Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
540/22.0T8PTM.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: REFORMA DA SENTENÇA
RECTIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
PRAZO DO RECURSO
SUSPENSÃO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Em face do regime de suprimento pelo juiz dos vícios das decisões proferidas, atualmente previsto nos artigos 614.º a 617.º do CPC, a alteração da decisão pelo próprio juiz que a proferiu só é admissível nos apertados limites em que a lei permite a retificação de erros ou lapsos materiais; o suprimento das nulidades; a reforma da decisão quanto a custas e multa, e ainda, se não couber recurso da decisão, quando por manifesto lapso do juiz tenha ocorrido uma das situações elencadas nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 616.º.
II – Diversamente do que ocorria no regime processual vigente antes da alteração quanto à impugnação das decisões introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, atualmente a arguição de qualquer um dos indicados vícios pelas partes não suspende o prazo para interposição de recurso.
III – Transitada em julgado a sentença condenatória proferida nos autos, deve revogar-se a decisão recorrida que oficiosamente, e em violação do caso julgado formado pela sentença que proferira, decidiu proceder oficiosamente à reforma da sentença condenatória transitada em julgado, julgando procedente a exceção de litispendência, e absolvendo a Ré da instância.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 540/22.0T8PTM.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:[2]
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I. RELATÓRIO
1. AA propôs a presente ação declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra VISCONDE CONSTRUÇÃO, LDA., pedindo que fosse proferida sentença julgando procedente o seguinte pedido:
«A) Condenar a R. na reparação dos defeitos indicados na presente petição de forma a repor a conformidade da obra, tal e qual como foi acordada com o A., no prazo de 60 dias a contar da citação para o presente processo;
B) Condenar a R. no pagamento de uma indemnização ao A., referente aos danos patrimoniais, bem como aos danos não patrimoniais, a liquidar posteriormente em liquidação de sentença, mas nunca inferior a 400.000,00€ (quatrocentos mil euros), a título de todos os tipos de danos supra mencionados, sendo que existe ainda um valor que se desconhece devido ao facto de não se saber como irá ser o desfecho do presente processo, sendo que até ao momento foram gastos cerca de 9.000,00 € em honorários por serviços jurídicos e taxas de justiça. Sendo que este valor pedido a título de indemnização tem carácter meramente indicativo, pois encontra-se dependente da avaliação pericial solicitada.
SUBSIDIARIAMENTE
Caso V. Exas. assim não entenda, o que por mera hipótese se admite, requer que a presente ação seja julgada procedente, por provada, e, em caso de incumprimento definitivo por parte da R.:
A) Condene a R. no pagamento de uma indemnização no montante de 400.000,00 € (quatrocentos mil euros), correspondente a todos os tipos de danos supra indicados, a liquidar posteriormente em execução de sentença, uma vez que existe ainda um valor que se desconhece, devido ao facto de não se saber como irá ser o desfecho do presente processo, sendo que até ao momento foram gastos cerca de 9.000,00 (nove mil euros) em honorários por serviços jurídicos e taxas de justiça, como dito acima.
Sendo que este valor também se encontra dependente da avaliação pericial solicitada.
Em qualquer dos casos supra solicitados a este tribunal nos dois pedidos, requer a condenação dos R.R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de 150,00 € (cento e cinquenta euros), nos termos do disposto nos números 1 a 4 do art.º 829-A do Cód. Civil, por cada dia de atraso na reposição da conformidade da obra ou no pagamento de 400.000,00 € (quatrocentos mil euros), para a realização da obra por terceiro – ou na quantia que vier a ser indicada em perícia judicial a requerer no âmbito do presente processo.
Também em qualquer dos casos supracitados pedidos a este tribunal, se requer, caso se tenha de proceder a um calculo de redução do preço para a resolução do presente caso, a equação citada nos artigos 153 a 155 da presente petição e o resultado que da mesma resulta, bem como que, na perícia a realizar pelo tribunal, abaixo requerida, se apurem esses valores (Pd = (Pa x Vr): Vi)».
Em fundamento da deduzida pretensão, o Autor invocou que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada para construção de uma moradia, e acordados trabalhos adicionais, cujo tipo e custo elencou, num valor total de 899.778,00€, a pagar faseadamente, nos termos constantes do contrato.
Mais alegou que a obra não foi terminada no tempo de execução contratado, e ainda hoje permanecem trabalhos por concluir, cujo pagamento já efetuou. Acresce que a empreitada também padeceu de vários problemas de execução, apresentando defeitos vários, os quais foram desde logo comunicados ao R. pelo A. assim que se tomaram conhecidos deste para que aquele procedesse às reparações devidas e necessárias, mas com o decurso do tempo a R. acabou por manifestar a intenção de não proceder a qualquer reparação.
Invocou ainda que no dia 9 de março de 2017, quando a R. lhe entregou as chaves da habitação, não foi lavrado qualquer auto de receção provisória, tendo-lhe nessa mesma ocasião o Autor referido expressamente. que não aceitava a obra no estado em que ela se encontrava, aduzindo seguidamente no artigo 33 da petição inicial que “33- Para além desses defeitos atrás referidos, que foram objeto de um processo judicial, nos últimos meses surgiram novos defeitos que, abaixo, se indicarão” (sublinhado de origem).
Seguidamente (artigos 35 a 53 da petição inicial) o Autor passou a indicar um conjunto de defeitos, cujo aparecimento/deteção situou entre os meses de setembro de 2021 e janeiro de 2022, aduzindo ainda que o jacuzzi não foi sequer edificado.
No segmento do petitório atinente ao “Direito”, convocou o regime das empreitadas de consumo, previsto no DL n.º 67/2003.

2. Foi expedida carta registada para citação da Ré, cujo aviso de receção foi devolvido assinado, não tendo sido apresentada contestação.
Após, foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pelo Autor, tendo este apresentado alegações.

3. Em 19.06.2022 foi proferida sentença, com o seguinte segmento dispositivo:
«Em face do exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, decido:
a) Condenar a ré VISCONDE CONSTRUÇÃO, LDA., na reparação dos problemas elencados pelo Autor AA e enunciados supra, no que se refere à empreitada correspondente à moradia sita no Lote n.º …, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º … da freguesia da Luz, do concelho de Lagos, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo …, freguesia da Luz, concelho de Lagos. Prazo: sessenta dias após a notificação. Decorrido esse prazo sem que a ré algo faça, o contrato de empreitada de 17 de novembro de 2015, e acordos posteriores, ficarão resolvidos e a ré obrigada a pagar ao mesmo Autor a quantia de € 400 000 (quatrocentos mil euros), correspondente ao custo das reparações necessárias (danos patrimoniais), acrescida de juros legais contados desde o 61.º dia após a notificação da sentença;
b) Condenar a mesma ré no pagamento ao Autor da quantia de € 10 000 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais que vierem a vencer-se.
Custas na proporção do decaimento – art. 527.º do Código de Processo Civil».

4. A notificação da sentença foi enviada à Ré em 23.06.2022 (certificação Citius).

5. Em 11.08.2023, a Ré Visconde Construções Lda, apresentou requerimento informando ter constituído mandatário o Advogado subscritor do mesmo, dizendo que “vem juntar aos autos procuração forense, requerendo que o seu mandatário seja associado ao processo na plataforma”.

6. Por requerimento apresentado em 01.09.2023, a Ré formulou a pretensão de «ser a citação considerada nula e, consequentemente, anular-se todo o processado posterior à petição inicial, repetindo-se a citação da Ré na morada da sua sede, conforme o exige a lei processual», aduzindo que «este requerimento consiste na primeira intervenção da Ré no processo, atendendo que a junção da procuração teve por finalidade facultar os elementos do processo ao seu mandatário».

7. Notificado, o Autor respondeu invocando, para além do mais, que no contrato de empreitada em apreço foi convencionado aquele domicílio, cuja alteração a Ré não comunicou, conforme previsto no contrato, «E, porque foi convencionado pelas partes que a correspondência acerca de qualquer pendencia do objeto em causa seria para o aludido domicílio convencionado, a ação declarativa com o n.º de processo: 1282/19.0T8PTM foi intentada para o DOMICILIO CONVENCIONADO da R; bem como a presente ação. E, houve resposta à Citação da referida ação declarativa por parte da R (a primeira)».

8. Por despacho proferido em 19.12.2022, foi julgado improcedente o deduzido incidente.

9. Após a prolação daquela decisão, por despacho que fundamentou, a julgadora determinou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a reforma da sentença, em suma, por ponderar que «a ré foi citada no processo n.º 540/22 quando estava em curso a ação n.º 1282/19, cinco dias antes do início da audiência neste processo mais antigo, devendo aqui ser conhecida a exceção de litispendência – art. 582.º.
Note-se que em nenhum momento, o Autor faz referência ao processo n.º 1282/19 em curso, devendo também apurar-se se houve litigância de má fé e abuso de direito.
Para já, os elementos constantes dos autos são por si só suficientes para equacionar a já referida reforma da sentença, sob pena de injustiça flagrante».

10. Ambas as partes se pronunciaram.
O Autor, invocando não existir fundamento para proceder à reforma da sentença proferida, em síntese, por se encontrar esgotado o poder jurisdicional e ter transitado em julgado a sentença proferida nestes autos, consequentemente não se verificando a exceção de litispendência.
A Ré, defendendo «que se proceda à reforma da douta sentença apreciando-se a verificação da excepção da litispendência e das demais questões suscitadas no douto despacho».

11. Em 01.02.2023, o tribunal a quo decidiu: «reformo a sentença proferida nestes autos no dia 23 de maio de 2022 nos seguintes termos, ficando aquela sem efeito e considerando-se substituída pela que segue: (…)
«Em face do exposto, julgo procedente a exceção de litispendência, absolvendo a ré VISCONDE CONSTRUÇÃO, LDA., da instância.
Custas a cargo do Autor – art. 527.º do Código de Processo Civil».

12. Inconformado, o Autor apelou, concluindo que:
«I – Veio o julgador a quo, depois da Sentença do presente processo judicial transitada em julgado, Reformar a aludida decisão porque entendeu agora que havia encontrado de modo oficioso uma exceção por litispendência.
II – Vejamos que nenhumas das partes solicitou a reforma da sentença a quo, pois foi o próprio julgador que a impulsionou e a proferiu, sem que essa reforma tenha sido pedida por qualquer uma das partes interessadas [(falta) de interesse em agir – pressuposto processual)].
III – O julgador a quo decidiu impulsionar, por si próprio, como se lhe fosse permitido intervir como parte no âmbito do Princípio do Dispositivo, e dispôs por ele próprio essa vontade que não foi em momento algum a vontade das partes, alegando este o “principio da equidade e justiça?”.
IV – Quanto à questão suscitada, sem poderes para tal, o julgador a quo veio arguir a existência de uma exceção dilatória de litispendência e daí decidir intervir como parte e impulsionar a reforma do processo transitado em julgado.
V – Cabe desde já dizer que o pedido formulado em cada uma das ações é diverso, os danos são substancialmente diversos e o pedido de indemnização é também consequentemente substancialmente diverso.
VI – Sendo que nem sequer existe nesta ação que transitou em julgado e na outra que decorre os termos no Tribunal de Portimão com o n.º 1282/19, quaisquer requisitos processuais para se considerar que entre as duas ações houvesse uma exceção por Litispendência.
VII – Nenhuma das partes arguiu em algum momento a aludida exceção dilatória.
VIII – Nenhuma das partes pediu ao julgador a quo a Reforma da Sentença.
IX – A presente ação já tinha transitado em julgado.
X – O julgador a quo já tinha perdido os poderes legalmente conferidos ao mesmo, porque se extinguiram, a partir do momento em que proferiu Sentença.
XI – Nem sequer existem as situações excecionais que poderiam conferir poderes ao julgador a quo para intervir por erro na decisão.
XII – O Recorrente logo na Petição Inicial deu conhecimento ao julgador a quo de que estaria a decorrer outro processo judicial e elencou os factos diversos entre a presente ação e aquela outra que ainda decorre.
XIII – O julgador a quo ou não percebeu e não pediu esclarecimentos através de Despacho para o efeito ou então simplesmente negligenciou o facto ali descrito no artigo 30.º da P.I.
XIV – E usou como argumentação para vir aos autos depois da sentença ter transitado em julgado, que não teve conhecimento de que estaria a decorrer outra ação que o mesmo agora entende existir exceção de litispendência entre as duas ações, quando tal facto é falso como se pode confirmar observando a referida P.I.
XV – E como se reforça, as ações são completamente distintas, o pedido é diverso, os danos são diversos e o pedido de indemnização é diverso, ainda que as partes sejam as mesmas, não estão reunidos os três elementos necessários reunidos para que se possa alegar exceção por litispendência entre a presente ação e aquela outra que ainda decorre.
XVI – Conclui o Recorrente no sentido da procedência do recurso, revogando-se a decisão judicial em crise, por inexistência legal da aludida sentença.
XVII – Em harmonia com os poderes conferidos pelo art.º 202.º da Constituição da República Portuguesa, ao Tribunal ad quem, deverá conceder provimento ao recurso jurisdicional em apreço e, em consequência, revogar a decisão judicial recorrida, com todas as legais consequências».

13. A Ré respondeu, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

14. Observados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha.
Assim, a única questão colocada para apreciação por este Tribunal da Relação, é a de saber se, perante as incidências processuais relevantes transcritas no relatório, o tribunal a quo podia ou não ter procedido à reforma da sentença que havia proferido nos presentes autos.
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III. O mérito do recurso
Conforme é sabido, de acordo com o disposto no artigo 613.º, n.º 1, do CPC, quanto à extinção do poder jurisdicional e suas limitações, a regra é a de que, proferida a sentença – ou o despacho, em face do preceituado no n.º 3 do mesmo artigo –, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz para proceder à respetiva alteração, devendo a parte vencida que das decisões proferidas dissente e que pretenda reagir contra as mesmas, usar a faculdade processual de delas interpor o devido recurso por forma a obter, em caso de procedência da sua pretensão, a pretendida alteração pelo tribunal superior.
Não obstante, o legislador tipificou algumas situações em que consagrou exceções àquela regra da extinção do poder jurisdicional, permitindo ao juiz de primeira instância retificar erros materiais, suprir nulidades, e reformar a sentença, casos em que, atento o preceituado no artigo 613.º, n.º 2, do CPC, lhe é lícito proceder à correção/alteração da decisão inicialmente proferida.
São, pois, ressalvados daquela regra da extinção do poder jurisdicional após a prolação da decisão, os casos em que a lei expressamente permite ao juiz corrigir - a pedido ou por iniciativa própria -, os vícios de que a mesma enferma.
Assim, em face do regime de suprimento pelo juiz dos vícios das decisões proferidas, atualmente previsto nos artigos 614.º a 617.º do CPC, a alteração da decisão pelo próprio juiz que a proferiu só é admissível nos apertados limites em que a lei permite a retificação de erros ou lapsos materiais; o suprimento das nulidades; a reforma da decisão quanto a custas e multa, e ainda, se não couber recurso da decisão, quando por manifesto lapso do juiz tenha ocorrido uma das situações elencadas nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 616.º. Ao invés, não sendo a alteração enquadrável em nenhum dos casos de suprimento referidos, a decisão proferida apenas é modificável em sede de recurso.
Acontece que, diversamente do que ocorria no regime processual vigente antes da alteração quanto à impugnação das decisões introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, atualmente, a arguição de qualquer um dos indicados vícios pelas partes não suspende o prazo para interposição de recurso.
Acresce ainda que, se a decisão admitir recurso ordinário, o legislador estabeleceu que a arguição das nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 615.º, e a reforma da sentença podem ser suscitadas no âmbito do recurso interposto da decisão – cfr. n.º 4 do artigo 615.º e n.ºs 2 (a contrario) e 3 do artigo 616.º.
Concordantemente, o legislador estabeleceu no artigo 617.º do CPC o processamento subsequente para estes casos em que a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma seja suscitada no âmbito do recurso que dela haja sido interposto, competindo ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso.
Efetivamente, no regime atualmente vigente somente a retificação de erros materiais não está sujeita ao referido regime de arguição em sede de alegações de recurso, podendo ser sempre efetuada por requerimento de qualquer das partes[4] ou por iniciativa do juiz, e ser decidida por simples despacho, podendo inclusivamente ter lugar a todo o tempo, se nenhuma das partes recorrer – cfr. n.ºs 1 e 3 do artigo 614.º do CPC. Do mesmo modo, o n.º 2 do artigo 614.º do CPC estabelece uma tramitação própria para a correção deste vício da sentença, diversa do processamento previsto no artigo 617.º e já referido para os casos de suprimento de nulidade ou de reforma da sentença, estatuindo que, em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
Posto este enquadramento genérico, fácil é verificar que o ocorrido nos presentes autos – e que se mostra evidenciado pelas incidências processuais relevantes acima transcritas –, não encontra arrimo no regime legal atinente à possibilidade de intervenção do julgador para modificação de decisão prolatada, desde logo porque não foi sequer interposto recurso da decisão proferida em 19.06.2022, quando a mesma o admitia.
Com efeito, justificou a julgadora que não se havia pronunciado sobre questão sobre a qual tinha que se pronunciar (a litispendência).
Fê-lo, porém, olvidando que quando em 01.02.2023 proferiu o despacho sindicando, há muito transitara a sentença que havia proferido nos autos.
Na verdade, quando a Ré atravessou o requerimento arguindo a nulidade do processado por falta da sua citação, a sentença prolatada nos autos não havia ainda transitado em julgado, pois que a sua notificação havia sido remetida à Ré em 23.06.2022.
Caso a arguição dessa nulidade da citação da Ré tivesse sido procedente, com a consequente anulação de todo o processado, essa sentença seria também nula e de nenhum efeito.
Porém, não foi isso que aconteceu.
A nulidade arguida foi julgada improcedente por despacho proferido em 19.12.2022, que foi notificado à Ré, sem que do mesmo tenha sido interposto recurso.
É certo que, nesse mesmo dia, a Senhora Juiz determinou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à possibilidade de reformar a sentença nos termos em que veio a julgar possível fazê-lo.
Mas, no prazo de 10 dias que lhes foi concedido para o efeito, o Autor pronunciou-se pela inadmissibilidade da reforma daquela decisão nos termos anunciados pela julgadora, posição que logo fazia antever que não se conformaria com a prolação de decisão nos termos preconizados no despacho que determinou a audição das partes.
Consequentemente, só a interposição de recurso pela Ré do despacho que indeferiu a arguida nulidade da sua citação, teria a virtualidade de obstar ao trânsito em julgado da sentença.
Não obstante, a Ré limitou-se a secundar a posição veiculada pelo tribunal a quo, sem impugnar aquele despacho, pelo que, a sentença proferida em 19.06.2022, transitou em julgado.
Consequentemente, e desde logo por essa evidente razão, a decisão recorrida, que julgou procedente a exceção de litispendência, absolvendo a Ré da instância, proferida com o fundamento de que «o autor AA propõe ação que não vem a ser contestada e obtém ganho de causa devido a revelia, numa segunda ação em que não foi considerada a litispendência», não pode manter-se.
Com efeito, a propósito do alcance do caso julgado, diz-nos o artigo 621.º do CPC, que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga, e que, uma vez transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro e fora do processo nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do CPC, valor da sentença transitada em julgado que expressamente resulta do disposto no n.º 1 do artigo 619.º do CPC.
Para salvaguardar esta força obrigatória, a lei prevê a exceção de caso julgado que pressupõe, por via do disposto no artigo 497.º nºs 1 e 2 do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, ou seja, assenta “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”[5].
É certo que a autoridade do caso julgado pode ser sacrificada quando tal sacrifício seja apto a evitar os superiores dano e perturbação que adviriam de uma sentença intoleravelmente injusta, devendo ceder, nas situações em que tal se verifique, o princípio da segurança perante o princípio da justiça.
Mas, para tal efeito existe o recurso extraordinário de revisão de sentença, cujo fundamento reside precisamente na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos e excecionais como são aqueles que o legislador elencou no artigo 696.º do CPC, sacrificar a intangibilidade do caso julgado, permitindo a sua rescisão, por imperativos de justiça, de forma que se possa reparar essa grave injustiça e proferir nova decisão.
Porém, a definição desses casos extremos e excecionais em que a intangibilidade do caso julgado, que sustenta a necessidade de certeza e segurança na definição das relações jurídicas, cede perante o princípio da justiça, mostra-se positivada no elenco taxativo de situações previstas no citado preceito legal, que estatui sobre os fundamentos do recurso de revisão, recurso que naturalmente depende da iniciativa da parte e não é de conhecimento oficioso.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, o presente recurso procede, sendo de revogar a decisão recorrida que, em violação do caso julgado formado pela sentença que proferira, decidiu proceder à reforma da sentença condenatória já transitada, julgando procedente a exceção de litispendência, e absolvendo a Ré da instância, ficando a subsistir na ordem jurídica a sentença proferida em 19.06.2022, transitada em julgado.
Vencida, a Ré/Apelada suporta as custas do recurso, na vertente das custas de parte, atento o princípio da causalidade e o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta conferência, na procedência da apelação, em revogar a decisão proferida em 01.02.2023, ficando a subsistir na ordem jurídica a sentença condenatória proferida em 19.06.2022, e transitada em julgado.
Custas pela Apelada.
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Évora, 28 de setembro de 2023
Albertina Pedroso [6]
José António Moita
Ana Pessoa

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[1] Juízo Central Cível de Portimão - Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: José António Moita; 2.ª Adjunta: Ana Pessoa.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] O que acontece é que, requerendo a parte que podia recorrer a retificação da sentença e da mesma não recorrendo, corre o risco de, vendo indeferida a pretendida retificação posteriormente ao prazo de que disponha para interpor recurso da decisão, ver precludida a possibilidade de então interpor recurso.
[5] Cfr. ANTUNES VARELA, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 307.
[6] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.