Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1525/18.7T8PTG.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - a quantia de € 62.141,61 (sessenta e dois mil e cento e quarenta e um euros e sessenta e um cêntimos) afigura-se manifestamente exagerada para indemnizar a Recorrida (…) pela privação do uso do veículo matriculado no ano de 2015 (a afetação de viaturas à atividade de renting está, em regra, condicionada pelos anos de uso da mesma) e cuja perda total justifica a indemnização de € 10.950,00 (dez mil e novecentos e cinquenta euros) pelo que, levando a cabo um julgamento assente na equidade, tal indemnização não há de exceder o referido valor atribuído a título de indemnização pela perda total do veículo;
- uma vez que o Autor contava, à data do acidente, 21 anos de idade, ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 41,5 pontos e de sequelas que são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, o valor do rendimento que vinha sendo auferido pelo Recorrente ficava aquém da RMMG, e este contribuiu em 40% para a ocorrência do acidente de viação, o montante indemnizatório a atribuir pelo dano da perda de capacidade de ganho ascende a € 114.000,00 (cento e catorze mil euros).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autor: (…)
Recorrente / Ré: Companhia de Seguros (…), Portugal, SA
Recorrida / Autora: (…) – Aluguer de Automóveis, SA

(…) intentou a presente ação declarativa de condenação contra (…), Portugal, S.A., (…) e (…), peticionando a condenação solidários dos Réus no pagamento do seguinte:
A) indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais pelo mesmo sofridos, de montante nunca inferior a € 427.791,30;
B) indemnização cuja total e integral quantificação se relega para posterior liquidação a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros:
- decorrentes da sua necessidade atual e futura de efetuar exames médicos de diagnóstico e de aferição da consolidação das lesões e sequelas;
- decorrentes da sua necessidade atual e futura de acompanhamento médico periódico nas especialidades médicas de Neuropsicologia, Neurocirurgia, Psiquiatria, Ortopedia e Fisioterapia para superar as consequências físicas e psíquicas das lesões e sequelas;
- decorrentes da sua necessidade atual e futura de realizar tratamento fisiátrico duas vezes por ano, sendo que cada tratamento deverá ter a duração mínima de 10 sessões, para superar as consequências físicas e psíquicas das lesões e sequelas;
- decorrentes da sua necessidade atual e futura de ajuda medicamentosa – anti-depressivos, anti-inflamatórios e analgésicos – para superar as consequências físicas das lesões e sequelas;
- decorrentes da sua necessidade atual e futura de se submeter a intervenções cirúrgicas e plásticas, a internamentos hospitalares, de efetuar despesas hospitalares, de efetuar deslocações a hospitais e clínicas para tratamento e correção das lesões e sequelas.
C) no pagamento de todas as despesas hospitalares do Autor devidas ao acidente de viação;
D) no pagamento dos juros vincendos a incidir sobre as referidas indemnizações calculados à taxa legal anual, a contar da data da citação das Rés e até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou que o veículo ligeiro de passageiros que conduzia embateu na traseira do veículo ligeiro de passageiros que era conduzido por (…), de propriedade de (…), veículo este que tinha seguro válido junto da companhia de seguros (…), Portugal, S.A.. O acidente deveu-se única e exclusivamente ao comportamento do Réu (…), porquanto o veículo conduzido por este ficou imobilizado em plena faixa de rodagem na via da direita, de noite, sem que se encontrasse sinalizado com aviso de pré-sinalização de perigo e com as luzes apagadas, tendo o seu condutor saído do mesmo, o que era imprevisível para o Autor. Em consequência do acidente de viação, o Autor sofreu lesões e ficou impedido de trabalhar, o que foi causa de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Contestou a Ré (…), impugnando a factualidade relativa ao acidente e aos danos alegados. Alegou que o veículo seguro ficou imobilizada na via direita da faixa de rodagem, encostado à berma com os quatro piscas ligados, sendo que, quando o respetivo condutor saía do carro para ir buscar o triângulo de sinalização de perigo, foi embatido e projetado pelo veículo conduzido pelo Autor, que não fazia uso do cinto de segurança, circulava a velocidade superior à permitida, com 1,5g/l de álcool e após consumo de canabinóides. Assim, o Autor foi o único culpado do acidente.

Teve lugar a apensação aos presentes autos do processo comum em que figura como Autora (…) – Aluguer de Automóveis, S.A. e Ré a Companhia de Seguros (…), S.A..
Invocando a qualidade de proprietária da viatura que era conduzida por (…), sustentou a Autora que o acidente ocorrido foi da única responsabilidade do condutor do veículo de matricula (…), que a reparação dos danos sofridos pelo acidente importa em € 44.900,29, que o valor da viatura destruída era, na data do acidente, de € 20.050,00, tendo recebido pelos salvados o valor de € 1.800,00, pelo que do sinistro resultou a perda total.
Peticionou a condenação da Ré no pagamento do valor do veículo, correspondente à venda do salvado, no total de € 18.250,00. Por ter ficado impossibilitada de utilizar a viatura na sua atividade, liquidou o prejuízo daí proveniente em € 17.064,76, que se manterá até 2018 à razão de € 25,22 diários, e nos anos seguintes à razão do valor que vier a ser estabelecido no âmbito do Acordo de Paralisação ARAC/APS até efetivo e integral pagamento da indemnização pela perda total da viatura.
Em sede de contestação, a Ré (…) imputou a responsabilidade na produção do acidente ao condutor da viatura (…), e impugnou os danos alegados pela Autora (…).

Foi proferido despacho saneador no âmbito do qual os Réus (…) e (…) foram absolvidos da instância por ilegitimidade.

No decurso da audiência de discussão e julgamento, foi admitida a ampliação do pedido para € 600.000,00 a título de danos patrimoniais e para € 300.000,00 a título de danos psicológicos e estéticos.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida sentença julgando a ação conforme segue:
«I) Julga-se parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada, a ação intentada por (…) contra a Ré Companhia de Seguros (…), Portugal, S.A. e, em consequência, decido condenar a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 99.189,39 (noventa e nove mil e cento e oitenta e nove euros e trinta e nove cêntimos);
i) – sendo € 63.189,39 a título de danos patrimoniais discriminados da seguinte forma:
- € 60.000,00 pela perda de ganho/dano biológico;
- € 2.029,80 pelas despesas com deslocação e alimentação;
- € 178,59 a título de despesas com medicamentos;
- € 741,00 com despesas de fisioterapia;
- € 120,00 pela destruição da roupa, relógio e fio de prata;
- € 120,00 pela destruição do computador;
ii) – e sendo € 36.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Mais se condena a R no pagamento das despesas relativas a ajudas técnicas permanentes designadamente ajudas medicamentosas, acompanhamento regular nas especialidades de psiquiatria, neurologia e neurocirurgia e tratamentos regulares de medicina e reabilitação, a liquidar em execução de sentença.
E absolve-se a Ré do demais peticionado.
Sobre as referidas quantias são devidos juros de mora contados desde a data de citação relativamente aos danos patrimoniais e desde a data da prolação da presente decisão quanto aos danos não patrimoniais.
II) Julga-se parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada, a ação intentada por (…) contra a Ré Companhia de Seguros (…), Portugal, S.A., e, em consequência, decido condenar a Ré no pagamento à Autora da quantia de € 21.188,85 (vinte e um mil, cento e oitenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos), sendo € 10.950,00 pela perda da viatura e € 10.238,85 pela privação de uso da mesma, acrescida da quantia calculada em € 25,22, desde 14/04/2018 até pagamento do valor devido pela perda da viatura, acrescidos de juros calculados à taxa leal, até efetivo e integral pagamento, desde a data de citação relativamente às quantias liquidadas nesse momento, e a contar da data de vencimento de cada uma das parcelas devidas diariamente posteriormente, absolvendo-se a Ré do demais peticionado.»

Inconformada, a Ré Companhia de Seguros (…), Portugal, SA apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que considere a responsabilidade do condutor do veículo seguro à razão de 60% e que não é devida indemnização pela privação do uso no caso de perda total do veículo. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I) Julgou o Tribunal a quo parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada, a ação intentada pela (…), ora Recorrida, contra a Ré, ora Recorrente, e condenou-a no pagamento à Recorrida da quantia de € 21.188,85.
II) Dos factos provados resultou a seguinte matéria: a) a perda total do veículo; b) que o seu valor de mercado à data do acidente era de € 20.050,00; e c) que a Recorrente recebeu a quantia de € 1.800,00 a título de salvado.
III) Assim, o prejuízo real da Recorrida é de € 18.250,00 que deverá ser reduzido à proporção de 60% dada a responsabilidade do condutor da viatura segurada na produção do acidente.
IV) Quanto à indemnização a título de privação de uso a jurisprudência mais recente dos Tribunais Superiores tem entendido que, nos casos em que se afigura ser devida indemnização de privação de uso nos casos de perda total, aquela terá de estar balizada e não poderá ser contabilizada ad infinitum, não podendo ser fixada em valor superior ao montante da indemnização decorrente da perda total do veículo, sob pena de violação dos princípios da equidade e da proporcionalidade (neste sentido, o Ac. do TRE processo n.º 43/21.0T8CCH.E1, de 09.02.2023 in www.dgsi.pt) seguido pela 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora.
V) Face ao exposto, requer-se a V. Exas. a revogação da sentença recorrida que violou o disposto no n.º 2 do artigo 564.º e n.º 1 e 3 do artigo 566.º, ambos do Código Civil e enferma do vício de nulidade, nos termos das alíneas c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.»
A Recorrida (…) Internacional apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que a pretensão esgrimida é destituída de fundamento.

O Autor (…), por sua vez, apresentou-se também a interpor recurso, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que fixe em € 600.000,00 a indemnização por danos corporais e em € 300.000,00 a indemnização por danos psicológicos e estéticos. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I – O Recorrente (…) foi vítima de acidente de viação com a idade de 22 anos;
II – O Recorrente era uma pessoa idónea física e mentalmente, com capacidade de trabalho;
III – Com o acidente de viação, o Recorrente viu o seu futuro promissor a nível pessoal, familiar e profissional “fugir-lhe” das mãos;
IV – O Relatório pericial médico-legal é categórico na determinação das capacidades do Recorrente (muito reduzidas);
V – O Recorrente requer que lhe seja concedida uma indemnização condigna e atento aos seus danos corporais no montante de € 600.000,00 (seiscentos mil euros), e psicológicos e estéticos o valor de € 300.000,00 (trezentos mil euros).»
Em sede de contra-alegações, a Recorrida Companhia de Seguros (…) pugnou pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida, uma vez que os factos provados, que não foram objeto de impugnação, não consentem a pretensão deduzida pelo Recorrente.

Cumpre conhecer das seguintes questões[1]:
i. da redução da indemnização pela perda total da viatura a 60%;
ii. da indemnização pela privação do uso da viatura;
iii. da indemnização dos danos sofridos pelo Autor (…).

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1 - No dia 2 de junho de 2016, pelas 3h20, na Autoestrada A6, ao km (…), ocorreu um acidente de viação envolvendo os veículos ligeiros de passageiros de matrícula (…) e (…), o primeiro conduzido pelo Autor (…), e o segundo, propriedade de (…), e conduzido por (…).
2 - O Autor circulava no sentido (…) – (…).
3 - Indo embater nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. com a sua parte frontal na parte traseira da viatura (…).
4 - A qual se encontrava imobilizada na faixa de rodagem, na via de tráfico mais à direita.
5 - Em consequência de ter ficado sem combustível.
6 - A viatura (…) possuía os quatro piscas ligados.
7 - Não foi colocado aviso de pré-sinalização de perigo (triângulo).
8 - O Autor, submetido a análise após o acidente, apresentava uma TAS de 0,77 g/l, bem como acusou positivo para “canabinóides no sangue”.
9 - No momento do embate o pavimento estava seco, não havia nevoeiro nem ventos fortes.
10 - O condutor do (…), após o embate foi transportado para o Hospital de (…) por apresentar ferimentos no braço, e recusou-se a submeter a teste de despiste da existência de álcool ou de quaisquer outras substâncias no sangue.
11 - Na data do acidente a responsabilidade civil pela utilização da viatura (…) encontrava-se transferida para a Ré (…) através de contrato de seguro titulado pela Apólice n.º (…).
12 - Em consequência do acidente de viação, o Autor foi evacuado de helicóptero e ventilado para o Hospital de (…) – Centro Hospitalar de (…) Norte, E.P.E., em estado coma, movimentos de descerebração, entubado com máscara laríngua, ferida frontal com perda de substância e afundamento, conforme relatório de urgência n.º (…).
13 - Tendo estado internado no Hospital de (…) – Centro Hospitalar de (…) Norte, E.P.E. de 2 até 14 de junho de 2016.
14 - No dia 14 de junho de 2016 o Autor foi transferido para o Hospital de (…), onde permaneceu internado.
15 - A 21 de junho de 2016 foi transferido para o Hospital de (…), conforme relatório.
16 - A 29 de junho de 2016 o Autor tem alta médica do Hospital de (…), em (…).
17 - Em consequência do acidente de viação, o Autor esteve 27 dias internado, 4 dos quais em coma, sendo sujeito a 3 operações, ventilação induzida.
18 - O Autor foi sujeito a avaliações neuropsicológicas em 06-09-2016 e 26-05-2017, concluindo que sobre o Autor recai um “quadro neuropsicológico pós-traumático, no qual predomina a síndroma disexecutiva e efeito mnésico. Atualmente é caracterizado por: 1. Alteração dos processos atencionais registando-se alteração ligeira do controlo executivo da atenção (flexibilidade cognitiva, inibição de intrusos) e da capacidade de concentração; 3. Diminuição ligeira da velocidade de processamento de informação; 4. Alteração moderada das capacidades de memória de trabalho, de organização conceptual/abstração, de programação, de iniciativa verbal, de flexibilidade e controlo inibitório, e de auto-monitorização; 5. Alteração da componente comportamental da síndroma executiva (frontal) de predomínio desinibitório com diminuição da capacidade de consciência dos défices e alteração do comportamento social; 6. Alteração da memória episódica registando-se a nível verbal alteração ligeira da capacidade de aprendizagem e moderada capacidade de evocação.
A nível visual apresenta mantem alteração moderada. Este quadro interfere significativamente no desempenho nas atividades de vida diária e na vida relacional (sócio-familiar).”
19 - O Autor foi avaliado em Psiquiatria no Centro Hospitalar de Lisboa Central EPE, tendo sido elaborado relatório que refere: “O Quadro clínico que o doente apresenta é compatível com o diagnóstico de Perturbação Orgânica da Personalidade, cujo prognóstico é reservado, com tendência para a cronicidade e condiciona a capacidade do doente para cumprir de forma rotineira tarefas que lhe permitam autossustentar-se e autogerir. O doente não apresenta insiht ou juízo crítico para a sua situação clínica”.
20 - O Autor foi acompanhado pelo Serviço de HSJ-Neurocirurgia, tendo sido novamente operado a 15 de fevereiro de 2017 em que foi efetuada “Reabertura de incisão cutânea e disseção por planos. Constatação de edema cerebral transitório que resolveu com medidas anti-edema no intra-operatório. Colocação de prótese pré-fabricada segundo TAC em acrílico (anatomics). Hemostase …”, conforme melhor resulta da Nota de Alta do Centro Hospitalar de (…) Central, EPE que aqui se junta e se considera integralmente reproduzido.
21 - No Relatório TC Crânio-Encefálico, datado de 3 de janeiro de 2018 refere-se que o Autor apresenta: “- Área de hipodensidade cortico-subcortical entre os gyrus frontais superior e médio à direita, que relacionamos com a sequela de provável lesão traumática. - Ligeiro aumento das cavidades ventriculares supratentoriais, de predomínio direito, associando-se discreto aumento do calibre dos sulcos hemisféricos homolaterais, permeáveis, em provável contexto de atrofia cortico-subcortical difusa, predomínio subcortical, deste hemisfério. - Diminuição da espessura da lâmina extra-axial/material cirúrgico de hemóstase, permanecendo apenas fina lâmina frontal, ao nível da alta convexidade. - Atenuação das densidades, predominantemente, hemáticas epicranianas, adjacente à prótese pré-moldada, fronto-temporo-parietal direita. - Salienta-se o não alinhamento dos bordos posterior e inferior da prótese craniana. … Preenchimento mucoso inflamatório maxilar, etmoidal e esfenoidal”, que aqui se junta e se considera integralmente reproduzido.
22 - Na data do acidente o Autor trabalhava como vendedor na empresa “(…), Lda.”, no âmbito de promoção, angariação e comercialização dos Serviços da (…), pelo tempo de duração de campanha comercial.
23 - No âmbito de contrato de trabalho a termo resolutivo, celebrado nos termos do disposto nos artigos 140.º, n.º 2, alínea g), e 175.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, celebrado em 28 de junho de 2016, com a sociedade (…) – Trabalho Temporário, S.A..
24 - O valor da retribuição base mensal era de € 265,00, a que corresponde um valor hora de € 3,06, acrescida de subsídio de alimentação no valor de € 3,00 por cada dia de trabalho efetivo, exceto se a alimentação for prestada em espécie pela empresa utilizadora.
25 - No âmbito dessas atividades, o Autor auferiu em abril de 2016, € 315,00, em maio de 2016, € 165,13, e em junho de 2016, € 813,38.
26 - O contrato está inativo desde 19/09/2017.
27 - Em consequência do acidente o Autor deslocou-se, entre 19/07/2016 e 07/09/2018, 21 vezes para a realização de consultas ou realização de exames ao Centro Hospitalar de (…).
28 - O Autor sentiu dores fortes e agudas sentidas após o acidente de viação.
29 - O A. apresenta o diagnóstico de Perturbação Orgânica da Personalidade e Episódio depressivo moderado/grave, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças, versão 10, da Organização Mundial de Saúde. Estes diagnósticos devem-se exclusivamente ao acidente e apresentam um prognóstico reservado, condicionando o examinando nas tarefas de vida diária, bem como em manter qualquer atividade profissional. Não apresenta antecedentes psiquiátricos conhecidos. Estes diagnósticos são sequelas de acidente de viação ocorrido a 02/06/2016. O examinando beneficia de acompanhamento em consulta de Psiquiatria, bem como de ajuste terapêutico, com necessidade de supervisão da administração da medicação. A periodicidade das consultas de Psiquiatria deve ser estipulada pelo seu médico psiquiatra assistente de acordo com a sua evolução clínica. Respondendo ainda aos quesitos do Tribunal, o não cumprimento da medicação e o não acompanhamento em consulta de Psiquiatria tem impacto no seu comportamento, na ansiedade, no humor e no padrão do sono.
30 - O Autor apresenta um perfil cognitivo médio inferior, de acordo com os valores normativos da sua faixa etária. O QI verbal e de realização encontram-se homogéneos, tendo um desempenho médio/ médio inferior; A organização preceptiva evidencia-se como um ponto muito fraco no desempenho, comprometendo a sua aptidão cognitiva. Desta forma o raciocínio fluído, a atenção ao detalhe a integração visio-motora ao estarem comprometidos poderão influenciar a sua funcionalidade e autonomia enquanto adulto.
31 - O A apresenta um quadro depressivo, com choro fácil, irritabilidade, impulsividade e labilidade emocional, relacionado com o trauma provocado pelo acidente que sofreu, com a idade de 21 anos.
32 - O A. apresenta-se consciente, orientado, colaborante, com bom estado geral, idade aparente de harmonia com a idade real; é ambidextro e apresenta marcha claudicante, sem recurso a ajudas técnicas.
33 - Apresenta as seguintes lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento:
Crânio: complexo cicatricial do couro cabeludo à direita, sendo mais visível uma cicatriz de ferida operatória não recente, arciforme de concavidade anterior do couro cabeludo, que se inicia na região frontal dirigindo-se para a região parietal vindo a finalizar na região temporal, com cerca de vinte e seis centímetros depois de retificada; prótese craniana bem coaptada; lesão cerebral orgânica extensa envolvendo o hemisfério cerebral direito que acarreta perturbações cognitivas, motoras e sensoriais com quadro neuromotor de hemiparesia esquerda de predomínio crural e distal.
Face: alteração dos campos visuais.
Abdómen: cicatriz de ferida operatória não recente, transversal, para umbilical esquerda, com cerca de doze centímetros de comprimento.
Membro superior esquerdo: ligeira diminuição da destreza manual
Membro inferior esquerdo: diminuição da massa muscular; diminuição da força na flexão dorsal do tornozelo e marcha claudicante.
34 - A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 24/03/2017.
35 - O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 68 dias.
36 - O Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 228 dias.
37 - O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 296 dias.
38 - O Quantum Doloris fixável no grau 5/7.
39 - O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 41,5 pontos.
40 - As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
41 - O Dano Estético Permanente é fixável no grau 5/7.
42 - A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 5/7.
43 - Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; acompanhamento regular nas especialidades de psiquiatria, neurologia e neurocirurgia e tratamentos regulares de medicina física e de reabilitação.
44 - O A tem de tomar Diplexil, por indicação médica e. em consequência do acidente gastou em medicamentos em 2016 a 2018: € 277,18, e € 20,47.
45 - Atendendo às dificuldades de locomoção do lado esquerdo do corpo, o Autor teve necessidade de receber fisioterapia o que fez na (…) – Prestação de Serviços Médicos-Dentários, Lda. em (…), tendo despendido a quantia € 1.130,00 (mil, cento e trinta euros).
46 - Bem como foi a uma consulta no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão em que pagou € 65,00 (sessenta e cinco euros) da mesma.
47 - Em consequência do acidente a roupa do Autor ficou destruída e perdeu um relógio e fio de prata, assim como ficou destruído um PC.
48 - A Autora (…) é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de aluguer de viaturas automóveis.
49 - À data do acidente o veículo da marca Volkswagen, modelo Golf V.1.6TDI Bluemotion, com a matrícula n.º (…) e com o quadro n.º (…), encontrava-se afeto à sua atividade comercial de Rent-a-car.
50 - Tendo, pelo menos desde o ano de 2015 e até meados do ano de 2016, afetado este veículo à sua atividade comercial, alugando-o sucessivas vezes a diversos clientes e recebendo destes a inerente contrapartida.
51 - No dia 5 de abril de 2016, a Autora, no exercício da sua atividade de rent-a-car, celebrou com (…) o contrato de aluguer n.º (…), ficando previsto e ajustado entre as partes que o aluguer cessaria no dia 4 de Julho de 2016.
52 - No momento da entrega do veículo a (…), o mesmo não apresentava quaisquer danos, encontrando-se em perfeito estado de uso.
53 - Em consequência do embate a viatura (…) sofreu danos que abrangem a totalidade da carroçaria, com colapso de toda a secção da direção, suspensão e motor, sendo mais acentuados e visíveis na zona frontal e lateral esquerda.
54 - A reparação desses danos ascende ao valor de € 44.900,29 (quarenta e quatro mil e novecentos euros e vinte e nove cêntimos).
55 - À data do sinistro, o valor de mercado do (…) era de € 20.050,00 (vinte mil e cinquenta euros).
56 - A (…) recebeu pelos salvados a quantia de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).
57 - Em consequência do acidente, a (…) deixou de poder alugar este veículo na sua atividade de rent-a-car a partir da data do sinistro, 2 de junho de 2016.
58 - Tal impossibilidade mantém-se até à presente data.
59 - Entre a Associação Portuguesa de Seguradores – APS, e a Associação de Industriais de Alugueres de Automóveis Sem Condutor – ARAC, de que a R. seguradora é subscritora, foram celebrados os Acordos de Paralisação com os valores em vigor para os anos de 2016 e 2017 e 2018, com o teor de fls. 66 e 67, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
60 - Por email datado de 12/08/2016, a (…) solicitou à Ré (…) o pagamento da indemnização de € 20.050,00, fazendo menção, “o proprietário é o Banco (…), entidade a quem já solicitamos a emissão de declaração a autorizar o processamento da indemnização a favor da (…)”.
61 - Ao que a Ré A(…) recusou, alegando a responsabilidade do condutor do veículo (…) na produção do acidente, conforme docs. de fls. 112 e 113 dos autos apensos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
62 - A viatura alugada a (…) pela aqui Autora era uma viatura diesel com cilindrada de 1.600cc e 110cv.
63 - A viatura (…) foi objeto de contrato de aluguer n.º 5089620 celebrado entre o Banco (…), S.A. e a Ré (…), celebrado em 15/12/2015.
64 - No âmbito desse contrato, a (…) assumiu todas as responsabilidades com a manutenção e reparação do veículo, sendo que a perda do mesmo determinava a caducidade e rescisão antecipada, com pagamento de todos os valores devidos pela Autora.
65 - Em consequência do acidente, a Autora rescindiu o contrato e pagou todos os valores devidos até final do contrato.
66 - Em agosto de 2016 a (…) procedeu ao pagamento das quantias devidas.
67 - A propriedade da viatura (…) encontrava-se registada a favor do Banco (…) pela Ap. (…), de 03/02/2016, e a favor da (…) pela Ap. (…), de 29/08/2017.


B – As questões do Recurso
i. Da redução da indemnização pela perda total da viatura a 60%
Na sentença proferida em 1.ª Instância foi exarado, relativamente à contribuição de ambos os condutores para a produção do acidente, que «afigura-se adequado fixar essa contribuição em 40% para o A. e em 60% para o condutor da viatura segurada, ….»
A Recorrente Companhia de Seguros (…) fez constar nas conclusões da alegação do recurso que, relativamente à perda total do veículo, o prejuízo da Recorrida, no montante de € 18.250,00, deve ser reduzido à proporção de 60%, dada a responsabilidade do condutor da viatura segurada na produção do acidente.
Porém, na alegação do recurso exarou que “bem andou o Tribunal a quo apenas imputando à Recorrente a percentagem de 60% do aludido valor, uma vez que caberá a redução na proporção da responsabilidade do condutor da viatura segurada na produção do acidente.”
Efetivamente, consta da sentença proferida em 1.ª Instância o seguinte:
«Nessa conformidade, sofreu a Autora o prejuízo correspondente a € 18.250,00, que deve ser julgado procedente, reduzido à proporção da responsabilidade do condutor no veículo segurado na produção do acidente.
(…)
II) Julga-se parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada, a ação intentada por (…) contra a Ré Companhia de Seguros (…), S.A., e, em consequência, decido condenar a Ré no pagamento à Autora da quantia de € 21.188,85 (vinte e um mil, cento e oitenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos), sendo € 10.950,00 pela perda da viatura (…).»
Uma vez que a condenação reduziu a 60% o valor da indemnização do prejuízo sofrido pela Recorrida (…) pela perda total da viatura (€ 18.250,00 x 60% = € 10.950,00), tal como a Recorrente reconheceu, afigura-se destituído de fundamento o teor dos pontos I a III das conclusões da alegação do recurso.

ii. Da indemnização pela privação do uso da viatura
Perante a condenação no pagamento € 10.238,85 pela privação de uso da viatura, acrescidos da quantia calculada em € 25,22/dia desde 14/04/2018 até pagamento do valor devido pela perda da viatura, a Recorrente (…) sustenta que:
- não é devido qualquer valor pela privação do uso nos casos em que é declarada a perda total do veículo;
- a entender-se ser devida tal indemnização, esta não pode ser contabilizada ad infinitum, não podendo ser fixada em valor superior ao montante da indemnização decorrente da perda total do veículo, sob pena de violação do princípio da equidade e da proporcionalidade.
Atualmente, a problemática da indemnização do dano decorrente da privação do uso regista um acolhimento generalizado quer na doutrina, quer na jurisprudência. Em sede de eventos decorrentes de acidentes de viação, para além das regras gerais atinentes à indemnização do dano, importa levar em linha de conta o regime atinente ao seguro automóvel, através do qual o legislador sinalizou a relevância de o responsável disponibilizar ao lesado um veículo de substituição. Na verdade, na senda do artigo 20.º-J aditado ao DL n.º 522/85, de 31 de dezembro, em transposição parcial para a ordem jurídica nacional da Diretiva n.º 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, o artigo 42.º, n.º 1, do DL nº 291/2007, de 21 de agosto (SORCA), consagrou o direito do lesado a veículo de substituição verificando-se a imobilização do veículo sinistrado. Atento o teor dos n.ºs 1 e 2 de tal preceito legal, a empresa de seguro está incumbida de disponibilizar um veículo de substituição de características semelhantes ao veículo sinistrado a partir da data em que assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente; no caso de perda total do veículo imobilizado, a obrigação de disponibilizar o veículo de substituição cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização.
Ora, decorre do referido quadro legal que, no caso de imobilização do veículo sinistrado, a seguradora com responsabilidade exclusiva está obrigada a prestar veículo de substituição ao lesado. Por conseguinte, não o fazendo, resulta adstrita a indemnizar o lesado por se ver privado do uso do veículo.
Resulta do exposto não merecer acolhimento a alegação da Recorrente no sentido de não ser devida indemnização pela privação do uso do veículo (não tendo sido disponibilizado veículo de substituição) no caso de perda total.
Mais argumentou a Recorrente que a indemnização pelo dano decorrente da privação do uso tem de ser balizada e não pode ser contabilizada ad infinitum. O que nenhum relevo tem para efeitos de impugnação da decisão proferida em 1.ª Instância, pois nesta foi exarado ser devida a indemnização até pagamento do valor devido pela perda da viatura.
Segue a Recorrente sustentando que o montante indemnizatório fixado relativamente ao dano decorrente da privação do uso não pode exceder o valor indemnizatório fixado pela perda total do veículo.
A determinação do montante pecuniário adequado a indemnizar a Recorrida Europcar pelo dano decorrente da privação do uso decorre da ponderação da reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do disposto no artigo 562.º do CC, à luz de um juízo de equidade, conforme estabelecido no artigo 566.º, n.º 3, do CC.[2]
Por via do que se vem entendendo que o valor da referida indemnização não há de superar o valor fixado a título de indemnização pela perda total do veículo.[3] É que a atribuição de uma compensação deverá ser determinada por juízos de equidade que corresponda, no fundo, ao custo da substituição da viatura que deveria ter sido proporcionada e não foi, mas que, de igual modo, não permita um injusto locupletamento do lesado.[4]
No caso em apreço, a indemnização fixada pelo Tribunal de 1.ª Instância, à razão de € 25,22/dia (valor que não foi reduzido a 60%, nem tal redução foi suscitada em sede de recurso) desde 14/4/2018, ascende atualmente ao valor de € 51.902,76 (cinquenta e um mil, novecentos e dois euros e setenta e seis cêntimos), a acrescer ao valor ali liquidado de € 10.238,85 (dez mil e duzentos e trinta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos).
A quantia de € 62.141,61 (sessenta e dois mil, cento e quarenta e um euros e sessenta e um cêntimos) afigura-se manifestamente exagerada para indemnizar a Recorrida (…) pela privação do uso do veículo matriculado no ano de 2015 (a afetação de viaturas à atividade de renting está, em regra, condicionada pelos anos de uso da mesma) e cuja perda total justifica a indemnização de € 10.950,00 (dez mil e novecentos e cinquenta euros).
Aplicando um julgamento de equidade conforme previsto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, que tem por base o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções, atendendo às circunstâncias concretas do caso e ao grau de culpa do lesante, sem esquecer os padrões geralmente adotados pela jurisprudência, afigura-se ser devida indemnização que não exceda o valor atribuído a título de indemnização pela perda total do veículo, ou seja, pelo montante de € 10.950,00 (dez mil e novecentos e cinquenta euros).

iii. da indemnização dos danos sofridos pelo Autor (...)
O Autor (…) peticiona, em sede de recurso, que os danos corporais por si sofridos sejam indemnizados pela verba de € 600.000,00 e que os danos psicológicos e estéticos o sejam pela verba de € 300.000,00. Importa, assim, apreciar se a factualidade provada consente indemnização superior à que foi arbitrada em 1.ª Instância – € 60.000,00 pelo dano corporal (€ 100.000,00 x 60%) e € 36.000,00 pelo dano de natureza não patrimonial (€ 60.000,00 x 60%).
Vejamos.
Do dano biológico ou corporal
Está em causa a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, que é determinante de consequências negativas a nível da sua atividade geral, justificando a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Há que determinar o montante justo e adequado a indemnizar o dano aqui em discussão, a perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica de que (…) ficou afetado.
Em temos jurisprudenciais, vem sendo entendido que, por um lado, o dano biológico é o prejuízo que se repercute nas potencialidades e na qualidade de vida do lesado, afetando-lhe o seu viver quotidiano na sua vertente laboral, recreativa, sexual, social ou sentimental, determinando-lhe a perda de faculdades físicas ou intelectuais em termos de futuro, deficiências que se agravarão com a sua idade. E, por outro, que esse dano é indemnizável de per se, como dano patrimonial futuro, independentemente de se verificarem ou não consequências em termos de diminuição de proventos por parte do lesado. Tendo o lesado ficado com incapacidade permanente e com sequelas em termos de rebate profissional, esforço acrescido ou particular repulsa, deve aquela incapacidade relevar em termos de prejuízo funcional, ou seja, do chamado dano biológico.[5]
No Ac. STJ de 27 de outubro de 2009[6], o dano biológico vem caracterizado como a diminuição somático-psíquica do lesado, com natural repercussão na sua vida, ressarcível como dano patrimonial ou compensável a título de dano moral, tudo dependendo de apreciação casuística, em termos de verificação se a lesão lhe originou, no futuro, durante o período ativo da sua vida, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz apenas numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade. A mera necessidade de um maior dispêndio e de energia, mais traduz um sofrimento psicossomático do que, propriamente, um dano patrimonial, porque o exercício de qualquer atividade profissional se vai tornando mais penoso com o desgaste natural da vitalidade – paciência, atenção, perspetivas de carreira, desencantos – e da saúde, implicando um crescente dispêndio de esforço e energia. Ora, tal agravamento, desde que se não repercuta, direta ou indiretamente, no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de lucro, traduzir-se-á em dano moral, a fixar segundo a equidade, nos termos do artigo 496.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil.
No Ac. TRC de 12/04/2011[7], pode ler-se que a incapacidade permanente é, de per si, um dano patrimonial indemnizável pela incapacidade em que o lesado se encontra e encontrará na sua condição física e psíquica, quanto à sua resistência e capacidade de esforços, independentemente da prova de um prejuízo pecuniário concreto. Em situações de relativa autonomia da limitação funcional, a incapacidade permanente parcial com reflexo na atividade em geral e profissional, não deverá ser compensada por forma englobante no contexto “dano biológico” mas como dano patrimonial.
Do Ac. STJ de 21/03/2013[8] alcança-se que o dano biológico, dano corporal lesivo da saúde, está na origem de outros danos (danos-consequência) designadamente aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho. Constitui dano patrimonial a perda de capacidade de trabalho permanente geral de 15 pontos que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão a justificar, nos termos do artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil, indemnização correspondente ao acrescido custo do trabalho que o lesado doravante tem de suportar para desempenhar as suas funções laborais.
O que decorre, desde logo, da circunstância de que “o estado de saúde normal é a premissa indispensável para uma capacidade produtiva normal.”[9]
No que respeita aos critérios a adotar para fixação do quantum indemnizatório, tem-se entendido que assentam na equidade, à luz do regime inserto no artigo 566.º, n.º 3, do CC. Porém, «a utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, cuja prossecução implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. Os critérios seguidos pela Portaria n.º 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25/06, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial, e se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem ao critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações fixado pelo Código Civil.»[10]
À luz de tais ensinamentos bem como dos parâmetros que vem sendo aplicados pelos tribunais superiores[11], importa levar em linha de conta a seguinte factualidade provada:
- o Recorrente contava, à data do acidente, 21 anos de idade;
- a esperança de vida prolonga-se até aos 73,3 anos;[12]
- a idade legal de acesso à reforma é, atualmente, de 66 anos e 4 meses;
- o Recorrente ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 41,5 pontos;
- as sequelas que regista são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional;
- o valor do rendimento que vinha sendo auferido pelo Recorrente ficava aquém da RMMG;
- a RMMG[13] cifrava-se em € 760,00[14] à data da prolação da sentença.[15]
Por aplicação das regras decorrentes da Portaria n.º 377/2008 e respetivo anexo IV (artigos 3.º, alínea b) e 8.º da citada Portaria), na redação atualizada pela Portaria n.º 679/2008, de 25 de junho, a indemnização ascenderia, segundo o simulador da Associação Portuguesa de Seguradores[16], ao montante de € 165.605,00. Procedendo às operações inerentes a tal tabela, ou seja, multiplicando por 41,5 o valor de 1740 constante da tabela atenta a idade do Recorrido à data do acidente (valor considerado adequado em face da nota 3 da referida tabela), alcança-se o montante de € 72.210,00, valor fixado com referência à RMMG de 2007, no montante de € 403,00[17]. Tomando por referência a RMMG de € 760,00 e aplicando a regra matemática de três simples, obtém-se o montante indemnizatório de € 136.000,00.
Trata-se do montante apontado como critério orientador para efeitos de apresentação, pelas seguradoras aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, em caso de incapacidade permanente parcial – vide artigo 1.º da referida Portaria.
Afigura-se, no entanto, que a utilização de tais instrumentos só pode servir para determinar o minus indemnizatório[18], o qual terá de ser corrigido com vários elementos que possam conduzir a uma indemnização justa[19], já que tais tabelas não contemplam, designadamente, os seguintes itens:
- o prolongamento da IPP para além da idade de reforma (entrando na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 66 anos, não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter atividade depois dela);
- a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade e do próprio aumento de produtividade;
- a tendência para o aumento da vida ativa para se atingir a reforma nem o aumento da própria longevidade;
- a inflação;
- a progressão na carreira e, decorrentemente, a progressão salarial.[20]
Aplicando um juízo de equidade ao quadro circunstancial apurado, no qual assume relevo o elevado grau de défice funcional permanente que é impeditivo do exercício da qualquer atividade profissional, afigura-se adequado fixar o montante indemnizatório na quantia de € 190.000,00 (cento e noventa mil euros) que, reduzido a 60%, implica na verba de € 114.000,00 (cento e catorze mil euros).

Em sede de danos não patrimoniais, o montante indemnizatório fixado em 1.ª Instância ascende a € 36.000,00 (60% de € 60.000,00).
Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º do CC. O montante adequado a indemnizá-los, nos termos do disposto no artigo 496.º, n.º 3, 1.ª parte e 494.º do CC, resultará de um julgamento de equidade que terá por base o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções, atendendo às circunstâncias concretas de cada caso tendo em conta a situação económica do agente e do lesado, bem como o grau de culpa daquele, sem esquecer os padrões geralmente adotados pela jurisprudência.
Estão em causa prejuízos de natureza infungível em que, não sendo possível uma reintegração por equivalente, importa atribuir ao lesado uma compensação que proporcione certas condições decorrentes da utilização do dinheiro. A indemnização por tais danos, «sem embargo da função punitiva que, outrossim, reveste, tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indiretamente, esses danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar a havido sofrimento moral»[21]. Abrange, «nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de atividades agradáveis».[22] O valor da indemnização deve ter um alcance significativo, que não simbólico ou miserabilista[23], apurado segundo um juízo de equidade (artigo 496.º, n.º 3, do CC), efetivando a procura da justiça do caso concreto, assente numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso, sem olvido do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), iluminador da uniformização de critérios, tendo em atenção os padrões de indemnização normalmente adaptados na jurisprudência em casos similares.[24]
Considerando toda a factualidade elencada que contende com tal questão, que traduz os padecimentos sofridos pelo A logo após o embate, no Hospital, no período subsequente às intervenções cirúrgicas e o quantum doloris e estético que foram fixados, as concretas sequelas que ficou a padecer, levando em linha de conta os montantes indemnizatórios atribuídos em casos concretos submetidos a apreciação superior[25], afigura-se adequado fixar a indemnização devida em € 90.000,00 (noventa mil euros), revertendo para o Autor a quantia de € 54.000,00 (cinquenta e quatro mil euros).

As custas do recurso interposto pela (…) recaem sobre a Recorrida (…) – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
As custas do recurso interposto por (…) recaem sobre o Recorrente e Recorrida (…) na proporção do decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza o Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Vai dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça já que, não obstante o valor dos pedidos formulados, certo é que o processado que se operou e a complexidade das questões apreciadas não justifica sejam cobradas outras verbas a título de taxa de justiça – artigo 6.º, n.º 7, do RCP.
O que, no entanto, se determina relativamente à presente instância de recurso.
Na verdade, conforme resulta do disposto nos artigos 527.º, n.º 1 e 529.º, n.º 1, do CPC e 1.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2, do RCP e nas tabelas I-A e I-B anexas ao RCP, os incidentes, as ações e os recursos são considerados processos ou procedimentos autónomos para efeito de sujeição ao pagamento de custas stricto sensu e de taxa de justiça, funcionando entre eles o princípio da autonomia.[26] Donde, a decisão de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça cabe ao juiz da primeira instância por referência ao nela processado, oficiosamente em sede de sentença ou mediante requerimento das partes, ou ao coletivo de juízes dos tribunais superiores no que concerne aos recursos e respetivos incidentes, oficiosamente no acórdão ou subsequentemente mediante requerimento das partes.[27]

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos,
a) decide-se pela total procedência do recurso interposto pela Ré (…), em consequência do que se revoga a decisão recorrida relativamente ao montante indemnizatório fixado pela privação do uso da viatura, condenando a Ré a pagar à Autora (…) a quantia de € 10.950,00 (dez mil e novecentos e cinquenta euros);
b) decide-se pela parcial procedência do recurso interposto pelo Autor (…), em consequência do que se revoga a decisão recorrida relativamente aos montantes indemnizatórios fixados pela perda de capacidade de ganho/dano biológico e pelos danos não patrimoniais, condenando a Ré a pagar ao Autor (…) a quantia de € 114.000,00 (cento e catorze mil euros) e a quantia de € 54.000,00 (cinquenta e quatro mil euros), respetivamente.

Custas do recurso interposto pela (…), pela Recorrida (…).
Custas do recurso interposto por (…), pelo Recorrente e pela Recorrida (…) na proporção do decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza o Recorrente.

Vai dispensado, nesta instância, o pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Évora, 7 de dezembro de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Rosa Barroso
Ana Margarida Leite

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[1] Não se elenca a questão atinente à nulidade da sentença. Apesar de estar mencionado que a sentença enferma do vício de nulidade, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (cfr. ponto V das conclusões), certo é que nenhum fundamento é avançado para suscitar a discussão de tal matéria.
[2] Ac. STJ de 05/07/2018 (Abrantes Geraldes).
[3] Ac. STJ de 13/07/2017 (Maria da Graça Trigo); Ac. TRE de 05/11/2020 (Tomé Ramião); Ac. TRE de 09/02/2023 (Albertina Pedroso); Ac. TRE de 12/10/2023 (Ana Pessoa).
[4] Ac. TRE de 09/02/2023 (Albertina Pedroso).
[5] Ac. STJ de 08/09/2009.
[6] Relatado por Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt
[7] Relatado por Fonte Ramos.
[8] Relatado por Salazar Casanova.
[9] Álvaro Dias, in Dano Corporal. Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, 2001, pág. 133.
[10] Cfr. Ac. STJ de 04/06/2015 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e demais acórdãos aí citados.
[11] Ac. STJ de 25/11/2209, proc. n.º 397/03.0GEBNV.S1 A/lesado com 8 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 80% acrescida de 5% de dano futuro, indemnização de € 350.000,00; ac. STJ de 11/09/2014, no proc. n.º 3437/07.0TBVCT.G1.S1 Autora /lesada com 18 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 19 pontos, indemnização correspondente a danos patrimoniais futuros fixada em € 72.000,00; acórdão do STJ de 04/06/2015, no proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, Autora/lesada com 17 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 16,9 pontos, indemnização pelos danos patrimoniais futuros em € 55.000,00; acórdão do STJ de 26/01/2017, no proc. n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1 Autora/lesada com 29 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 13 pontos, indemnização pelo dano biológico em € 70.000,00; acórdão STJ de 06/04/2021, proc. n.º 2908/18.8T8PNF.P1.S1, A/lesado com 6 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 50 pontos, indemnização em € 300.000,00.
[12] Cfr. www.pordata.pt.
[13] Referencial invocado na p.i. para cálculo da indemnização.
[14] DL n.º 85-A/2022, de 22 de dezembro.
[15] Já que o valor indemnizatório será reportado àquela data.
[16] https://www.apseguradores.pt/pt/ferramentas/simuladores/valoriza%C3%A7%C3%A3o-de-dano-corporal
[17] DL n.º 2/2007, de 03/01.
[18] Veja-se que o valor alcançado com a aplicação da tabela no acórdão de 4/12/2007, de € 53.123,78 conduz a indemnização fixada, pela equidade, em € 110.000,00.
[19] Ac. STJ de 04/12/2007 já referido.
[20] Ac. STJ de 04/12/2007 já referido.
[21] Ac. do STJ de 17/01/2008.
[22] Ac. STJ de 26/01/2012.
[23] Cfr. Ac. STJ de 25/06/2002.
[24] Cfr. Acs. STJ de 22/10/2009, de 24/04/2013.
[25] Cfr. montantes das indemnizações arbitradas nomeadamente nos Acs. do STJ de 11/02/2016 (João Trindade), 14/07/2016 (João Trindade), de 16/03/2017 (Maria da Graça Trigo), de 09/01/2018 (José Rainho).
[26] Cfr. Ac. STJ de 14/10/2021 (Rosa Tching).
[27] O Tribunal da Relação só pode conhecer da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça devido em 1.ª Instância em sede de recurso de decisão nesta proferida sobre tal matéria. É o que resulta do princípio da autonomia, para efeitos de custas, das ações, dos recursos, dos procedimentos e dos incidentes.