Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3412/22.5T8STR.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
RELAÇÃO DE NATUREZA ADMINISTRATIVA
MUNICÍPIO
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I-A competência dos tribunais judiciais só se verifica quando as regras reguladoras de outra ordem jurisdicional não abranjam a apreciação da questão submetida a tribunal, o que impõe se analise o objeto da ação e se averigue da existência de norma específica atributiva de competência a jurisdição especial;
II-Abrangendo as regras reguladoras da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação da questão submetida a juízo, mostram-se os tribunais judiciais incompetentes em razão da matéria.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo N.º 3412/22.5T8STR.E1
Juízo Central Cível de Santarém
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

(…) e (…), por si e em representação de Fundação (…), intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra a Câmara Municipal de Mação – por despacho de 24-10-2023, decidiu-se que a ação deve reputar-se intentada contra o Município de Mação e determinou-se a retificação da petição inicial quanto à identificação do réu –, formulando o pedido que se transcreve:
«Nestes termos, nos melhores de direito, ao caso aplicáveis, deverá a ação proceder por provada e em consequência, a Ré, em sede de responsabilidade civil contratual, ser condenada:
a) Adequar os lotes da Fase 2 do Empreendimento Urbanístico em causa, que foram atribuídos aos Autores, ao fim de construção a que se destinam, incluindo as acessibilidades aos mesmos; com regularizações e terraplanagens dos que se encontram a uma cota superior ao nível médio do solo, medido pela estrada ali existente; sua desmatação, incluindo eliminação de pinheiros e de sobreiros; remoção dos entulhos e ruínas existentes sobre os mesmos lotes, tudo conforme previsto no C.P.C.V. (Doc. 13), seu Aditamento, (Doc. 18) e Plano de Pormenor dos (…) aprovado pela Ré, (idem Doc. 23).
Isolar o ruído produzido pelos equipamentos existentes na piscina, de modo a evitar que prejudique as condições de habitabilidade nos lotes vizinhos.
b) A pagar aos Autores € 1.015.000,00 (um milhão e quinze mil euros) a título de indemnização prevista na cláusula 15ª do C.P.C.V., outorgado entre as partes, em 07/12/2001, contabilizada desde 01/01/2006, até 30/11/2022 (203 x € 5.000,00).
c) Nas prestações vincendas, a partir de 01/12/2022 de € 5.000,00 (cinco mil euros) por cada mês de atraso ou fração, até à entrega efetiva aos Autores, mediante escrituração, da totalidade dos lotes que lhes foram atribuídos, na Fase 2 do empreendimento.
d) Em juros de mora à taxa legal, sobre o montante pedido na supra alínea b), a partir da citação, até integral pagamento.»
A justificar o pedido, invocam, em síntese, o incumprimento pela ré de contrato-promessa celebrado entre as partes por escritura outorgada em 07-12-2001, através do qual os autores prometeram vender e a ré prometeu comprar determinada área de terreno a desanexar de dois prédios rústicos – um pertencente aos 1.º e 2.º autores e quatro quintos indivisos do outro prédio pertencentes à 3.ª autora –, com vista à construção de uma escola, tendo os promitentes-vendedores declarado autorizar a promitente-compradora a iniciar nos terrenos os trabalhos necessários à implantação da escola a construir, obrigando-se a ré, a título de preço da venda, a lotear e a infraestruturar a parte sobrante dos aludidos prédios, nos termos e prazos especificados no contrato, comparticipando os autores nos custos da urbanização; por escrituras outorgadas em 07-12-2004, os contraentes estabeleceram um aditamento ao indicado contrato e operaram permuta entre a parte do segundo prédio rústico pertencente à 3.ª autora e os lotes de terreno para construção urbana que esta tenha direito a receber, nos termos acordados no contrato anteriormente outorgado, a determinar através de escritura a outorgar após a aprovação do loteamento respetivo, como tudo melhor consta da petição inicial.
Citado, o Município de Mação contestou, invocando, além do mais, a incompetência material do Juízo Central Cível de Santarém, sustentando que a competência para a apreciação do presente litígio pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02.
Notificados para o efeito, os autores apresentaram articulado no qual se pronunciam sobre a exceção arguida na contestação, pugnando pela respetiva improcedência.
Dispensada a audiência prévia, foi fixado o valor à causa e proferido despacho saneador, no qual se julgou verificada a exceção de incompetência material arguida, decidindo-se o seguinte:
Face do exposto, julgo procedente a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Juízo Central Cível de Santarém e, em consequência, absolvo o Réu Município de Mação da instância.
Custas pelos Autores (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Inconformados, os autores interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que considere o Juízo Central Cível de Santarém competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente ação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I
Recorrido e Recorrente ao contratarem expressaram a sua vontade em que fosse o direito privado a reger os direitos e obrigações contratadas.
II
A liberdade de contratar tem proteção legal no artigo 405.º do C.C..
III
Quer a causa de pedir, quer os pedidos formulados pelos Recorrentes, radicam no contrato celebrado entre as partes.
IV
É a pretensão jurídica manifestada pelo Autor, isto é a causa de pedir e os pedidos formulados que determinarão a competência material do Tribunal.
V
No Aditamento ao contrato, celebrado em 07-12-2004, expressamente as partes remeteram o conteúdo do contrato para as regras dos artigos 442.º e 830.º (exceção específica), ambos do C.C..
VI
O contrato sob apreço tem como objeto principal, situações jurídicas reguladas pelo direito privado.
VII
A causa de pedir da ação sob apreço tem que ver apenas com a mora no cumprimento, por parte do Recorrido.
VIII
O principal dos pedidos formulados pelos Recorrentes, requer a condenação do Recorrido no montante da cláusula penal prevista no contrato.
IX
Os pedidos secundários têm que ver com incumprimento contratual, quanto à Infraestruturação do loteamento e adequação dos lotes prometidos.
X
O que está em causa é a interpretação de um contrato denominado de promessa de compra e venda, seu aditamento e um contrato de permuta, tudo regulado pelo direito privado.
XI
Aos Tribunais Administrativos cabe dirimir os conflitos previstos no artigo 1.º, n.º 1 e 4, do ETAF e no artigo 212.º, n.º 3, da CRP.
XII
No caso concreto, não existe entre as partes uma relação jurídica administrativa.
XIII
No caso concreto, os Recorrentes ficaram obrigados a entregar ao Recorrido 33.000 metros quadrados de terreno rústico (já entregues).
XIV
O recorrido ficou obrigado a urbanizar e a infraestruturar os terrenos envolventes à área cedida, dentro do prazo convencionado.
XV
Tudo isto regido pelas regras do direito privado, em função da relação jurídica estabelecida e ainda, pela vontade das partes.
XVI
O contrato sob apreço já foi parcialmente cumprido pela entrega ao Recorrido de 33.000 metros quadrados, que cabiam aos Recorrentes entregar.
XVII
Tal entrega, celebrada por escritura pública de permuta, foi regulada pelo direito privado.
XVIII
O contrato sob apreço é um contrato oneroso pelo qual se alienam bens e estabelecem encargos, pelo que deve ser regido pelas normas da compra e venda, previstas no artigo 939.º do C.C..
XIX
O Recorrido ao outorgar o contrato sob apreço, atuou como atuaria qualquer particular colocado perante aquele negócio.»
O réu apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre decidir se cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a competência em razão da matéria para a apreciação do presente litígio.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a apreciação da questão suscitada, extraem-se dos autos, além dos elementos indicados no relatório supra, ainda os seguintes:
i) Foi lavrada, no dia 07-12-2001, escritura intitulada “Contrato Promessa de Compra e Venda”, na qual intervieram, entre outros outorgantes, a Câmara Municipal de Mação, aí designada por “Primeira”, e os 1.º, 2.º e 3.ª autores, aí designados, respetivamente, por “Segundo”, “Terceiro” e “Quarta”, conforme documento junto aos autos com a petição inicial como doc. 13, do qual consta, além do mais, o seguinte:
“Pelos segundo, terceiro e quarta outorgantes é dito que:
- os segundo e terceiro outorgantes são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico sito em (…), freguesia e concelho de Mação (…), com a área de 33.840 (…) metros quadrados (…), inscrito na matriz respectiva sob o artigo (…), da secção (…), da freguesia e concelho de Mação e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mação sob o n.º (…), registado a favor dos segundo e terceiro outorgantes pela inscrição (…);
- a quarta outorgante é dona e legítima possuidora de 4/5 (…) de um prédio rústico sito em (…), freguesia e concelho de Mação, com a área de 9.040 (…), inscrito na matriz respectiva sob o artigo (…), da secção (…), da freguesia e concelho de Mação e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mação sob o n.º (…), registado a favor da quarta outorgante pela inscrição (…);
Que entre si e a primeira outorgante celebram um contrato promessa de compra e venda que se regerá pelas seguintes cláusulas:
PRIMEIRA
Os segundo, terceiro e quarta outorgantes, como seus proprietários, prometem vender à primeira outorgante, que promete comprar, a área de 32.880 (…) metros quadrados a desanexar dos prédios antes referidos, e inscritos nos artigos … (quatro quintos) e …, ambos da secção …, da matriz cadastral rústica da freguesia e concelho de Mação, área esta que se encontra demarcada na plana anexa (…) e se destina à construção da Escola E, B 2, 3 + S de Mação.
SEGUNDA
Os segundo, terceiro e quarta outorgantes autorizam desde já a primeira outorgante a iniciar nos terrenos que prometem vender-lhe (…) todos os trabalhos necessários para a implantação da escola a construir, assim como de outro equipamento complementar, nomeadamente piscina coberta, apesar de ainda não estar legalmente titulada a transmissão dos terrenos.
TERCEIRA
Como preço da venda daqueles terrenos a primeira outorgante obriga-se a lotear e infraestruturar, por sua conta, os terrenos pertencentes aos segundo, terceiro e quarta outorgantes e que constituem a parte sobrante do artigo (…) e o artigo (…) da secção (…), inscritos na matriz respectiva (…)
QUARTA
O loteamento e infraestruturação referidos na cláusula anterior ficam a cargo da primeira outorgante e abrangem:
a) elaboração e aprovação do projecto de loteamento, e projectos complementares (…);
b) construção e pavimentação de arruamentos;
c) construção de redes de águas pluviais;
d) construção da rede de esgotos domésticos;
e) construção da rede de abastecimento domiciliário de águas;
f) construção da rede de instalações telefónicas;
g) projecto e construção de rede de energia elétrica (…);
h) demolição dos edifícios existentes no terreno, remoção dos entulhos resultantes e regularização do terreno.
QUINTA
A primeira outorgante obriga-se a ter concluídos todos os trabalhos que nos termos da cláusula quarta lhe competem até trinta e um de Dezembro de dois mil e dois.
SEXTA
A primeira outorgante obriga-se ainda a elaborar e obter a aprovação de plano de pormenor, abrangendo a área aproximada de 117.000 (…) metros quadrados, e abrangendo os terrenos que integram os prédios inscritos na matriz respectiva sob os artigos … (quatro quintos), …, … e … da secção …, da freguesia e concelho de Mação, pertencentes aos segundo, terceiro e quarta outorgantes (…).
SÉTIMA
Obtida a aprovação do plano de pormenor a primeira outorgante obriga-se a executar, relativamente à área por ele abrangida, o respectivo loteamento e infraestruturação (…).
OITAVA
A primeira outorgante compromete-se a efetuar toda a tramitação de elaboração e concertação do plano de pormenor de modo a propor a sua aprovação à Assembleia Municipal (…) de modo a que todos os projectos e trabalhos referidos na cláusula sétima estejam concluídos até trinta e um de Dezembro de dois mil e cinco.
(…)
DÉCIMA
A primeira outorgante isentará os segundo, terceiro e quarta outorgantes de quaisquer taxas municipais que tivesse a receber pelo loteamento, urbanização ou transacção dos terrenos a lotear (…).
DÉCIMA PRIMEIRA
Os segundo, terceiro e quarta outorgantes comparticiparão nos custos das infra-estruturas dos loteamentos entregando à primeira a quantia total de € 63.000,00 (…) destinados às infra-estruturas eléctricas.
(…)
DÉCIMA QUINTA
O não cumprimento pela primeira outorgante da obrigação de concluir os trabalhos de loteamento, e infra-estruturação nos prazos contratualmente acordados, obriga-a a indemnizar os segundo, terceiro e quarta outorgantes, por cada mês de atraso ou fracção na quantia de € 5.000,00 (…), salvo se os atrasos verificados não decorrerem de facto que lhe seja imputável.
(…).
ii) Foi lavrada, no dia 07-12-2004, escritura intitulada “Escritura Pública de Aditamento ao contrato promessa de compra e venda celebrado em sete de Dezembro de dois mil e um entre a Câmara Municipal de Mação e (…), (…), (…), (…)”, na qual intervieram, entre outros outorgantes, o Município de Mação, aí designado por “Primeiro”, e os 1.º, 2.º e 3.ª autores, aí designados, respetivamente, por “Segundo”, “Terceiro” e “Quarta”, conforme documento junto aos autos com a petição inicial como doc. 18, do qual, consta, além do mais, o seguinte:
“(…) Pelos outorgantes é dito que, de comum acordo, decidem aditar ao contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em sete de Dezembro de dois mil e um, as cláusulas seguintes:
(…)
SEGUNDA
Dos prédios prometidos vender (…) consta entre outros o prédio rústico (…) inscrito na matriz sob o artigo (…), da secção (…), da freguesia e concelho de Mação, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número (…), da qual a Quarta Outorgante é dona e legítima proprietária de quatro quintos indivisos e onde já se encontra em fase de construção a piscina coberta (…)
TERCEIRA
(…) é efetuada hoje (…) a escritura definitiva de permuta dos quatro quintos indivisos que a Fundação (…) possui no prédio identificado na cláusula segunda deste aditamento, recebendo, em troca, os lotes de terreno para construção urbana que de acordo com a área do prédio ora permutado e considerando os índices de densidade aprovados para os vários lotes esta proporcionalmente tenha direito a receber, de acordo com o outorgado no contrato promessa celebrado em sete de Dezembro de dois mil e um.
QUARTA
Em virtude de nesta data ainda não ser possível determinar em concreto o número de lotes e características dos mesmos, deverá o Município de Mação no prazo de 90 (…) dias após a aprovação do loteamento, efectuar, com a Quarta Outorgante uma escritura de determinação da prestação (…)
(…)
SEXTA
Em face dos atrasos que nesta data se verificam em relação aos trabalhos que ficaram a cargo do Primeiro Outorgante (…) acordam todos os outorgantes em proceder à eliminação das clausulas décima primeira e décima segunda do citado contrato (…)
SÉTIMA
A quantia de € 63.000,00 (…) referida na cláusula décima primeira (…) é assumida pelo Município de Mação, tendo em conta o referido na cláusula décima quinta do mesmo contrato e por conta do valor aí referido (…)
(…)
NONA
Todos os Outorgantes, e por mútuo acordo, decidem alterar o prazo referido na cláusula oitava para a conclusão dos trabalhos da segunda fase do loteamento (…) para trinta e um de Dezembro de dois mil e sete.
(…)
iii) Foi lavrada, no dia 07-12-2004, escritura intitulada “Escritura Pública Contrato de Permuta” na qual intervieram, entre outros outorgantes, o Município de Mação, aí designado por “Primeiro”, e a 3.ª autora, aí designada por “Segunda”, conforme documento junto aos autos com a petição inicial como doc. 19, do qual, consta, além do mais, o seguinte:
“Que pela presente escritura celebram, entre si, um contrato de permuta, que se regerá pelas cláusulas seguintes:
PRIMEIRA
A Segunda Outorgante é dona e legítima possuidora de quatro quintos indivisos do prédio rústico (…), inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), da secção (…), da freguesia de Mação, concelho de Mação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mação sob o número (…), e inscrito a favor da Segunda Outorgante pela inscrição (…);
(…)
TERCEIRA
Um. A Segunda Outorgante dá ao Primeiro Outorgante a sua parte do prédio anteriormente descrito, a que atribuem o valor de € 30.000,00 (…).
Dois. Por sua vez receberá, futuramente, do Primeiro Outorgante, em troca, após aprovação do loteamento referido, os lotes de terreno para construção urbana que, de acordo com a área do prédio agora permutado, e considerando os índices de densidade aprovados para os vários lotes, esta tenha proporcionalmente a receber, de acordo com o plano de pormenor elaborado para a zona intervencionada e o vertido no contrato promessa celebrado em sete de Dezembro de dois mil e um entre os ora outorgantes, no valor global de € 30.000,00 (…)
(…).

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posta em causa na apelação a decisão que considerou verificada a exceção de incompetência em razão da matéria, por se ter entendido que o litígio respeita a uma relação jurídica parcialmente regulada por normas de direito público e que a ação se baseia no incumprimento de obrigações de natureza administrativa pelo Município réu, encontrando-se a respetiva apreciação abrangida pela competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Discordando de tal entendimento, defendem os recorrentes a competência em razão da matéria dos tribunais judiciais, sustentando que a presente ação tem por objeto uma relação jurídica regulada pelo direito privado.
Vejamos se lhes assiste razão.
Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada, enquanto os outros tribunais, de outras ordens jurisdicionais, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas, conforme se extrai do disposto no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, do artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Daqui resulta que a competência dos tribunais judiciais só se verifica quando as regras reguladoras de outra ordem jurisdicional não abranjam a apreciação da questão submetida a tribunal.
Impõe-se, assim, analisar o objeto da ação e averiguar da existência de norma específica atributiva de competência a jurisdição especial, no caso, aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal administrar a justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, conforme dispõe o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e o artigo 144.º, n.º 1, da LOSJ, esclarecendo o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, que tal competência se reporta aos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto. Dispõe este preceito, no seu n.º 1, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas às matérias elencadas nas alíneas a) a n), bem como, conforme consta da alínea o), às relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nessas alíneas.
Nos termos da invocada alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
A 1.ª instância considerou que a presente ação se insere no âmbito da citada alínea e), por se ter entendido, em síntese, decorrer do teor do contrato invocado pelos autores que o regime substantivo da relação jurídica estabelecida entre as partes é regulado, pelo menos parcialmente, por normas de direito público, bem como que o litígio respeita ao incumprimento imputado ao município réu de obrigações de natureza administrativa assumidas naquele contrato, pelo que se considerou preenchida a citada alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º.
Os apelantes, por seu turno, alegando que a causa de pedir que invocam e o pedido que formulam radicam na relação contratual estabelecida entre as partes, afirmam que, tratando-se de um contrato-promessa de compra e venda, seu aditamento e um contrato de permuta, as relações jurídicas em causa são reguladas pelo direito privado, sustentando que a questão submetida a tribunal não integra a previsão do preceito tido em conta na decisão recorrida, assim cabendo aos tribunais judiciais a competência para a respetiva apreciação.
É sabido que a competência do tribunal deve ser aferida em função da forma como o autor estrutura o pedido e a respetiva causa de pedir, bem como pela natureza das partes.
Está em causa, nos presentes autos, um litígio emergente da execução de um contrato celebrado entre particulares, os ora autores, e uma pessoa coletiva de direito público, o Município réu, através do qual prometerem aqueles transmitir para este os direitos de que eram titulares sobre determinados prédios rústicos, mediante contrapartidas estabelecidas no contrato, nos termos e prazos aí indicados.
Considerou a 1.ª instância que tais contrapartidas têm na sua génese um programa de reparcelamento do solo urbano, seguido de operações de loteamento e obras de urbanização regulado, pelo menos parcialmente, por normas de direito público.
A esta respeito, consta da fundamentação da decisão recorrida o seguinte:
Na presente ação, os Autores invocam como causa de pedir um contrato celebrado com o Réu em 07.12.2001, por escritura pública intitulada “Contrato Promessa de Compra e Venda”, ulteriormente alterado por acordo denominado “Escritura Pública de Aditamento”, datado de 07.12.2004.
Em tal “Contrato Promessa de Compra e Venda”, declararam os Autores prometer «vender» ao Réu que, por sua vez, declarou prometer «comprar» os prédios rústicos ali melhor identificados, com vista à construção pelo Réu da Escola E, B2, 3 + S de Mação. Ficou o Réu de imediato autorizado a realizar todos os trabalhos necessários para a implantação da escola a construir.
Como contrapartida daquela transmissão, comprometeu-se o Réu, não a pagar um preço (que consiste no valor da coisa ou direito expresso em moeda de conta corrente) – apesar de as partes terem utilizado tal expressão –. mas antes a lotear e a infraestruturar, por sua conta, os terrenos pertencentes aos Autores que constituíam a parte sobrante daqueles prédios.
Tal loteamento e infraestruturação abrangeria: (i) elaboração e aprovação do projeto de loteamento e projetos complementares; (ii) construção e pavimentação de arruamentos; (iii) construção de redes de águas pluviais; (iv) construção de rede de esgotos domésticos; (v) construção de rede de abastecimento domiciliário de águas; (vi) construção de rede de instalações telefónicas; (vii) projetos e construção de rede de energia elétrica e (viii) demolição dos edifícios existentes no terreno, remoção dos entulhos resultantes e regularização do terreno.
Mas as obrigações assumidas pelo Réu não se quedaram por aqui.
Destarte, conforme resulta do “Contrato Promessa de Compra e Venda” junto aos autos, o Réu obrigou-se ainda a:
- «elaborar e a obter a aprovação de plano de pormenor» que abrangesse os prédios em causa e que respeitasse a planta anexa àquele contrato (cláusula sexta);
- a, uma vez obtida a aprovação do plano de pormenor, executar, relativamente à área por ele abrangida, o respetivo loteamento e infraestruturação (cláusula sétima);
- «efetuar toda a tramitação de elaboração e concertação do plano de pormenor de modo a propor a sua aprovação à Assembleia Municipal» (cláusula oitava); e
- a isentar os Autores do pagamento de quaisquer taxas municipais devidas pelo loteamento, urbanização ou transação dos terrenos a lotear (cláusula décima).
Fica, pois, claro que, pese embora as partes hajam qualificado o negócio como promessa de compra e venda, a circunstância de não ter sido prometido o pagamento de um preço (elemento essencial da venda), mas a um conjunto de prestações de facto, revela não estarmos perante uma promessa de venda, sem prejuízo do disposto no artigo 939.º do Código Civil (…).
A bem da verdade, escalpelizado o teor do contrato em causa, forçosamente se concluiu que a contrapartida acordada pela transmissão da propriedade dos prédios dos Autores para o Réu teve – e tem – na sua génese um programa de reparcelamento do solo urbano, seguido de operações de loteamento e obras de urbanização, regulados pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro (à data em vigor, mas entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio) e pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro.
Destarte, segundo o artigo 131.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro (atualmente com correspondência no artigo 164.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio), «o reparcelamento da propriedade é a operação que consiste no agrupamento de terrenos localizados dentro de perímetros urbanos delimitados em plano municipal de ordenamento do território e na sua posterior divisão ajustada àquele, com a adjudicação das parcelas resultantes aos primitivos proprietários ou a outras entidades interessadas na operação».
Veja-se que a cláusula sétima de tal contrato prevê expressamente que «concluído o plano de pormenor e os dois loteamentos e respetivas infraestruturas, os lotes serão divididos entre os proprietários dos terrenos abrangidos por ele, proporcionalmente à área que cada um possui no total de terrenos tratados e considerando os índices de densidade aprovados para os vários lotes (…)», cláusula contratual esta que encontra inteiro respaldo no artigo 132.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro (correspondente ao atual artigo 168.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio).
Ficou ademais acordado, na cláusula décima primeira da primeira versão contratual, que os Autores, enquanto proprietários, comparticipariam nos custos de urbanização, o que também nos remete para o previsto no 134.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro (atual artigo 170.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio).
Ora, ditava o artigo 131.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro (à data em vigor) que, no reparcelamento, as relações entre os proprietários e o município fossem reguladas por contrato de desenvolvimento urbano. Presentemente, são reguladas por contrato de urbanização (cfr. artigo 165.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio), previsto e regulado no Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro.
Salta, pois, à evidência que parte das obrigações principais assumidas pelo Réu, a título de contraprestação (a que as partes chamaram impropriamente de «preço») pela transmissão da propriedade dos prédios em causa se regem por normas de direito administrativo.
Mais do que isso:
À data da celebração do contrato, as competências da Câmara Municipal achavam-se reguladas pelo artigo 64.º da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro. Entre elas contam-se «elaborar e submeter à aprovação da assembleia municipal os planos necessários à realização das atribuições municipais», «elaborar e submeter a aprovação da assembleia municipal as opções do plano e a proposta de orçamento e as respectivas revisões» e «conceder licenças nos casos e nos termos estabelecidos por lei, designadamente para construção».
Sucede que, como aflorado supra, o Réu obrigou-se, não apenas a fazer obras de urbanização, mas também a elaborar e aprovar plano de pormenor em observância de planta anexa ao contrato, a aprovar os loteamentos e a isentar os Réus de taxas municipais. Evidentemente, o Réu só poderia assumir tais obrigações agindo no exercício das mencionadas competências, atribuídas por lei e para o prosseguimento do interesse público do Município, i.e. nas vestes de autoridade pública. Por outras palavras: estas obrigações não poderiam ser assumidas por mais ninguém que não o Município, por serem da sua competência.
E, nessa medida, estamos na presença de um acordo que dois particulares nunca poderiam celebrar entre si.
Mostra-se acertada esta análise do regime jurídico subjacente à relação contratual estabelecida entre as partes, a qual, ademais, não vem posta em causa na apelação de forma fundamentada.
Efetivamente, apesar de defenderem que as obrigações de urbanizar e de infraestruturar os terrenos envolventes à área cedida, assumidas pelo Município réu, são reguladas pelo direito privado, não esclarecem os apelantes tal regulação jurídica, nem a forma como entendem sobrepor-se ou afastar as normas imperativas de direito público constantes do regime jurídico exposto na decisão recorrida, não apresentando argumentação jurídica destinada a justificar a alteração da decisão proferida, cujos fundamentos permanecem intocados.
Pretendem os autores, através da presente ação, obter a condenação do município réu, além do mais, a adequar os lotes da Fase 2 do Empreendimento Urbanístico em causa, que foram atribuídos aos Autores, ao fim de construção a que se destinam, incluindo as acessibilidades aos mesmos; com regularizações e terraplanagens dos que se encontram a uma cota superior ao nível médio do solo, medido pela estrada ali existente; sua desmatação, incluindo eliminação de pinheiros e de sobreiros; remoção dos entulhos e ruínas existentes sobre os mesmos lotes.
Consta da cláusula 3.ª do contrato parcialmente transcrito no ponto i) de 2.1. que o Município se obrigou a lotear e infraestruturar, por sua conta, os terrenos pertencentes aos segundo, terceiro e quarta outorgantes e que constituem a parte sobrante do artigo (…) e o artigo (…) da secção (…), inscritos na matriz respetiva (…). Especificando o conteúdo destas obrigações, consta da cláusula 4.ª desse contrato que as mesmas abrangem: a) elaboração e aprovação do projecto de loteamento, e projectos complementares (…); b) construção e pavimentação de arruamentos; c) construção de redes de águas pluviais; d) construção da rede de esgotos domésticos; e) construção da rede de abastecimento domiciliário de águas; f) construção da rede de instalações telefónicas; g) projecto e construção de rede de energia elétrica (…); h) demolição dos edifícios existentes no terreno, remoção dos entulhos resultantes e regularização do terreno.
Está em causa apreciar o invocado incumprimento, pelo Município réu, destas obrigações, no que respeita, nomeadamente, à construção e pavimentação de arruamentos, bem como à demolição dos edifícios existentes no terreno, remoção dos entulhos resultantes e regularização do terreno.
Estas obrigações, cujo cumprimento coercivo vem peticionado na ação, integram as obras de urbanização que os autores alegam competirem ao município por força do contrato, como contrapartida da transmissão dos direitos sobre os aludidos prédios rústicos, matéria que se encontra regulada por normas de direito público, nos termos supra expostos.
Esta prestação de facto vem peticionada com fundamento no incumprimento, por uma pessoa coletiva de direito público, de obrigações de natureza administrativa decorrentes de contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, pelo que se mostra preenchida a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, conforme considerou a 1.ª instância.
Tendo-se concluído que as regras reguladoras da jurisdição administrativa e fiscal abrangem a apreciação da questão submetida a tribunal, afastada se encontra a competência residual dos tribunais judiciais, o que impõe a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.

Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
Évora, 09-05-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Rui Machado e Moura (1.º Adjunto)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)