominada I, Ldª.

8 - Igualmente sabia o arguido que as afirmações proferidas são suscetíveis de atingirem a honra, dignidade e consideração pessoal e profissional de ATM, que sabia ter atuado no exercício do mandato forense conferido pela sociedade comercial I, Ldª.

9 - O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

10 - Foi instaurada pelo Arguido ação de Processo Comum nos termos do artigo 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, a qual corre termos no Juízo de Comércio de …,J…, sob o nº ….

11 - No seguimento da Contestação apresentada nos autos do referido Proc. … pelo queixoso Dr. AFTM, veio o arguido apresentar requerimento notificado ao ofendido a 29 de setembro de 2017, exercendo o seu direito ao contraditório.

12 - Requerimento este que dá origem à queixa crime apresentada pelo queixoso e que origina o presente processo crime.

13 - AFTM foi nomeado em 07 de abril de 2015 sócio-gerente da sociedade comercial I, constituída em 2014.

14 - Fazia parte do património da empresa insolvente um imóvel, sito na Rua …, …, inscrito na matriz sob o nº …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, cuja propriedade foi reivindicada pelo arguido no apenso … do Proc. ….

15 - Após negociações entre a Administradora de insolvência e os sócios-gerentes da I, este imóvel foi vendido à I, por 15.000 euros, sendo o seu valor patrimonial exarado na escritura de compra e venda de 35.584,66 euros.

16 - O imóvel supra identificado foi vendido em 04 de setembro de 2019 pela I, pelo valor de 220.000,00€.

17 - À data da celebração da escritura pública de venda do imóvel, 21 de setembro de 2015, eram sócios-gerentes da I, JLPM e AFTM.

18 - Ocorreu a proposta de aquisição de 5 imóveis, propriedade da massa falida, apresentada por JLPM e AFTM enquanto cessionários do direito da sociedade N.

19 - Para obrigar a sociedade N, são necessárias as assinaturas dos dois gerentes quanto estão em causa atos de alienação do património.

20 - O documento junto com a contestação do Arguido, referência …., como doc. 4, cujo teor se dá por reproduzido, está assinado só por um sócio da sociedade N.

21 - O certificado de registo criminal do arguido, junto aos autos com a referência …, não insere qualquer condenação sua.

22 - O Arguido é …, vive sozinho, em casa cedida por pessoas amigas, não aufere rendimentos e é ajudado financeiramente pelo seu filho mais velho.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não se provou;

1 - Que foi em 2003 que deu entrada a ação supra referida em 2.

2 - Que AFTM, enquanto advogado da I e também sócio-gerente desta à data, adquiriu os bens por um valor muito e manifestamente inferior ao seu valor de mercado.

3 - Que, quando o arguido fez constar, no requerimento que apresentou, as afirmações supra referidas em 4 a 6, não teve por objetivo atingir a honra, dignidade e consideração pessoal e profissional do ofendido AFTM, mas apenas e tão só dar conhecimento aos autos de factos.

FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL:

O tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos provados e não provados, na análise crítica do conjunto da prova produzida.

Efetivamente, não basta a indicação dos meios de prova pré constituídos e produzidos na audiência de julgamento que serviram para fundamentar a sentença.

É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correta aplicação da justiça no caso concreto. Trata-se de significativa alteração do regime do Código de Processo Penal de 1929, e mesmo do que, segundo alguma doutrina, anteriormente, vigorava por alterações introduzidas no C.P.P.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, conforme impõe o artigo 410º.

E, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efetivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados desde logo nas declarações do Arguido, na parte em que foram coincidentes com os factos provados, tendo o Arguido declarado que o requerimento em questão foi feito pela sua advogada, o qual fez seu e assinou digitalmente, aceitando ainda assim a sua autoria, e que não compreende a acusação que lhe é feita dado que se limitou a expor factos, tendo prestado declarações sobre a sua situação pessoal, social, económica e familiar, nos termos que se deram como provados.

O Tribunal fundou primacialmente a sua convicção quanto aos factos provados no depoimento da testemunha AFTM, que confirmou os factos provados de que tem conhecimento, tendo tal depoimento, não obstante tratar-se do queixoso, sido prestado de modo sereno e com isenção, depoimento que foi corroborado pela análise dos documentos infra referidos.

O tribunal fundou-se ainda primacialmente na análise dos seguintes documentos juntos aos autos, a folhas 10 a 12, requerimento, Certidão de folhas 180 a 185 e os documentos juntos com a contestação do Arguido, referência …, e ainda certificado de registo criminal do Arguido junto com a referência ….

A testemunha MAM, embora tenha tido a qualidade de Administradora de insolvência do Processo …, não se recorda da situação em questão, tendo referido ao tribunal a extrema complexidade do processo, em que praticamente cada despacho era alvo de recurso e que, dada a extensão e complexidade do mesmo, não se recorda da situação em concreto.

As restantes testemunhas ouvidas em audiência de julgamento não têm conhecimento direto dos factos, depondo PMCS e JMVA apenas sobre o comportamento e modo de vida do Arguido.

A testemunha HJDG não conhece o Arguido e não tem conhecimento de qualquer facto relevante para a boa decisão da causa.

Não se fez qualquer prova sobre os factos não provados, e daí, necessariamente, as respostas negativas”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da nulidade da sentença.

Argui o recorrente a nulidade da sentença, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, na medida em que não foi efetuado o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “nulidade da sentença”, dispõe o artigo 379º do C. P. Penal:

“É nula a sentença:

a) que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º (…)”.

Por sua vez, o artigo 374º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal, sobre os “requisitos da sentença”, estabelece:

“1. A sentença começa por um relatório, que contém:

(…).

2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Como bem salienta Marques Ferreira (in “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, Livraria Almedina, 1988, pág. 228), este regime legal, quanto à fundamentação da decisão de facto, consagra “um sistema que obriga a uma correta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do processo, de modo a permitir-se um efetivo controle da sua motivação”.

O “exame crítico das provas” consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um Homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

É nesta motivação da decisão fáctica que se dá a conhecer e a compreender aos outros o processo lógico do julgamento, da apreciação e da valoração da prova. E é ainda esta motivação que permite a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, foi seguido um processo lógico e racional de apreciação da prova.

No dizer de Sérgio Gonçalves Poças (in “Da sentença penal - Fundamentação de facto”, Revista Julgar, ed. da ASJP, nº 3, pág. 37), o tribunal dará cumprimento ao disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, com indicação e exame crítico das provas, “ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões, de forma objetiva e precisa, por que é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e por que é que outras não serviram”.

Indo à sentença objeto do recurso, na parte reservada à motivação da decisão de facto, dela constam, de modo apreensível, quer a referência a todas as provas em que o Tribunal de primeira instância se baseou, quer os raciocínios seguidos pelo Exmº Juiz, a partir dessas provas, para dar por provados os factos.

Com efeito, e em breve resumo, escreve-se na sentença revidenda que o Tribunal, para formar a sua convicção quanto aos factos (provados e não provados), sopesou as declarações do próprio arguido/recorrente (o qual, na audiência de discussão e julgamento, assumiu a autoria do “requerimento” a que se reportam os factos provados sob os nºs 4 a 6, muito embora invocando que “se limitou a expor factos”), atendeu ao depoimento do ofendido AM, “que confirmou os factos provados (…) de modo sereno e com isenção”, e, bem assim, procedeu à análise do teor dos diversos documentos juntos aos autos (documentos que são indicados e enumerados pelo Exmº Juiz, e que incluem os oferecidos pelo recorrente na respetiva contestação).

Assim sendo, e muito embora de forma enxuta a condensada, na sentença sub judice foi cumprida a exigência legal de fundamentação probatória, porquanto nela estão explicitadas, por forma apreensível e suficiente, as provas e as razões da convicção do tribunal.

Por outras palavras: o tribunal a quo pronunciou-se acerca dos motivos pelos quais deu como provados os factos, esclarecendo as razões dessa convicção.

Por conseguinte, mostra-se cumprido o dever legal de fundamentação da decisão fáctica, com exame crítico das provas, incluindo indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios de lógica, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formasse em determinado sentido.

Face ao predito, verifica-se que a sentença recorrida satisfaz o disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal.

Tendo a sentença recorrida dado cumprimento a tal preceito, a mesma não enferma da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal.

Assim, é de improceder, neste primeiro segmento, o recurso interposto.

b) Do erro notório na apreciação da prova.

Alega o recorrente que ocorre na sentença sub judice o vício do erro notório na apreciação da prova (vício este prevenido no artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal), porquanto existe uma flagrante distorção de ordem lógica na factualidade (provada e não provada), na medida, por um lado, em que os factos provados sob os nºs 10 a 20 implicam que se considerem como não provados os factos nºs 7 e 8 - e que se dê ainda como provado que o arguido “apenas quis denunciar e dar a conhecer as suas dúvidas sobre a legalidade da atuação do ofendido” -, e, por outro lado, implicam que se dê como provado que o ofendido, enquanto sócio-gerente da Imocausa Ldª, adquiriu o imóvel sito na Rua …, ….., por um valor muito e manifestamente inferior ao seu valor de mercado (facto elencado na sentença em análise sob o nº 2 da factualidade não provada).

Cabe decidir.

Na sentença recorrida, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, não vislumbramos, minimamente, a ocorrência do invocado vício do erro notório na apreciação da prova.

Como bem referem Simas Santos e Leal Henrique (in “Recursos em Processo Penal”, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77), existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um Homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta, face à prova produzida; ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respetiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do Homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.

A esta luz, verifica-se que as alegações do recorrente, nesta vertente, traduzem apenas a sua visão da factualidade em apreço nos autos, segundo a qual os factos dados como provados na sentença revidenda sob os nºs 10 a 20 (e retirados pelo Tribunal recorrido da documentação junta pela Defesa) contrariam os factos dados por provados sob os nºs 7 e 8 (atuação com dolo e com consciência da ilicitude).

Ou seja, a circunstância de ter sido instaurada (pelo arguido) uma ação nos termos do artigo 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, na qual o ofendido, na qualidade de Advogado, apresentou contestação, contestação a que o arguido “respondeu” com o “requerimento” que deu origem ao presente processo-crime e cujo teor foi dado como provado na sentença revidenda, é, na opinião expressa na motivação do recurso, apta a não poder dar-se como provado que o arguido denegriu a imagem do ofendido e descredibilizou a sua atuação como advogado e como mandatário da sociedade comercial I, Ldª, que o arguido tenha agido com esse propósito, e que o arguido soubesse que as afirmações constantes do aludido “requerimento” são suscetíveis de atingirem a honra, a dignidade e a consideração pessoal e profissional do ofendido (factos provados na sentença em análise sob os nºs 7 e 8).

O Tribunal recorrido, contrariamente à opinião do recorrente, entendeu que as afirmações constantes do referido “requerimento”, mesmo olhando ao contexto onde foram exaradas, atingem a honra e a dignidade (pessoal e profissional) do ofendido, sendo certo que o arguido agiu com esse propósito, sabendo que a sua conduta era proibida.

Com o devido respeito pela opinião expressa na motivação do recurso, afigura-se-nos que o Tribunal recorrido ponderou e equacionou os factos de uma forma coerente e correta, não merecendo qualquer censura o processo da sua convicção.

Na verdade, a factualidade dada como assente nos pontos de facto nºs 10 a 20 revela-nos, em resumo, que o arguido instaurou, no Juízo de Comércio de …, uma ação nos termos do artigo 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (ação destinada ao reconhecimento de créditos e ao exercício do direito à restituição ou separação de bens apreendidos para a massa falida depois de já ter decorrido o prazo de reclamação de créditos fixado na sentença declaratória da falência), reivindicando a propriedade do prédio urbano com o artigo matricial …,, sito na Rua …, …, apreendido para a massa falida, que esse imóvel, com o valor patrimonial de 35.584,66 euros, foi vendido em 21 de setembro de 2015 pela administradora da insolvência à sociedade I Ldª, da qual o ofendido é sócio-gerente, por 15.000 euros, e que, em 04 de setembro de 2019, a Ldª vendeu o mesmo imóvel por 220.000 euros.

Ora, daqui, desta factualidade, não se pode concluir que o ofendido, conforme as imputações e as expressões utilizadas pelo arguido no “requerimento” acima referenciado (“requerimento” a que se reportam os factos dados como provados sob os nºs 4 a 6), se apoderou do património da empresa falida de forma ilícita, ilegal e fraudulenta, ou que tenha “arrombado” portas e “furtado” bens, em “conluio” com a Sr.ª liquidatária judicial da falência, e, por igual razão, não se pode concluir, como se alega na motivação do recurso, que o recorrente não pretendesse denegrir e descredibilizar o ofendido (enquanto pessoa e enquanto Advogado), limitando-se, tão-só, a dar conhecimento de “factos” ao processo que corria no Juízo de Comércio de ….

Do mesmo modo, e por contrariar as elementares regras da lógica comumente aceite (as regras da experiência comum), não se pode concluir, como se pretende na motivação do recurso, que o arguido não soubesse que as expressões utilizadas no “requerimento” em apreço fossem suscetíveis de atingirem a honra, a dignidade e a consideração (pessoal e profissional) do ofendido.

Numa outra ordem de ideias, nenhuma prova foi produzida que, fundadamente, permita concluir que o ofendido tenha adquirido o prédio urbano em causa (sito na Rua…., ...), por valor muito e manifestamente inferior ao seu valor de mercado (facto alegado pelo arguido na respetiva contestação e dado como não provado na sentença - sob o nº 2 da factualidade não provada -: “AFTM, enquanto advogado da I e também sócio-gerente desta à data, adquiriu os bens por um valor muito e manifestamente inferior ao seu valor de mercado”).

É certo que a aquisição do prédio urbano em questão foi efetuada por um valor inferior ao do respetivo valor patrimonial, mas nada nos permite afirmar que a aquisição foi feita por um valor “muito e manifestamente inferior” ao seu valor de mercado, porquanto o valor de mercado, relativo a esse prédio, não foi sequer apurado (aliás, e como é consabido, a venda de imóveis por valores inferiores aos valores do mercado é uma realidade muito comum nas vendas judiciais).

Acresce que, e como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “a venda dos bens da massa falida não podia ser realizada a bel-prazer do liquidatário judicial. Conforme dispunham os artigos 180º e seguintes do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de abril, que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, então vigente, a liquidação do ativo era efetuada com a fiscalização de uma comissão de credores (artigo 180º, nº 1), a determinação da modalidade de venda, inclusive da venda por negociação particular, estava igualmente condicionada à prévia concordância da comissão de credores (artigos 181º, nº 1, e 182º), o liquidatário estava obrigado a remeter mensalmente ao tribunal e à comissão de credores um relatório com a síntese das operações de liquidação realizadas (artigo 181º, nº 4), e, por fim, quer aos credores quer ao falido assistia o direito de reclamarem junto do juiz contra quaisquer atos irregulares praticados no decurso da liquidação (artigo 184º). Dizemos nós que, com tais mecanismos de supervisão, dificilmente podia ter existido um conluio entre a Sr.ª liquidatária judicial e o ofendido, uma venda fraudulenta, ilícita e ilegal, em prejuízo dos demais credores da falência. Finalmente, o facto de a I Ldª ter vendido o imóvel da Rua … em 2019 por 220.000 euros, também não causa grande estranheza, se considerarmos que tinham decorrido quatro anos desde a sua aquisição, que as leis de mercado da procura e oferta podem ter-se alterado (o próprio recorrente, aliás, reconhece no corpo das motivações que «nos últimos anos a esta parte a pressão imobiliária (…) na cidade do … aumentou» e que «os valores por metro quadrado dispararam»), que o prédio podia ter sido alvo de melhoramentos, etc”.

Em jeito de síntese: os factos dados como provados na sentença revidenda sob os nºs 10 a 20 não colidem com os factos dados como assentes sob os nºs 7 e 8, nem com os factos dados como não provados sob os nºs 2 e 3 da factualidade não provada, não existindo, por conseguinte, o vício do erro notório na apreciação da prova invocado na motivação do recurso.

Dito de outro modo: não ocorre falha grosseira e ostensiva na análise da prova, não tendo o tribunal recorrido proferido uma decisão fáctica contra as regras da experiência ou baseando-se em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.

A discordância do recorrente perante a matéria de facto é, pois, inócua para os fins por si pretendidos, uma vez que, objetivamente, nada resulta do teor da decisão que constitua erro notório na apreciação da prova.

Face ao exposto, é de soçobrar, também neste aspeto, o recurso.

c) Da qualificação jurídico-penal dos factos.

Alega o recorrente que fez prova dos “factos imputados ao ofendido” (cfr. factos nºs 10 a 20 da factualidade dada por provada na sentença em análise), que os “factos imputados ao ofendido” constam de um “requerimento” subscrito pelo recorrente e que constitui “resposta” ao alegado pelo ofendido na contestação apresentada num processo judicial (de que o recorrente foi autor), e que, por tudo isso, os factos tidos como assentes sob os nºs 4, 5 e 6 da sentença sub judice não preenchem os elementos objetivos do crime de difamação agravada pelo qual vem condenado.

Há que decidir.

O arguido vem condenado pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, e 184º do Código Penal - a agravação é resultante do facto de o ofendido ser uma das pessoas referidas na al. l) do nº 2 do artigo 132º do mesmo diploma legal (advogado), no exercício das suas funções ou por causa delas -.

Incorre na prática de um crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sobre a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo” (artigo 180º, nº 1, do Código Penal).

De acordo com a doutrina tradicional, a ofensa à honra é “a ofensa a esse sentimento da própria dignidade e do decoro que toda a gente, no seu íntimo, põe acima de todas as coisas (honra subjetiva) e a esse património moral de estima e de reputação, junto dos outros, que qualquer pessoa adquira e de que goze vivendo em sociedade (honra objetiva), os quais podem ser ofendidos por meio de atos ou de palavras de outra pessoa” (Borciani, in “As Ofensas à Honra”, tradução Portuguesa, 1950, Coimbra, pág. 5).

Nelson Hungria (in “Comentários ao Código Penal”, Vol. VI, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1958, pág. 39) sustenta que “o interesse jurídico que a lei protege (...) refere-se ao bem material da honra, entendida esta, quer como o sentimento da nossa dignidade própria (honra interna, honra subjetiva), quer como o apreço e respeito de que somos objeto ou nos tornamos merecedores perante os nossos concidadãos (honra externa, honra objetiva, reputação, boa fama). Assim como o Homem tem direito à integridade do seu corpo e do seu património económico, tem-no igualmente à indemnidade do seu amor-próprio (...) e do seu património moral”.

Acrescenta este autor (obra e local citados) que “a honra é um bem precioso, pois a ela está necessariamente condicionada a tranquila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade”.

Na previsão legal do crime de difamação fala-se em ofensa à honra ou consideração. A honra, em nosso entender, refere-se à acima aludida “honra subjetiva”, ao passo que a consideração será a reputação da pessoa, a estima que o homem soube, pelos seus atos, conquistar (“honra objetiva”) - cfr., na distinção destes conceitos, Lopes da Silva Araújo, “Crimes Contra a Honra”, Coimbra Editora, 1957, págs. 90 a 97.

Contudo, e como bem salienta Oliveira Mendes (in “O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal”, Livraria Almedina,1996, pág. 37), “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180º e 181º do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa”.

Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país - e no ambiente em que se passaram os factos - não considera difamação, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora.

Nesta ordem de ideias, um facto ou um juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e/ou da consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável e de tal forma que a sociedade não lhe seja indiferente, reclamando a tutela penal para dissuasão e repressão desse comportamento.

Por outras palavras: a punição por crime de difamação pressupõe a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra ou consideração.

A esta luz, sempre que a atuação comportamental de um cidadão não se coaduna com a sensibilidade de outro sobre o mesmo comportamento, não significa que tal atuação equivalha logo a crime, sob pena de chegarmos à absurda conclusão de que todos os comportamentos incorretos ou desadequados constituem crime.

Como refere Oliveira Mendes (ob. citada, págs. 38 e 39), “há um consenso na generalidade das pessoas, pelo menos de um certo país, sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo. Na realidade, existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou, pelo menos, pela maioria, sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. Tais limites como que se acham inscritos num «Código de Conduta» de que todos são sabedores, o qual reflete o pensamento da própria comunidade e, por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria”.

De entre as normas de conduta fazem parte regras que impõem que cada cidadão se comporte relativamente aos demais com um mínimo (exigível) de respeito moral, cívico e social, que, porém, nunca se pode confundir com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados (e mesmo boçais) não fazem parte daquele mínimo de respeito que ao direito penal cabe proteger.

A difamação não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação.

Por outro lado, e convém salientar-se, quando se pune um ato difamatório não se visa a proteção da suscetibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra ou da sua consideração (como atrás se disse).

Ou seja, a consideração como ofensivo, para efeitos penais, de um facto imputado a outrem, tem de basear-se em critérios objetivos, partindo das regras da lógica comumente aceite e do entendimento do Homem comum, não podendo estribar-se na “sensibilidade” subjetiva (maior ou menor) do próprio visado.

Dito isto, e retomando a situação posta nos autos, temos por manifesto que as imputações de factos produzidas pelo arguido consubstanciam, objetivamente, ato ofensivo da honra e da consideração do ofendido.

Com efeito, decorre da factualidade dada como provada na sentença revidenda sob os nºs 4 a 6 que o arguido fez juntar a um processo judicial um “requerimento”, no qual imputou ao ofendido, enquanto advogado e no exercício das suas funções, factos que, inquestionavelmente, configuram a prática de ilícitos criminais e disciplinares por banda do ofendido (AM).

Nesse “requerimento”, e além do mais, o arguido escreveu que o ofendido fez afirmações “fabricadas e ficcionadas” (na contestação apresentada no processo judicial em causa), que o ofendido se apoderou “do património da empresa insolvente, de forma ilícita, ilegal e sem dispor de capital”, e que, em conluio com a liquidatária da falência, o ofendido decidiu “arrombar as portas, mudar as fechaduras e furtar bens”.

Mais afirma o arguido, no aludido “requerimento”, que a venda dos bens da empresa insolvente foi “fraudulenta” e “ilegal”, “designadamente os bens foram vendidos por baixo valor ao advogado da empresa AM”.

Com o devido respeito por diferente opinião, as referidas imputações, dirigidas pelo arguido ao ofendido numa peça processual, atentam, manifestamente, contra a honra e a consideração do ofendido, enquanto pessoa e na qualidade de Advogado.

Objetivamente analisadas, e sem margem para dúvidas, tais afirmações colocam em crise a retidão, a probidade, o bom nome, a confiança e o crédito (designadamente o crédito profissional) do ofendido.

Por conseguinte, e em nosso entender, é inquestionável que a conduta do arguido cai na previsão típica do crime de difamação (previsto pelos artigos 180º, nº 1, e 184º do Código Penal - este por referência ao artigo 132º, nº 2, al. l), do mesmo diploma legal -).

Por outro lado, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, não ficou provado que o arguido, com a sua atuação, prosseguisse interesses legítimos, e, além disso, também não ficou demonstrado que o arguido tenha provado a verdade dos factos vertidos no “requerimento” em causa (ou que o arguido tivesse tido fundamento sério para, em boa fé, reputar tais factos como verdadeiros), por forma a poder excluir-se a punibilidade da conduta do arguido (ao abrigo do disposto no artigo 180º, nº 2, do Código Penal).

Subscreve-se, pois, inteiramente, a qualificação jurídico-penal dos factos constante da sentença revidenda, restando aqui, apenas, dar por reproduzidas as palavras utilizadas em tal sentença e este propósito: “concluímos assim que as expressões acabadas de referir, usadas pelo Arguido FALCM, integram objetivamente o tipo legal do crime de difamação previsto no artigo 180º do Código Penal. Por outro lado, o Arguido FALCM, como pessoa culta que é, não podia deixar de saber que as palavras que empregou, atrás referidas, eram ofensivas da honra e consideração devidas a AFTM, tal como se provou, tendo atuado assim dolosamente e não negligentemente, estando assim preenchido o elemento subjetivo do crime de difamação. Não se põe em causa o direito de o Arguido denunciar irregularidades, ilegalidades e aspetos que considere menos bem da conduta de qualquer cidadão; tal atitude pode até revelar-se meritória. Porém, o exercício de qualquer direito encontra-se sempre limitado pelos direitos alheios, isto é, pela salvaguarda dos direitos individuais consagrados na Constituição da República Portuguesa e, designadamente, o direito ao bom nome e reputação, (artigo 26º da Constituição da República Portuguesa). O Arguido FALCM, ao usar as expressões que usou supra referidas, formula a imputação de juízos de desvalor e de factos sobre AFTM que atentam indubitavelmente contra a idoneidade e dignidade pessoal e profissional deste. Para realizar o interesse legítimo de denúncia de eventuais irregularidades e/ou ilegalidades, o Arguido FALCM não tinha necessidade de usar as expressões que usou na referida peça processual, não se verificando a causa de exclusão da punição prevista no artigo 180º, nº 2, sua alínea a), do Código Penal. Por um lado, não se verifica a situação prevista na alínea b) do referido nº 2, em relação aos juízos de desvalor de AFTM. Efetivamente, da conjugação dos preceitos dos números 1 e 2 do artigo 180º, bem como dos números 1 e 2 do artigo 181º, resulta que a causa de justificação em apreço apenas é aplicável à imputação de factos ou à reprodução da imputação, e não à formulação de Juízos ofensivos. Finalmente, em relação à imputação de factos ofensivos relacionados com AFTM, não foi feita a prova da verdade dos mesmos e, por outro lado, in casu não se pode considerar que o Arguido tivesse fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeiros os factos que imputa, dado que a boa fé pressupõe que o agente cumpra o dever de informação que as circunstâncias do caso impunham sobre a verdade da imputação, o que o referido Arguido não fez”.

Posto o que precede, e também na última vertente analisada (qualificação jurídico-penal dos factos), o recurso do arguido não merece provimento.

Face a tudo quanto ficou dito, é totalmente de improceder o recurso interposto pelo arguido.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, consequentemente, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 11 de janeiro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia