Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1367/11.0TBPTM.E1
Relator: ANTÓNIO M. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONTRATO DE PERMUTA
HABITAÇÃO A PREÇOS CONTROLADOS
MUNICÍPIO
Data do Acordão: 04/11/2013
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recorrido: COMARCA DE PORTIMÃO – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
1 – O contrato de permuta de um terreno celebrado entre uma autarquia e uma empresa de construção privada para construção de habitação a preços controlados que serão por esta alienados de acordo com as regras estabelecidas para aquele tipo de habitação e outras acordadas num “Acordo de Colaboração” celebrado entre a construtora e a autarquia, integra acto de gestão privada da autarquia.
2 – A jurisdição comum é a competente para a acção em que é pedida pela autarquia a nulidade ou anulação do contrato de compra e venda celebrado entre a construtora e terceiros sem observância das condições de alienação estabelecidas no Acordo de Colaboração” referido no número anterior.

sumário do rtelator
Decisão Texto Integral:
O MUNICÍPIO DE LAGOA intentou a presente acção com processo especial, contra C…, LDA. e M… pedindo que seja “declarado nulo, ou, se assim se não entender, anulado o contrato celebrado entre os aqui Réus, por violação manifesta e inequívoca do Acordo de Colaboração para a Comercialização” celebrado entre ela e a primeira Ré.
Como fundamento alegou que celebrou com a Ré C… um contrato de permuta de 10 lotes de terreno para construção de que era proprietária, e que lhe transmitiu para construção de 40 fogos de habitação a custos controlados, cedendo-lhe esta dois fogos tipo T3. Na sequência deste contrato foi celebrado entre o A. e a Ré C… um Acordo de Colaboração para a Comercialização dos restantes 38 fogos, tendo como finalidade: «a)A criação de condições institucionais e técnico-financeiras para a promoção de habitação a custos controlados que favoreçam a diminuição de carências habitacionais de agregados familiares de mais parcos recursos ao abrigo de Contratos de Desenvolvimento para Habitação com vista a atenuar as carências sentidas na área habitacional de diversos sectores sociais; b) A criação de novas oportunidades de oferta de habitação a custos controlados e de mecanismos de gestão urbanística e de politica de solos que contribuam para um maior equilíbrio entre a oferta e a procura de habitação, de modo a que os preços praticados no mercado sejam mais acessíveis e se aproximem do seu razoável valor económico no quadro da economia nacional, de modo a garantir o acesso generalizado da população à habitação própria permanente, reduzindo o risco de sobre endividamento ou insolvência das famílias; c) A prossecução de uma politica social de habitação para o Concelho de Lagoa, através da definição de princípios que concretizem os objectivos de fixação e apoio às famílias jovens e com menor capacidade económica, assim como àquelas que habitam ou trabalham no Concelho.»
Nos termos do mesmo acordo aquela Ré obrigou-se, para além de «respeitar todas as normas e regras relativas à promoção de habitação a custos controlados definidas pela IHRU - Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana… a dar o direito de preferência a todos os agregados familiares que reunissem as seguintes condições: a) Residência na Freguesia de Ferragudo ou no Concelho de lagoa; b) Aquisição para habitação própria permanente do agregado familiar; c) Exercício da sua actividade profissional ou económica no Concelho de lagoa; d) Agregados familiares jovens ou que se enquadrem na informação referida na cláusula primeira do Acordo; e) Capacidade económica e financeira dos agregados familiares para aquisição da respectiva habitação.».
A Ré C… porém, não cumpriu o acordo, já que vendeu à Ré M… uma das fracções em causa, malgrado ser proprietária de um prédio urbano sito em Lagos no qual reside, não preenchendo minimamente os requisitos estabelecidos para os adquirentes das fracções, o que era do seu conhecimento.

Foi proferido despacho julgando o tribunal incompetente em razão da matéria por ser da competência dos tribunais administrativos e absolvendo os RR. da instância.

Inconformado com esta decisão, interpôs o A. o presente recurso de apelação impetrando a revogação da decisão e a sua substituição por outra que julgue o tribunal competente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, e inscrito em tabela, o relator a quem fora distribuído o processo ficou vencido, pelo que foi cumprido o estabelecido no art. 713º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Formulou o apelante, nas alegações de recurso, as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o seu objecto [1] e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:
“1-O aqui Recorrente não entende, nem aceita, a sentença proferida nos autos.
2-Entende o aqui Recorrente que o Tribunal Judicial e de Comarca de Portimão é competente para apreciar a questão proposta.
3-A relação jurídica em causa não decorre de contrato administrativo.
4-O Autor nos autos age nas simples vestes de um particular, sem ius imperii e, não dotado da faculdade de impor restrições contraria o direito.
5-Em nosso entendimento, clara é a violação ao disposto nos artigos 211º, nº. 1 da CRP, 66° do CPC e, ainda, 18°, nº. 1 da LOFTJ.
6-Entendemos, também, que foram mal interpretadas as competências dos Tribunais Comuns.
7-Mais é evidente a má interpretação do disposto no artigo 494° do CPC.
8-Em respeito ao disposto nos artigos 211º, nº. 1 da CRP, 66º do CPC e, ainda, 18º, nº. 1 da LOFTJ, deverá ser considerado competente para julgar os presentes autos o Tribunal Judicial e de Comarca de Portimão.”

ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO
Face às conclusões formuladas a questão submetida à nossa apreciação consiste, tão só, em saber se os tribunais comuns são os competentes para conhecer da presente acção.

Entendeu o tribunal “a quo”: «de harmonia com o art. 4.°, n.º 1º al. f). compete aos mesmos tribunais a apreciação de questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
É o caso - cfr. acordo junto aos autos, maxime cl. sexta de fls. 46…»
Sublinhe-se a pobreza da fundamentação contida na decisão recorrida, na qual se não teve a mínima preocupação de demonstrar que o contrato em causa se inclui no âmbito “de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo“, como parece ter sido o entendimento, face ao sublinhado.
Vejamos.
Estabelece o art. 66º do Código de Processo Civil, traduzindo em lei ordinária a norma do art. 211º, nº 1 da CRP [2], que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Também o art. o 26.º n.º 1 da LOFTJ estabelece que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Temos assim que a competência dos tribunais judiciais é residual, ou seja, a eles cabe conhecer de todas as matérias que não forem especificamente atribuídas pela lei a outra jurisdição.
Entendeu o tribunal “a quo” que a competência para a presente acção era dos tribunais administrativos.
Impõe-se assim, para aferição do acerto desta decisão, e face ao estabelecido naquelas normas, averiguar se está legalmente atribuída aos tribunais administrativos a competência para conhecer da relação jurídica em causa nesta acção.
Nos termos do art. 212º, nº 3 da CRP, “compete aos tribunais administrativos… o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas…”.
“Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”[3].
Estabelece o art. 1º, nº 1 do ETAF [4] que os tribunais da jurisdição administrativa… são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativa...”.
Concretizando, o art. 4º do ETAF, sob a epígrafe “âmbito da jurisdição” determina, no seu nº 1, que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa… a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo… ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo…;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo…, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
(…)

Resulta do referido que “…o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa. Nesta conformidade, para se saber qual o Tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor - se o Judicial se o Administrativo - importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito…” [5].
A competência material do tribunal afere-se em função, não só do pedido[6], como também da causa de pedir [7], padronizada nos moldes em que a relação jurídica é configurada pelo A., com recurso aos chamados índices de competência que constam das diversas normas determinativas da competência.
“Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.
E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” [8].
No caso dos autos, alega o A. que celebrou com a Ré C…, um contrato de permuta cedendo-lhe 10 lotes de terreno para construção de 40 fracções em regime de custos controlados, em troca da entrega pela construtora de duas fracções tipo T3, cabendo à Ré construtora proceder à venda das 38 fracções restantes, mas com observância de certos requisitos quanto aos compradores. Apesar das condições acordadas, a Ré C… vendeu uma das fracções à segunda Ré que não preenchia nenhum daqueles requisitos que haviam sido acordados e, por isso, pede a declaração da nulidade deste contrato celebrado entre os RR, ou, caso assim se não entenda, a sua anulação.
É óbvio, perante esta causa de pedir e estes pedidos, que a presente acção não cabe na previsão das als. a), b), c), d), g), h), i), j), l), m) e n) do transcrito art. 4º, nº 1 do ETAF.
Resta-nos, por conseguinte, a possibilidade de subsunção às als. e) e f) do referido preceito (e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público).
Resulta destas normas, balizadas pelo art. 1º, nº 1 do ETAF, que subjacentes à competência dos tribunais administrativos, estão relações jurídicas administrativas.
O Prof. Freitas do Amaral define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração” [9].
A relação jurídica administrativa caracteriza-se, assim, por conferir à administração uma posição de superioridade jurídica sobre os particulares, investindo aquela em poderes de autoridade (ius imperii), enraizados no princípio da prevalência do interesse público e que desequilibram em seu favor as posições dos intervenientes no contrato [10].
Ora, a prevalência do interesse público conferindo poderes de autoridade à administração apenas se verifica quando no contrato está em causa um efectivo interesse público e se integra no âmbito da gestão pública.
Se, ao invés, os interesses em causa colocam a administração ao nível do sujeito privado, ou seja, se não visam as finalidades de interesse público que aquela prossegue e que por lei lhe estão cometidas enquanto órgão da administração e gestora do interesse e da “coisa pública”, nem a execução de tarefas ou actividades de utilidade pública, “rectius” a realização de uma função pública, então o contrato insere-se na gestão privada da administração.
O “acto de gestão pública define-se como sendo o que se compreende no exercício de um poder público, integrando a sua prática, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independente do uso de meios de coerção ou de regras de ordem técnica a observar. A gestão privada compreende-se na actividade do ente público quando despido de poder público, encontrando-se a actuar numa posição de paridade com os particulares a que o acto respeita, ou seja, tal e qual como actua um particular” [11].
Gestão pública “existe quando os órgãos das pessoas jurídicas de Direito Público podem utilizar a autoridade que lhes permite praticar actos definitivos e executórios e empregar a coacção para executá-los”. A gestão privada “verifica-se quando os órgãos das pessoas jurídicas de Direito Público que tenham actividade administrativa, exercem ou podem exercer, consoante a competência conferida por lei, poderes correspondentes a direitos pessoais ou patrimoniais reguladas pelo Direito Privado, exactamente como quaisquer outras pessoas jurídicas” [12].
“São actos de gestão pública os praticados no exercício da actividade administrativa, ou seja, os abrangidos naquele conjunto de decisões e operações mediante as quais o Estado e outras entidades públicas procuram assegurar a satisfação de necessidades colectivas… e são actos de gestão privada os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração, quando esta aparece despida do poder público, ou seja, numa posição de igualdade com os particulares a que os actos respeitam e por isso nas mesmas condições e no regime em que poderia um particular, com submissão total às normas de direito privado” [13].
Ora, “a distinção entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa está na diferença entre actos de gestão privada e actos de gestão pública” [14].
Com base nestas noções vejamos o caso dos autos.
Invoca o A. que celebrou com a Ré C…, um contrato de permuta cedendo-lhe 10 lotes de terreno para construção de 40 fracções em regime de custos controlados, em troca da entrega pela construtora de duas fracções tipo T3, cabendo à Ré construtora proceder à venda das 38 fracções restantes, mas com observância de certos requisitos, quanto aos compradores. Apesar das condições acordadas, a Ré C… vendeu uma das fracções à segunda Ré que não preenchia nenhum daqueles requisitos que haviam sido acordados e, por isso, pede a declaração da nulidade deste contrato celebrado entre os RR, ou, caso assim se não entenda, a sua anulação.
Como se vê, o que está em causa e se pede é a nulidade ou anulação de um contrato celebrado entre os RR e no qual o A. não é parte, pese embora tenha interesse no que pede por estar em causa uma pretensa violação do contrato que celebrou com a Ré C...
Estamos pois, perante um contrato celebrado entre terceiros.
Dúvidas poderiam surgir se o contrato objecto do pedido fosse o celebrado entre o A. e a Ré C...
Mas não é esse o contrato em causa.
É certo que o contrato celebrado entre o A. e a Ré construtora visou a construção por esta de 38 fogos “construídos de acordo com os parâmetros de habitação a custos controlados definidos pela Portaria nº 500/97 de 21 de Julho” (cfr. cláusula 4ª).
Ou seja, o A. cedeu à construtora terrenos para que neles procedesse à construção de habitações com recurso a bonificações de juros e benefícios fiscais, nos termos do DL 165/93 de 7 de Maio, mas sujeitando-se a diversas condicionantes ínsitas neste diploma, e cuja inobservância tem como consequência a perda dos benefícios, podendo ir até ao cometimento de ilícito criminal, suspensão do alvará de construção, nulidade dos contratos e responsabilidade civil (cfr. arts. 16º e 18º deste DL).
A construção de habitação de custos controlados, não impõe a intervenção municipal, excepto, como é evidente, na aprovação do respectivo loteamento, projectos, licenciamento, alvará de habitação, etc..
Como estabelece o art. 1º do referido DL 165/93, este “diploma regula a concessão de financiamentos a empresas privadas de construção civil para a construção de habitação de custos controlados ao abrigo de contratos de desenvolvimento para habitação… CDH”.
O CDH é definido no art. 2º, nº 1 como sendo o “contrato celebrado entre as instituições financiadoras, por si só ou em associação, e as empresas privadas que se dediquem à construção civil, com vista à construção de habitação de custos controlados para venda, destinados a habitação própria ou o arrendamento para habitação”.
Daqui resulta que a intervenção do município A., se resumiu à disponibilização do terreno celebrando o contrato de permuta mas condicionando, no domínio da liberdade contratual, a construção das habitações ao regime de custos controlados e a sua alienação aos requisitos consignados no acordo de colaboração.
Assegurar o direito à habitação é uma incumbência do Estado que a pode levar a cabo em colaboração com as autarquias (art. 65º, nºs 1 e 2, al. b) da CRP).
Não faz parte das funções legalmente atribuídas ao município e ao respectivo órgão executivo – a Câmara Municipal – enquanto órgão da administração autárquica, a implementação de construção de habitação a custos controlados ou habitação social [15].
Por outro lado, o contrato em causa de compra e venda celebrado entre os RR e mesmo o contrato de permuta celebrado entre o A. e a primeira Ré, gere-se pelo direito privado e não pelo direito público, não podendo, por conseguinte, ser qualificado como contrato administrativo.
Aliás, dúvidas não restam se atentarmos na definição de contrato administrativo que é dada pelo art. 1º, nº 6 do Código dos Contratos Públicos[16]:
“Sem prejuízo do disposto em lei especial, reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias:
a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público;
b) Contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos;
c) Contratos que confiram ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público;
d) Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.”
E o art. 6º tipifica como contratos administrativos os seguintes: a) Empreitada de obras públicas; b) Concessão de obras públicas; c) Concessão de serviços públicos; d) Locação ou aquisição de bens móveis; e) Aquisição de serviços.
Como se vê desta tipificação, a pedra de toque destes contratos é, precisamente, o carácter público do seu objecto, seja porque visam assegurar uma utilidade pública (empreitada de obras públicas; concessão de obras públicas; concessão de serviços públicos), seja porque visam assegurar a satisfação de necessidades da própria administração com vista ao seu cabal funcionamento (locação ou aquisição de bens móveis; aquisição de serviços).
Cremos ser evidente que os contratos referidos não são passíveis de integração em quaisquer destas categorias tipificadas nem na definição dada pelo transcrito art. 1º, nº 6 na qual é também bem patente aquele carácter público do objecto dos contratos.
E aqui chegados impõe-se a conclusão de que não estão em causa nesta acção quaisquer questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, nem quaisquer questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público, não cabendo, por isso também nas alíneas e) e f) do art. 4º, nº 1 do ETAF.
Entendemos assim que, visando-se nesta acção obter a declaração de nulidade ou anulação de um contrato celebrado entre privados, os RR., contrato esse que, de forma alguma, reveste natureza administrativa, nesta acção não estão em causa quaisquer interesses públicos inserindo-se a relação jurídica no âmbito da gestão privada da autarquia aqui A..
E, assim sendo, porque não está legalmente cometida aos tribunais administrativos, dúvidas não restam de que a competência para a presente acção cabe à jurisdição comum, impondo-se, assim, a procedência do recurso com a consequente revogação da decisão recorrida.
Aliás, já assim decidiu esta Relação em acórdão em que foi relator o aqui e agora também relator e subscrito pelo 2º Adjunto, proferido no proc. 1721/11.8TBPTM.E1 em que são partes o A. e a, também aqui, 1ª Ré.,
DECISÃO
Termos em que se acorda, em conferência, nesta Relação:
1. Em conceder provimento ao recurso;
2. Em revogar a douta decisão recorrida;
3. Em julgar competente para a acção os tribunais comuns;
4. Em condenar nas custas a parte que, a final, for vencida.
Évora, 11.04.2013
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Acácio Luís Jesus Neves)
(Eduardo José Caetano Tenazinha ) (vencido)
__________________________________________________
[1] Cfr. arts. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.
[2] Artigo 211.º
(Competência e especialização dos tribunais judiciais)
1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
[3] Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao anterior art. 214º, nº 3.
[4] Aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Declaração de Rectificação n.º 14/2002, de 20 de Março, pela Declaração de Rectificação n.º 18/2002, de 12 de Abril, pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, pela Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro, pela Lei nº. 1/2008, de 14 de Janeiro, pela Lei n.º 2/2008, de 14 de Janeiro, pela Lei n.º 26/2008, de 27 de Junho, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei nº. 166/2009, de 31 de Julho, e pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.
[5] Ac. do Tribunal de Conflitos de 9.12.2010, proc. nº 020/10, documento nº SAC20101209020, in www.dgsi.pt.
[6] Acs. da RG de 30.06.2011, proc. nº 486/10.5TBAMR.G1, da RC de 24.04.2007, prc. nº 596/06.3TBCVL.C1 in www.dgsi.pt, da RL de 14.12.95, in CJ 1995, V/149.
[7] Acs. da RE de 2.06.2010, proc. 1976/09.8PBSTB.E1, do STJ de 6.05.2010, proc. 3777/081TBMTS.P1:S1, da RC de 29.05.2007, proc. nº 98/05.5TBPNC.C1, do Trbunal de Conflitos de 25.11.2010, prc. nº 021/10, in www.dgsi.pt, entre outros.
[8] Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1993, reimpressão, págs. 90-91 (transcrição constante no ac. da RC de 29.05.2007, referido na nota anterior).
[9] In Direito Administrativo, vol. III, pág. 439.
[10] Cfr. ac. RC de 10.10.2066, proc. 666/05.5TBCVL.C1, in www.dgsi.pt.
[11] Ac. do Tribunal de Conflitos de 11.07.2006, proc. 012/06, in www.dgsi.pt.
[12] Marcello Caetano, Princípios Fundamentais de Direito Administrativo, 1977, págs. 372-373.
[13] Ac. do STA de 22.10.85, in Ac. Dout., 296º, pág. 977.
[14] Ac. do STJ, in CJ, STJ, Ano X, tomo II, pág. 81-83, citado no ac. da RC de 29.05.2007, atrás referido.
[15] Art. 235º, nº 2 da CRP: As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas.
Cfr. a Lei 169/99 de 18 de Setembro (estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias) e a Lei 159/99 de 14/09 (estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais).
[16] Aprovado pelo DL 18/2008 de 29/01.