Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1892/24.3T8STB.E1
Relator: SUSANA FERRÃO DA COSTA CABRAL
Descritores: ABANDONO DE SINISTRADO
DOLO
TRANSCRIÇÃO
DOCUMENTO
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
I. O Juiz deve enunciar os factos que, com base nos documentos (e outros meios de prova), considera provados e não limitar-se à transcrição literal das declarações dos intervenientes no acidente ou dos documentos juntos aos autos.

II. O conceito de “abandono do sinistrado” para efeitos do artigo 27.º, n.º 1 alínea d) do DL n.º 291/2007, de 21/08, pressupõe o dolo do lesante na omissão do dever de auxílio à vítima.

III. Não se verifica abandono doloso do sinistrado, para efeitos do referido preceito, quando, apesar de o Réu ter saído do local do acidente antes da chegada do INEM, por se encontrar assustado, se inteirou, previamente, do estado da vítima, soube que já havia sido contactado o 112 e que a vítima se encontrava acompanhada, tendo, após, regressado ao local do acidente, com a sua companheira, para prestar esclarecimentos à PSP, já presente no local.

Decisão Texto Integral: *

Acordam na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Évora,

1. Relatório:


Fidelidade-Companhia de Seguros S.A, com sede em Lisboa, demandou, em ação declarativa de condenação, com processo comum, AA, nascido em ...-...-1999, com o número de passaporte ..., residente em Cidade 1, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de €18.431,61, acrescida de juros, contados desde a citação até total e efetivo pagamento.


Em abono da sua pretensão invocou, em síntese, que celebrou um contrato de responsabilidade civil que tem por objeto o veículo automóvel com a matrícula ..-ZE-.., sendo que em 12-05-2021, o referido veículo seguro foi interveniente num acidente de viação, conduzido pelo Réu, que deu causa ao acidente, envolvendo um velocípede sem motor, resultando para o condutor deste veículo lesões graves, e ainda assim o Réu abandonou o sinistrado sem assistência.


Conclui que tendo o acidente ficado a dever-se a culpa exclusiva do Réu e tendo este abandonado o local e o sinistrado, após o embate, assiste-lhe, nos termos do artigo 27.º, n.º 1 alínea d) do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (instituído pelo DL 291/2007, de 21-08) direito de regresso sobre o Réu, relativamente às quantias que pagou ao sinistrado.


O Réu contestou pugnando pela improcedência da ação.


Após a realização da audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou o Réu no pagamento da quantia peticionada, mas com juros de mora desde a data da interpelação extrajudicial ocorrida em 03-11-2023, até integral e efetivo pagamento.


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Inconformado com esta decisão, o Réu interpôs o presente recurso, pedindo a substituição da sentença por outra que julgue a ação improcedente e o absolva do pedido. Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:

A. A questão fulcral e única deste recurso é saber se os factos apurados e dados como provados na sentença em recurso são o “quantum satis” para o preenchimento e subsunção na figura de “abandono de sinistrado” prevista na alínea d) do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto.

B. O Recorrente, que reconhece e reconheceu a sua culpa no acidente em causa, porém não abandonou o sinistrado.

C. Logo após o embate, o R. dirigiu-se ao sinistrado, falou com ele, tendo desviado a bicicleta.

D. Assustado e aflito, abandonou o local para ir pedir ajuda à sua companheira e namorada, BB.

E. Poucos minutos depois, ambos regressaram ao local do acidente, onde ainda se encontrava a viatura da PSP, tendo aí assumido e esclarecido o acidente.

F. Os factos apurados não se subsumem na figura do “abandono de sinistrado” Previsto na alínea d) do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto.

G. Abandono que sempre teria de ser doloso, conforme, entre outros, Ac. RC nº 2467/22.7T8RLA, de 9-04-2024.


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Não foram apresentadas contra-alegações.


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O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido neste Tribunal da Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.


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Colhidos os Vistos, cumpre apreciar e decidir.


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Questões a decidir:


O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, atento o disposto artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º e 662.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.


Assim, considerando o teor das conclusões formuladas, cumpre apreciar e decidir:

i. Se a matéria de facto dada como provada deve ser alterada:

ii. Se perante os factos provados se pode concluir que o Réu abandonou o sinistrado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 27.º, n.º 1 alínea d) do DL 291/07, de 21 de agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).

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2. Fundamentação:

O Tribunal a quo considerou

1. Provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a atividade seguradora.

2. No exercício da sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com BB, titulado pela apólice n.º ..., a Autora aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo motociclo de marca Yamaha, modelo NMAX com a matrícula ..-ZE-.., dentro dos limites legais e contratuais.

3. No dia 12 de maio de 2021, pelas 14h40m, na Avenida 1, n.º 3, na união das freguesias de ..., concelho e distrito de Cidade 1, ocorreu um acidente de viação.

4. No âmbito do qual foram intervenientes o motociclo seguro pela Autora e conduzido pelo Réu, de marca Yamaha, modelo NMAX, com a matrícula ..-ZE-.. e o velocípede sem motor, marca MUSTACH, propriedade e conduzido por CC.

5. Era dia e a via tinha iluminação natural.

6. O limite de velocidade no local era de 50kms/hora.

7. A faixa de rodagem tem um traçado retilíneo com várias centenas de metros de comprimento.

8. A via tem 7,00 metros de largura.

9. No local, a faixa de rodagem é constituída por duas vias de trânsito, uma para cada sentido, sendo as mesmas separadas por linha longitudinal contínua.

10. A via é limitada à direita e à esquerda por lancil/passeio de médias dimensões.

11. O Réu conduzia o veículo seguro no local e hora supra identificados, a uma velocidade não apurada.

12. Na mesma hora e local em que circulava o Réu com o veículo seguro (..-ZE-..), no sentido Sul-Norte (ascendente), circulava o velocípede sem motor conduzido por CC, no sentido Norte-Sul (descendente).

13. Na mesma hora e local, o veículo com a matrícula ..-ZE-.. (conduzido pelo Réu) virou à esquerda, junto ao n.º 5 da aludida Avenida, com o que pisou e transpôs o traço continuo, provado em 9.

14. Com esta manobra, o veículo com a matrícula ..-ZE-.. cruzou a via destinada ao sentido contrário àquele em que seguia (Sul-Norte) e atravessou metade da via destinada ao trânsito no sentido Norte-Sul, pela qual circulava o velocípede, cuja linha de trânsito cortou.

15. Ocorreu a colisão entre os dois veículos identificados em 4.

16. O embate do veículo seguro no velocípede deu-se com a parte frontal (para-brisas) deste no velocípede tripulado pelo terceiro sinistrado.

17. Os intervenientes no acidente prestaram as seguintes declarações à Autoridade que tomou conta da ocorrência, a Polícia de Segurança Pública de Cidade 1, que se transcrevem:

a) Declarações do Réu:

b) Declarações do condutor do Velocípede, CC:


18. DD chamou a PSP ao local, que chegou às 14h50, tendo ainda retirado a bicicleta do sinistrado no meio da via de trânsito.

19. O Réu após a colisão foi ter com o condutor do velocípede, CC. Não contactou a polícia, nem o INEM, não aguardou os meios médicos, saiu do local do sinistro, sem deixar o seu contacto e foi ter com a sua namorada que estava em casa.

20. Consta do auto de Ocorrência:

21. A polícia quando chegou ao local do sinistro, o Réu não se encontrava, tendo reportado esse facto à Central.

22. O Réu regressou ao local do sinistro, acompanhado de BB, sua companheira, após contacto da polícia à proprietária do veículo motociclo.

23. Em consequência do embate, o Sinistrado CC deu voltas no ar antes de cair no solo, sofrendo uma fratura da tíbia da perna direita, hematoma na cabeça, no pé esquerdo, na anca esquerda, escoriações no pé e na perna do lado esquerdo, nas costas e no braço esquerdo.

24. O Sinistrado CC foi assistido no local por uma ambulância dos Bombeiros Municipais de ..., que o transportaram para o Centro Hospitalar de Cidade 1-Hospital de ... e por uma viatura dos Bombeiros Sapadores de Cidade 1.

25. O contrato de seguro, melhor descrito em 1., encontrava-se em vigor à data do acidente em que o referido veículo esteve envolvido, ou seja, em 12 de maio de 2021.

26. Em 18-05-2021, o Réu assinou a seguinte declaração perante o GEP- Gestão de Peritagens:

27. A Autora pagou ao Sinistrado em decorrência do sinistro 18.431,61€ (dezoito mil, quatrocentos e trinta e um euros e sessenta cêntimos):

a. 423,67€ (quatrocentos e vinte e três euros e sessenta e sete cêntimos), a título de despesas médicas, com táxi e danos em objetos pessoais;

b. 3.504,73€ (três mil quinhentos e quatro euros e setenta e três cêntimos), a título de procedimentos no joelho e enxerto no pé;

c. 341,45€ (trezentos e quarenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos), a título de despesas médicas;

d. 75,00€ (setenta e cinco euros), a título de exames médicos;

e. 150,00€ (cento e cinquenta euros), a título de consultas de psicologia;

f. 208,83€ (duzentos e oito euros e oitenta e três cêntimos), a título de despesas com exames radiológicos;

g. 28,73€ (vinte e oito euros e setenta e três cêntimos), a título de despesas com exames radiológicos;

h. 152,60€ (cento e cinquenta e dois euros e sessenta cêntimos), a título de despesas com exames médicos;

i. 2.019,31€ (dois mil dezanove euros e trinta e um cêntimos), a título de despesas médicas;

j. 1.527,29€ (mil quinhentos e vinte e sete euros e vinte e nove cêntimos), a título de despesas com a reparação do velocípede sem motor.

k. 7.900,00€ (sete mil e novecentos euros) por danos não patrimoniais, por acordo celebrado entre a Autora e o Sinistrado em 30-01-2023;

l. 2.100,00€ (dois mil e cem euros), por danos patrimoniais, por acordo celebrado entre a Autora e o Sinistrado em 30-01-2023.

28. O sinistrado ficou com Défice Funcional Permanente da Integridade Física- Psíquica, de 10 pontos, relativo a:

i) Síndrome pós comocional: 2 (dois) pontos;

ii) Joelho doloroso: 3 (três) pontos;

iii) Ombro doloroso: 2(dois) pontos;

iv) Anca dolorosa: 3 (três) pontos.

-Dano Estético Permanente: fixável no grau 3, numa escala de gravidade ascendente de 7 graus, tendo em consideração as cicatrizes;


- Repercussão nas Atividades Desportivas e de Laser: fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em consideração as perturbações descritas.

29. Da cláusula 31.º das Condições Gerais do Contrato de Seguro resulta “DIREITO DE REGRESSO DO SEGURADOR


Satisfeita a indemnização, o Segurador apenas tem direito de regresso:

d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado;”

30. A Autora enviou uma carta ao Réu, em 03-11-2023, pedindo o pagamento da quantia peticionada nos autos, não tendo este último pago qualquer quantia à Autora.


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2.2. Factos não provados

a. Que o veículo conduzido pelo Réu ao virar à esquerda junto ao n.º 5, não tenha sinalizado a manobra, sem prejuízo do apurado em 13.

b. Que apesar do embate no terceiro (sinistrado), o Réu não permaneceu no local para verificar o que tinha sucedido com aquele, tendo prosseguido a sua marcha, sem prejuízo do apurado em 19.

c. Que o Réu com a sua conduta, saída do local do sinistro, agravou as dores e angústias do sinistrado.


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3. Apreciação do Recurso

1. Da alteração da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida

O tribunal deu como provado o facto 22 com o seguinte teor:


“22. O Réu regressou ao local do sinistro acompanhado de BB, sua companheira, após contacto da polícia à proprietária do veículo motociclo.”


O recorrente insurge-se contra este facto referindo, na motivação do recurso, que:

“Ainda da parte fundamentadora da sentença em recurso, foi sustentado que “Por outro lado, o Réu garantiu que regressou ao local por decisão própria e acompanhado pela sua companheira (namorada).

Cumpre referir que a companheira do Réu, a testemunha BB depôs no sentido de que ambos chegaram ao local juntos e dirigiram-se diretamente à viatura da PSP, garantindo não ter recebido qualquer telefonema da PSP e que foi o Réu que lhe disse em casa, que esta deveria acompanhá-lo até ao local do sinistro”

A Meritíssima julgadora, sem explicitar o porquê, lógico e seguro, do seu alegado convencimento de que “é mais verossímil a este julgador que efetivamente BB tenhas recebido o contato efetuado pela PSP, por ser proprietária do veículo e que, após esse telefonema ambos tenham ido ao local do sinistro, motivo pelo qual se dirigiram de imediato para o carro da PSP”. Dir-se-á, antes de mais, que um telefonema para a PSP, se ocorreu ou não, sim ou não, demonstra-se facilmente pelos registos da operadora telefónica, prova que não se mostra realizada nos autos.

Por outro lado, BB foi arrolada como testemunha, tendo sido advertida, previamente ao seu depoimento, que estava obrigado a dizer a verdade sob pena de cometer um crime.

Pelo supra alegado, não se vê lógica nem consistência no processo de convencimento da senhora juiz julgadora “a quo”. Nem lá se chega pelo recurso às regras da experiência comum, salvo o devido respeito.”.

Analisada a petição inicial, verifica-se que a parte impugnada do facto não foi alegada nos articulados. Com efeito, na petição inicial, a autora limita-se a alegar no artigo 51.º que:


“Foi mais tarde, já depois de o sinistrado ter recebido auxílio médico e ter sido transportado para o hospital, que o Réu voltou ao local do sinistro, tendo sido identificado perante a PSP pela testemunha DD.”.


Cumpre, assim, apreciar e decidir se é de manter o facto dado como provado nos seus exatos termos:


A prova deste facto foi justificada na sentença do seguinte modo:


“Quanto ao facto 22., atendeu-se ao depoimento de EE, que relatou que o Réu regressou ao local, no máximo 15 minutos após a chegada da PSP, testemunho que o Tribunal considerou credível porque coerente com a prova documental, objetivo, isento, tendo efetivamente respondido algumas vezes que não se recordava de determinados factos concretos, o que se considera natural, dado ao número de acidentes com que lida, exercendo estas funções desde 1998, tornando o seu depoimento ainda mais credível.


A testemunha EE exprimiu além disso, que tinha quase certeza que a proprietária do motociclo, BB tinha sido contactada pela PSP. (…)


Por outro lado o Réu garantiu que regressou ao local, por decisão própria e acompanhado pela sua companheira (namorada).


Cumpre referir que a companheira do Réu, a testemunha BB depôs no sentido de que ambos chegaram ao local juntos e dirigiram-se diretamente à viatura da PSP, garantindo não ter recebido qualquer telefonema da PSP e que foi o Réu que lhe disse em casa, que esta deveria acompanhá-lo até ao local do sinistro.


Assim da análise crítica e global da prova testemunhal, de BB e EE conjugadas com o depoimento prestado pelo sinistrado/testemunha CC, assim como das declarações prestadas pelo Réu, é mais verossímil a este julgador que efetivamente BB tenha recebido o contactado efetuado pela PSP, por ser a proprietária do veículo do qual tinham já a informação da matrícula, e que após esse telefonema ambos tenham ido ao local do sinistro, motivo pelo qual se dirigiram de imediato para o carro da PSP, facto confirmado pelas declarações prestadas pelo Réu, e do depoimento da testemunha BB, e não para a ambulância que já se encontrava no local aquando da chegada de ambos, de forma a informarem-se quanto ao estado do sinistrado, o que consideraria este julgador mais credível.”


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Ouvido o depoimento da testemunha EE verifica-se que ao minuto 7:20 a testemunha disse: “Não fui de certeza eu que comuniquei com a proprietária do veículo … tenho a certeza que comuniquei à central que o condutor do veículo interveniente no acidente não estava no local.” De seguida explicou: “Acontece muitas vezes, no momento saem por nervosismo e depois aparecem outra vez.”. Ao minuto 15:25 a testemunha é novamente inquirida sobre esta situação concreta e afirma: Informei via rádio a central. Eles na central veem logo quem é o proprietário, mas podem não ter o contacto do proprietário, pois só têm o contacto se esse proprietário já tiver tido alguma coisa com a polícia. E, concluiu: “Acho que ligaram para a senhora, proprietária do veículo, mas não tenho a certeza.”.


Face a este depoimento e considerando que “o Réu garantiu que regressou ao local, por decisão própria e acompanhado pela sua companheira (namorada).” (fls. 15 da sentença, motivação do facto 22) E que “a testemunha BB depôs no sentido de que ambos chegaram ao local juntos e dirigiram-se diretamente à viatura da PSP, garantindo não ter recebido qualquer telefonema da PSP e que foi o Réu que lhe disse em casa, que esta deveria acompanhá-lo até ao local do sinistro.”, concluímos que não está demonstrado a 2.ª parte do artigo 22.º porque ninguém o afirmou, designadamente a testemunha EE.


Pelo exposto, altera-se nesta parte a matéria de facto, passando o facto 22 a ter o seguinte teor:

“22. O Réu regressou ao local do sinistro, acompanhado de BB, sua companheira, no máximo 15 minutos após a chegada da PSP.”

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Nos artigos 17, 20 e 26 o tribunal deu como provado as declarações do Réu e do condutor do velocípede, e reproduziu o documento, ou mais propriamente copiando a imagem das declarações, tal como deu como provado o que consta do auto de ocorrência, copiando mais uma vez a imagem do auto e finalmente também a declaração que o réu assinou perante o GEP – Gestão de Peritagens.


No recurso, diz o recorrente:


“A transcrição feita imediatamente atrás, devidamente assinalada com aspas (“”) e em “blond” foi inserida no segmento da sentença referente aos factos provados.


Fica-se sem saber se a douta julgadora deu como provado o conteúdo do que declarado, ou se apenas deu como provado que o Recorrente prestou aquelas declarações…”.


Não se suscitam dúvidas de que o que foi declarado provado foi que o Recorrente e o sinistrado prestaram aquelas declarações, porém, da análise da motivação da decisão de facto, percebe-se que o que o tribunal queria e devia ter dado como provado eram os factos relevantes que extraiu desses documentos.


A propósito da reprodução de documentos, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 2663/10.0TTLSB.L1.S1, de 22-04-20151 (Mário Belo Morgado):


“I - Os documentos não são factos, mas meios de prova de factos.


II - Em lugar da mera remissão para os documentos incorporados nos autos, o juiz deve enunciar os factos que com base nos documentos (e outros meios de prova) considera provados, explicitando suficientemente o seu conteúdo fundamental.”.


Esta jurisprudência mantém-se atual, tendo sido corroborada no recente acórdão do STJ de 24-01-20242, onde se decidiu que: “Os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, constituindo, portanto, prática incorreta, na decisão sobre a matéria de facto, remeter para o teor de documentos.


Dar por reproduzidos documentos ou o seu conteúdo é bem diferente de dizer qual ou quais os factos que, deles constando, se consideram provados - provados quer por força do próprio documento em si, quer por outra causa (v.g. acordo sobre um facto nele indicado, embora o documento não gozasse de força suficiente para o dar como provado)- Ac. do STJ de 25-03-2010, processo n.º 186/1999.P1.S13.


Ora, tendo em consideração o que consta da motivação da decisão de facto, designadamente, na motivação dos artigos 18.º, 19.º e 20.º onde se refere:


“A testemunha (DD) esteve no local e assistiu ao embate, demonstrou conhecimento direto dos factos, prestou um depoimento bastante pormenorizado mas sem deixar de ser espontâneo, claro, coerente e sem qualquer interesse no desfecho da causa, por isso objetivo, considerado pelo Tribunal como mais credível. Essa apreciação aliada ao facto do depoimento estar reforçado pela prova documental junto aos autos, email que a testemunha DD confirmou ter enviado ao GEP, no dia 7 de junho de 2021, data mais próxima do sinistro (12-05-2021), logo com os factos mais recentes na memória. Mais precisamente quanto à hora da chegada da PSP ao local, encontra-se provada pelo auto de notícia, prova plena. (…) Relativamente ao estado anímico do Réu, foi sustentado pelo depoimento de DD que reforçou o que consta da prova documental (email por si enviado), onde refere que o Réu estava “visivelmente em pânico” quando saiu do local.”.


E considerando também o depoimento da referida testemunha DD quando diz que:


(Minuto 04:58:


Testemunha DD: O Sr. AA foi logo verificar o ciclista.


Juiz: Foi logo perceber se o ciclista estava bem. É isso?


Testemunha: sim, sim. Eu também cheguei imediatamente e eu disse para não se mexer no senhor.


Minuto 05:32:


Testemunha DD: Entretanto começaram-se a juntar pessoas … 3, 4 , 2 …. Não me recordo e entretanto o motociclista saiu. O motociclista, o Sr. AA, estava assustado e o Sr. Da bicicleta estava em mau estado. Tinha um capacete e estava a sangrar da cabeça, mesmo com capacete. Mas não estava agitado. estava calmo. (…) Fui eu que chamei o 112. Eu faço isto sempre ….. eu chamo automaticamente o 112.”.) “. Aliás na própria fundamentação de facto consta que o Réu declarou que saiu do local sem aguardar pelo chegada dos meios médicos “explicando ter agido dessa forma porque se sentiu assustado. Este facto, por se considerar como um dado não abonatório para o próprio, mereceu maior credibilidade, sem descurar a circunstância de estar sustentado pelo depoimento de DD que reforçou o que consta da prova documental onde refere o Réu estava “visivelmente em pânico” quando saiu do local.”


Altera-se o facto 26 que passa a ter o seguinte teor:


26 – Após verificar o estado do ciclista, que se encontrava sentado no passeio, tendo-lhe sido dito para não mexer na vítima, uma vez que já tinha sido comunicado o acidente ao 112 e estando já outras pessoas no local, o Réu, assustado, saiu do local do sinistro. Quando regressou ao local, o Réu foi junto da PSP para assumir e esclarecer o acidente.


Em suma, alteram-se os factos 22 e 26 nos exatos termos supra citados.


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2. Do direito de regresso da Seguradora sobre o Apelante, por abandono do sinistrado

A Autora, no pressuposto de o sinistro ter ficado a dever-se a culpa exclusiva do Réu e de ter pago indemnização ao sinistrado com base no contrato de seguro celebrado com a proprietária do veículo causador do acidente, pretende por via desta ação ser reembolsada pelo Réu do valor que pagou a esse título, com fundamento no facto de o Réu ter abandonado o sinistrado. Defende, que lhe assiste o direito de regresso previsto no art.º 27.º, n.º 1, alínea d) do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo D.L. 291/2007, de 21/08.


Na sentença recorrida considerou-se estarem preenchidos os quatro pressupostos necessários ao reconhecimento do direito de regresso da seguradora por abandono do sinistrado, porquanto, concluiu-se na sentença, que:

a. Foi o Réu que deu causa ao acidente.;

b. O Réu retirou-se do local do acidente, sem ter prestado o auxílio que lhe era exigível, segundo as circunstâncias;

c. O Réu atuou com dolo necessário porque se apercebeu que do acidente resultou perigo para a integridade física do sinistrado e não prestou a devida assistência podendo fazê-lo.

d. O valor de €18431,61, pago pela seguradora, a título de despesas médicas, tratamentos médicos, indemnizações e reparação do veículo são proporcionais e adequados.

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No recurso, o Réu/Apelante reconhece a sua responsabilidade pelo acidente em causa, mas sustenta que não abandonou o sinistrado e que os factos provados não se subsumem no conceito de “Abandono de sinistrado” previsto na alínea d) do citado artigo 27.º do DL 291/2007, de 21 de agosto, muito menos na sua forma dolosa.


A questão essencial a apreciar e decidir consiste, assim, em determinar se os factos dados como provados são suficientes para preencher a previsão deste artigo 27.º, n.º 1, alínea d), ou seja, se está ou não demonstrado o “Abandono do sinistrado”, fundamento necessário para o exercício do direito de regresso da seguradora.


Nos termos da referida disposição legal, satisfeita a indemnização, tem a seguradora direito de regresso contra o condutor do veículo causador do acidente que haja abandonado o sinistrado.


A interpretação deste conceito gerou acesas controvérsias, tendo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferido, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 11/2015 (publicado no D.R.-1.ª Série, n.º 183, de 18-09-20154).


Embora este Acórdão tenha fixado jurisprudência quanto a um aspeto específico – o âmbito dos danos sofridos pelo sinistrado abrangidos pelo direito de regresso da seguradora, com fundamento no abandono do sinistrado - da sua fundamentação, decorrem considerações relevantes sobre o conceito de “abandono do sinistrado”, aí considerado.


De acordo com este Acórdão, o conceito de abandono do sinistrado, enquanto facto constitutivo do direito de regresso da empresa de seguros, “pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência”.


Sublinha-se, ainda, nesse aresto que “não pode confundir-se a figura do abandono de sinistrado com a contra ordenação, prevista no art. 89º, nº 2, do C. Estrada - que sanciona o condutor que não aguarde no local do acidente a chegada de agente de autoridade: podendo a assistência devida aos lesados ser prestada pelo próprio ou por terceiros, não comete o facto doloso de abandono de sinistrado o condutor que, apesar de infringir aquela obrigação de estrita permanência no local, não chegou a formar e consumar a vontade de omitir a prestação da assistência devida aos lesados - afastando-se do local do acidente, nomeadamente por fundadas razões de receio, segurança ou perturbação, mas identificando-se e comunicando imediatamente, ato contínuo ao acidente, a ocorrência à competente autoridade policial ou rodoviária - e assim providenciando pela pronta assistência às vítimas por parte das entidades capacitadas para tal efeito.”.


Em suma, resulta do Acórdão uniformizador, apenas o abandono doloso do sinistrado é suscetível de fundamentar o direito de regresso da seguradora previsto na alínea d) do artigo 27.º do DL 291/2007, de 21/08.


Esta interpretação restritiva de abandono do sinistrado tem vindo a ser seguida de forma unânime, pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que é exemplo o recente Acórdão do STJ de 19-09-2024, proferido no processo n.º 2473/22.1T/AVR.P1.S15, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-04-2025 (Proc. 130/24.3T8ESP.P1)6 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-01-2021 (Processo n.º 998/19.5TORM.E1.7.


Como se refere nestes acórdãos , “O dolo do agente é aquele em que este quis diretamente realizar o facto ilícito - dolo direto -, ou previu-o como uma consequência necessária, segura da sua conduta - dolo necessário -, ou, ainda, previu a produção do facto ilícito como uma consequência possível, eventual, da sua conduta e conformou-se com ela – dolo eventual” e, por conseguinte, comporta dois elementos:


- um elemento intelectual, traduzido na consciência de ter causado o acidente e através dele, causado vítimas e um elemento volitivo, consubstanciado em ter querido, aceite ou conformado com o resultado da omissão de auxílio ao sinistrado” (neste sentido, o referido Acórdão do STJ de 19-09-2024).


Apenas a verificação de ambos permite afirmar a existência de abandono doloso do sinistrado.


No caso em apreço, a factualidade provada não permite dizer que o comportamento do réu consubstancie abandono doloso do sinistrado, nos termos artigo 27.º, n.º 1 alínea d) do DL 291/2007, de 21 de agosto.


Com efeito, resultou provado que, logo após o acidente, o Réu dirigiu-se ao condutor do velocípede que se encontrava sentado no passeio, para verificar o estado do mesmo.


De imediato se aproximaram outras pessoas, uma das quais (a testemunha DD) que procedeu de imediato à chamada para o número de emergência 112.


O Réu, assustado, afastou-se do local ainda antes da chegada dos meios de socorro, mas regressou cerca de 15 minutos depois, com a sua companheira, já na presença da PSP a quem se dirigiu para justificar a sua saída.


Embora se possa censurar a conduta do Réu de abandonar o local e se possa considerar, face aos factos provados, estar preenchido o elemento intelectual do dolo (consciência de ter causado o acidente e de existir uma vítima – que conforme consta do auto de ocorrência – cfr. facto 20. Foi caracterizado como “ferido leve”, mas que ainda assim foi assistido no local e transportado para o Centro Hospitalar de Cidade 1 – Hospital de ... ) não se demonstra a existência do elemento volitivo do dolo – o réu não quis, não aceitou, nem se conformou com a falta de assistência ao sinistrado.


O Réu não se conformou com o desamparo da vítima: apercebeu-se que já fora solicitado apoio médico, estavam mais pessoas no local e regressou minutos depois, acompanhado. Trata-se, quando muito, de uma reação emocional imprudente ou negligente, mas desprovida do grau de consciência e vontade que o legislador exige para a verificação do dolo.


Como referiu o STJ no citado acórdão de 19-09-2024, que se debruçou sobre um caso semelhante:


“Os factos dados como provados (…) permitam sustentar que se encontra preenchido o elemento intelectual, não permitem sustentar que se encontre preenchido o elemento volitivo do dolo.


46. O facto dado como provado sob o n.º 21 é do seguinte teor:


21 - Logo após o acidente começaram-se a juntar muitas pessoas e, de imediato, foi realizado o pedido de auxílio para emergência médica.


47. Em face das circunstâncias descritas, o lesante não terá sequer representado como possível o resultado da omissão da assistência — e, não o tendo sequer representado como possível, não pode ter-se conformado com o resultado ilícito”.


Assim, a factualidade apurada permite concluir que o Apelante abandonou o local do acidente após o mesmo , todavia não permite sustentar que tenha abandonado o sinistrado dolosamente, o que obsta a que se reconheça à Seguradora o direito de regresso sobre o Apelante, com a consequente revogação da sentença recorrida.


Porque vencida no recurso, suportará a Apelada as custas da apelação, nos termos do disposto nos artigos 527.º e 529.º do CPC.


*


3. Decisão:


Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente a apelação, revogar a decisão recorrida, e consequentemente, absolver o Réu do pedido.


Custas pelo apelante.


*


Évora, 30 de setembro de 2025


Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)


Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto (1.ª Adjunta)


Maria Adelaide Domingos (2.º Adjunta)

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1. Acessível in

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/63e8d53da76075cc80257e30003824b9?OpenDocument↩︎

2. Acessível in

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f0c2bbb7e0439a6e80258aaf003f5524?OpenDocument↩︎

3. Acessível in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d58935c2f88ba0b980257703002f9a5c?OpenDocument↩︎

4. Acessível in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/11-2015-70325359.↩︎

5. Acessível in

https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c1b20058cbb9ee4180258b9e005dfa76?OpenDocument↩︎

6. Acessível in

https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/30260d676f23649d80258c81003ca804?OpenDocument↩︎

7. Acessível in

https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/fe67f8e09ee19d5a802586690030e44b?OpenDocument↩︎