Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA MARGARIDA CARVALHO PINHEIRO LEITE | ||
Descritores: | OBRIGAÇÃO ALIMENTAR IMPENHORABILIDADE DE PENSÕES IMPENHORABILIDADE RELATIVA ALIMENTOS A MENORES | ||
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Data do Acordão: | 01/28/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I – O artigo 48.º do RGPTC não estabelece qualquer limite ao montante a descontar no salário do devedor de prestações devidas a título de alimentos em benefício de filho menor, o que poderá pôr em causa o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da CRP, ao não salvaguardar uma quantia mínima, destinada a evitar que o obrigado a alimentos fique privado de recursos que lhe permitam garantir o seu sustento e do seu agregado familiar; II - Há que considerar o ordenamento jurídico no seu conjunto e ter em conta que, em sede executiva, estando em causa créditos provenientes de obrigações de alimentos, o artigo 738.º, n.º 4, do CPC, fixou o limite de impenhorabilidade na quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, limite este ao qual deverá igualmente atender-se nos casos de descontos ordenados nos termos do artigo 48.º do RGPTC, de forma a respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da CRP. (sumário da relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório Por apenso à ação executiva para pagamento de quantia certa movida por Banco …, SA contra P…, no âmbito da qual foi penhorado o salário auferido pelo executado e veio posteriormente a ser demandada, ao abrigo do disposto no artigo 777.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a respetiva entidade patronal, K…, Unipessoal, Lda., tendo sido penhorado o saldo de depósito bancário da titularidade da mesma, deduziu esta executada os presentes embargos, nos quais cumula a oposição à execução e a oposição à penhora, pedindo: a) se julgue improcedente a execução, por inexistência de título executivo; b) se ordene o levantamento da penhora do saldo bancário; c) subsidiariamente, se determine a redução da penhora ao valor dos concretos montantes a descontar no salário do primitivo executado. Recebida a oposição à execução e à penhora, a embargada contestou, pugnando pela respetiva improcedência. Foi realizada tentativa de conciliação, após o que se comunicou que o estado do processo permite conhecer do mérito da causa, tendo sido concedido contraditório às partes para se pronunciarem, querendo, quanto à realização ou dispensa da audiência prévia, bem como para fazerem uso por escrito da faculdade prevista no artigo 591.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil. Por decisão de 25-03-2020, proferiu-se despacho saneador, discriminou-se os factos considerados provados e conheceu-se do mérito da causa, tendo a oposição à execução sido julgada improcedente e a oposição à penhora parcialmente procedente, decidindo-se o seguinte: Por tudo o que vem de ser exposto: - julgo os presentes embargos improcedentes; - julgo parcialmente procedente o incidente de oposição à penhora e, consequentemente, determino o levantamento da penhora na medida em que o valor do saldo bancário exceda o montante necessário para pagamento do valor correspondente ao total dos descontos que deviam ter sido efetuados ao longo dos vários meses, das custas e dos encargos do processo. Custas dos embargos pela executada. Custas do incidente de oposição à penhora pela oponente e pela exequente na proporção dos respetivos decaimentos. Notifique. Inconformada, a embargante interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e formulando as seguintes conclusões: «1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão que julgou improcedentes os embargos da ora Recorrente que, na qualidade de Entidade Empregadora do Primitivo Executado, não procedeu aos descontos à ordem dos presentes autos por tal pressupor a inobservância dos limites de impenhorabilidade, atendendo a que sobre aquele impendiam uma penhora da Autoridade Tributária e Aduaneira e, ainda o desconto referente à Prestação de Alimentos. 2. A Prestação de Alimentos foi determinada pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal da Comarca de Setúbal, à ordem do Processo n.º 19/09.6TMSTB e notificada à aqui Recorrente para proceder ao respetivo desconto no salário do Primitivo Executado. 3. Após esclarecimento prestado pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal da Comarca de Setúbal, constante de despacho a 11 de fevereiro de 2019, a Executada foi notificada do seguinte “(…) o crédito por pensão de alimentos, quer relativamente às prestações vencidas, quer às vincendas, goza de prioridade e preferência no pagamento dos créditos. (…)” 4. Atendendo ao conteúdo da notificação daquele Tribunal, a aqui Recorrente, procedeu em conformidade e comunicou tal entendimento ao Agente de Execução dos presentes autos (i.e. que, atendendo à prioridade dos descontos relativos às penhoras de Pensões de Alimentos e da penhora da Autoridade Tributária, não conseguiria assegurar-se a transferência de um valor equivalente ao salário mínimo nacional para o Executado, pelo que o desconto à ordem dos presentes autos não poderia ser efetuado). 5. Contudo, foi instaurada execução contra a aqui Recorrente que se opôs mediante embargos e oposição à penhora, tendo aqueles sido julgados improcedentes. 6. A efetivação da prestação de alimentos encontra-se regulada no artigo 48.º do RGPTC. Tal preceito, que corresponde ao anterior artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores (OTM), tem como objetivo o cumprimento coercivo da obrigação de alimentos (assim como a ação executiva especial por alimentos, presente nos artigos 933.º e seguintes do Código de Processo Civil). 7. A maioria da doutrina e jurisprudência defende que o mecanismo previste o RGPTC, sendo uma forma coerciva de obtenção da prestação de alimentos pelos menores, tem uma natureza executiva, equiparável à ação executiva especial por alimentos prevista no artigo 993.º do Código de Processo Civil. 8. Assim, caso o obrigado à prestação de alimentos for empregado ou assalariado, como no caso do Primitivo Executado, a respetiva entidade patronal é notificada para que deduza as quantias em falta no ordenado, ficando na situação de fiel depositária. 9. A dedução de rendimentos abrange o montante dos atrasos e as prestações de alimentos a vencer no futuro, sendo reduzida ao rendimento do devedor uma prestação mensal mais um montante determinado correspondente a uma parte das quantias em atraso, deixando esta última dedução de se fazer quando os atrasos estiverem completamente pagos. 10. Neste sentido, sendo um mecanismo com carácter coercivo, não procede o entendimento do tribunal a quo, no sentido de considerar a prestação de alimentos um mero “encargo” do executado – o que, salvo o devido respeito, fere desde logo com o princípio do superior interesse do menor, fundamental no nosso sistema jurídico. 11. O Tribunal a quo parece considerar, ignorando a orientação jurisprudencial maioritária sobre esta matéria, que a prestação de alimentos a que o Primitivo Executado se encontra adstrito trata-se, na verdade, de uma pensão de alimentos. 12. Posto isto, face à natureza do procedimento previsto no Artigo 48.º do RGPTC e à orientação jurisprudencial maioritária, carece de sentido o entendimento do Tribunal a quo ao considerar que a prestação de alimentos se trata de um mero “encargo” do Primitivo Executado ou de uma “despesa pessoal” e não um desconto legalmente obrigatório de natureza coerciva equiparado a um processo executivo (que pretende acautelar o interesse do menor em causa). 13. Aqui chegados, fica evidentemente prejudicada a não aplicação do limite de impenhorabilidade previsto no artigo 738.º do Código de Processo Civil, propugnada pelo Tribunal a quo. 14. Considerando que a prestação de alimentos é equiparável a uma penhora do vencimento e atendendo à prioridade da mesma face à dos autos, assim como da existência de uma penhora, também anterior, efetuada no âmbito de uma execução fiscal, que incidia sobre 1/6 daquele vencimento, o desconto no vencimento à ordem dos presentes autos fica prejudicado, atendendo ao limite correspondente ao salário mínimo nacional. 15. Atendendo à penhora anterior que impende sobre a retribuição do Primitivo Executado, bem como a prestação de alimentos, dever-se-á garantir o salário mínimo nacional, pelo que deverá a decisão recorrida ser revogada e ser substituída por outra que proceda à redução do crédito penhorado nos autos. 16. Acresce que, na decisão ora posta em causa, o Tribunal a quo refere, e bem, que a aqui Recorrente “(…) não podia deixar de proceder em conformidade com a notificação que lhe foi dirigida pelo Juízo de Família e Menores de Setúbal, uma vez que as decisões dos Tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).” 17. Ora, face a esta argumentação, a decisão de improcedência dos embargos apresentados não deixa de merecer alguma incredulidade por parte da aqui Recorrente. Pois, ao considerar que a prestação de alimentos determinada ao abrigo do artigo 48.º do RGPTC é um mero encargo do Primitivo Executado, pressupõe o incumprimento do despacho proferido pelo Juízo de Família e Menores de Setúbal. 18. Assim, não se pode deixar de considerar que a decisão vertida na sentença vai contra os fundamentos da mesma, sendo consequentemente, nula. 19. Configurando a decisão nos termos em que o fez, o tribunal a quo violou o preceituado no artigo 48.º do RGPTC, ignorando que tal mecanismo jurídico tem carácter coercivo equiparável à ação executiva especial de prestação de alimentos e que, como tal, os descontos a efetuar devem ser considerados para efeitos de cálculo do limite de impenhorabilidade, juntamente com outras penhoras que impendam sobre o Primitivo Executado. 20. Por conseguinte, atendendo não só à penhora anterior que impende sobre 1/6 da retribuição do Primitivo Executado, bem como a prestação de alimentos, dever-se-á garantir o salário mínimo nacional, pelo que deverá a decisão recorrida ser revogada e ser substituída por outra que proceda à redução do crédito penhorado nos autos.» A embargada apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido. Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes: - da nulidade da decisão recorrida; - da oposição à execução. Corridos os vistos, cumpre decidir. 2. Fundamentos 2.1. Fundamentos de facto Na 1.ª instância, foram considerados provados os factos seguintes: 1. A execução baseia-se em notificação dirigida pela AE à executada, com base na qual a exequente apresentou requerimento executivo em que requereu o prosseguimento da execução contra a entidade patronal do executado, para pagamento da quantia de € 8.033,34 (o mesmo valor peticionado na execução primitiva), tendo tal notificação, além do mais, o seguinte conteúdo: “Fica(m) V. Exa(s). pela presente notificado(s), nos termos e para efeitos do disposto no artigo 779º do Código Processo Civil (C.P.C.), na qualidade de entidade patronal/entidade pagadora, para a penhora dos respetivos abonos, vencimentos, salários ou outros rendimentos periódicos devidos ao executado adiante indicado, nomeadamente indemnização ou compensação que aquele tenha a receber, até que seja atingido o limite previsto também adiante indicado. No prazo de DEZ DIAS deve(m) declarar qual o vencimento do referido funcionário (ver informações complementares para melhor esclarecimento). Nos termos do artigo 738º do CPC são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado. Para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios. A impenhorabilidade atrás referida tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional. VALOR TOTAL PREVISTO 5983.88 Euros IDENTIFICAÇÃO DO EXECUTADO P…, NIF: …; BI: … COMINAÇÃO / ADVERTÊNCIAS Se nada disser, entende-se que reconhecem a existência da obrigação (nº 4 do artigo 773º do CPC). Se faltarem conscientemente à verdade incorrem na responsabilidade do litigante de má-fé (nº5 do artigo 773º do CPC). Não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir, nos próprios autos da execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito. Nos termos do Artigo 417.º do CPC, a falta de colaboração pode ser sancionada com multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis.” - provado por documento. 2. A carta de notificação a que se alude no ponto anterior foi efetuada por carta registada com aviso de receção, tendo a mesma sido recebida em 24.10.2018, data em que foi assinado o aviso de receção - provado por documento. 3. Na sequência da receção da referida carta de notificação, a entidade patronal (a ora embargante), por e-mail de 30.10.2018, informou a AE que já impendia sobre o primitivo executado uma penhora da Autoridade Tributária sobre 1/6 do vencimento, relativamente à qual se encontrava a efetuar os respetivos descontos, pelo que iria proceder ao desconto de 1/6 do vencimento, com início em outubro - provado por documento. 4. Em 26.10.2018, a embargante foi notificada pelo Juízo de Família e Menores de Setúbal – J 3, proc. n.º 19/09.6TMSTB-D, para efetuar os respetivos descontos mensais relativos à pensão de alimentos que o primitivo executado tinha que entregar a favor do seu filho menor P…, nos termos da sentença proferida no referido processo - provado por documento. 5. Informado pela embargante, a AE solicitou à executada informação sobre as penhoras anteriores que incidiam sobre o vencimento do executado, de modo a informar a execução apensa - provado por documento. 6. Em 23.01.2019, a AE notificou a embargante para proceder à entrega imediata do valor de € 274,15 que, segundo a notificação “(…) deveriam ter sido descontados ao executado nos meses de novembro e dezembro”, de acordo com os cálculos elaborados face aos descontos que a embargante deveria efetuar (sendo o salário líquido de novembro no valor de € 981,42, e sendo o salário líquido de dezembro no valor de € 888,69) com a indicação de que a ordem “correta” dos descontos seria a seguinte: “1) € 50,00 relativa à Prestação de Alimentos (quantias vencidas); 2) 1/6 para a penhora da AT; 3) 1/6 da penhora (dos presentes autos); 4) € 125,00 referentes à Prestação de Alimentos (quantias vincendas)” – provado por documento. 7. Na sequência da notificação da AE, a embargante solicitou o esclarecimento do Juízo de Família e Menores de Setúbal sobre a questão da prioridade dos descontos relativos às pensões de alimentos – provado por documento. 8. Em 19.02.2019, a embargante foi notificada pelo Juízo de Família e Menores de Setúbal - Juiz 3 de que “(…) o crédito por pensão de alimentos, quer relativamente às prestações vencidas, quer às vincendas, goza de prioridade e preferência no pagamento dos créditos” - provado por documento. 9. A embargante comunicou o entendimento do Juízo de Família e Menores de Setúbal, transmitindo que, após os descontos que por aquele Juízo foram ordenados, e do desconto da penhora anterior da Autoridade Tributária, não seria possível efetuar os descontos à ordem dos presentes autos, por tal pressupor que o primitivo executado viesse a auferir uma quantia inferior ao ordenado mínimo - provado por documento. 10. A entidade patronal não procedeu ao depósito da quantia de € 274,15 - admitido por acordo. 11. Nos autos de execução foi penhorado o seguinte bem, no valor de € 7.137,29: “Depósito à ordem de Conta titulada pelo Executado na Entidade M… Identificação: … Tipo Conta: DO Nº Titulares: 1 Quantidade: 0 Onerado: Não Garantia Real: Não” – provado por documento. 12. No auto de penhora, datado de 22.07.2019, a AE indicou os seguintes valores, o primeiro respeitante à dívida exequenda, o segundo referente às despesas prováveis e o terceiro correspondente ao total: € 8.033,34, € 1.301,75 e € 9.335,09 - provado por documento. 13. A execução contra a ora embargante foi proposta em 04.06.2019 – provado por documento. 14. No requerimento executivo a exequente alegou os seguintes factos: «A empresa K…, unipessoal, Lda., foi notificada para penhorar o vencimento do executado, P… nos termos do artigo 779º do CPC. Na referida notificação, a Empresa ora executada foi devidamente advertida das consequências da omissão de resposta e falta de colaboração com o Tribunal. Em resposta à notificação enviada pela Sra Agente de Execução a Empresa ora executada respondeu informando que o Executado aufere um vencimento superior ao salário mínimo nacional e que sobre o vencimento já se encontrava a recair uma pensão de alimentos, com quantias vencidas e vincendas. Conforme apurado pela Sra Agente de execução e de acordo com a informação em anexo, o valor fixado para as quantias vencidas da referida pensão de alimentos era de 50,00 € e o valor respeitante às quantias vincendas da mesma, era de 150,00 €. Concluiu, então, a Sra Agente de execução que deveriam ter sido descontados ao executado P…, nos meses de novembro e dezembro, o valor de 274,15 €, conforme cálculos constantes do documento anexo e que aqui se dão por integralmente reproduzidos. Embora advertida para proceder à entrega do valor referido, não veio a ora executada, regularizar a situação, impedindo, assim, o cumprimento do crédito da exequente. Porque assim é, requer-se a V. Exa. o prosseguimento dos autos de execução contra a ora executada, K…, unipessoal, Lda., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 777º nº 3 do CPC, exigindo assim a prestação à referida entidade.» - provado por documento. 2.2. Apreciação do objeto do recurso 2.2.1. Nulidade da decisão recorrida A recorrente invocou a existência de contradição entre os fundamentos e a decisão recorrida, o que configura a causa de nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do Código de Processo Civil. Baseia a recorrente tal arguição na circunstância de constar da fundamentação da decisão recorrida o reconhecimento da obrigação de a embargante dar cumprimento aos descontos no salário do primitivo executado determinados pelo Tribunal de Família e Menores, o que deveria ter conduzido à procedência dos embargos, sendo que foi proferida decisão noutro sentido, tendo-se considerado os embargos improcedentes. Nos termos da 1.ª parte da al. c) do n.º 1 do citado artigo 615.º, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, o que ocorre quando aqueles, seguindo um raciocínio lógico, devam conduzir a resultado decisório diverso. Conforme explica José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 333), “(…) se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença”. A decisão recorrida reconheceu, efetivamente, a obrigação de a embargante dar cumprimento aos descontos no salário do primitivo executado determinados pelo Tribunal de Família e Menores; mais considerou que os descontos respeitantes às prestações devidas pelo primitivo executado a título de alimentos a seu filho menor não contendem com o limite de penhorabilidade de um terço da parte líquida do respetivo salário, pelo que, apesar de se encontrar penhorado à ordem de uma execução fiscal um sexto da parte líquida desse salário, se concluiu que a penhora de um sexto desse salário ordenada na execução que constitui o processo principal não ultrapassa o limite legal de penhorabilidade. Em conformidade, entendeu-se que não poderia a embargante recusar proceder aos descontos ordenados na execução que constitui o processo principal, em consequência do que se julgou improcedente a oposição à execução deduzida pela embargante. Daqui decorre que a decisão proferida se mostra conforme à fundamentação em que se baseia, pelo que não se mostra preenchida a previsão do preceito em análise, assim se não verificando a invocada causa de nulidade. Em conclusão, não enferma a decisão recorrida da nulidade arguida pela apelante. 2.2.2. Oposição à execução Está em causa, na presente apelação, oposição deduzida a execução incidental movida contra a entidade patronal do primitivo executado, na sequência da respetiva recusa em proceder a descontos decorrentes de penhora incidente sobre o salário auferido pelo mesmo, mediante a invocação de que tal afetaria a parte impenhorável do salário, em virtude de incidir outra penhora sobre o mesmo e de ter sido ordenada a realização de descontos respeitantes as prestações devidas a título de alimentos a filho menor. A 1.ª instância conheceu do mérito da causa no despacho saneador, após discriminar os factos que reputou provados, tendo considerado não verificada a inexistência de título executivo invocada pela embargante como fundamento de oposição à execução. Considerou a decisão recorrida, conforme supra se expôs, que os descontos respeitantes às prestações devidas pelo primitivo executado a título de alimentos a seu filho menor não contendem com o limite de penhorabilidade de um terço da parte líquida do respetivo salário, pelo que, apesar de se encontrar penhorado à ordem de execução fiscal um sexto da parte líquida desse salário, se concluiu que a penhora de um sexto desse salário ordenada na execução que constitui o processo principal não ultrapassa o limite legal de penhorabilidade; como tal, entendeu-se que não poderia a embargante recusar proceder aos descontos ordenados na execução que constitui o processo principal, pelo que se considerou não verificada a inexistência de título executivo e se julgou improcedente a oposição à execução deduzida pela embargante. Discordando deste entendimento, a apelante sustenta que a penhora em causa incide sobre a parte impenhorável do salário do primitivo executado, o que impede a realização dos ordenados descontos, acrescentando que fez declaração nesse sentido, motivo pelo qual defende a inexistência de título executivo. Vejamos se lhe assiste razão. Em sede de processo executivo, encontra-se regulado um regime de proteção dos meios necessários ao sustento do devedor e do seu agregado familiar, designadamente por via da definição de bens total ou parcialmente impenhoráveis, os quais não respondem pelo cumprimento da obrigação exequenda. É sabido que o património do devedor constitui a garantia geral das obrigações, estatuindo o artigo 601.º do Código Civil que, pelo cumprimento da obrigação, respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios, princípio geral que se encontra reafirmado no artigo 735.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ao dispor que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida[1]. Resulta destes preceitos que os bens impenhoráveis se encontram excluídos da execução, não respondendo pelo cumprimento da obrigação. Os artigos 736.º, 737.º e 738.º do CPC indicam, respetivamente, os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, os bens relativamente impenhoráveis e os bens parcialmente penhoráveis. Entre os casos de penhorabilidade parcial, previstos no indicado artigo 738.º, encontram-se os vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, sendo impenhoráveis dois terços da parte líquida, tendo como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional, não se aplicando esta restrição à penhorabilidade das aludidas prestações quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo. Permite, ainda, o n.º 6 do referido artigo 738.º ao juiz que, excecionalmente e a requerimento do executado, ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, reduza, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, os isente de penhora. Da análise deste regime resulta que se encontram excluídos da execução os bens absolutamente indispensáveis ao sustento do executado e do seu agregado familiar[2], “por estarem em causa interesses vitais do executado”[3], o que constitui um meio de tutela da dignidade da pessoa humana. Visando evitar que o executado fique desprovido de recursos para o seu sustento e do seu agregado familiar, em resultado da realização de penhora, este regime constitui uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. A entidade patronal embargante invoca a inadmissibilidade da penhora ordenada no processo principal, de um sexto da parte líquida do salário do primitivo executado, por entender que incide sobre a parte impenhorável de tal salário, face aos limites fixados no artigo 738.º do CPC. Desde já se dirá que, ainda que assim fosse, o que não é o caso, sempre careceria a entidade patronal de legitimidade para se opor à concretização da penhora mediante a recusa da realização dos descontos, antes cabendo ao primitivo executado reagir à penhora através dos meios processuais que a lei lhe faculta, designadamente fazendo uso do incidente de oposição à penhora, nos termos previstos no artigo 784.º, n.º 1, al. a), do CPC. Porém, não se vislumbra que tenha sido penhorada parte impenhorável do salário do primitivo executado. Entre os bens excluídos da execução, os quais não respondem pelo cumprimento da obrigação exequenda, encontra-se, nos casos em que o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional, conforme decorre do artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC; estando em causa créditos de alimentos, o limite de impenhorabilidade reduz-se para a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, conforme dispõe o n.º 4 do citado artigo 738.º. Encontra-se assente que foram efetuadas duas penhoras de um sexto sobre a parte líquida do salário do primitivo executado (uma no âmbito de execução fiscal e a outra no processo principal), e que foi ordenada a realização de descontos sobre tal salário, relativos a prestação devida pelo primitivo executado a título de alimentos em benefício de filho menor, nos montantes mensais de € 50, relativo a quantias vencidas, e de € 125, relativo a quantias vincendas. Fixando os meios de tornar efetiva a prestação de alimentos, o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível dispõe: 1 – Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte: (…) b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositária; (…) 2 – As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se foram vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las. Em anotação ao preceito, explica Tomé d’Almeida Ramião (Regime Geral do Processo Tutelar Cível – Anotado e Comentado, 3.ª edição, 2018, Lisboa, Quid Juris, p. 199) o seguinte: “O presente normativo visa a cobrança coerciva da prestação de alimentos, através de um procedimento específico pré-executivo, ou seja, à margem de uma ação executiva e independente dela, no sentido que a não procede, e aplica-se a qualquer processo tutelar cível em que e tenha fixado uma prestação de alimentos à criança”. Acrescenta o autor (loc. cit.) que “não se deve ordenar o desconto desde que ao devedor reste quantia considerada insuficiente à satisfação das suas necessidades básicas com um mínimo de dignidade, ou seja, que ponha em causa a sua própria subsistência, já que é necessário salvaguardar o seu direito fundamental a uma sobrevivência com um mínimo de dignidade, direito este constitucionalmente garantido”. É certo que o citado artigo 48.º do RGPTC não estabelece qualquer limite ao montante a descontar, não salvaguardando uma quantia mínima, destinada a evitar que o obrigado a alimentos fique privado de recursos que lhe permitam garantir o seu sustento e do seu agregado familiar; no entanto, o supra referido princípio da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrado, impõe a proteção dos meios que garantam a sobrevivência condigna do devedor e do seu agregado familiar. Ora, há que considerar o ordenamento jurídico no seu conjunto e ter em conta que, em sede executiva, estando em causa créditos provenientes de obrigações de alimentos, o artigo 738.º, n.º 4, do CPC, fixou o limite de impenhorabilidade na quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, limite este ao qual deverá igualmente atender-se nos casos de descontos ordenados nos termos do artigo 48.º do RGPTC, de forma a respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da CRP[4]. Assim sendo, no caso presente, em que está em causa o incumprimento pela entidade patronal do primitivo devedor de descontos relativos aos meses de novembro e dezembro de 2018, respeitantes à penhora sobre o vencimento daquele, face aos critérios estatuídos nos n.ºs 1 a 4 do citado artigo 738.º, cumpre atender aos elementos seguintes: - a retribuição mínima mensal garantida relativa ao ano de 2018 é no valor de € 580, nos termos fixados no DL n.º 156/17, de 28-12; - a pensão social do regime não contributivo relativa ao ano de 2018 é no valor de € 207,01, nos termos fixados na Portaria n.º 23/18, de 18-01; - o primitivo executado auferiu remuneração líquida no montante de € 981,42 no mês de novembro e no montante de € 888,69 no mês de dezembro de 2018, não tendo outros rendimentos; - foram ordenadas duas penhoras sobre a parte líquida do salário do primitivo executado, uma de um sexto à ordem de execução fiscal e a outra um sexto à ordem da execução que constitui o processo principal; - foi ordenada a realização de descontos sobre o mesmo salário, relativos a prestação devida pelo primitivo executado a título de alimentos benefício de filho menor, nos montantes mensais de € 50, relativo a quantias vencidas, e de € 125, relativo a quantias vincendas. Analisando os elementos relativos ao mês de novembro de 2018, verifica-se o seguinte: - tendo sido realizadas duas penhoras de um sexto do vencimento do executado, encontra-se penhorada a quantia global de € 327,14, correspondente a um terço da remuneração líquida de € 981,42, não tendo sido penhorado o montante de € 654,28, correspondente a dois terços da remuneração líquida, o qual é superior à retribuição mínima mensal garantida relativa ao ano de 2018, no valor de € 580, pelo que se encontra garantido o limite mínimo impenhorável fixado no n.º 3 do artigo 738.º; - tendo sido ordenados dois descontos (€ 50 + € 125) relativos a prestações devidas pelo primitivo executado a título de alimentos, cumpre deduzir o montante mensal de € 175 à quantia de € 654,28, não abrangida pelas duas penhoras de um sexto do salário, obtendo-se o montante de € 479,28, o qual é superior à totalidade da pensão social do regime não contributivo relativa ao ano de 2018, no valor de € 207,01, pelo que se encontra garantido o limite mínimo fixado no n.º 4 do artigo 738.º. Quanto ao mês de dezembro de 2018, verifica-se o seguinte: - tendo sido realizadas duas penhoras de um sexto do vencimento do executado, encontra-se penhorada a quantia global de € 296,23, correspondente a um terço da remuneração líquida de € 888,69, não tendo sido penhorado o montante de € 592,46, correspondente a dois terços da remuneração líquida, o qual é superior à retribuição mínima mensal garantida relativa ao ano de 2018, no valor de € 580, pelo que se encontra garantido o limite mínimo impenhorável fixado no n.º 3 do artigo 738.º; - tendo sido ordenados dois descontos (€ 50 + € 125) relativos a prestações devidas pelo primitivo executado a título de alimentos, cumpre deduzir o montante mensal de € 175 à quantia de € 592,46, não abrangida pelas duas penhoras de um sexto do salário, obtendo-se o montante de € 417,46, o qual é superior à totalidade da pensão social do regime não contributivo relativa ao ano de 2018, no valor de € 207,01, pelo que se encontra garantido o limite mínimo fixado no n.º 4 do artigo 738.º. Nesta conformidade, verifica-se que a penhora ordenada nos presentes autos, ainda que conjugada com a penhora ordenada na execução fiscal e com os descontos relativos às prestações devidas a título de alimentos, não ofende os limites mínimos de impenhorabilidade fixados no invocado artigo 738.º. Como tal, não se vislumbra motivo válido que justifique a recusa da realização dos descontos no salário do primitivo executado, nos termos ordenados, não se verificando a invocada inexistência de título executivo, o que conduz à improcedência da oposição à execução, conforme decidiu a 1.ª instância. Improcede, assim, a apelação. 3. Decisão Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, ainda que com fundamentação parcialmente diversa. Custas pela recorrente. Notifique. Évora, 28-01-2021 (Acórdão assinado digitalmente) Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora) Cristina Dá Mesquita (1.ª Adjunta) José António Moita (2.º Adjunto) _______________________________________________ [1] A lei processual devolve à lei substantiva a definição do âmbito dos bens sobre que pode recair a execução (cf. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2004, p. 169). [2] Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume II, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 1990, p. 144. [3] José Lebre de Freitas (A Ação Executiva, 7.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2017, p. 250-252), explica: “Impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida (bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do executado: art. 737-3), são indispensáveis ao exercício da profissão do executado (instrumentos de trabalho e objetos indispensáveis ao exercício da sua atividade ou à sua formação profissional: art. 737-2), constituem uma parte do rendimento do seu trabalho por conta de outrem ou se reputam indispensáveis ao seu sustento (art. 738, n.ºs 1 e 5), à sua integridade física (instrumentos e objetos indispensáveis aos deficientes e ao tratamento de doentes: art. 736-f) ou à sua personalidade moral”. António Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, 1.º volume, reimpressão da 1.ª edição de 1980, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, p. 165) esclarece que “a lei, preocupada em proteger a subsistência e a dignidade do devedor, subtrai à responsabilidade determinados bens, ditos, por isso, bens impenhoráveis”. [4] Neste sentido, cf. entre outros, o acórdão da Relação do Porto de 12-09-2016 (relator: Sousa Lameira), proferido no processo n.º 2226/13.8TMPRT.P1, e o acórdão desta Relação de Évora de 04-06-2020 (relator: Francisco Xavier), proferido no processo n.º 538/17.0T8STR-D.E1, ambos publicados em www.dgsi.pt. |