Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal (2.ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. Por decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna, nos processos de contraordenação n.os 1493/2022, 395/2023, 686/2023 e 2404/2023, foi a arguida D, LDA., com os demais sinais dos autos, condenada na coima única no valor de 14 125,00 € (catorze mil cento e vinte e cinco euros), pela prática, em autoria material e na forma consumada, no dia 08-06-2022, da contraordenação prevista no artigo 8.º, n.º 2, alínea c), da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, e 59.º, n.º 3, alínea d), n.º 4, alínea a), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio (Regime do Exercício da Atividade de Segurança Privada - doravante, REASP), no dia 03-08-2022, da contraordenação prevista nos artigos 37.º, n.º 2, alínea g), e 59.º, n.º 2, alínea n), n.º 4, alínea b), e n.º 8 do REASP, no dia 04-10-2021, das contraordenações previstas nos artigos 37.º, n.º 2, alínea d), e 59.º, n.º 2, alínea n), n.º 4, alínea b), e n.º 8 do REASP; artigos 38.º, n.º 1 e 59.º, n.º 3, alínea c), n.º 4, alínea a), e n.º 8 do REASP; artigos 37.º, n.º 1, alínea h), e 59.º, n.º 3, alínea d), n.º 4, alínea a), e n.º 8 do REASP; artigos 37.º, n.º 2, alínea g), e 59.º, n.º 2, alínea n), n.º 4, alínea b), e n.º 8 do REASP; e no dia 03-03-2023, da contraordenação prevista nos artigos 5.º-B, n.º 4 e 9.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, e artigo 18.º, alínea a), iv), do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro.
2. Inconformada, a arguida D, LDA., veio impugnar judicialmente a decisão administrativa.
Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Criminal de Loulé - Juiz 1, foi decidido, na procedência parcial do recurso de impugnação judicial:
1. Julgar não inconstitucional as molduras das coimas previstas no artigo 59.º, n.º 4 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio.
2. Condenar a recorrente D, LDA. pela prática, no dia 08-06-2022, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto no artigo 8.º, n.º 2, alínea c), da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, e 59.º, n.º 3, alínea d), n.º 4, alínea a), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na sanção de admoestação.
3. Condenar a recorrente D, LDA. pela prática, no dia 04-10-2021, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 38.º, n.º 1 e 59.º, n.º 3, alínea c), n.º 4, alínea a), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na sanção de admoestação.
4. Condenar a recorrente D, LDA. pela prática, no dia 04-10-2021, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 37.º, n.º 1, alínea h), e 59.º, n.º 3, alínea d), n.º 4, alínea a), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na sanção de admoestação.
5. Condenar a recorrente D, LDA., pela prática, no dia 03-03-2023, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 5.º-B, n.º 4 e 9.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, artigo 18.º, alínea a), iv) do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, e artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na sanção de admoestação.
6. Manter a decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna contra a recorrente D, LDA. pela prática, no dia 03-08-2022, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 37.º, n.º 2, alínea g), e 59.º, n.º 2, alínea n), n.º 4, alínea b), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na coima no valor de 7 500,00 € (sete mil e quinhentos euros).
7. Manter a decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna contra a recorrente D, LDA. pela prática, no dia 04-10-2021, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 37.º, n.º 2, alínea d), e 59.º, n.º 2, alínea n), n.º 4, alínea b), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na coima no valor de 7 500,00 € (sete mil e quinhentos euros).
8. Manter a decisão proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna contra a recorrente D, LDA. pela prática, no dia 04-10-2021, em autoria material e na forma consumada, da contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 37.º, n.º 2, alínea g), e 59.º, n.º 2, alínea n), n.º 4, alínea b), e n.º 8 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e artigo 15.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 8.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na coima no valor de 7 500,00 € (sete mil e quinhentos euros).
9. Condenar a recorrente D, LDA. na coima única no valor de 11 000,00 € (onze mil euros), na sequência do cúmulo jurídico das coimas aplicadas nos pontos 6. a 8. supra.
3. A arguida D, LDA., uma vez mais inconformada, interpôs recurso da sentença, formulando no termo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“Processo n.º 395/2023
A. A Recorrente não considera ter incorrido em falta de dever de cuidado e zelo, nem entende que não tenha disponibilizado para inspeção os originais de documentos passiveis de verificação em acção inspetiva nas suas instalações.
B. Pois, os funcionários da recorrente informaram que a documentação se encontrava na sala da gerência e que só o gerente e o director de segurança tinham acesso.
C. Tendo informado que nem o director de segurança nem o gerente se encontravam de momento.
D. Foi transmitido aos agentes da PSP que o gerente estaria nas instalações mais tarde.
E. Contudo, a PSP não voltou às instalações da recorrente.
F. A lei não refere que os documentos têm que estar disponíveis de forma automática sempre que os agentes da PSP queiram realizar uma inspecção.
G. A ratio da norma é tão simples quanto isto, as empresas de segurança têm que ter a documentação sempre actualizada, uma vez que podem ser inspecionadas a qualquer momento. Devendo esta informação ser disponibilizada o mais breve possível.
H. Isto é, não existe uma obrigação do minuto. Mas tão só do mais “breve possível”.
I. A recorrente nunca quis não disponibilizar a documentação aos agentes da PSP, só não podia naquele segundo em que a PSP compareceu nas instalações da recorrente.
J. A recorrente entende que não agiu com ilicitude e como tal não praticou nem com dolo nem com negligência a infracção em causa, devendo ser absolvida.
Processo n.º 686/2023
K. O tribunal a quo não teve em consideração o que foi explicado em tribunal, aliás, pelo contrário, o tribunal a quo considerou que a recorrente “agiu sem cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da actividade por si prosseguida”
L. A Recorrente não considera agido sem cuidado e prudência de que era capaz.
M. Em relação aos 24 ficheiros que faltam (contrato de trabalho assinado, certificado de registo criminal e cópia do cartão profissional) a recorrente nada podia para acelarar o processo uma vez que estes documentos era da responsabilidade dos trabalhadores.
N. Trabalhadores esses que passaram para a recorrente por via da transmissão de estabelecimento. Ou seja, não foi a recorrente que contratou os trabalhadores directamente, mas tão só os recebeu quando ganhou o concurso público.
O. Pelo que em relação a estas irregularidades a recorrente nada pode fazer em tempo útil, porque estava (e está) dependente dos trabalhadores.
P. Quanto às irregularidades no registo de actividade, as mesmas são meras não inserções de dados num quadro em excel.
Q. Que ainda assim pouco ou nada servem, uma vez que este quadro devia estar inserido numa plataforma da PSP, contudo e apesar de estar previsto na lei há mais de 10 anos, a mesma não existe…
R. Contudo, e vendo o registo de actividade facilmente se percebe que são diminutas as irregularidades.
S. A Recorrente considera assim não ter incorrido em falta de dever de cuidado e zelo, nem entende que se tenha omitido da sua responsabilidade, devendo ser absolvida.
A INCONSTITUCIONALIDADE DA COIMA APLICADA
T. A Recorrente discorda veemente da aplicação de uma coima de € 11.000, que a Recorrente considera manifestamente desproporcional, excessiva, desnecessária, e inclusivamente inconstitucional.
U. A inconformidade da Recorrente com a sentença recorrida prende-se também com o facto de não julgar inconstitucional as coimas previstas no artigo 59.º n.º 4 da Lei 34/2013 de 16 de maio (na versão da Lei em vigor à data dos factos), por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
V. A punição das infrações em causa com uma coima compreendida entre os 1.500€ e os 44.500€, no caso de pessoas coletivas, é manifestamente atentatória da Lei Fundamental, por violadora dos princípios da proporcionalidade, da equidade, da necessidade e da adequação constitucionalmente consagrados.
W. Os montantes mínimos de 1.500€, 7.500 € e 15.000€ para as pessoas coletivas, comparados com os valores mínimos de 150€, 300€ e 600€ (!!!), respetivamente, aplicáveis às pessoas singulares revela-se claramente excessivo e violador do princípio da proporcionalidade.
X. Sobre matéria semelhante já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 47/2019, proferido pela 3.ª Secção, em 23 de janeiro de 2019, no âmbito do processo n.º 678/16, relatado pelo Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro, que decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma contida na alínea e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 25.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, no segmento que estabelece o limite mínimo de coima aplicável às pessoas coletivas, por infração negligente ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º do mesmo diploma.
Y. No Acórdão do Tribunal Constitucional já acima referido, após doutas considerações sobre a natureza e fins do ilícito de mera ordenação social e dos princípios que o regem, designadamente o princípio da proporcionalidade, concluiu-se que o legislador determinou as molduras das coimas previstas em função da gravidade objetiva e subjetiva da infração e da natureza individual ou coletiva do agente infrator.
Z. Mais pode ler-se que “a agravação das coimas aplicáveis às pessoas coletivas tem justificação no maior poder económico e na insuficiência intimidatória dos limites das molduras legais definidas para as pessoas singulares. Só a previsão de limites amplos permite adequar o montante da coima à situação económica e financeira da pessoa coletiva sancionada e assim responder melhor às finalidades das coimas. O facto das pessoas coletivas disporem de uma organização e de meios suscetíveis de produzirem maiores danos à coletividade e poderem incorporar os montantes das coimas na margem de risco normal da sua atividade justifica uma advertência ou admonição mais acentuada”, in Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2019, de 23 de janeiro.
AA. Mais entende a Recorrente que o legislador desconsiderou as enormes diferenças quanto à necessidade de tutela existentes entre o direito penal e o direito de mera ordenação social, conferindo à tutela contraordenacional, no que tange às contraordenações previstas no Regime Jurídico da Atividade de Segurança Privada, uma eficácia preventiva muito superior à tutela penal, o que não é admissível no nosso ordenamento jurídico pois configura uma drástica e distorcida alteração da hierarquia de ofensividade dos bens jurídicos, sendo contrário à Constituição.
BB. O legislador não deveria poder punir de forma mais gravosa quem pratica uma contraordenação em relação a quem pratica um crime. Ora, com o montante de coima a que a Recorrente foi condenada, está a fazê-lo, pois atribui-se maior desvalor à conduta do agente que pratique uma contraordenação do que à daquele que pratique um crime.
CC. Ao decidir como o fez, a decisão recorrida violou o artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, bem como os princípios contraordenacionais, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade, da nulla poena sine culpa, da adequação e da proporcionalidade.
DD. A Recorrente pugnou, assim, e continua a pugnar, pela redução da coima que lhe foi aplicada ao montante mínimo aplicável às pessoas singulares, por idêntica especialmente atenuada.
EE. Até porque como ficou provado, conforme consta da certidão comercial junto aos autos, a recorrente é uma sociedade unipessoal, onde o sócio e o gerente são a mesma pessoa.
A APLICAÇÃO DA ADMOESTAÇÃO
FF. Por fim, a divergência da sentença proferida pelo Tribunal a quo prende-se também com o afastamento da possibilidade de aplicação de uma admoestação, tal como alegado pela Recorrente em sede de alegações orais na audiência de julgamento.
GG. O art. 51.º do RGCO refere o seguinte: “1 - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.
HH. Ou seja, o referido artigo em lado nenhum refere-se às contraordenações graves ou muito graves
II. O que diz é que quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique pode se aplicar a admoestação.
JJ. Ou seja, em lado nenhum é referido que tem que ser uma contraordenação leve para ser aplicado uma contraordenação.
KK. Existem diversos tribunais a aplicar, e bem, a admoestação em casos de contraordenação graves:
LL. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal da Amadora - Juiz 2, foi proferida decisão, em 19.12.2023, que julgou parcialmente procedente o recurso interposto, mantendo a condenação do recorrente na coima de 2.000,00€ (dois mil euros), pela prática negligente de uma contra-ordenação, grave, p. e p. pelos artigos 11.º e 18.º, n.º 2, alínea f), ambos do Decreto-Lei nº 267/2009, de 29/09, e artigo 22.º, n.º 3, alínea a), da Lei nº 50/2006, de 29/08, mas substituída por admoestação.
MM. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal da Amadora - Juiz 2, foi proferida decisão que aplicou à sociedade arguida. uma coima pela prática da infração prevista no artigo 8.º, n.ºs 3 a) e 4, da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, conjugado com o artigo 100.º, n.º 1, a), da Portaria n.º 273/2013, tendo sido aplicada uma admoestação.
NN. Resulta, pois, que não está afastada a aplicabilidade legal de aplicação da Admoestação a contraordenações de classificação grave ou muito grave, não estando o julgador limitado a aplicá-la somente às contraordenações leves.
OO. E, atenta toda a factualidade provada, era o que deveria ter sido feito também na presente situação, razão pela qual a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
CÚMULO JURIDICO
PP. Tendo em conta toda a factualidade provada, o valor da coima em cúmulo jurídico deveria ser no máximo de € 7.500.
A. Uma vez que será o valor mais adequado, justo e proporcional à gravidade das contraordenações praticadas.
TERMOS EM QUE E SEMPRE,
Invocando-se o DOUTO SUPRIMENTO DO VENERANDO TRIBUNAL deverá ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra absolva a Recorrente
Ou caso assim não se entenda, que que aplique uma Admoestação à Recorrente, ou, em alternativa,
Declare a inconstitucionalidade da coima prevista no artigo 59.º, n.º 1, al. i) e n.º 4 da Lei 34/2013 de 16 de maio (na versão da Lei em vigor à data dos factos), reduzindo, em consequência, o montante da coima aplicada à Recorrente aos valores das pessoas singulares,
Ou caso assim não se entenda, que se aplique em cúmulo jurídico uma coima no valor de € 7.500”.
3. Admitido o recurso, o Ministério Público veio responder pugnando pela improcedência das pretensões formuladas no recurso, por as questões suscitadas terem sido exaustivamente tratadas na sentença recorrida, com a qual concorda na íntegra, entendendo, assim, que a mesma não padece de nenhum dos vícios apontados pela recorrente e deve, por conseguinte, ser mantida.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP), apôs visto.
5. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 2 do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro[1] [doravante, RGCO], que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[2], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[3].
Conforme decorre do preceituado no artigo 75.º, n.º 1 do RGCO, em sede contraordenacional como a presente o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo de eventual alteração da decisão do tribunal recorrido, nos termos do n.º 2, alínea a), do referido normativo.
Contudo, mesmo limitado à matéria de direito, o tribunal de recurso conhece dos vícios decisórios indicados no artigo 410.º, n.º 2 do CPP (cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95).
Assim, atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, e o que acima se expôs, delimitando o que à Relação é permitido conhecer em sede contra-ordenacional, as questões a apreciar são as seguintes:
- Erro notório na apreciação da prova.
- A inconstitucionalidade da moldura da coima aplicável à conduta negligente das pessoas coletivas.
- Subsidiariamente, a aplicação de admoestação.
- Ainda subsidiariamente, a excessiva medida da coima única aplicada à recorrente.
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2. A sentença recorrida.
2.1. Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“Processo n.º 1493/2022
1) No dia 08-06-2022, pelas 22:00 horas, na sequência da ação de fiscalização no âmbito da segurança privada às instalações da recorrente, verificou-se que na sede desta e, em concreto, no interior da Central de Receção e Monotorização de Alarmes (CRMA) que a porta de acesso à mesma, apesar de possuir sistema de interbloqueamento e ser de acesso condicionado e restrito, não tinha categoria de resistência FB2.
2) A recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, e que, por isso, deveria ter assegurado a instalação de porta da CRMA compatível com a categoria de resistência exigida.
3) A recorrente agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
Processo n.º 395/2023
4) No dia 03-08-2022, pelas 14:30 horas, na sequência da ação de fiscalização no âmbito da segurança privada às instalações da recorrente, verificou-se que esta não tinha disponível para inspeção os originais de documentos passíveis de verificação em ação inspetiva.
5) A recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, e que, por isso, deveria ter assegurado a disponibilidade permanente para inspeção, na sua sede, dos documentos passíveis de verificação em ação inspetiva.
6) A recorrente agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
Processo n.º 686/2023
7) No dia 04-10-2021, pelas 14:10 horas, na sequência da ação de fiscalização no âmbito da segurança privada às instalações da recorrente, verificou-se:
7.1) Que ocorreu alteração ao pacto social da recorrente no dia 18-06-2021, quanto à alteração do gerente da mesma, sem que tenha havido comunicação à Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública.
7.2) A existência, em 24 ficheiros individuais do pessoal de segurança privada, de irregularidades quanto à falta de certificados de registo criminal atualizados, contratos de trabalho e cópia do cartão profissional.
7.3) A existência de irregularidades em 15 contratos quanto à falta de elementos atinentes ao número de contrato, data de início e termo, meios humanos e número fiscal do cliente nos seguintes contratos: COPS – C com data de 06/08/2021; CM; CC, Lda.; CH; JA, DS; JB Lda.; M Lda., S; MR; E S.A.; OCP S.A.; ER; e PP, Lda..
7.4) A falta de 17 contratos de trabalho disponíveis para inspeção relativos aos seguranças privados admitidos pela recorrente.
8) A recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C.
9) A recorrente agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
Processo n.º 2404/2023
10) No dia 17-02-2023, foi apresentada reclamação por L através da plataforma digital do livro de reclamações contra a atuação de dois vigilantes da recorrente, que exerciam funções na sede da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, sita na (…………).
11) A recorrente, no dia 03-03-2023, respondeu ao reclamante no livro de reclamações, mas não enviou a sua resposta para o email do reclamante.
12) A recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C.
13) A recorrente agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
Mais se provou que:
14) Por decisão judicial proferida no dia 30-06-2022, a recorrente foi condenada, no âmbito do processo n.º 805/22.1T8LLE, na sanção de admoestação pela prática, no dia 30-12-2018, da contraordenação prevista e punida pelos artigos 3.º, n.º 3, 59.º, n.º 3, al. d) e n.º 4, al. a) da Lei n.º 34/2013, de 16/05, conjugado com o artigo 67.º da Portaria n.º 273/2013, de 20/08.
15) Após notificação do auto de notícia com o n.º 114625/2023 - por se terem verificado indícios da prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 8.º, n.º 2, al. c) da Portaria n.º 272/2013, de 20/08 – a recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima pelo seu valor mínimo, correspondente a 1500€”.
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2.2. Quanto a factos não provados, escreveu-se na sentença recorrida que inexistem factos não provados com interesse para a boa decisão da causa.
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2.3. Por sua vez, o tribunal a quo fez constar a seguinte motivação da decisão sobre a matéria de facto (transcrição):
“O Tribunal formou a sua convicção na análise dos vários elementos probatórios que constam dos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
Neste sentido, e quanto aos factos 1), 7) e 10) a 13) supra cumpre, desde logo, referir que o legal representante da recorrente, B, os confirmou, em sintonia com o que resulta dos teores do auto de notícia juntos aos autos a fls. 2 e 3, 92 e 127, da documentação constante a fls. 4 a 14 e 128 a 132, da certidão permanente junta a fls. 19 a 22 e do relatório fotográfico de fls. 93, e do que foi atestado pelas testemunhas N, J, P e LG (agentes da Polícia de Segurança Pública), R (antigo funcionário da recorrente) e PC (antigo gerente da recorrente), não tendo, por isso, os referidos factos sido tornados controvertidos, razão pela qual o Tribunal decidiu julgá-los como provados.
Quanto aos factos 2), 3), 5), 6), 8) e 9) supra, uma vez que os mesmos factos são atinentes às motivações internas da recorrente, os mesmos extraíram-se, de acordo com as regras do normal acontecer, dos atos materiais perpetrados pela recorrente, conciliados com o que foi pelo declarado pelo próprio representante legal que, apesar de ter procurado apresentar uma justificação para os factos praticados – tendo invocado, em relação ao 1.º facto, que julgou que a nova Portaria não lhes era aplicável por terem o alvará válido (que corresponde a uma interpretação legislativa sem qualquer assento na lei) e em relação aos factos 7.2) a 7.4) supra dificuldades na decorrência da transmissão do estabelecimento e em contactar os novos funcionários – acabou, precisamente, por confirmar, com as suas justificações, que a recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará C, não tendo a recorrente sido diligente no cumprimento do que lhe era imposto, contra o que podia e devia., sendo que não se demonstrou, em momento algum, que o recorrente estivesse condicionado ou coagido aquando da prática dos factos referidos, o Tribunal decidiu julgar tais factos com provados.
Por estas razões, e, também, por não se ter demonstrado, em momento algum, que a recorrente estivesse condicionada ou coagida aquando da prática dos factos referidos, o Tribunal decidiu julgar tais factos com provados.
Sobre o facto 4) supra, o legal representante da recorrente invocou ter disponível, para inspeção, todos os documentos suscetíveis de fiscalização, quer em formato de papel, quer em suporte digital, mas que os agentes fiscalizadores apenas quiseram verificar os originais, tendo confirmado que os mesmos não foram disponibilizados devido ao facto de nenhum dos funcionários presentes na ação de fiscalização ter acesso à sala do arquivo.
Contudo, a testemunha M (agente da Polícia de Segurança Pública) realçou que pediram a documentação e que a mesma não foi fornecida, nem em formato de papel, nem em suporte digital, tendo afirmado, de forma séria, que teriam aceite a documentação mesmo se apenas tivesse sido fornecida em formato digital, uma vez que não exigiram verificar, unicamente, os documentos em papel. Por seu turno, a testemunha G (antigo funcionário da recorrente) referiu, de forma hesitante e constrangida, que os agentes pediram a documentação em papel e que não quiseram ver os documentos em formato digital. Porém, o gerente à data dos factos, a testemunha P, confirmou que no dia da fiscalização em apreço, apesar de não estar no local, a testemunha G (antigo funcionário da recorrente) contactou-o e pediu-lhe ajuda para aceder à Cloud – onde estão todos os documentos relevantes – com o fito de os exibir, ainda que em formato digital, aos agentes, mas que, por dificuldades técnicas, não conseguiram, corroborando, assim, o declarado pela testemunha M.
Atento o exposto, o Tribunal atribuiu credibilidade ao exposto pela testemunha M – que, não só mereceu credibilidade pela isenção e seriedade com que relatou os factos, como, também, o seu depoimento foi corroborado pelo antigo gerente da recorrente à data dos factos (e que foi, inclusivamente, arrolado pela recorrente) – contrariamente ao relatado pelo legal representante da recorrente – que apenas soube, posteriormente, do sucedido – e pela testemunha G, que prestou um depoimento hesitante, confuso e constrangido, não tendo, por isso, merecido credibilidade.
Por fim, os factos 14) e 15) supra resultaram do processo contraordenacional e das informações que foram juntas aos autos pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna.
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O depoimento da testemunha BG (antiga funcionária da recorrente) não contribuiu para a demonstração dos factos em apreço, uma vez que a referida testemunha não logrou descrever, e nem enquadrar temporalmente, a fiscalização que presenciou”.
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3. Apreciando.
3.1. No recurso a arguida D, Lda., vem dizer que não se conforma com a decisão do tribunal a quo de ter dado como provados os factos dos pontos 4 a 6 (processo n.º 395/2023), 8 e 9 (processo n.º 686/2023).
Assim, em relação à matéria do processo n.º 395/2023, a recorrente sustenta que não considera ter incorrido em falta de dever de cuidado e zelo, nem que não tenha disponibilizado para inspeção os originais de documentos passiveis de verificação em ação inspetiva nas suas instalações, pois os seus funcionários informaram que a documentação se encontrava na sala da gerência e à qual só o gerente e o diretor de segurança tinham acesso, tendo ainda informado que nem um nem outro se encontravam de momento. Foi transmitido aos agentes da PSP que o gerente estaria nas instalações mais tarde. Contudo, a PSP não voltou às instalações da recorrente.
Neste contexto, a recorrente procede à análise da contradição dos depoimentos das testemunhas M, G e P que, segundo alega, esteve na origem da convicção formada pelo julgador a propósito da demonstração dos factos dos pontos 4 a 6, para sustentar, com base em passagens dos referidos testemunhos, que a contradição que realmente se verifica não é a que foi considerada na sentença recorrida.
Diz ainda a recorrente que a lei não refere que os documentos têm de estar disponíveis de forma automática sempre que os agentes da PSP queiram realizar uma inspeção. A ratio da norma é a de que as empresas de segurança têm de ter a documentação sempre atualizada, uma vez que podem ser inspecionadas a qualquer momento, devendo a informação ser disponibilizada o mais “breve possível” e não existindo, assim, uma obrigação “do minuto”. A recorrente nunca quis não disponibilizar a documentação aos agentes da PSP, só não podia no segundo em que aqueles compareceram nas suas instalações.
Conclui, por isso, que não agiu com ilicitude e, como tal, não praticou a infração em causa nem com dolo, nem com negligência, devendo ser absolvida.
No que concerne à matéria do processo n.º 686/2023, alega no recurso que o tribunal a quo não teve em consideração o que foi explicado em audiência, tendo, ao invés, entendido que a recorrente “agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida”.
Sucede que da análise do que consta dos autos relativamente a estes acontecimentos, resulta que, em relação aos 24 ficheiros que faltam (contrato de trabalho assinado, certificado de registo criminal e cópia do cartão profissional), a recorrente nada podia fazer para acelerar o processo uma vez que tais documentos eram da responsabilidade dos trabalhadores, os quais passaram para ela por transmissão do estabelecimento. Ou seja, não foi a recorrente que contratou os trabalhadores diretamente, mas tão só os recebeu quando ganhou o concurso público, pelo que nada pôde fazer em tempo útil quanto a estas irregularidade, porque estava (e está) dependente dos trabalhadores.
Quanto às irregularidades no registo de atividade, as mesmas correspondem a meras não inserções de dados num quadro Excel, em relação às quais, vendo o registo de atividade, facilmente se percebe que são diminutas.
Pois bem.
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Conforme se referiu em 1., na presente sede contraordenacional a Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo de eventual alteração da decisão do tribunal recorrido, nos termos do artigo 75.º, n.º 2, alínea a), do RGCO (cf. n.º 1 da norma referida).
Contudo, mesmo limitado à matéria de direito, o tribunal de recurso conhece dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2 do CPP.
Não é, pois, admissível qualquer sindicância da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 e, bem assim, do artigo 431.º, ambos do CPP, sindicância essa que, de resto, não foi expressamente suscitada no recurso.
Ora, no caso dos autos, atendendo ao alegado na respetiva motivação [no essencial, o tribunal a quo decidiu erradamente, ao dar como provada a matéria dos pontos 4 a 6, 8 e 9, uma vez que a prova produzida não suporta tal decisão, não levando os depoimentos, declarações e elementos do processo, apreciados pelo julgador, às conclusões factuais a que chegou na sentença recorrida], verifica-se que a recorrente invoca elementos suscetíveis de consubstanciar erro notório na apreciação da prova, em função do que o conhecimento oficioso deste vício decisório, previsto no artigo 410.º, n.º 1, alínea c), do CPP, impõe que a Relação proceda à sua análise no presente acórdão.
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É sabido que os vícios da sentença, previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 410.º, n.º 2 do CPP, consistem em defeitos estruturais da decisão que, como tais, devem resultar do seu próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, não podendo, pois, estender-se a outros elementos, nomeadamente que constem ou resultem do processo, mesmo que provenientes do próprio julgamento, mas que não façam parte do conteúdo da decisão.[4]
A este respeito, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 20 de abril de 2006, o erro notório, descrito na alínea c), “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova”.[5]
Trata-se, pois, de um vício em que as provas em que o tribunal se baseou não poderiam manifestamente levar à decisão que tomou sobre a matéria de facto, provas essas que são as que constam da fundamentação da convicção formada, segundo a valoração que o julgador delas fez, já que o erro é de decisão e tem de resultar do seu texto, sem recurso a elementos extrínsecos.
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Conforme se deixou transcrito em 2.3., na motivação da decisão sobre a matéria de facto o tribunal a quo fez constar que formou a sua convicção com base na prova documental carreada para os autos, em conjugação com as declarações e testemunhos que valorou nos termos indicados na sentença recorrida.
Neste contexto, a propósito da factualidade do processo n.º 395/2023 (pontos provados 4, 5 e 6), o julgador explanou que, em relação à matéria do ponto 4, o legal representante da recorrente invocou que tinha disponível, para inspeção, todos os documentos suscetíveis de fiscalização, quer em formato de papel, quer em suporte digital, mas que os agentes fiscalizadores apenas quiseram verificar os originais, tendo confirmado que os mesmos não foram disponibilizados devido ao facto de nenhum dos funcionários presentes na ação de fiscalização ter acesso à sala do arquivo.
Contudo, a testemunha M (agente da Polícia de Segurança Pública) realçou que pediram a documentação e que a mesma não foi fornecida, nem em formato de papel, nem em suporte digital, tendo afirmado, de forma séria, que teriam aceitado a documentação mesmo se apenas tivesse sido fornecida em formato digital, uma vez que não exigiram verificar, unicamente, os documentos em papel. Por seu turno, a testemunha G (antigo funcionário da recorrente) referiu, de forma hesitante e constrangida, que os agentes pediram a documentação em papel e que não quiseram ver os documentos em formato digital. Porém, o gerente à data dos factos, testemunha P, confirmou que, no dia da fiscalização em apreço, apesar de não estar no local, a testemunha G (antigo funcionário da recorrente) contactou-o e pediu-lhe ajuda para aceder à Cloud – onde estão todos os documentos relevantes – com o fito de os exibir, ainda que em formato digital, aos agentes, mas que, por dificuldades técnicas, não conseguiram, corroborando, assim, o declarado pela testemunha M.
O tribunal a quo atribuiu credibilidade ao exposto pela testemunha M, que não só mereceu credibilidade pela isenção e seriedade com que relatou os factos, como, também, o seu depoimento foi corroborado pelo antigo gerente da recorrente à data dos factos (aliás, arrolado pela recorrente), contrariamente ao relato do seu atual legal representante, que apenas soube do sucedido em momento posterior, pela testemunha G, que prestou um depoimento hesitante, confuso e constrangido, não tendo, por isso, merecido credibilidade por parte do julgador.
Ainda no âmbito do processo n.º 395/2023, a 1.ª instância esclareceu que a matéria atinente às motivações internas da recorrente, descrita nos pontos 5 e 6, extraiu-se dos atos materiais por ela perpetrados, segundo as regras do normal acontecer e conciliados com o que foi pelo declarado pelo próprio representante legal que, apesar de ter procurado apresentar uma justificação para os factos praticados, acabou por confirmar, com as suas justificações, que a recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará C, não tendo a recorrente sido diligente no cumprimento do que lhe era imposto, contra o que podia e devia, sendo que não se demonstrou, em momento algum, que estivesse condicionada ou coagida aquando da prática dos factos referidos.
Por estas razões, o tribunal a quo decidiu julgar tais factos como provados.
Por outro lado, no que concerne à matéria do processo n.º 686/2023 (pontos 7 a 9), o julgador começou por referir que o legal representante da recorrente, B, confirmou os factos do ponto 7 (bem como os dos pontos 1 e 10 a 13), em sintonia com o que resulta do teor dos autos de notícia juntos a fls. 2 e 3, 92 e 127, da documentação constante a fls. 4 a 14 e 128 a 132, da certidão permanente junta a fls. 19 a 22, do relatório fotográfico de fls. 93 e do que foi atestado pelas testemunhas N, J, P e L (agentes da Polícia de Segurança Pública), R (antigo funcionário da recorrente) e PC (antigo gerente da recorrente), não tendo, por isso, os referidos factos sido tornados controvertidos, razão pela qual decidiu julgá-los como provados.
Acresce que a matéria atinente às motivações internas da recorrente, descrita nos pontos 8 e 9, se extraiu dos atos materiais por ela perpetrados, segundo as regras do normal acontecer e conciliados com o que foi pelo declarado pelo próprio representante legal que, apesar de ter procurado apresentar uma justificação para os factos praticados – tendo invocado, em relação aos factos 7.2. a 7.4., dificuldades na decorrência da transmissão do estabelecimento e em contactar os novos funcionários – acabou por confirmar, com as suas justificações, que a recorrente agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará C, não tendo ela sido diligente no cumprimento do que lhe era imposto, contra o que podia e devia, sendo que não se demonstrou, em momento algum, que estivesse condicionada ou coagida aquando da prática dos factos referidos.
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Ora, analisado o texto da decisão recorrida, nos termos acima indicados, em conjugação com as regras da experiência comum, entende a Relação que não se detecta qualquer erro ostensivo que evidencie o desacerto da opção tomada quanto à matéria que o julgador considerou provada.
Com efeito, na motivação relativa à decisão sobre a matéria de facto, atrás descrita, o tribunal a quo explanou de forma objectiva e circunstanciada a valoração que efectuou, identificando a prova que relevou para a formação da sua convicção, particularmente a testemunhal, e indicando os aspectos de tal prova que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade questionada no recurso.
Expôs ainda de forma lógica e racional as inferências que extraiu de matéria directamente apurada, as quais se mostram fundadamente apoiadas nas regras do normal acontecer que caracterizam a experiência comum e que justificam, assim, a conclusão de que a recorrente conhecia os seus deveres especiais que sobre si impendiam, enquanto empresa de segurança privada titular de alvará ou licença C, tendo agido sem o cuidado e a prudência de que era capaz e estava obrigada, no exercício da atividade por si prosseguida, fazendo-o de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
Conforme também consta assinalado na sentença recorrida, apesar de o representante legal da arguida D, Lda., ter procurado apresentar em audiência de julgamento uma justificação para os factos praticados, invocando, nomeadamente, quanto aos factos dos pontos 7.2., 7.3. e 7.4. dificuldades resultantes da transmissão do estabelecimento e em contactar os novos funcionários, acabou por confirmar, com as suas justificações, os factos que consubstanciam os elementos subjetivos das infrações imputadas.
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A propósito da matéria dos pontos 4 a 6, a recorrente vem dizer que existe contradição nos depoimentos das testemunhas, mas por motivos diferentes dos que foram assinalados pelo tribunal a quo.
A testemunha M relatou o que a recorrente alega na sua defesa, ou seja, que a PSP só pediu a documentação em papel, motivo pelo qual a testemunha referiu que “teriam aceite a documentação mesmo se apenas tivesse sido fornecida em formato digital”. Esta frase foi proferida depois de se ter questionado a testemunha se, caso a recorrente tivesse disponibilizado a informação pedida por meios eletrónicos, a PSP a teria aceitado. O que prova que nunca pediram a informação em modo informático.
A testemunha G referiu que pediram a informação em papel e não a pediram em formato digital. Ou seja, não existe nenhuma contradição com o depoimento da testemunha anterior.
Ora, conforme foi referido no recurso, os agentes da PSP, quando chegaram às instalações da recorrente, questionaram pela presença do Diretor de Segurança, tendo-lhes sido respondido que o mesmo se encontrava de férias até dia 8 de agosto.
De seguida, foi perguntado aos funcionários da arguida se tinham acesso à “papelada” da empresa, tendo aqueles informado que toda a documentação existente na empresa, em papel, se encontrava na sala da gerência, uma vez que a mesma é de teor confidencial.
A testemunha G entrou em contacto com o gerente à data, P, que o informou que estava a decorrer uma ação de inspeção da PSP e que os agentes estavam a pedir a documentação da empresa, tendo P informado que não só não se encontrava em Almancil como a Cloud estava com uns problemas técnicos, mas que no fim do dia, já estaria nas instalações da recorrente e podia mostrar toda a documentação em papel.
A recorrente tinha, pois, a documentação disponível para inspeção, motivo pelo qual foi transmitido aos agentes da PSP que podiam voltar mais tarde (no mesmo dia).
Contudo, a PSP não voltou a passar pelas instalações da recorrente.
Ora, as razões que a arguida assim invocou no recurso, em abono da posição que defendeu relativamente à questionada matéria dos pontos 4 a 6 (processo n.º 395/2023), não merecem acolhimento, pois não só fazem apelo a elementos que extravasam o texto da sentença recorrida (as passagens dos depoimentos das testemunhas M, G e P, que invoca para sustentar que a contradição que se verifica não corresponde à que foi considerada pelo tribunal a quo, nos termos expostos na decisão que aqui se sindica, quando é sabido que os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP deverão resultar exclusivamente da própria decisão sem recurso à análise da prova, pois, como decorre do disposto no artigo 75.º, n.º 1 do RGCO, não cabe a esta Relação conhecer da matéria de facto, conhecendo apenas da matéria de direito), como não encontram respaldo no conteúdo do decidido nem são reveladoras de qualquer erro em que o julgador tenha incorrido, ao formar a sua convicção quanto à prova da referida factualidade dos pontos 4 a 6.
Mostrando-se, pois, evidente que, aquando da inspeção descrita em 4, a recorrente não tinha a documentação disponível para inspeção, sendo certo que o dever especial que, por força do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 37.º do REASP, sobre ela impende, é o de manter permanentemente atualizados e disponíveis para inspeção, na respetiva sede, os originais dos documentos, passíveis de verificação em ação inspetiva, previstos na referida lei e legislação complementar (sublinhado nosso).
Ainda a propósito desta matéria dos pontos 4 a 6, a recorrente alega também que a lei não refere que os documentos têm de estar disponíveis de forma automática sempre que os agentes da PSP queiram realizar uma inspeção, sendo que a ratio da norma é tão simples quanto isto: as empresas de segurança têm de ter a documentação sempre atualizada, uma vez que podem ser inspecionadas a qualquer momento, devendo a informação ser disponibilizada o mais breve possível. Isto é, não existe uma obrigação “do minuto”, mas tão só do mais “breve possível”, sob pena de a pessoa responsável pela documentação não poder dormir, comer, descansar, etc.
Donde conclui que não agiu com ilicitude e, como tal, não praticou nem com dolo, nem com negligência, a infração em causa, devendo deste modo ser absolvida.
Razões que claramente improcedem pois mais não são do que argumentos destinados a rebater, sem qualquer sustentação factual ou sequer jurídica, a realidade demonstrada nos termos já descritos, a qual é, sem margem para dúvida, contrária ao dever especial que à recorrente, empresa de segurança privada, titular do competente alvará ou licença, é imposto pelo artigo 37.º, n.º 2, alínea g), do REASP, no sentido de manter permanentemente atualizados e disponíveis para inspeção, na respetiva sede, os originais dos documentos sujeitos a verificação em ação inspetiva.
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Por sua vez, sobre a matéria relativa ao processo n.º 686/2023 (pontos provados 7, 7.1., 7.2., 7.3., 7.4., 8 e 9), a recorrente veio dizer que o tribunal a quo não teve em consideração o que foi explicado em audiência, tendo, ao invés, entendido que a recorrente “agiu sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida”.
Assim, da análise do que consta dos autos resulta que, em relação aos 24 ficheiros que faltam (contrato de trabalho assinado, certificado de registo criminal e cópia do cartão profissional), a recorrente nada podia fazer para acelerar o processo, uma vez que estes documentos eram da responsabilidade dos trabalhadores, os quais passaram para ela através da transmissão de estabelecimento. Ou seja, não foi a recorrente que contratou os trabalhadores diretamente, mas tão só os recebeu quando ganhou o concurso público, pelo que nada pôde fazer em tempo útil quanto a tais irregularidades, porque estava (e está) dependente dos trabalhadores.
Quanto às irregularidades no registo de atividade, as mesmas são meras não inserções de dados num quadro Excel, que pouco ou nada servem, uma vez que este quadro devia estar inserido numa plataforma da PSP que, apesar de estar prevista na lei há mais de 10 anos, ainda não existe. De todo o modo, vendo o registo de atividade, facilmente se percebe que são diminutas as irregularidades. O registo da recorrente consta dos autos e, conforme se pode constatar, tem 17 páginas, sendo que cada página tem 12 campos para preencher. Se cada página tiver 20 linhas para preencher, significa que existem 340 campos para preencher. Ora, como faltam 24 campos por preencher, temos um erro de preenchimento de 7%, para além de que, no caso dos autos, não existe uma explicação concreta para as falhas de preenchimento, até porque os campos ao lado estão preenchidos.
Tendo, por conseguinte, a recorrente a perfeita consciência de que estava tudo em conformidade e que agiu com o máximo rigor.
Até porque, como foi referido em sede de audiência de julgamento, foi objeto de várias inspeções, antes e depois da aqui em causa, e só nesta é que encontraram falhas no registo de atividade.
Pelo que forçosamente se deve concluir que a recorrente fez tudo a que estava obrigada no exercício da sua atividade.
Aliás, no caso concreto (7.1, 7.2. e 7.3.), não se pode apontar qualquer erro à recorrente, pois o erro, a existir, não lhe é censurável.
Tendo, assim, atuado sempre sem consciência da ilicitude, em função do que deve ser absolvida.
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Mais uma vez, as razões assim invocadas no recurso, em abono da posição que defendeu relativamente à questionada matéria do processo n.º 686/2023, não merecem acolhimento, pois não só fazem apelo a elementos que extravasam o texto da sentença recorrida (os ficheiros juntos aos autos, cujos dados inseridos sustenta serem suficientes para dar por observado o dever especial imposto pela lei), como não encontram respaldo no conteúdo do decidido nem são reveladoras de qualquer erro em que o julgador tenha incorrido, ao formar a sua convicção quanto à prova da apontada factualidade.
Por outro lado, os restantes aspetos que invoca, nos termos acima indicados, mais não são de que argumentos destinados a rebater, sem qualquer sustentação factual ou sequer jurídica, a realidade demonstrada nos termos já descritos, a qual é, sem margem para dúvida, contrária ao dever especial que à recorrente, empresa de segurança privada, titular do competente alvará ou licença, é imposto pelo artigo 37.º, n.os 1, h), e 2, alíneas d) e g), e 38.º, n.º 1, ambos do REASP, no sentido de comunicar à Direção Nacional da PSP as alterações ao pacto social, no que concerne à gerência da sociedade [alínea d)], de organizar e manter atualizados ficheiros individuais do pessoal de segurança privada ao seu serviço, incluindo a cópia do cartão profissional e do certificado do registo criminal, atualizado anualmente, bem como a data de admissão ao serviço [alínea h)], de incluir no registo de atividades previsto no artigo 37.º, n.º 1, alínea c), pelo menos os elementos descritos no artigo 38.º, n.º 1, e de manter permanentemente atualizados e disponíveis para inspeção, na respetiva sede, os originais dos documentos sujeitos a verificação em ação inspetiva [alínea g)].
Por fim, no que concerne à também invocada falta de consciência da ilicitude, é manifesto que se trata de uma pretensão que, sendo infundada, deve igualmente soçobrar.
Como bem assinalou o tribunal a quo na sentença recorrida, resultou assente que a recorrente, ao agir nos termos descritos, bem sabia que sobre ela impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, contra o que podia e devia. Dever este que se determina por critérios objetivos, nomeadamente pelas exigências colocadas a uma pessoa média do círculo social ou profissional da agente, ou seja, do concreto círculo de responsabilidades em que a mesma se move. No entanto, não deve buscar-se apenas para padrão a capacidade normal ou da pessoa média, mas também utilizar-se um critério subjetivo ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de uma pessoa coletiva com as capacidades e qualidades da recorrente.
Por esta razão, dúvidas não restam que à recorrente era exigível que cumprisse o dever que se lhe impunha e que a tal era capaz, apenas não o tendo feito por incúria e descuido, pois podia e devia, atentas as circunstâncias concretas, ter atuado conforme ao Direito, designadamente podia (e devia) ter empreendido um comportamento lícito alternativo.
Aliás, como acertadamente também se refere na sentença recorrida, a propósito da infração relativa ao processo n.º 1493/2022 (pontos provados 1, 2 e 3), mas que aqui reveste igual plena pertinência e aplicabilidade, é sabido que, no plano da consciência da ilicitude, para que a conduta da recorrente seja objeto de censura, não basta a mera realização do tipo de ilícito de mera ordenação social, mas também que a haja uma expressão de uma atitude pessoal contrária ao dever ser revelada no facto, que mereça ser alvo de um juízo de censura.
No caso em análise não existe qualquer questão de (i)licitude concreta que se revele discutível ou controvertida, ou seja, nenhuma celeuma jurídica relevante se levanta que possa pôr em causa o acerto da proibição das suas violações.
É do conhecimento de qualquer cidadão comum e recorrendo às mais elementares regras de experiência da vida e, concomitantemente, à sociedade de conhecimento que se apresenta entre nós, que o setor em apreço é um ramo amplamente regulamentado em todas as suas dimensões.
Acresce, por fim, que a responsabilidade deve ser aferida por quem tem, não só o dever de estar informado, como também a obrigação de se manter informado, sendo inegável que é exigível à recorrente que tivesse conformado a sua conduta com a legalidade imposta pelas disposições normativas a que está sujeita, enquanto empresa de segurança privada titular do alvará ou licença que a habilita a exercer tal atividade, sem se escudar em alegações (de resto, não demonstradas) de que atuou convencida que estava tudo em conformidade e que agia com o máximo rigor, até porque foi objeto de várias inspeções, antes e depois da aqui em causa, e só nesta é que encontraram falhas no registo de atividade.
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Tudo visto, e para concluir, é para nós seguro que, analisado o texto da decisão recorrida, nos termos acima indicados, em conjugação com as regras da experiência comum, não existe qualquer erro ostensivo que evidencie desacerto na opção que o que o tribunal a quo tomou quanto à matéria que considerou provada.
Na motivação quanto à decisão sobre a matéria de facto, cujos elementos essenciais acabámos de enunciar e analisar, o julgador explanou de forma objectiva e circunstanciada a valoração que efectuou, identificando a prova documental e testemunhal que entendeu relevar para a formação da sua convicção, e indicando os aspectos de tal prova que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade questionada no recurso, de imputação à recorrente dos actos descritos na decisão.
Expôs também de forma lógica e racional as inferências que extraiu de matéria directamente apurada, as quais se mostram fundadamente apoiadas nas regras do normal acontecer que caracterizam a experiência comum e que justificam, assim, as conclusões factuais a que chegou quanto à imputação subjetiva das condutas praticadas (pontos 5, 6, 8 e 9).
Verifica-se, pois, que a convicção do julgador se encontra apoiada num raciocínio lógico, congruente e em concordância com as regras da experiência, sem que tenha sido posto em causa qualquer princípio ou regra fundamental em matéria de prova, mostrando-se justificada a solução probatória que foi exposta na sentença recorrida.
Acresce que do texto da sentença recorrida também não resulta que o tribunal a quo tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objetiva e motivável – quanto à demonstração da matéria impugnada no recurso, e que, a partir desse estado, a tenha considerado provada.
Aliás, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto o tribunal a quo indicou as razões que, de modo lógico e racionalmente sustentado, justificam a opção probatória que tomou, fazendo-o sem evidenciar dúvidas quanto à demonstração factual considerada.
De resto, tal como acima já havíamos dado conta, particularmente quanto ao apuramento da matéria constante dos pontos 4 e 7.1. a 7.4., a 1.ª instância revelou com clareza que, na ponderação da prova que entendeu suportar a demonstração da apontada factualidade, não se verificou existir qualquer valoração que, contrariando os critérios de racionalidade e lógica a observar na sua análise, ou as regras das experiência, devesse ter conduzido o julgador, não à certeza que deixou exposta na fundamentação, mas a um estado de dúvida em que se impunha a tomada de uma decisão probatória a favor da sociedade arguida.
Em suma, do quadro descrito na motivação quanto à decisão sobre a matéria de facto provada, em conjugação com o teor global da decisão recorrida, não se divisa qualquer erro na valoração probatória resultante da violação das regras da experiência ou de outros princípios a considerar (como o dubio pro reo), que seja patente a quem lê a decisão e do qual resulte que a factualidade relativa às contraordenações imputadas à arguida, tenha sido considerada demonstrada com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, em infracção às referidas regras e princípios.
Pelo que se impõe concluir que a sentença recorrida não padece do vício de erro notório, devendo, pois, improceder a correspondente pretensão invocada no recurso.
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3.2. Assente que ficou a matéria dos pontos provados descritos na sentença recorrida, não podia o tribunal a quo deixar de considerar preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos das infrações imputadas à recorrente D, Lda., tais como foram julgadas e decididas na sentença recorrida, mormente no que toca às impugnadas infrações previstas e punidas nos seguintes termos:
– Artigo 59.º, n.os 2, alínea n), e 4, alínea b), com referência ao artigo 37.º, n.º 2, alínea d), ambos do REASP (Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, que estabelece o regime do exercício da atividade de segurança privada e da organização dos serviços de autoproteção, na redação dada pela Lei n.º 46/2019, de 8 de julho): Constitui contraordenação grave, punível com coima no montante mínimo de 7 500,00 € e máximo de 37 500,00 €, quando cometida por pessoa coletiva, a não comunicação à Direção Nacional da PSP, no prazo de 15 dias úteis, das alterações ao pacto social e de gerentes, em cuja prática a recorrente incorreu, no dia 4 de outubro de 2021, ao não ter comunicado à Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública a alteração do seu gerente (efetuada no âmbito da alteração do pacto social ocorrida em 18 de junho de 2021), agindo sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, atuação que levou a cabo de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional (cf. pontos provados 7, 7.1., 8 e 9 – processo n.º 686/2023).
– Artigo 59.º, n.os 3, alínea d), e 4, alínea a), com referência aos artigos 37.º, n.º 1, alínea h), ambos do REASP: Constitui contraordenação leve, punível com coima no montante mínimo de 1 500,00 € e máximo de 7 500,00 €, quando cometida por pessoa coletiva, o incumprimento das obrigações, deveres, formalidades e requisitos estabelecidos na presente lei ou fixados em regulamento, quando não constituam contraordenações graves ou muito graves, como é o caso do artigo 37.º, n.º 1, alínea h), nos termos do qual constituem deveres especiais das entidades titulares de alvará ou de licença, organizar e manter atualizados ficheiros individuais do pessoal de segurança privada ao seu serviço, incluindo a cópia do cartão profissional e do certificado do registo criminal, atualizado anualmente, bem como a data de admissão ao serviço, em cuja prática a recorrente incorreu, no dia 4 de outubro de 2021, ao ter irregularidades em 24 ficheiros individuais do pessoal de segurança privada, por falta de certificados de registo criminal atualizados, contratos de trabalho e cópia do cartão profissional, agindo sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, atuação que levou a cabo de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional (cf. pontos provados 7, 7.2., 8 e 9 – processo n.º 686/2023).
– Artigo 59.º, n.os 3, alínea c), e 4, alínea a), com referência aos artigos 37.º, n.º 1, alínea c), e 38.º, n.º 1, todos do REASP: Constitui contraordenação leve, punível com coima no montante mínimo de 1 500,00 € e máximo de 7 500,00 €, quando cometida por pessoa coletiva, a omissão do registo de atividades, de algum dos elementos previstos no artigo 38.º, n.º 1, ou seja, a) Designação e número de identificação fiscal do cliente; b) Número do contrato celebrado pela entidade de segurança privada; c) Tipo de serviço prestado, com indicação das funções específicas a desempenhar; d) Data de início e termo do contrato; e) Local ou locais onde o serviço é prestado; f) Horário da prestação dos serviços; g) Meios humanos utilizados; h) Sistemas técnicos e respetivas caraterísticas, em cuja prática a recorrente incorreu, no dia 4 de outubro de 2021, ao ter irregularidades em 15 contratos, por falta de elementos atinentes ao número de contrato, data de início e termo, meios humanos e número fiscal do cliente, agindo sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, atuação que levou a cabo de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional (cf. pontos provados 7, 7.3., 8 e 9 – processo n.º 686/2023).
– Artigo 59.º, n.os 2, alínea n), e 4, alínea b), com referência ao artigo 37.º, n.º 2, alínea g), ambos do REASP: Constitui contraordenação grave, punível com coima no montante mínimo de 7 500,00 € e máximo de 37 500,00 €, quando cometida por pessoa coletiva, a violação dos deveres especiais das entidades titulares de alvará ou de licença de manter permanentemente atualizados e disponíveis para inspeção, nas respetivas sedes, os originais dos documentos, passíveis de verificação em ação inspetiva, previstos na presente lei e legislação regulamentar, em cuja prática a recorrente incorreu, no dia 4 de outubro de 2021, ao ter em falta 17 contratos de trabalho disponíveis para inspeção, relativos aos seguranças privados admitidos por ela, agindo sem o cuidado e prudência de que era capaz e a que estava obrigada no exercício da atividade por si prosseguida, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, atuação que levou a cabo de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional (cf. pontos provados 7, 7.4., 8 e 9 – processo n.º 686/2023).
– Artigo 59.º, n.os 2, alínea n), e 4, alínea b), com referência ao artigo 37.º, n.º 2, alínea g), ambos do REASP: Constitui contraordenação grave, punível com coima no montante mínimo de 7 500,00 € e máximo de 37 500,00 €, quando cometida por pessoa coletiva, a violação dos deveres especiais das entidades titulares de alvará ou de licença de manter permanentemente atualizados e disponíveis para inspeção, nas respetivas sedes, os originais dos documentos, passíveis de verificação em ação inspetiva, previstos na presente lei e legislação regulamentar, em cuja prática a recorrente incorreu, no dia 3 de agosto de 2022, ao não ter disponível para inspeção os originais de documentos passíveis de verificação em ação inspetiva na sua sede, bem sabendo que sobre si impediam deveres especiais, enquanto empresa titular de alvará ou licença C, atuação que levou a cabo de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e sancionada pela lei contraordenacional (cf. pontos provados 4, 5 e 6 – processo n.º 395/2023).
Sendo, pois, de manter a condenação da recorrente D, Lda., pela prática, a título de negligência, das contraordenações previstas e punidas pelas disposições legais acima citadas, assim como das demais apreciadas e decididas na sentença recorrida, relativas aos processos n.os 1493/2022 (pontos provados 1, 2 e 3 – contraordenação leve prevista e punida pelo artigo 59.º, n.os 3, alínea d), e 4, alínea a), do REASP, com referência aos artigos 3.º, n.º 3, também do REASP, e 8.º, n.º 2, alínea c), da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto) e 2404/2023 (pontos provados 10, 11, 12 e 13 – contraordenação leve prevista e punida nos termos dos artigos 9.º, n.º 2 e 5.º-B, n.º 4, ambos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, e artigo 18.º, alínea a), iv), do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, ou seja, tratando-se de média empresa, com coima de 1 250,00 € a 8 000,00 €).
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3.3. Alega ainda a recorrente que o seu inconformismo relativamente à sentença recorrida se prende também com a circunstância de o tribunal a quo não ter julgado inconstitucional as coimas previstas no artigo 59.º n.º 4 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio (na versão da Lei em vigor à data dos factos, ou seja, a Lei n.º 46/2019, de 8 de julho), por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
A punição das infrações em causa com coima compreendida entre 1 500,00 € e 44 500,00 €, no caso de pessoas coletivas, é manifestamente atentatória da Lei Fundamental, por violadora dos princípios da proporcionalidade, da equidade, da necessidade e da adequação, constitucionalmente consagrados. Os montantes mínimos de 1 500,00 €, 7 500,00 € e 15 000,00 €, previstos para as pessoas coletivas, comparados com os valores mínimos de 150,00 €, 300,00 € e 600,00 €, aplicáveis às pessoas singulares, revelam-se claramente excessivos e violadores do princípio da proporcionalidade.
Sobre matéria semelhante já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 47/2019, proferido em 23 de janeiro de 2019, no âmbito do processo n.º 678/16, no qual decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma contida na alínea e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 25.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, no segmento que estabelece o limite mínimo de coima aplicável às pessoas coletivas, por infração negligente ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º do mesmo diploma.
Alega, por fim, a recorrente que o legislador desconsiderou as enormes diferenças quanto à necessidade de tutela existentes entre o direito penal e o direito de mera ordenação social, conferindo à tutela contraordenacional prevista no Regime Jurídico da Atividade de Segurança Privada uma eficácia preventiva muito superior à tutela penal, o que não é admissível no nosso ordenamento jurídico pois configura uma drástica e distorcida alteração da hierarquia de ofensividade dos bens jurídicos, sendo contrário à Constituição.
Vejamos.
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Na sentença recorrida o tribunal a quo julgou improcedente a invocada inconstitucionalidade, entendendo para tanto que, tal como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2019, de 23 de janeiro, “A agravação das coimas aplicáveis às pessoas coletivas tem justificação no maior poder económico e na insuficiência intimidatória dos limites das molduras legais definidas para as pessoas singulares. Só a previsão de limites amplos permite adequar o montante da coima à situação económica e financeira da pessoa coletiva sancionada e assim responder melhor às finalidades das coimas. O facto das pessoas coletivas disporem de uma organização e de meios suscetíveis de produzirem maiores danos à coletividade e poderem incorporar os montantes das coimas na margem de risco normal da sua atividade justifica uma advertência ou admonição mais acentuada. Aqui, o critério do legislador não difere do que ocorre no domínio penal (n.º 5 do artigo 90-º-B do Código Penal), no regime geral das contraordenações (artigo 17.º do RGCO) e no regime de inúmeras contraordenações sectoriais (economia, ambientais, laborais, etc.)”.
Ora, como concluiu a 1.ª instância, as molduras das coimas previstas no n.º 4 do artigo 59.º do REASP não se revelam desproporcionais, tendo em conta os bens jurídicos a proteger nas diferentes contraordenações previstas em cada uma das suas alíneas e a natureza da atividade de segurança privada, pelo que inexiste fundamento para considerar qualquer inconstitucionalidade nos termos invocados pela impugnante D, Lda.
Pois bem.
A inconstitucionalidade normativa que a recorrente suscita está centrada nos limites mínimos das molduras contraordenacionais previstas no n.º 4 do artigo 59.º do REASP, assinalando-se, sobretudo, a disparidade que se verifica entre os valores que o preceito estabelece para as pessoas singulares e os comina para as pessoas coletivas.
Na motivação recursória não consta alegado qualquer fundamento especialmente dirigido às infrações previstas no Regime do Exercício da Atividade de Segurança Privada, aprovado pela Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, alterado pela Lei n.º 46/2019, de 8 de julho, sendo que a única jurisprudência em que a recorrente apoia esta sua pretensão é a que resulta do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2019, de 23 de janeiro, o qual diz respeito à coima prevista na alínea e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 25.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, que pune a atuação negligente de pessoa coletiva, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 15.º da mesma Lei n.º 37/2007, por não ter afixado junto de uma máquina de venda automática de tabaco o aviso de proibição de venda de tabaco a menores.
Nesse aresto foi julgada inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, a norma contida na alínea e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 25.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, no segmento que estabelece o limite mínimo de coima aplicável às pessoas coletivas, por infração negligente ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º do mesmo diploma.
No essencial, entendeu o Tribunal Constitucional que, não obstante a ampla liberdade que se reconhece ao legislador na fixação dos montantes das coimas aplicáveis, o limite mínimo da coima constante da alínea e) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 25.º, quando aplicada à contraordenação prevista no n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 37/2007, é manifesta e claramente desproporcionada à gravidade do comportamento sancionado, podendo, pois, questionar-se se o limite mínimo de 30 000,00 €, reduzido a metade nas infrações negligentes, aplicável à omissão do dever de afixação do dístico informativo da proibição de venda de tabaco a menores, não pecará por excesso, desde logo, porque a gravidade deste ilícito não é equiparável à gravidade das demais contraordenações cobertas pela mesma moldura de coima, que abrange outros tipos também previstos no artigo 15.º, designadamente a violação das proibições de venda de produtos de tabaco em determinados locais, de venda através de máquinas de venda automática que não estejam munidas de dispositivo bloqueador que impeça o acesso a menores de 18 anos e de venda através de meios de televenda, que afeta com mais intensidade o bem jurídico saúde protegido do que a simples omissão do dever de afixação do dístico informativo de tais proibições. Sendo, pois, evidente o desvalor que representa a venda efetiva de tabaco a menores muito superior ao desvalor que resulta da omissão do dever de afixação do “aviso impresso” de proibição dessa venda.
Acresce que a sanção contraordenacional não compreende apenas a coima prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 25.º da Lei n.º 37/2007, sendo que a sua aplicação por incumprimento do dever de afixação dos dísticos tem como efeito automático (ope legis) a «aplicação da sanção acessória de interdição de venda de qualquer produto de tabaco» (n.º 2 do artigo 26.º), constituindo a ameaça de uma sanção acessória desta espécie um fator de dissuasão bastante forte para evitar que os agentes económicos vendam tabaco a menores e omitam o dever de afixar o aviso impresso dessa proibição.
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Contrariamente ao que sustenta a recorrente, não se divisa existir qualquer identidade de fundamentos que determine que as razões da decisão de inconstitucionalidade tomada no Acórdão n.º 47/2019 são também aplicáveis ao juízo de conformidade das normas do artigo 59.º, n.º 4 do REASP com a Constituição da República Portuguesa.
Isto quando no Acórdão n.º 772/2017, de 16 de novembro de 2017, ao qual a recorrente não fez qualquer referência, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucionais as normas constantes de várias alíneas do artigo 59.º, n.os 1 e 4 do REASP, na versão da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, a saber:
- a norma do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), e n.º 4, alínea c), enquanto, qualificando o desrespeito pelas exigências constantes dos artigos 5.º e 19.º do mesmo diploma como contraordenação muito grave, fixa como limite mínimo da coima aplicável a pessoas coletivas o montante de 15 000,00 €;
- a norma do artigo 59.º, n.º 2, alínea i), e n.º 4, alínea b), enquanto, qualificando como contraordenação grave o incumprimento do dever especial previsto no artigo 37.º, n.º 1, alínea h), do mesmo diploma, fixa como limite mínimo da coima aplicável a pessoas coletivas o montante de 7 500,00 €;
- a norma do artigo 59.º, n.º 1, alínea k), e n.º 4, alínea c), enquanto, qualificando o incumprimento do dever previsto no artigo 37.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma como contraordenação muito grave, fixa como limite mínimo da coima aplicável a pessoas coletivas o montante de 15 000,00 €; e
- a norma contida no artigo 59.º, n.º 2, alínea d), e n.º 4, alínea b), enquanto, qualificando como contraordenação grave o não cumprimento da exigência constante do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, fixa como limite mínimo da coima aplicável a pessoas coletivas o montante de 7 500,00 €.
As razões da considerada conformidade com a Constituição são, estas sim, plenamente aplicáveis ao caso em análise, uma vez que estamos perante infrações cometidas por pessoa coletiva que atentam contra os mesmos bens jurídicos, as quais assumem idêntico grau de desvalor, dentro da escala de gravidade adotada pela norma em questão – contraordenações leves, graves e muito graves –, não apresentando, pois, qualquer aspeto de novidade que imponha uma apreciação diversa, valendo, do mesmo modo, como fundamentos determinantes da improcedência da inconstitucionalidade invocada no presente recurso.
Fundamentos que têm como ponto de partida o entendimento constante que o Tribunal Constitucional tem adotado, de que o legislador ordinário goza de uma ampla liberdade de conformação na fixação do montante das coimas em geral e, em particular, nas que se referem às infrações praticadas por pessoas coletivas, sendo que, quando a análise versa sobre a observância do princípio da proporcionalidade das sanções, o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, por o proibir o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição. “Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, neste campo, há de gozar de uma confortável liberdade de conformação, ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade”.
Depois, vale também a ideia de que a distinção entre pessoas singulares e coletivas justifica, constitucionalmente, que as coimas aplicáveis a estas últimas sejam de montante superior às aplicáveis às primeiras, sendo que a diferenciação de tratamento prevista na lei entre pessoas singulares e pessoas coletivas tem por base fundamentos razoáveis e objetivos que a legitimam, não se tratando de uma distinção arbitrária ou desprovida de fundamento.
Para se poder atingir o referido objetivo de prevenção geral, evitando-se a diluição de responsabilidade individual que sempre resulta da personalidade coletiva, as sanções aplicáveis devem ser de montante sensivelmente superior quando o respetivo destinatário for uma pessoa coletiva.
Acresce que é do interesse geral que a atividade de segurança privada seja objeto de uma regulamentação precisa, rigorosa e exigente, uma vez que, destinando-se a atividade à proteção de pessoas e bens e à prevenção de prática de crimes, está em causa a tutela de bens jurídicos que decorrem de direitos, liberdades e garantias pessoais e, nessa medida, com valor constitucionalmente reconhecido (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 304/2010, de 14 de julho de 2010).
Por fim, também não procede o argumento invocado no recurso de que, com as molduras cominadas no referido n.º 4 do artigo 59.º se está a punir de forma mais gravosa quem pratica uma contraordenação, em relação àquele que pratica um crime, atribuindo-se maior desvalor à conduta do primeiro do que à do segundo, não se podendo dizer que as multas aplicáveis às pessoas coletivas pelos crimes tipificados no artigo 57.º do REASP, que pune o exercício ilícito da atividade de segurança privada, com os limites mínimos e máximos e quantitativos diários cominados nos termos dessa norma incriminadora e do artigo 90.º-B do Código Penal, redundem em qualquer desproporção suscetível de ser sinalizada pelo artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.
As normas do artigo 59.º, n.º 4 do REASP, postas em crise no recurso, não suscitam, pois, nenhuma particularidade, designadamente ao nível do objeto do regime, das condutas subjacentes às infrações e dos interesses por elas protegidos, relativos à segurança de pessoas e bens, com o valor atrás referido, que justifique um tratamento diverso do que foi conferido às disposições do mesmo preceito, no âmbito do Acórdão n.º 772/2017.
Em suma, não existe fundamento para considerar que as normas do artigo 59.º, n.os 2, alínea n), e 4, alínea b), com referência ao artigo 37.º, n.º 2, alínea d), ambos do REASP, do artigo 59.º, n.os 3, alínea d), e 4, alínea a), com referência aos artigos 37.º, n.º 1, alínea h), ambos do REASP, do artigo 59.º, n.os 3, alínea c), e 4, alínea a), com referência aos artigos 37.º, n.º 1, alínea c), e 38.º, n.º 1, do artigo 59.º, n.os 2, alínea n), e 4, alínea b), com referência ao artigo 37.º, n.º 2, alínea g), ambos do REASP, do artigo 59.º, n.os 2, alínea n), e 4, alínea b), com referência ao artigo 37.º, n.º 2, alínea g), ambos do REASP e do artigo 59.º, n.os 3, alínea d), e 4, alínea a), do REASP, com referência aos artigos 3.º, n.º 3, também do REASP, e 8.º, n.º 2, alínea c), da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, enquanto, qualificando como contraordenação leve o desrespeito pelas exigências constantes dos preceitos legais a que se referem, fixam como limite mínimo da coima aplicável a pessoas coletivas o montante de 1 500,00 €, ou qualificando como contraordenação grave o desrespeito pelas exigências constantes dos preceitos legais a que se referem, fixam como limite mínimo da coima aplicável a pessoas coletivas o montante de 7 500,00 €, padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, pelo que a pretensão que a este respeito foi deduzida no recurso deve improceder.
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3.4. Subsidiariamente, a recorrente veio requerer a aplicação de admoestação, nos termos previstos no artigo 51.º do RGCO, norma que diz ser aplicável às contraordenações graves ou muito graves, uma vez que em lado algum é referido que tem de ser uma contraordenação leve para que se possa optar pela admoestação, existindo até diversos tribunais de 1.ª instância a decidir nesse sentido para sancionar contraordenação graves, como é o caso da jurisprudência que indica na motivação.
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Na sentença recorrida, ao se pronunciar sobre idêntica pretensão que havia sido formulada pela arguida em sede de impugnação da decisão administrativa, o tribunal a quo decidiu desfavoravelmente, com base no entendimento de que o legislador qualificou as contraordenações em causa nos presentes autos como graves, o que exclui, desde logo, a possibilidade de substituição da coima por admoestação.
Apoiou-se ainda o julgador da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5 de março de 2024[6], que, no essencial, subscreve a posição maioritariamente defendida pela doutrina e jurisprudência nacionais que limita a possibilidade de aplicação da admoestação às contraordenações legalmente qualificadas como leves, entendendo que nos casos em que o legislador procede a uma classificação das contraordenações em função da sua gravidade, devem considerar-se como de reduzida gravidade as que são classificadas como leves, só a estas sendo aplicável a admoestação em substituição da coima.
A “gravidade da infração” a que alude o artigo 51.º do RGCO, afere-se pela respetiva ilicitude, sendo que nas contraordenações a graduação da ilicitude se encontra feita pelo legislador em três graus distintos, segundo uma classificação ope legis da gravidade dos ilícitos contraordenacionais, que os diferencia entre contraordenações leves, graves e muito graves.
A gravidade da contraordenação dependerá do bem jurídico tutelado, do benefício do agente ou do prejuízo causado, pressupondo-se, porém, que todos esses fatores foram sopesados na classificação que o legislador entendeu fazer dos ilícitos contraordenacionais.
Ora, constituindo a admoestação a menos grave das sanções previstas no nosso ordenamento jurídico, quer penal, quer contraordenacional, parece evidente que a possibilidade da sua aplicação estará reservada às contraordenações leves.
Por fim, não impressiona o argumento segundo o qual fazer depender a aplicabilidade da admoestação do juízo abstrato que a classificação legal das contraordenações encerra implicaria preterir a avaliação casuística do comportamento do agente e da gravidade dos factos, pois não se pode confundir os planos distintos da previsão legal das sanções aplicáveis e da determinação da sua medida concreta. O primeiro, naturalmente abstrato, compete ao legislador e o segundo, necessariamente concreto, compete ao julgador.
Pois bem.
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Segundo resulta do disposto no artigo 51.º, n.º 1 do RGCO, a aplicação da admoestação depende da verificação dos seguintes requisitos: 1) "reduzida gravidade da infracção" e 2) reduzida "culpa do agente".
Neste contexto, conforme referem Simas Santos e Lopes de Sousa, a admoestação está reservada para as contraordenações em que o grau de ilicitude é reduzido, sendo que, nos casos em que estiver prevista uma qualificação legal em função da gravidade, deverão considerar-se de reduzida gravidade as contraordenações que a lei qualifica como leves ou simples[7].
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, a admoestação consiste numa advertência sem coima, uma medida alternativa para os casos de pouca relevância do ilícito contraordenacional e da culpa do agente, pelo que, quer a gravidade do ilícito, quer o grau da culpa, devem ser reduzidos[8].
Por sua vez, segundo o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2018, de 26 de setembro de 2018[9], a gravidade de uma infração é determinada pela gravidade da ilicitude pressuposta pelo legislador.
Conforme se sustenta neste aresto, o legislador, ao classificar uma dada infração como grave, considerou-a, em abstrato, portadora de uma ilicitude considerável, o que terá desde logo determinado uma moldura da coima com limites mínimos e/ou máximos superiores àqueles que foram determinados para as contraordenações que entendeu como sendo de gravidade menor ou de média gravidade.
Assim, não é de aceitar que, atento o caso concreto, a ilicitude da conduta diminua de gravidade depois de o legislador a ter classificado como sendo uma contraordenação grave, porque portadora de uma ilicitude considerada grave. Na verdade, sempre que o legislador, de forma geral e abstrata, classifica a infração como sendo grave, não poderá o julgador vir, depois, modificar a lei atribuindo menor gravidade àquela ilicitude.
Por tudo isto, não pode deixar de se entender que a classificação legal de uma contraordenação como grave afasta logo a possibilidade de o julgador considerar que aquela mesma contraordenação grave é, afinal, de "reduzida gravidade".
O legislador, ao classificar as contraordenações como graves, muito graves ou leves, pretendeu assegurar o princípio da proporcionalidade entre as infrações e as sanções previstas, o qual não será assegurado sempre que, perante uma infração com gravidade, nos decidimos pela aplicação de uma sanção que pressupõe uma reduzida gravidade.
Desfecho que ocorreria se se entendesse que a admoestação, reservada, como vimos, para as contraordenações em que o grau de ilicitude é reduzido (próprio das contraordenações “leves” ou “simples”), também é aplicável às contraordenações expressamente qualificadas pelo legislador como “graves” ou “muito graves”.
A circunstância de a contraordenação em causa no referido aresto uniformizador dizer respeito ao Regime da Prevenção e Controlo das Emissões Poluentes para a Atmosfera, à data regulado pelo Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, não retira a pertinência que a jurisprudência fixada reveste para o presente caso, devendo, pois, considerar-se que, por identidade de razões, a mesma vale para as contraordenações graves assim tipificadas pelo REASP.
Ou seja, as três contraordenações praticadas pela recorrente, sancionadas, cada uma, com a coima concreta de 7 500,00 €
Assim, a menor ilicitude da conduta que está subjacente à aplicação da admoestação, é inconciliável com a natureza grave das contraordenações praticadas pela recorrente.
A sua qualificação como grave constitui um indício objetivo de que o grau de ilicitude por elas pressuposto não é reduzido.
Aliás, no caso vertente, estamos perante múltiplas infrações às normas que regulam o exercício da atividade de segurança privada e, por via disso, um concurso de contraordenações no âmbito do qual foi fixada uma coima única, sendo que a circunstância de a recorrente ter atuado de forma negligente não significa necessariamente culpa leve.
Termos em que, atendendo ao grau elevado de ilicitude que o legislador atribuiu às infrações dos autos, qualificando-as como graves, e a que a aplicação da admoestação depende da existência de reduzida gravidade da infração e de um também reduzido grau de culpa, nos moldes previstos no artigo 51.º, n.º 1 do RGCO, o que não se verifica no caso em análise (pelo menos quanto ao grau da ilicitude ou gravidade da conduta), forçoso se torna concluir que a correspondente pretensão deduzida no recurso deve improceder.
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3.5. Por último, a recorrente vem dizer que, tendo em conta toda a factualidade provada, a coima resultante do cúmulo jurídico deveria ser no máximo de 7 500,00 €, valor que se mostra mais adequado, justo e proporcional à gravidade das contraordenações praticadas.
Vejamos.
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A determinação da coima única deve obedecer ao disposto no artigo 19.º do RGCO, segundo o qual, quem tiver praticado várias contraordenações, é punido com uma coima cujo limite mínimo não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações e o máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso (n.os 1 e 3).
No entanto, a coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso (n.º 2).
No caso dos autos, resulta da disciplina acima indicada que a moldura do concurso é constituída pelo mínimo de 7 500,00 € e o máximo de 22 500,00 €.
Na sentença recorrida o tribunal a quo entendeu que, na medida da coima única, se impõe a ponderação conjunta dos factos e a conduta da recorrente, extraindo-se do conjunto global dos factos por ela praticados que os mesmos correspondem a comportamentos desviantes excecionais.
Ademais, a recorrente não regista antecedentes contraordenacionais idênticos, razão pela qual considerou não ser de atribuir à pluralidade de contraordenações um efeito agravante da moldura conjunta.
Assim, perante a medida concreta que a autoridade administrativa fixou em 14 125,00 €, o tribunal a quo entendeu ser de aplicar uma coima única no valor de 11 000,00 €, que considerou adequado, justo e proporcional aos factos e à gravidade das contraordenações praticadas, tendo em conta, ainda, a ausência de antecedentes contraordenacionais idênticos e o desconhecimento de proveito económico da recorrente com a prática das infrações.
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Ora, tudo sopesado, ponderando a imagem global dos factos em referência, o grau de culpa e de ilicitude deles resultantes, as necessidades de prevenção especial (de nível mediano), o não apuramento de um concreto montante de benefício económico obtido, entende a Relação que a fixada coima única de 11 000,00 € (onze mil euros) se revela adequada e proporcional, respeitando ela o limite da culpa e assegurando na devida proporção as exigências de prevenção identificadas no caso, em conformidade com os critérios ditados pelo artigo 19.º do RGCO.
A coima de 11 000,00 € foi fixada dentro dos parâmetros estipulados na lei e não se verifica ter existido violação das regras de experiência ou desproporção da quantificação efetuada, pelo que na presente sindicância não ocorrem razões para uma intervenção corretiva no sentido da sua redução, não merecendo, pois, acolhimento, também nesta parte, a pretensão que a arguida D, Lda., formulou no recurso.
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III – Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas a cago da recorrente, fixando-se a taxa de justiça de 3 UC.
(Elaborado pela primeira signatária, revisto e assinado eletronicamente por todos as signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)
Évora, 25 de fevereiro de 2025
Helena Bolieiro
Fernando Pina
Renata Whytton da Terra
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[1] Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (doravante RGCO, como indicado no texto), alterado pelos seguintes diplomas: Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de outubro, Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de dezembro, e Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro.
[2] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Portuguesa, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
[3] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28 de dezembro de 1995.
[4] Cf. Germano Marques da Silva, op. cit., pág.324, e Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., págs.84-85.
[5] Aresto proferido no processo n.º 06P363 (relator Rodrigues da Costa) e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[6] Aresto proferido no processo n.º 2597/23.8T8FAR.E1 (relatora Maria Clara Figueiredo), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
[7] Cf. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações. Anotações ao Regime Geral, 6.ª ed., Áreas Editora, 2011, pág. 394.
[8] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, 2022, pág. 271.
[9] Acórdão publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 14 de novembro de 2018, que fixou jurisprudência no sentido de que a admoestação prevista no artigo 51º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, não é aplicável às contraordenações graves previstas no artigo 34.º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 78/2004, de 3 de abril. |